9/29/2005

Como tudo começou

Olhando as reportagens da campanha eleitoral que a televisão nos tem proporcionado, dei comigo a pensar por que têm as coisas de ser como são, se nem sempre foram assim. Veio-me à memória um texto de Mário Henrique Leiria intitulado "Torah", que fui repescar para o presente post:



Jeová achou que era altura de pôr as coisas no seu devido lugar. Lá de cima, acenou a Moisés.
Moisés foi logo, tropeçando por vezes nas lajes e evitando o mais possível a sarça ardente.

Quando chegou ao cimo, tiveram os dois uma conferência, cimeira, claro. A primeira, se não estou em erro.


No dia seguinte, Moisés desceu. Trazia umas tábuas debaixo do braço. Eram a Lei.


Olhou em volta, viu o seu povo aglomerado, atento, e disse para todos os que estavam à espera:


-Está tudo aqui escrito. Tudo. É assim mesmo e não há qualquer dúvida. Quem não quiser, que se vá embora. Já.

Alguns foram.

Então começou o serviço militar obrigatório e fez-se o primeiro discurso patriótico.


Depois disso, é o que se vê.

9/28/2005

Autárquicas

Os frequentadores deste blog talvez se consigam lembrar de um texto intitulado "Estúpidos ou Inteligentes?" Era a propósito da reeleição de Bush e do Alberto João. A história tem a sua óbvia continuidade nas presentes eleições autárquicas. Embora haja uma série de candidatos que são alvo de suspeições várias, eles reúnem fortíssimas probabilidades de serem eleitos pelas gentes locais. A óptica das populações votantes mostra uma candura de séculos: se no poder central, que é lá longe, eles roubam que se farta, elejamos alguém que saiba igualmente roubar,porque ao menos rouba para nós. Está de acordo com a sabedoria popular: ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão.

9/27/2005

De regresso

Cheguei! Estive cerca de sete meses fora, no nordeste brasileiro, e nunca a vida me pareceu tão curta para curtir. Já cá estou há umas semanas, mas não me quis intrometer num blogue onde não tenho sido bem recebido. Mesmo assim, admito que me deixaram expor as minhas ideias. De quando em vez, fosse em Natal, com as suas praias (adorei Pirangi!), fosse em Fortaleza, fosse na incrível ilha de S. Paulo, eu ainda dava uma breve espiada nesta droga do blogue. Notei que o camarada que dava pelo nome de Peter Pan se tinha evaporado. Que descanse em paz, porque não faz cá falta nenhuma. Entrou um novo, que ainda não deu bem para perceber, mas já vi que também é esquerdóide. Como vocês todos, aliás. O que fez apressar o meu regresso a estas andanças foi um comentário interessante que aqui encontrei no outro dia: o lançamento de um selo no Brasil. Como o mundo é pequeno! Eu estava lá!! Em Fortaleza. Só tenho pena de não conhecer o António que contou aquela história toda, e bem certinha!
Agora, depois do assassínio político que o Presidente Sampaio fez ao Doutor Pedro Santana Lopes, não vejo críticas nenhumas ao actual Primeiro. Será que os autores deste blogue só vêem com um olho? Vocês podem ser muito objectivos quando se referem a objectos, mas quanto a pessoas não podiam ser mais parciais. Qualquer dia falamos! Só queria dizer que cheguei. Beijinhos para as senhoras!

