1/28/2009

A língua portuguesa globalizada


Da China para todo o mundo têm nos últimos anos sido exportados milhares de artigos diferentes. Todos nós os conhecemos pela sua característica principal, o preço, que é incrivelmente baixo e bate toda a eventual concorrência. São artigos que não garantem uma qualidade super, mas que mesmo assim podem sastisfazer durante um período aceitável de tempo.
Produtos sofisticados trarão consigo um manual de instruções em várias línguas. Outros, de menor volume de vendas e mais simples no seu funcionamento, limitar-se-ão a instruções na própria embalagem em que o produto é vendido.
Um familiar meu necessitava de comprar um aparelho que tirasse os incomodativos borbotos que se formam frequentemente nos tecidos de lã. Uma loja chinesa resolveu-lhe o problema. Sim, tinham máquinas de tirar borbotos. Felizmente que a empregada chinesa sabia o significado da palavra em português. Foi buscar uma.
Tudo bem, isto é, quem não soubesse não chegava lá. A começar pelo título: Removedor de lint, como a foto mostra. Lint é de facto a palavra em inglês para borbotos. Mas se fosse só isto, eu não traria esta pequena história aqui para o blog. Demos uma vista de olhos às instruções em português, que também as há em castelhano, inglês e italiano. Com qualidade semelhante, diga-se.
Primeiro, precisamos de saber o que o removedor de lint faz. Basta ler o texto sob a indicativa bandeira portuguesa: "O removedor de lint da nossa companhia é o produto em nosso país no começo de 21º século. No passado incapaz remover totalmente cheio a pedaços bola que lasca sobre artigo de lã ou bens artificiais, etc. Nowds, etc. Now, can funcionam como uso. E é simples operar, totalmente satisfatório por ser usado em toda a família." Claro como água, não é?
Noutra parte da caixa, juntamente com uma foto razoável do modus operandi do removedor de lint, vem um texto complementar: "É satisfatório para ser usado removendo pedaços que lascam de afofou sobre as roupas, o lã vestindo, o vestido lanoso, sofá, tapete, cobertura lanosa, cortina & conta e todo o tipo de tecido artificial, isto também pó limpo." Tenho poucas dúvidas de que o tradutor foi o mesmo.
Um terceiro lado da caixa dá-nos uma pista relativamente à forma como a tradução para "este" português foi feita. Assim, onde a versão inglesa informa que uma característica do aparelho é o seu "low-noise design", o texto em português esclarece que a máquina é um "desígnio de baixo barulho."
Para finalizar, anoto que o aparelho parece funcionar bem - digamos que é o principal. Já não diz "Made in China", como tantos outros no passado. Agora essa informação é "Made in P.R.C." (República Popular da China).
Entretanto, em face desta verdadeira calamidade de tratamento da língua portuguesa, permito-me sugerir que a câmara de comércio luso-chinesa ofereça – obviamente, a pagar – os seus serviços para traduções deste género. Através de e-mails seria fácil fazer chegar aqui os textos, que seriam prontamente traduzidos para português e reenviados. Faz pena ver a nossa língua tratada desta forma, embora o facto nos proporcione uma valente gargalhada.

P.S. Já agora! Estou em crer que quem sofre mais - ou mais se diverte - com os tratos de polé infligidos à sua língua são os ingleses. O nosso conhecido Anderson, jogador brasileiro que alinhou durante algum tempo pelo FC Porto e foi depois vendido ao Manchester United, numa entrevista a um repórter britânico faz uso do seu inglês. Imperdível. Do melhor que se tem ouvido. Com legendagem e tudo! Note-se, no entanto, que Anderson compreende tudo o que lhe perguntam e responde com calma e um sorriso.
Para desfrutar este momento, clique http://videos.sapo.pt/Mlk7olIl0PDpvz9DOAas.