9/25/2005

O Marquês de Nova Orleães

Há dias passei os olhos pelo www.caffeeuropa.it . Estava quase a abandoná-lo quando deparei com um artigo em italiano, de nove páginas, intitulado: "Lisboa 1755: uma lição para reconstruir Nova Orleães." Para minha surpresa, o autor, Siegmund Ginzberg, estabelecia um paralelo entre 1755 e a recente catástrofe causada pelo furacão Katrina. Permito-me fazer um resumo da essência do artigo.
Segundo o autor, Lisboa, com o seu porto e suas fabulosas riquezas, desempenhava então um papel relevante no comércio entre o Mediterrâneo (e o Brasil) e a Inglaterra. Era para Portugal o que Nova Orleães, com o seu imenso porto de 200 quilómetros ao longo das margens do Mississipi, representa hoje para a economia americana. Em pleno século das luzes, a questão principal que se levantou aquando do cataclismo de Lisboa girou à volta da "justificação da vontade de Deus". Escreveram-se numerosos artigos e livros sobre o assunto, tendo pensadores tão conhecidos como Voltaire, Rousseau e Kant dado as suas opiniões sobre o terramoto. A "ira de Deus" foi tema forte, desenvolvido em Portugal especialmente pelo jesuíta italiano Malagrida. Notável orador, este jesuíta defendeu que as verdadeiras causas da destruição de casas, palácios, igrejas e conventos tinham sido os "abomináveis pecados" da cidade. A sua argumentação continha um óbvio ponto fraco: se Lisboa possuía tantos lugares religiosos e tantos homens e mulheres da Igreja, porque a teria Deus exactamente escolhido para fazer desabar a sua ira?
Pela Europa fora, esta argumentação cedo deu lugar a uma outra: o terrível desastre tinha sido apenas o prenúncio de outras catástrofes bem mais graves. "Quando calhará a nossa vez?", perguntavam, inquietos, os habitantes de cidades como Paris e Londres. Numa onda diferente expressaram-se outros, quiçá mais progressistas. Por exemplo, Rondet, um jansenista francês, escreveu uma obra de 700 páginas -- Réflexions sur le Désastre de Lisbonne -- com a finalidade de demonstrar que Deus tinha escolhido Lisboa para avisar toda a Europa que deveria abandonar a Inquisição e o extremismo religioso. Um exilado português convertido ao protestantismo, Cavaleiro de Oliveira, produziu vários escritos para denunciar a "diabólica, infernal e ridícula" adoração de imagens e relíquias de santos, o "odioso tribunal" da Inquisição e o tratamento particularmente brutal dado aos judeus no nosso país. Dirigiu mesmo cartas ao rei, pedindo o afastamento dos jesuítas. Em vão. Orelhas moucas foi o que o rei e a população fizeram. As relíquias de santos aumentaram, enquanto os milagres se multiplicaram, tal como as procissões.
O terramoto atingiu principalmente a parte baixa da cidade. Tal como em Nova Orleães, era lá que vivia grande parte da população pobre, embora naturalmente não junto aos edifícios do palácio da Ribeira. Como era o dia 1 de Novembro, as igrejas estavam cheias de fiéis. Tanto o maremoto que se seguiu aos abalos como também os incêndios que deflagraram, ajudados pelo vento forte que então se fazia sentir, causaram entre 10000 e 15000 mortos. Os pobres foram as principais vítimas. E os doentes. Quatrocentos pessoas hospitalizadas morreram carbonizadas no Hospital Real. A mais numerosa das comunidades estrangeiras, a britânica, teve 77 mortos. Entre os nobres e pessoas da alta houve cerca de vinte vítimas. Estes são números relativamente reduzidos. Os ricos viviam nas partes mais altas da cidade, tal como em Nova Orleães. A família real apressou-se a construir o seu palácio no alto da Ajuda. Cedo voltaram a existir em Lisboa festas palacianas, o que, aliás, mereceu palavras de censura por parte da Igreja. Em Nova Orleães, as notícias dizem-nos que várias piscinas das casas dos mais ricos voltaram a estar cheias.
Se todas as grandes catástrofes têm um personagem principal, no caso de Lisboa esse personagem foi o Marquês de Pombal. Tão importante foi na reconstrução da "baixa" que ainda hoje nos referimos ao seu estilo como "pombalino". Quando o rei, pouco experiente, perguntou ao Marquês o que deviam fazer perante aquela calamidade, o Marquês terá respondido: "Enterrar os mortos, cuidar dos vivos". Enquanto a Europa, atónita, discutia como interpretar a cólera divina, o Marquês chamou a si a situação. Foi rápido e decidido. A fim de evitar que alguma epidemia alastrasse, menos de 24 horas depois do terramoto propôs ao patriarca que se recolhessem todos os cadáveres em embarcações. Os corpos seriam lançados às águas no mar, depois de passada a barra do Tejo. Tudo foi feito com discrição. Sem hesitar, ordenou a requisição de todos os cereais dos arredores da cidade e mesmo dos navios ancorados no porto. Impôs controlo severíssimo sobre os presos. Mandou prestar a melhor atenção aos cuidados hospitalares. Assegurou a ordem pública. Em 4 de Novembro, 72 horas após o tremor de terra, já tinha obtido autorização para proceder à execução sumária de quem fosse apanhado a saquear casas ou a roubar. Fez erigir forcas em vários bairros da cidade. Garantiu a continuidade das transacções comerciais e financeiras. Fez com que as tipografias voltassem imediatamente a funcionar (precisava delas para os editais). A Gazeta de Lisboa, semanal, saiu pontualmente no dia 5 de Novembro, sem que tivesse tido interrupção de um só número.
Em suma, fez num número reduzido de horas, e com os meios de que dispunha no século XVIII, aquilo que em Nova Orleães, no século XXI, levou uma semana.
O artigo termina com a inevitável comparação com Bush. Como não quero bater mais no ceguinho do Bush, fico-me por aqui, mas registo este ponto de vista estrangeiro sobre a acção de um português.

9/23/2005

«Triste é a ociosidade
danosa a intemperança
pesada a ignorância» (Tales de Mileto)



Manhã cálida de Setembro. Costa norte da ilha de Rodes. Um táxi parado num miradouro junto ao mar. Uma família de turistas contempla a beleza única, matricial, do Egeu e tira as habituais fotografias "para mais tarde recordar".
Eis que chega outro táxi. Percebe-se que o local é ponto de paragem obrigatória para os táxis de serviço ao tour pela ilha. Americanos, estes últimos, um casal de meia idade. É-lhes dito (conforme havia sido dito aos primeiros, e o mapa que estes consultavam não dava margem para dúvidas) que o território que se via do outro lado do mar era a Turquia.
Enormes manifestações de júbilo por parte da senhora americana, dir-se-ia que havia sido encontrada a Atlântida.
Excitadíssima, pergunta ao taxista em grandes sorrisos e alta voz: "Oh! É uma ilha? E vive lá gente?!"


«Suporta com condescendência a pequenez
dos teus próximos» (Pítaco de Lesbos)

9/22/2005

L'amour

A quadra que mais vezes encontrei nas velhas carteiras da Faculdade de Letras de Lisboa, sempre rabiscada por uma mão feminina:

Et n'oubliez jamais
Que l'amour platonique
Est toujours plat
Jamais tonique.

9/21/2005

Aproveitando a onda pessoana

Não sei se também terão sentido o mesmo, mas no regresso de férias tive a desagradável sensação de que as coisas (da política, naturalmente) estão deveras desinteressantes. Os aparelhos partidários fecham-se cada vez mais sobre si mesmos, fazendo com que os cidadãos não engajados neles se sintam como que excluídos. Já não há sequer resquício daquela pureza inicial que em tempos atraiu os mais generosos à res publica .

Assim sendo, aqui lavro o meu protesto e retomo a onda pessoana que em boa hora passou por este blog, numa tentativa de que a poesia seja, ainda que por momentos, o antídoto para a fealdade actual da vida política.



Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares em que estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.

Álvaro de Campos

A influência da estrangeirização na indústria alemã

As eleições que acabaram de realizar-se na Alemanha mostraram um país dividido e colocado numa charneira entre a necessidade de reformas e o posicionamento sintetizado pela conhecida fórmula "para melhor está bem, está bem; para pior já basta assim". A Alemanha é um país orgulhoso e tem fortes razões para se orgulhar. Tem igualmente motivos históricos para se envergonhar, mas cremos que esse acto de contrição já foi feito há décadas pela maioria da população. A Alemanha que ressurgiu da 2ª Guerra Mundial foi, para além dos destroços que precisaram de ser removidos a fim de permitir a reconstrução, uma nação de luta. Baseada na sua cultura e saber, não demorou muitos anos a constituir-se como poder económico a ter em conta. Quem se lembra da sociedade do bem-estar de Ludwig Erhardt, pode imaginar bem o quanto orgulhosos os alemães estavam da reconstrução da sua pátria. O espinho da divisão entre Alemanha Ocidental e RDA veio, ao fim de cerca de cinquenta anos, descravar-se com a reunificação. Foi uma reunificação custosa, com o governo a ter que abrir (muito) os cordões à bolsa para colaborar no re-erguer da parte leste. Foi também um enorme choque, principalmente para as pessoas de meia idade da República Democrática, terem de viver no seio de um regime que tinham sido habituadas a odiar. A República Federal, que no seu período áureo tantos Gastarbeiter, turcos, espanhóis, portugueses e italianos tinha atraído, começou a perder a sua velocidade habitual. O esforço da reunificação foi grande, as contribuições para uma alargada União Europeia foram substanciais.
E como não há duas três, veio a estrangeirização da economia. A Alemanha sempre foi um país industrial. A abertura da China e países do sudeste asiático, a que se juntou a abertura dos países de leste libertados pela desintegração da União Soviética, possibilitou à indústria alemã uma mão-de-obra bem mais barata do que na Alemanha propriamente dita. Que fazer se não aproveitar essas oportunidades? O confronto que se criou na sociedade alemã foi -- e continua a ser -- violento. Como país exportador, a Alemanha viu as suas empresas mais consagradas insistirem na ideia de que se encontravam num mercado globalizado e fortemente competitivo. Se não fizessem o mesmo que os outros, que estavam a aproveitar essas mesmas oportunidades, deixariam de ter escoamento para os seus produtos. Várias empresas deslocalizaram-se, total ou parcialmente. Outras negociaram com os sindicatos dos seus trabalhadores. As conversações foram duras, mas chegaram a termos conclusivos. Na generalidade, o económico prevaleceu sobre o social. A fim de assegurarem os seus postos de trabalho, os trabalhadores como que "lestizaram" ou "asiatizaram" os seus salários e as suas regalias sociais. Perderam o 13º mês, os seus salários reais são hoje inferiores aos de 2000. Reformam-se mais tarde. Entretanto, a taxa de desemprego do país aumentou para números recorde. Cerca de 4,7 milhões de trabalhadores no desemprego -- o equivalente a toda a população activa portuguesa! --ocasionaram um encargo extra para o Estado. Este não tem conseguido cumprir o Pacto de Estabilidade da União Europeia nos últimos quatro anos.
E as grandes firmas exportadoras? Bem, essas passaram a andar de vento em popa! Com mão-de-obra altamente especializada e a bem conhecida organização germânica, com salários reduzidos e mais horas de produção, as exportações treparam. A imagem de produto "made in Germany" conta muito! O resultado é que as empresas alemãs viram as suas acções valorizar-se. Nos últimos 10 anos, os seus lucros aumentaram 60 por cento. A Alemanha, que emergira do pós-guerra sem exageradas diferenças salariais, encontra agora elites muito ricas e, mais importante e grave, pobreza no país. É algo que necessariamente choca os alemães e entra em conflito com o seu orgulho nacional.
Infelizmente para as elites ricas, não são elas que fazem girar a economia interna, mas sim o grosso da população activa. O problema é que os trabalhadores têm menos dinheiro e não conseguem encarar o seu futuro com a mesma confiança de outros tempos. Consequentemente, a economia não progride à velocidade habitual. Em vez de comprar automóveis de três em três anos, a maioria da população espera que eles durem até aguentarem. Idem com outros produtos. Daí que o Estado arrecade menos receitas. Ora, ao ter de desembolsar mais, tanto para os pensionistas como para os desempregados, o Estado descapitaliza-se e tem, necessariamente, de encetar reformas. Fazer desaparecer o estado social é, contudo, algo impensável para a cultura alemã. A população entende a necessidade de reformas, mas reage com natural medo e insegurança. Uns mais do que outros, como sempre sucede. Daqui resulta uma nação dividida, algo que já vimos recentemente, mas por outros motivos, nos Estados Unidos.
Acho que, em vez de assobiarem para o lado, os portugueses deveriam interessar-se mais pelo que se está a passar na Alemanha. Quando a locomotiva da União está assim...

9/18/2005

O Gato e o Rato

Foram hoje publicados os resultados das candidaturas de acesso ao ensino superior. O processo continha este ano aquilo que, para algumas instituições, constituía uma condicionante de peso: o requisito da nota mínima de 9,5 numa das Provas de Ingresso. Se este requisito não fosse preenchido, uma média de 15 ou 16 no ensino secundário de nada serviria.
Esta é uma medida inédita. Prevista já há 4 anos, esteve para ser implementada o ano passado, mas acabou por sê-lo apenas nesta candidatura. Uma medida como esta carece de um mínimo de três anos para ser implementada devido ao facto de o conjunto dos anos 10º, 11º e 12º do ensino secundário perfazer o número de três. Por idêntico motivo, as escolas que apresentam ao Ministério uma alteração do seu conjunto de Provas de Ingresso têm igualmente que esperar três anos para que essa alteração possa entrar em vigor.
Para quem não é versado nestes assuntos, será importante informar que existem duas grandes divisões, virtuais, nas Provas de Ingresso: as que incluem Matemática e as restantes. Para a generalidade dos alunos do Secundário é bem mais fácil obterem um 15 a Português, Introdução ao Desenvolvimento Económico e Social, Economia ou Direito, do que a Matemática. A outra divisão faz-se, grosso modo, entre ensino público e privado e, dentro desta dicotomia, entre cursos universitários e cursos politécnicos.
As universidades já requerem uma nota mínima de 10 há vários anos e não têm tido problemas com isso. O mesmo não podem dizer todos os cursos dos politécnicos. Relativamente àqueles para os quais a Matemática é uma disciplina essencial -- cursos como os de Engenharia ou de Contabilidade --, as escolas têm efectuado através dos seus Conselhos Científicos alguns "casamentos" para a Matemática que, em caso de necessidade, equilibram as médias, a que se junta a sempre positiva média do Secundário. A fórmula habitual nos anos mais recentes tem sido a seguinte: média do secundário x 0,65 + provas de ingresso x 0,35. No caso da Contabilidade, tem sido vulgar juntar-se à Matemática a cadeira de Introdução ao Desenvolvimento Económico e Social, de Economia, Português B ou ainda a de Geografia. Como que por artes mágicas, as notas sobem uns pontinhos. Ora, este ano essa benesse acabou. E acabou por ordem do Ministério, que se afirma interessado em "elevar a qualidade". Leia-se nas entrelinhas "e reduzir despesas devido a constrangimentos orçamentais". Ao financiar menos alunos, o Estado diminui as suas despesas, não só devido às fórmulas de cálculo como também porque eventualmente o número de docentes necessário para leccionar será menor. Assim actua o gato.
E o rato? Bem, as escolas defendem-se como podem. Já que o anúncio das alterações para os alunos foi feito há quatro anos, muitas delas procuraram que as Provas de Ingresso fossem modificadas também. Agindo em conformidade, os respectivos Conselhos Científicos terão feito entrega atempada no Ministério dessas alterações. Com a finalidade de evitarem grandes desastres para as instituições, juntaram ao requisito da Prova de Ingresso de Matemática alternativas oficialmente válidas: Direito, por exemplo, Economia, ou Psicologia. Efectuar uma Prova de Matemática ou uma de Psicologia passou a valer o mesmo. É depois automaticamente escolhida a de classificação mais elevada. Assim se contorna o obstáculo sério da Matemática.
Quem não estiver ciente destas transformações nas regras de acesso e julgar que todas as escolas se regem pelo mesmo padrão estranhará certamente que o ISCAP (Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto) tenha este ano oferecido 350 vagas no conjunto do seu curso de Contabilidade e Administração diurno e nocturno e tenha logrado preencher todas essas vagas menos 26 logo na 1ª fase. Em contraste acentuadíssimo, institutos similares de Aveiro e Lisboa ofereceram no seu conjunto um total de 533 vagas para cursos idênticos e não preencheram mais do que 64 dessas vagas, ou seja uns paupérrimos 12 por cento. Há decerto ratos que são mais lestos e vivos do que outros.
Restam duas perguntas finais. Primeira questão: o processo é legal? A resposta é afirmativa e não deixa margem para dúvidas. Segunda questão: o processo é ético? Será que deixar entrar numerosos alunos com notas de 3, 4, 5, 6 ou 7 valores a Matemática não irá afectar o seu progresso no curso? Poder-se-á dizer que essa questão já se levanta há muitos anos e que o sistema sempre reagiu da única forma possível: deixando passar os que aprendiam o suficiente e reprovando os restantes. É decerto por isso que o elevado número dos "restantes" em algumas instituições vai agora parcialmente colmatar, na disciplina de Matemática, a falha de novos alunos. Para os docentes das restantes disciplinas do 1º Ano, a música tem acordes mais dramáticos. Aos alunos do 1º Ano das escolas de ratos lestos, desejos de boa sorte!