1/27/2009

À volta do licenciamento do Freeport

Nestes últimos dias veio à baila com o habitual estrondo das primeiras páginas dos jornais e da abertura de serviços noticiosos TV/rádio mais um caso de eventual prestação de favores alegadamente pouco ética por parte de governantes. Como o actual primeiro-ministro pode estar alegadamente envolvido e estamos em ano multi-eleitoral, a importância do caso avoluma-se.
Ninguém estranhará que a história seja relativamente antiga: a justiça não tem sido célere em Portugal. Tudo data do segundo governo de António Guterres (PS), quando o actual primeiro-ministro detinha a pasta do Ambiente. Estávamos em 2001 e a empresa privada que pretendia construir um outlet comercial no terreno onde ele hoje se encontra desesperava por não conseguir a devida autorização. A razão número um para o impedimento oficial residia no facto de uma parte da área prevista estar inserida na Zona de Protecção Especial do Estuário do Tejo. Duas vezes o projecto foi chumbado. A zona de Alcochete, graças à então recente construção da Ponte Vasco da Gama, estava a ser muito requestada. O Ministério do Ambiente mostrava-se irredutível.
Em 2002, já com o governo de António Guterres periclitante, a empresa terá conseguido, através da intervenção de um familiar do ministro, um contacto directo com o Ministério do Ambiente e, poucos dias antes de o novo governo de Durão Barroso (PSD) tomar posse, i.e. em período em que o governo socialista era apenas gestionário, o licenciamento surgiu, aliás com alguma alteração dos limites da Zona de Protecção Especial.
A firma em questão é britânica. O fisco inglês, ao verificar a sua contabilidade, deparou com uma verba avultada destinada a pagar serviços em Portugal. Pediu a intervenção da justiça portuguesa para apurar a quem se destinaria aquela verba. A possibilidade de corrupção existe. Mesmo que nada se apure, politicamente a imagem do actual primeiro-ministro já saiu manchada. Esta mancha só se apagará se a justiça conseguir provar que ele não esteve envolvido em qualquer acção da qual resultassem luvas.
Este resumo serve apenas para situar melhor o caso, que tem a ver com o facilitismo ético que é há muito notório na sociedade portuguesa. Se prestarmos alguma atenção a determinados nomes, veremos que muitos deles decidiram fazer da política a sua carreira. Há quantos anos conhecemos pessoas como Pedro Santana Lopes, Jaime Gama, Cavaco Silva, Francisco Louçã, Luís Fazenda, Manuel Alegre, José Sócrates, Paulo Portas, Nobre Guedes, João Soares, Manuel Maria Carrilho, Rui Rio, Isaltino Morais, Valentim Loureiro, Bagão Félix, Jorge Lacão, Alberto Martins, António José Seguro, Alberto João Jardim, Helena Roseta, Ana Gomes, António Costa, Vera Jardim, Fernando Negrão, Mota Amaral, Honório Novo, Aguiar Branco, Telmo Correia, Luís Filipe Menezes, Manuela Ferreira Leite, Pedro Passos Coelho, Vitalino Canas, Luísa Mesquita, José Lello, José Magalhães, Manuela de Melo, Strecht Ribeiro, Bernardino Soares, António Vitorino, Vítor Ramalho e tantos outros cujos nomes não me ocorrem no momento?
Com outras ocupações, mas mesmo assim algo interventivos nos media e em empresas, encontramos os conhecidos Mário Soares, Jorge Sampaio, Pinto Balsemão, António Guterres, Maria de Belém, Almeida Santos, e ainda Dias Loureiro, Armando Vara, Jorge Coelho, Joaquim Pina Moura, Marcelo Rebelo de Sousa, Rui Machete, Miguel Cadilhe, Vítor Constâncio, Ferreira do Amaral, Ângelo Correia, Marques Mendes, Odete Santos, Roberto Carneiro, David Justino e mais uns tantos.
Tal como sucede com os treinadores de futebol, um percalço mesmo sério a qualquer um deles não resulta em eliminação. São-lhe dadas uma segunda e uma terceira oportunidades.
Acontece que, aos poucos, vamos adquirindo a patética noção de que os jogadores são sempre os mesmos. Num "tempo de mobilidade" - é assim que a cartilha do politicamente correcto fala aos jovens - deparamos com muita imobilidade na classe política. Porquê?, perguntamo-nos. Os amantes do futebol lembram-se que, quando não há jogadores nacionais suficientemente bons, se importam estrangeiros. Na política não se podem contratar estrangeiros, mas não deixa de ser verdade que está a tornar-se urgente uma hemodiálise no sector. Pergunta-se: os anos de prática dão aos políticos que os possuem mais experiência ou, fundamentalmente, uma componente maior de manhas e artimanhas? A resposta não é fácil. Deixo-a ao leitor.