9/15/2005

Uma questão de contexto - II

Com a resposta do próprio Bernardo Soares à pergunta, fica esclarecida de vez a autoria do pensamento pouco nacionalista referido no texto. E, como é evidente, a frase que antecedia esta tirada é "Minha pátria é a língua portuguesa." Tudo isto e muito mais publicado no nº 3 de Descobrimento. Revista de Cultura, em 1931 e incluído posteriormente no Livro do Desassossego. O curioso é que só o nacionalismo da frase que inclui a língua é exaltado e tem sido levado ao paroxismo e o restante que imediatamente se lhe segue não é sequer mencionado. São curiosas, aliás, as citações mais frequentes da obra de Fernando Pessoa, personagem original, da qual Bernardo Soares é apenas uma das Pessoas (razão tem Saramago quando chama ao notável escritor português Fernando Pessoas). Da produção literária pessoana se poderá dizer o que jocosamente é referido a propósito de uma das mais famosas tragédias de Shakespeare: "Hamlet é uma boa peça, com o senão de conter demasiadas citações." Das citações de F.P. que a cada passo encontramos, destacam-se, por serem sobejamente conhecidas, "Deus quer, o homem sonha, a obra nasce", "Tudo vale a pena se a alma não é pequena", "Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal", "O poeta é um fingidor...", "Quem quer passar além do Bojador / Tem que passar além da dor", "Todas as cartas de amor são ridículas"; "Navegar é preciso" e "Minha pátria é a língua portuguesa".
Quando Pessoa diz que a sua pátria é a língua portuguesa, ele está a reduzir-se imensamente, já que o seu domínio do inglês -- em grande parte derivado da sua permanência e dos seus estudos na África do Sul, prosseguidos com múltiplas leituras -- era suficiente para que escrevesse e publicasse mais do que um título em língua inglesa. Fluente era igualmente no francês. Mas "minha pátria é a língua portuguesa" é frase dita muito sentidamente por Pessoa. Lembra-nos que, afinal, era a língua que mais amava, onde melhor exprimia o seu mundo. Tudo muito próximo da tirada de Wittgenstein: "As fronteiras da minha língua significam as fronteiras do meu mundo." (Die Grenzen meiner Sprache bedeuten die Grenzen meiner Welt.)
Como se notará, as citações pessoanas mais conhecidas, acima mencionadas, são nomeadamente aquelas que levantam o ego nacional. É assim, através da manipulação -- lembrança de uns passos, esquecimento de outros -- que se criam mitos. Falha-se a verdade, mas, como irónica e certeiramente o próprio Pessoa dizia, "As massas odeiam a verdade, conduzem-se por mentiras. Quem quiser conduzi-las, terá que mentir-lhes delirantemente, e fá-lo-á com tanto mais êxito quanto mais mentir e se compenetrar da verdade da mentira que criou."
E há tantas coisas assim. Bastará recordar o que disseram vários poetas ingleses, como Robert Southey e Lord Byron, sobre a portuguesíssima Sintra -- o "glorious Eden" tantas vezes citado --, a que no entanto foi acrescentado pelos seus cantores britânicos um enorme desgosto por terra assim tão bela ser pertença dos portugueses, povo que não a merecia. Esta última parte é censurada, evidentemente, tal como a tirada anti-patriótica do Pessoa.
É assim que temos inicialmente um texto e, depois, todo o contexto que fica fora do texto.

Uma questão de contexto

Quem escreveu "Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente", logo a seguir a ter escrito aquela que é certamente a citação mais frequentemente repetida sobre a língua portuguesa?

9/13/2005

2º Aniversário

Este blog acaba de passar calmamente pelo seu segundo aniversário. Parabéns!

Para quem gosta de números, o A-Z WEBLOG tem até hoje 331(?) posts. O número de visitantes varia bastante, notando-se grandes quebras cada vez que o Sete-Sóis escreve e abruptos picos com os posts do Carvalho-Oliveira e respectivos comentários do António (que já vai fazendo parte da família). O pico máximo é cada vez que há Sugestôes do João Ratão...

A todos os que continuam a dar sentido à sua existência um muito obrigado especial!

"Os escritos são laços que nos unem na simplicidade do sonho...são momentos!"

Jardim-escola actualizado

Ao passar ontem à tarde por baixo da janela de um jardim-de-infância aqui da zona ouvi os miúdos a cantar. Parei um pouco. Vozes de criança encantam sempre. Entoavam "As pombinhas da Cat'rina". A letra estava, no entanto, ligeiramente modificada. Ainda consegui memorizar uma quadra, em que, como no original, tanto os dois primeiros versos como os dois últimos eram repetidos:

(As bombinhas do Katrina
(Formaram um furacão
(Foram à Quinta do Bush
(Quase o deitaram ao chão.

Se experimentar cantar os versinhos, imaginará melhor o coro.

Escola à la page, aquela!

9/12/2005

Optimismo e Oposição

Uma das questões de fundo com que as oposições democráticas se debatem é a não-existência de uma coincidência verdadeira entre os seus desejos e os anseios dos cidadãos. Em termos simplistas, digamos que a maioria dos cidadãos anseia por um país com qualidade de vida, com ordem e disciplina, respeitado pelas outras nações. São anseios positivos. Por seu lado, os partidos da oposição têm de encontrar pontos fracos no governo que gere a nação, posicionamento que, inevitavelmente, os leva a apresentar um país com numerosos defeitos. Embora procurem concretamente confinar a atribuição desses defeitos aos actuais governantes, na sua cenarização os oposicionistas não deixam de apresentar múltiplos pontos negros do país em que os cidadãos vivem e do qual se sentem, jus sanguinis e jus solis, pertença. Ao actuarem assim, os membros e partidos da oposição estão inadvertidamente a agir mais como jornalistas derrotistas do que como pessoas efectivamente preocupadas com o real bem-estar da nação.
Os exemplos são inúmeros. Imaginemos que um governo diz que a situação económica do país está a melhorar. Logo os partidos da oposição tentam veicular uma opinião divergente, apresentando estatísticas diferentes que atestam que a situação económica do país se está, pelo contrário, a deteriorar. À acalentadora notícia que os governantes tinham transmitido sucede-se o balde de água fria. "Em quem devo acreditar?", pergunta-se o cidadão aturdido.
Se um governo diz que a área ardida este ano foi de 300 mil hectares, logo os oposicionistas procuram aumentá-la para, pelo menos, 350 mil. Idem com números do desemprego: se um governo diz que a taxa de desemprego se situa nos 7,2 por cento, logo virão membros da oposição dizer que, se formos examinar bem, a referida taxa andará quase pelos 9 por cento. Por outras palavras: parece que quanto maior a extensão da desgraça, melhor para eles. Uma notícia boa aquece o coração, acalentando o optimismo, a outra arrefece-o, revertendo para o pessimismo.
Dir-se-á: mas tem de ser assim. Não necessariamente. Toda esta situação faz naturalmente aumentar a dúvida dos cidadãos relativamente à seriedade dos políticos. Quem fala verdade? Por que motivo falarão os oposicionistas negativamente sempre que não estão no governo? Estas duas questões, a que se junta a notícia dos elevados rendimentos de alguns políticos que, aqui e ali, vêm a lume, levam o cidadão comum à conclusão lógica de que "o que eles querem é tacho. Estão-se marimbando para nós! Interessa-lhes apenas que a gente vote neles!" Assim se instala um pessimismo fortemente resistente, em vez de um reconfortante optimismo.
Neste sentido, os membros da oposição, sejam eles de que partido forem, são arautos da desgraça e contribuem poderosamente para a descrença e desoptimismo do país. Claro que esses partidos incluem mulheres e homens suficientemente inteligentes para compreenderem este fenómeno. Certamente por isso, quando um governo toma posse não se esquecem de dizer que vão fazer "oposição construtiva". Infelizmente para eles, mesmo ao verem que o governo adoptou um anterior projecto seu, apenas com uma ligeira nuance de variação, tendem a manifestar-se ruidosamente contra o projecto que enquanto estiveram no governo defenderam. Na medida em que o cidadão comum vê os "seus" políticos defenderem opiniões diferentes relativamente ao mesmo assunto apenas por estarem agora na oposição, interroga-se sobre a sua seriedade. Em que medida não são os "seus" políticos -- e, de caminho, todos os outros --, meros testas-de-ferro de interesses empresariais ou corporativos que manobram na sombra? Depois de os ver trocarem exaltadas palavras no Parlamento com os seus adversários, encontrá-los a acamaradar num restaurante ou na tribuna VIP de um clube de futebol como os melhores amigos do mundo faz o cidadão médio duvidar das suas intenções. Necessariamente. Esse cidadão questionar-se-á mais uma vez: porque não são os políticos mais consistentes e realmente construtivos? Porque não se preocupam mais com o bem-estar da nação, como deveria ser o seu permanente anseio? Será que os políticos são de facto meros "robertos" dos tais interesses ocultos?
Quando a dúvida se instala, é o optimismo que sofre. É por isso que a fé religiosa -- ou a clubística -- anima muito gente e constitui um refúgio permanente. A ela se alia o desinteresse político. Só que a fé, ela própria, não passa de realidade virtual. Mesmo assim, enquanto dura, dá um grande consolo à alma.

9/09/2005

Optimismo precisa-se! (com vénia ao António)