Dado que frequentemente sucede que, para subir na vida política, se torna necessário recorrer a favores, os quais deverão ser eventualmente pagos quando a pessoa alcançar o lugar que pretende, existe todo um conluio de interesses entre vários políticos, por vezes de partidos diferentes. Como os socialistas e os sociais-democratas são os que mais alternam no poder, são eles também aqueles que mais dispensam favores. Do CDS, que esteve aliado aos sociais-democratas no governo, conhecem-se vários "alegados desmandos" que se tornaram célebres com assinaturas ministeriais à pressa como as de Telmo Correia "alegadamente" a despachar celeremente processos como os do Casino Lisboa. O caso Portucale também ficou famoso por licenciamento aparentemente pouco ético.
Quando a descoberta destas coisas acontece a partidos já fora do governo, a penalização é relativamente pequena. É, naturalmente, maior quando atinge um governo em pleno mandato e, ainda mais, em ano de eleições. Mas não há fumo sem que haja algum fogo. Portanto...
A minha experiência profissional está intimamente ligada a escolas de ensino superior, tanto privadas como públicas. Considero ambas, de certa maneira, microcosmos daquilo que, com outra dimensão, se pratica governamentalmente. Um exemplo: pretende-se que a escola contrate um docente filho de boas famílias e amigo de alguém com posição na escola? Recomenda-se o indivíduo ao Conselho Científico, com todos os encómios possíveis. Será "uma óptima aquisição." Em princípio ninguém se oporá por não conhecer a pessoa e a recomendação vir de quem vem, mas haverá quem pense que aquela é uma entrada pela porta do cavalo. É difícil dizer "não". Quem o fizer, terá o proponente a colocá-lo na sua lista negra. Posteriormente, sai em acta que, o C.C. decidiu, "a título excepcional", admitir o Mestre Luís Miguel Mascarenhas para o Departamento… Uma variante muito comum é (era?) "Por conveniência de serviço" foi transferido para... "
Os membros da escola que entendem que existe pouca transparência nestas "conveniências de serviço" e que possuem a ambição de vir um dia a ocupar cargos directivos apressam-se a guardar cópias das actas que registam essas nomeações. Ser-lhes-ão eventualmente úteis como precedentes - os tais que podem valer mais que presidentes.
Os ministros e os secretários de Estado experientes fazem o mesmo. Lembram-se dos milhares de fotocópias que Paulo Portas mandou tirar antes de abandonar o seu ministério na última vez que esteve no governo?
Este tipo de atitude mostra experiência, sem dúvida, mas tende a colocar a pessoa ou o partido acima do interesse público. Constitui um escudo, mas este escudo, que serve para defesa, oculta também do público aquilo que deveria ser transparente.
O que mais me impressiona neste caso do licenciamento do Freeport acaba por ser o facto de que, se ocorresse hoje, não enfrentaria o mesmo número de problemas. A "experiência" governamental fez criar a figura do "Projecto de Interesse Nacional", convenientemente conhecido apenas pela sua mais ou menos hermética e bem soante sigla: PIN. Se o Conselho de Ministros declarar que um projecto possui interesse para a nação, pronto, o licenciamento será efectuado. Corre-se o pano. O problema é que isto não é tão democrático como deveria ser. Não é feito às claras, com discussão prévia em que participe a muita badalada "sociedade civil". Infelizmente, lembra manobras de antes do 25 de Abril. Este é um dos males das maiorias absolutas. Relembremos a clássica frase (1887) de Lord Acton: "Power tends to corrupt and absolute power corrupts absolutely."
A terminar, duas considerações. 1: O economista Paulo Trigo Pereira, investigador do ISCTE, acaba de apresentar no seu livro O Prisioneiro, o Amante e as Sereias, um estudo sobre o grau de democracia em 26 países diferentes. Embora atente principalmente na natureza dos boletins de voto e nos referendos, Trigo Pereira conclui que Portugal é, depois da Holanda e de Israel, o país com menor liberdade de voto. Acrescenta que o modelo português "é absurdo" e revela uma "má qualidade da democracia”. Terá isto a ver com a crescente abstenção que se regista em actos eleitorais no nosso país?
2. Dada a insistência nas notícias que têm como alvo o primeiro-ministro, ninguém pode duvidar que estamos em presença de uma realidade factual muito empolada como campanha pessoal contra José Sócrates. Em ano de eleições, é natural que isso suceda nos meios de comunicação de países que vivem em regime de democracia. Contudo, se a campanha for exageradamente longa e nada de concreto se provar contra o primeiro-ministro, este, de abalado no presente, fica com uma vantagem notória para a campanha eleitoral. Do azar de ter tido nos últimos dois anos do seu mandato uma crise global de todo o tamanho, pode aproveitar a crise, como aliás já tem feito, não só para encobrir pontos fracos da situação económica e financeira do país como ainda para realçar os problemas por que passam actualmente países que estavam, em princípio, mais bem apetrechados que Portugal. É assim a política.