Há cerca de 20 anos, estando o meu filho na Escola Alemã de Lisboa, comecei a notar que as suas notas, habitualmente boas ou suficientes, estavam a descer pronunciadamente. "Estão a ser injustos, pai. Lá porque tive -- e realmente tive --notas menos boas a duas disciplinas, estão a baixar-me as classificações nas outras. Injustamente." Mostrou-me um teste de Inglês, classificado com 11 valores. Pela análise do teste, tive, algo relutantemente, que concordar com ele. De facto, 11 era pouco para quem escrevia assim. Fui à escola falar com a direcção. Receberam-me de forma muito cordial e ouviram-me atentamente. Falámos metade em alemão e metade em português, o que foi curioso. Expliquei ao director da escola e ao director do ano, ambos alemães, que a sua aparente estratégia de baixar outras notas que não só as devidas, com a finalidade de espicaçar um aluno que precisava de melhorar a duas disciplinas, não resultava necessariamente bem na nossa cultura. Poderia ter, até, efeitos contraproducentes, levando o aluno a ir-se abaixo ao sentir-se injustiçado. (Note-se que o ensino na Escola Alemã a alunos provindos do ensino primário português era então uma novidade relativa. O meu filho estava há cinco ou seis anos na escola, que era e continua a ser esplêndida.)
A conversa não caiu em saco roto. Pouco tempo depois, a escola decidiu rever esse seu método. O que se passava com o meu filho ocorria igualmente com outros estudantes. A situação melhorou consideravelmente e o incentivo ao estudo voltou ao normal.
Este episódio é aqui narrado apenas para ilustrar o facto de que muitos portugueses se vão abaixo ao terem más notícias. Ao contrário de outros povos que poderão reagir de forma diferente, nós tendemos a carpir sobre o que é mau. Um tanto masoquisticamente -- e haverá algo mais masoquista do que as letras de muitos dos nossos fados? --, ferimo-nos ainda mais a nós próprios.
De uma maneira geral, os nossos media exploram esta faceta e encharcam-nos de notícias más, das que cortam o coração. Dos incêndios, que constituem um inferno, aos constantes ataques a governantes e a ex-governantes, o país está dilacerado, em chaga viva. Quase que nem apetece ser português!
É aqui que bate o ponto! Este desencorajamento desincentiva. Em vez de levantar a cabeça, o país afunda-se. Quem ganha com isso?
Foi ontem publicado o relatório anual das Nações Unidas sobre o desenvolvimento humano. Portugal terá descido um lugar relativamente ao ano passado no ranking mundial. Ocupa agora a posição 27ª entre 177 países. Tem registos notáveis, contudo. Um deles é o facto -- importante, porque estrutural -- de ter conseguido nos últimos 30 anos baixar a taxa de mortalidade neo-natal da elevada taxa de 53 mortes no primeiro ano de vida, por mil crianças nascidas, para apenas 4 por mil. A nossa esperança de vida aumentou correspondentemente. Ora, dados positivíssimos como estes, que contrastam com duras realidades em países como a Rússia, onde a esperança de vida é apenas de 59 anos para os homens e de 72 para as mulheres, e como o Mali, a Serra Leoa e o Iémen, onde as taxas de mortalidade neo-natal estão acima das 200 crianças por cada mil nascidas, são metidos no saco do esquecimento. O que interessa é que Portugal baixou um lugar no ranking (embora tenha a mesma pontuação da Eslovénia, que nos precede).
Todos sabemos que notícia é "o que não deveria ter acontecido"; é aquilo que "há-de incomodar alguém algures no mundo". Mas que efeitos causa este tipo de análise?
Como pai, no caso que referi gostei muito que a direcção da Escola Alemã tivesse repensado a sua estratégia. Os resultados surgiram logo -- porque o potencial estava lá!

9/08/2005

Origem das Palavras - Correios

Num apontamento recente, referi-me às mudanças em curso nos Correios devido às novas tecnologias que entretanto se vão desenvolvendo. Talvez seja interessante, na já habitual secção sobre a origem das palavras, determo-nos um pouco nos Correios e no que gira à sua volta.
A palavra inglesa post, que significa correio e que encontramos, por exemplo, em Post Office e em by post, deriva do "posto" ou estação onde um homem com um cavalo (ou mais) esperava por mensagens e iniciava depois o seu troço, tal como se faz com a passagem do testemunho numa corrida de estafetas.
Na palavra "malaposta", temos as duas palavras que são usadas na língua inglesa para correio: uma é a acima referida post e a outra, mais americana, mail. Esta última provém da mala onde se transportava o correio.
O termo "correio" provém do provençal corrieu, ligado a "correr" e a "corredor", o que está relacionado com a noção de estafeta acima referida. Daí que esta designação seja aplicada também a jornais (que transportam notícias), como o Correio do Minho, o Correio da Manhã, Morning Courier ou o Correo della Sera. Da transmissão de notícias à transmissão de cartas, estas contendo notícias, não saímos do mesmo mundo, o da malaposta que corre.
Da ideia de corredor e de estafeta vem a estatueta de Mercúrio. Mercúrio era o deus romano do comércio, filho de Júpiter e mensageiro dos deuses. Sob a influência do deus grego Hermes, tornou-se o deus dos viajantes e protector desses mesmos viajantes. Na sua representação iconográfica, Mercúrio apresenta-se frequentemente com um chapéu decorado com duas asas e também com asas nos pés. Na mão empunha geralmente uma vara de louro, que recebeu a designação de "caduceu". Este caduceu tornou-se a insígnia dos antigos arautos.
Os arautos eram os funcionários que, durante o período medieval, levavam as declarações de guerra ou de paz, ou anunciavam postos públicos. Daí também a sua associação figurada a mensageiros e correios. Por este motivo, a palavra inglesa herald (< frâncico heriwald) entrou na designação de jornais, de que o New York Herald Tribune é um exemplo bem conhecido. E como é que o arauto se anuncia? Com uma corneta, como hoje ainda fazem algumas viaturas que vendem peixe ou gelados pelas aldeias. O cláxon é uma corneta. Ora, é essa corneta que não só se vê em muitas caixas de correio antigas como é também o símbolo de alguns correios, como por exemplo os alemães -- pelo que aparece em muitos dos antigos selos germânicos.
Por seu lado, os selos são as marcas da entidade que, contra o pagamento da tarifa neles especificada, efectua o transporte de cartas e encomendas. Em alemão, a palavra "selo" é Briefmarke ("marca de carta"). Para além de contribuírem para o gáudio de muitos coleccionadores, entre os quais se inclui este escriba, os selos vêm constituindo ao longo do tempo uma forma interessante e prática de publicidade. Foi e continua a ser muito frequente a utilização do selo para publicitar a figura de Chefes de Estado, fazendo portanto com que o rosto dos monarcas ou presidentes se torne conhecido em todo o país e no estrangeiro. Antigamente, era principalmente através da cerâmica, de quadros e tapeçarias que se dava a conhecer a figura real, logicamente com uma cobertura de público muitíssimo menor do que aquela que o selo permitiu a partir do século XIX. A comemoração, através da emissão de selos, da passagem de aniversários de eventos, de personagens e de temas que são caros aos regimes políticos constitui uma prática frequente. A publicitação, igualmente através de bonitos selos, das belezas naturais de uma ou várias regiões, de costumes tradicionais e de datas históricas contribui indubitavelmente para a exaltação do nacionalismo.

9/06/2005

Breve apontamento sobre a era da incerteza

A conhecida reflexão de Dante "Gosto tanto de duvidar como de saber" demonstra uma saudável vitalidade e uma apetência pelo que, não sendo certo, é mesmo assim gostosamente aceite. A era da incerteza, como Galbraith lhe chamou, é um tempo de mudanças substanciais, que retiram o tapete da estabilidade às instituições e, consequentemente, às pessoas que nelas laboram e delas dependem. Os exemplos destas mudanças são às centenas. Vejamos apenas dois.
Imagine que você se estabeleceu há uns 25 anos com uma loja de fotografias e artigos afins. Prosperou. Ultimamente, porém, já começa a duvidar do seu negócio. Os rolos que os seus clientes lhe traziam para revelação e cópias são em número cada vez mais reduzido. Paradoxalmente, os seus clientes tiram agora muitas fotografias mais do que no passado. O problema é que as máquinas digitais, entretanto introduzidas no mercado a preços acessíveis, juntamente com os telemóveis com câmara incorporada, fizeram a diferença. Muitos dos seus anteriores clientes guardam agora as suas pastas de fotografias não nos álbuns que você mantém em stock mas sim em computadores. Intercambiam-nas frequentemente com familiares e amigos. Entretanto, o que é que passa pelo seu estabelecimento comercial? Nada, ou apenas algo residual. Valerá a pena apetrechar-se com todo o novo equipamento que as modernas tecnologias requerem? Haverá mercado para isso? Você tem capital disponível? A incerteza instala-se.
Um outro exemplo na mesma linha aborda a questão da entidade conhecida por Correios. É inquestionável que hoje se comunica mais do que antigamente. Contudo, a carta, o postal e o telegrama têm um peso proporcionalmente muito inferior ao de outros tempos. Porquê? Um número já muito significativo de pessoas comunica por mensagens de telemóvel e por correio electrónico. Se formos a um posto dos Correios em Lisboa, deparamos maioritariamente com pessoas de idade, pouco letradas, que ali vão efectuar -- com apoio dos solícitos funcionários -- os seus pagamentos de facturas de serviços tais como a electricidade, o gás, a água e os telefones, porque não se sentem capazes de o fazer sozinhas através do Multibanco, que é, afinal, um autobanco. Entretanto, os Correios tentaram adaptar-se. Hoje vendem vários produtos, de livros a T-shirts e serviços financeiros populares. Compreensivelmente, o número de funcionários dos Correios, que dantes se cifrava em mais de três dezenas de milhar pelo país inteiro, terá diminuído hoje para pouco mais de metade.
Mas as coisas não foram mais ou menos sempre assim? Vejamos exemplos mais antigos. Quando os muçulmanos eram donos desta cidade de Lisboa, os corpos das pessoas que morriam eram expostos no alto das muralhas do castelo, onde eram abutricamente devorados por corvos. Devido a esse facto, abundavam os corvos pela cidade. O negócio corria-lhes bem. Tinham-se tornado parte do quadro permanente dos funcionários públicos da autarquia. Com o advento dos cristãos e consequente enterramento dos corpos, os corvos viram o seu número reduzir, passaram a um quadro temporário que se extinguia com a sua morte e entraram em crise. Alguns emigraram, enquanto os remanescentes encontraram emprego no sector privado, dando caça aos ratos que infestavam casas e ruas pouco sujeitas a lavagens. Porque um mal nunca vem só, com as viagens de exploração marítima dos portugueses iniciou-se a importação de gatos do Médio Oriente. Hoje em dia não há corvos na cidade, a não ser no brasão de armas de S. Vicente, o santo padroeiro. Este episódio é geralmente conhecido por "crise corvina" e deixou os pobres corvos de outras paragens de luto carregado para todo o sempre. Mas não deviam, porque alguns que emigraram são tão felizes como os reis necrófagos da Lisboa de antanho.
Uma história mais recente leva-nos ao princípio do século passado, altura em que cavalos, machos, mulas e burros abundavam nas ruas de Lisboa. Esses animais, que contavam então com pleno emprego, viram entretanto aparecer um meio de transporte que, embora de preço muito mais elevado, os substituía: o automóvel. Este terá sido assim designado porque era um transporte que se movia pelos seus próprios meios, sem necessitar de um animal que o puxasse. Juntamente com o eléctrico, que transportava pessoas colectivamente, o automóvel foi gradualmente tornando obsoletos os cavalos citadinos. Estes passaram a incorporar, apenas nominalmente, a força do motor dos automóveis -- medida em número de cavalos --, tal como a potência das lâmpadas tinha recebido a equivalência da força iluminante de um determinado número de velas. A redução do número de cavalos em Lisboa foi festejada pelos citadinos: finalmente desapareciam as imundas bostas com que os animais imodestamente pretendiam fertilizar os pavimentos, juntamente com urina, tudo a atrair moscas e a exalar um nauseabundo odor. Por ironia das coisas, com o evoluir do tempo já passámos a culpar o automóvel por poluir a cidade. Ele, que foi saudado como o transporte limpo por excelência! Tudo muda. De facto.
A profissão dos barbeiros foi, entre muitas outras, poderosamente afectada pela entrada das gilettes e pelo menos tempo disponível das pessoas. Homens deixaram de ir ao barbeiro mais próximo fazer a barba e dar dois dedos de conversa. Hoje os homens vão de facto ao cabeleireiro, mas continuam a chamar-lhe "barbearia" para se distinguirem das mulheres. Entretanto, em vários países da Europa já há mais de meio século que a instituição do Damen- und Herrenfriseur é conhecida. Ela também uma adaptação.
Este arrazoado todo serve para provar -- se é que isto carecia de demonstração -- que as transformações são de todos os tempos e pelos tempos fora hão-de continuar. Erradas estão as pessoas que se amedrontam com tudo o que mexe. Certas estão aquelas que, melhor ou pior, se vão adaptando aos novos tempos. Ficar especado na gare a ver partir o comboio que se pretendia apanhar não é a mais agradável das sensações. A não ser que estejamos a falar de masoquistas!

Crise?