1/25/2009

Boas práticas




Como tantos outros cidadãos do mundo, gosto de visitar museus. Não estou a pensar naqueles sombrios edifícios atafulhados de mesas e escrevaninhas, camas de madeira escura com torcidos e baldaquino, preciosas carpetes no chão e pesadas tapeçarias a adornar as paredes, juntamente com uma multidão de quadros atabalhoados uns em cima dos outros, mais a forrarem os muros das salas do que propriamente a pedirem a admiração detalhada do visitante. Esses museus continuarão a ser "a casa das musas", mas com museologia francamente antiquada, mais dirigida ao acervo do que ao visitante.
Felizmente, a esmagadora maioria dos museus e palácios prefere hoje em dia dar espaço ao visitante, fornecer-lhe explicações cuidadas através de folhetos e painéis que sintetizam o conteúdo da sala ou proporcionam explicações em auscultadores-guias em vários idiomas que nos permitem ir de sala em sala, seguindo o nosso próprio ritmo, aprendendo pormenores interessantes sobre os objectos que estão à nossa frente ou oferecendo-nos uma visão mais abrangente que nos deixa situar melhor a arte e os artistas que foram seus autores.
Portugal dispõe, hoje, felizmente de bons museus, o que se saúda. Há, no entanto, muitas vezes um pormenor que me constrange: a não-autorização para tirar fotografias sem flash. É uma situação que me custa a entender. Que não se possa tirar fotografias com flash acho perfeitamente certo: uma luz forte a incidir sobre os objectos, nomeadamente sobre as pinturas, se repetida por milhares de visitantes, é altamente prejudicial. Devido à utilização frequente do uso de telemóveis com dispositivo fotográfico incorporado, a que se juntam máquinas fotográficas, justifica-se inteiramente essa proibição. Mas presentemente muitas das máquinas digitais permitem desligar o sistema de iluminação com flash, o que as optimiza e não danifica minimamente as pinturas. Por outro lado, quem tira fotos de peças de um museu ou de uma exposição partilha-as frequentemente com amigos, de perto e de longe. Dado que "uma fotografia equivale a mil palavras", o número de visitantes tende a expandir-se, o que deve ser o objectivo de qualquer museu.
Na Europa, existe um vasto número de museus que não colocam quaisquer entraves às fotos sem flash, embora ainda existam também alguns lugares onde nos obrigam a depositar a câmara à entrada. Que ninguém entre numa exposição com chapéus-de-chuva faz todo o sentido. Com mochilas, porventura ainda mais. Foi o inadvertido derrube de algumas peças por mochilas de backpackers que levou, justificadamente, à sua proibição.
Vejo com muito agrado que em Portugal os espaços museológicos do CCB estão todos abertos à prática da foto sem flash. Os do Museu do Oriente, idem. Nas Belas-Artes, idem. Haverá com certeza muitos mais. Seria óptimo que todos os locais, sem excepção, adoptassem esta boa prática.