Quando os portugueses falam em crise -- económica e de valores -- adicionam-lhe a ideia pessimista de que hoje nada é como dantes. Este posicionamento é, afinal, típico de tempos de mudança. E todo o tempo é de mudança, só que mais ou menos acelerada. Se tomado por pessoas a título individual, o posicionamento pessimista é sintoma do envelhecimento de cada um, da dificuldade de adaptação aos novos tempos e às transformações que estes em si acarretam. Se tomado por uma nação nas suas várias manifestações, espelha uma velhice já não só individual mas de um todo, o que pressupõe a predominância do peso da idade nesse todo. (O próximo combate entre dois velhos chefes para a Presidência deste país envelhecido é disso também um sintoma.)
A verdade é que, para espíritos jovens, mudanças são sempre mais portas de oportunidades do que de reais ameaças. O problema do envelhecimento da nação é, portanto, mais grave que o do esporádico individual, porque pode envenenar o natural espírito de iniciativa dos jovens, tornando-os, através de um enquadramento pernicioso, velhos antes de tempo.

9/05/2005

Low expectations

Se de um governo esperarmos pouco e não excluirmos das nossas expectativas algumas asneiras -- mesmo das grossas --, encontraremos a solução fácil para não nos decepcionarmos e andarmos mais satisfeitos. No fundo, as promessas dos políticos nas suas campanhas não são, per se, graves. Grave é o facto de acreditar que elas se vão concretizar.

9/04/2005

A Raia dos Medos

Só raramente dedico algum tempo a novelas televisivas. Este facto ter-me-á levado a desconhecer totalmente a existência de uma novela portuguesa tendo como cenário uma vila raiana no tempo da Guerra Civil espanhola, i.e. 1936-39. Como passou em reprise no passado Agosto mês de férias, calhei ver o primeiro episódio e tentei não perder os restantes, transmitidos durante a semana.
Estas linhas que aqui deixo no blogue são apenas para dizer bem. A forma como a história nos é narrada é viva, apresenta uma boa definição e bom desempenho dos personagens, explica para quem não sabe o que foi o conflito espanhol, fala do envolvimento do governo português com Franco, inclui a local Guarda Republicana e a nacional PIDE. Contém duas histórias de amor, sendo que uma delas não termina com o tradicional happy ending mas sim com um fim mais verosímil, embora trágico, que reforça o amor da história. Foi um gosto ver a série.

9/03/2005

L'abat-jour

Nem eu sei bem porquê, recordo o extracto de um poema que li pela primeira vez há largos anos. Se o fixei até hoje...

Baisse un peu l'abat-jour, veux-tu? Nous serons mieux.
C'est dans l'ombre que les coeurs causent,
et l'on voit beaucoup mieux les yeux
quand on voit un peu moins les choses.

9/02/2005

Uma letra pode mudar muita coisa

Há uns dez anos, pensei que seria interessante verificar quais eram as fichas que me tinham cabido em sorte na antiga PIDE. Como todo e qualquer cidadão português com mais de 50 anos tem fortes razões para fazer, desloquei-me à Torre do Tombo. Uns meses depois, informaram-me que tinha os documentos à minha disposição para consulta. Tive acesso a 13 fichas, das quais pedi fotocópia. (Existia ainda um boletim com mais informações, mas esse, como me disseram, só por alturas de 2025 estará disponível.) Desta história interessa-me realçar a frase dactilografada numa das fichas por um arguto agente, que indagou a determinada altura junto de pessoas que tinham sido minhas vizinhas sobre a natureza do meu comportamento. Em face das respostas que obteve, escreveu no seu relatório: "Tem bom comportamento mural."
A ortografia da frase, brilhante, levou-me não só a pensar na iliteracia de muitas das pessoas que nos podiam muito bem tramar a vida, mas também na diferença que existe entre "mural" e "moral". De uma penada, o agente tinha informado os seus superiores que eu não costumava escrever nos muros citadinos. Decerto que eles entenderam de maneira diferente, até porque a frase era uma das consideradas de chapa.
Uma simples letra pode, como neste caso, alterar significativamente o significado das coisas. Pode ser interessante praticar este jogo durante uns dois ou três minutos. Aqui vos deixo alguns exemplos.
Já repararam como o "elefante", através de uma simples alteração do "f" pelo "g", fica "elegante"? Já notaram a acentuada diferença que existe entre a masculinidade do "rio" e a feminilidade da "ria"? Já imaginaram um porto como uma porta? Alguma vez associaram o sol ao sal e ao sul? O que é que o raio terá a ver com a raia? Em que medida pode uma escolha constituir um escolho? O que é que o sino tem a ver com a nossa sina? Será que quem paga sisa mostra pouco siso? Será que a morte, que sabemos ser forte, tem bom porte, vem do norte e, a certa altura, nos faz a corte? Porque tenta a tonta tinta levar-nos a escrever mais? Porque é que os putos são bem-vindos na escola e as putas não? Porque é que um jogador cheio de gula faz gala em marcar um golo para depois cantar de galo?
O jogo é infindo. Quem continua um pouco mais?

9/01/2005

Matriz de Acontecimentos (1 Setembro 2005)

A Câmara de Lisboa tem em distribuição gratuita «Guia Ilustrado de Vinte e Cinco Árvores de Lisboa». Interessante, justifica a deslocação (por exemplo, à Livraria Municipal ? Av República, ao lado da Versalhes) para o obter.

Decorre de 2 a 4 a Festa do Avante, já foi uma referência incontornável da Agenda Musical?
Igualmente até dia 4, concertos duplos de jazz no Fórum Lisboa.

Domingo, dia 4:
às 22h30, na 2:, Ana Sousa Dias vai conversar com Mário Coelho.

Terça-feira, dia 6:
às 22h00, com entrada livre, no Jardim da Torre de Belém: Marisa e Jaques Morelenbaum,

A seguir:
Jornadas Europeias do Património, fim-de-semana de 24 e 25 de Setembro;

VIII Festival Internacional de Órgão de Lisboa, 23 Setembro a 10 Outubro (www.jmp.pt/festivaldeorgao).

As nove sinfonias, pela Orquestra Sinfónica Portuguesa, em São Carlos, a partir de 23 Setembro.
Download do ficheiro das Sugestôes (1 Setembro 2005)

Boas férias ou, ao menos, um bom fim-de-semana

JMiguel