1/22/2009

Uma breve viagem pelo sal dos oceanos

Se houve um produto com alguma relevância nos primórdios das nossas exportações, esse produto foi o sal. Entende-se facilmente porquê. A situação geográfica de Portugal, com a sua ampla exposição ao sol e ao Oceano Atlântico, permitia a formação de sal que, sem águas poluídas pela indústria e pelos resíduos de fertilizantes como hoje parcialmente sucede, possuía óptima qualidade e era muito apreciado. Zonas litorais como as do estuário do Vouga e do Sado produziam sal que servia não só para condimentar os alimentos como também para preservar esses mesmos alimentos numa época em que ainda não existiam as arcas frigoríficas dos nossos dias. Um dos destinos do sal português era a Grã-Bretanha que, com um clima e águas bem diferentes, nunca se mostrou um território propício à produção de sal. O curioso é que o comércio de exportação do nosso sal para Inglaterra se manteve mesmo depois de, no século XVI, a Inglaterra ter embarcado na reforma protestante. Ilustrando o bem conhecido facto de que o comércio ignora frequentemente fronteiras políticas e religiosas, o sal católico português continuou a condimentar a comida inglesa para regalo dos palatos protestantes.
Num parêntese, permito-me lembrar que durante o regime salazarista havia pelo menos dois produtos que os portugueses exportavam em larga escala para países com os quais não mantinham oficialmente relações: a URSS e a Índia (União Indiana). Para o primeiro deles exportavam cortiça, para o segundo caju, de Moçambique. Entretanto, nas tabelas de destinatários das nossas exportações, quer a URSS como a Índia eram, algo escandalosamente, omitidos e englobados na rubrica "Outros", a qual apresentava uma percentagem desmedida, superior a 50 por cento, obviamente devido ao facto de eles serem os nossos principais clientes.
Adiante, com as minhas desculpas pelo parêntese. Ontem - e que pena eu tive de não ter levado comigo a máquina fotográfica! - ao dar um breve passeio ao longo do Tejo no Parque das Nações deparei com a chegada de um enorme camião, que me surpreendeu por ter parado num local geralmente sem quaisquer viaturas. O camião encontrava-se na parte de trás do Oceanário e ficou pronto para descarregar. Aproximei-me, curioso. A carga do veículo era constituída por bojudos sacos brancos. Contei-os. Totalizavam 24, com um peso unitário de mil quilos. Realmente o facto de transportar 24 toneladas já justificava a dimensão do transporte. Li as várias linhas inscritas nos sacos: Coral Reef (nome da firma), Red Sea Salt, 1,000 kg., Red Sea, Israel. O destino era o Oceanário do Parque. Um pequeno empilhador começou a transportar cuidadosamente um saco de cada vez para dentro do edifício.
Aqui formou-se outro parêntese na minha cabeça: recordei-me das muito celebradas fragatas do Tejo, que transportavam, tal como este pequeno empilhador, relativamente reduzidas quantidades de carvão retiradas de bordo de grandes embarcações vindas de Inglaterra, as quais não encontravam no rio altura de água suficiente para fundearem junto à Central Tejo – o destino do carvão, tal como agora o Oceanário era o destino do sal do Mar Vermelho. Quando a Central Tejo foi desactivada, as fragatas receberam um golpe mortal, passando a surgir com mais frequência nas letras de fados do que nas águas do rio.
Neste momento, como não pude tirar a foto de que gostaria, limitei-me a tentar descrever e partilhar convosco uma cena comum, que no entanto teve o condão de me transportar a outros tempos e outras paragens. O sal sempre foi um condimento essencial da vida!

1/20/2009

Dizer bem

É tão frequente ouvir dizer mal dos serviços públicos em Portugal que, quando verificamos que, afinal, a par de coisas que poderão e deverão evidentemente ser corrigidas, há também óptimos serviços, é nosso dever como cidadãos reportá-lo. Muito recentemente, tive uma irmã a ser operada para extracção de um rim numa unidade hospitalar pública de Lisboa. Acompanhei quase todo o processo. Desde recepção impecável a afabilidade do pessoal, passando naturalmente pelos competentes serviços cirúrgicos, tudo esteve bem. Cumpriram-se datas, houve segurança, houve competência.
Neste momento, eu próprio venho de uma outra unidade de saúde pública, também aqui em Lisboa. Tive há dias um derramamento sanguíneo numa das vistas, o que aliás fez com que não tivesse colocado nenhum texto no blog há mais tempo do que é habitual. Como a mancha de sangue não passasse, fui hoje ao Instituto onde já tenho ido outras vezes (a última há cerca de três anos). Pedi para falar com o médico que sempre me tratou. Apanhado num corredor, observou-me rapidamente e, de seguida, mandou-me fazer o procedimento burocrático habitual: ir à secretaria-recepção para que abrissem uma nova ficha, acompanhada do meu processo. Entreguei o meu cartão. Pediram-me que aguardasse na sala de espera. Fui chamado pouco depois para fazer um exame prévio. Como verificasse que uma das vistas tinha vestígios de sangue, a assistente não realizou logo o pré-exame, consultando primeiramente o médico sobre o assunto. Uma vez obtida a opinião do médico, procedeu ao exame com as máquinas apropriadas para esse fim. Voltei a esperar na sala. Passado um quarto de hora, foi o próprio médico que foi à sala chamar duas pessoas. Uma delas era eu. Quando chegou a vez da minha consulta, o médico, já com os resultados do pré-exame, examinou-me os olhos detidamente, corrigiu-me ligeiramente o receituário das lentes em face do que eu lhe tinha dito e, finalmente, passou-me a receita para a vista que está com o problema. Disse-me: se não passar dentro de uma semana, volte cá para fazermos novo exame. Deu-me o seu horário de trabalho.
Na secretaria registaram os novos dados, arquivaram o processo e informaram-me quanto tinha que pagar: dois euros e vinte cêntimos.
O que me pergunto é: quantos outros países oferecem serviços destes? Dizer mal é fácil, deita abaixo e é uma tremenda injustiça para os bons profissionais e para as instituições onde eles exercem a sua actividade. Porque serão as notícias na sua maioria apenas sobre coisas que correm mal?

1/15/2009

Conversa de boa-vontade no bairro

- Então como vai D. Marquinhas? Está com óptimo aspecto!
- Não me queixo do aspecto, Sr. Jorge. Deus sabe como me sinto por dentro. Os meus ossos!
- Deixe lá isso, D. Marquinhas, a senhora está mesmo muito bem!
- Fui às compras.
- Foi então comprar umas coisinhas? Veja lá se os sacos não lhe pesam de mais!
- Não pesam muito, trago pouca coisa. Sabe, já não como muito. O apetite que costumava ter já se foi. E cozinhar só para mim...
- Mas ao menos sabe o que come!
- Lá isso é verdade.
- A sua filha como está?
- Ora, casada, a viver para o Cacém, longe de mim. Quando se lembra ainda me telefona, mas são mais os dias em que não me liga do que os outros.
- Já sabe, a vida moderna não deixa muito tempo. Chega-se tarde a casa, isto é uma lufa-lufa constante.
- Pois sim, mas podia arranjar um minutinho para telefonar à mãe...
- Não pense nisso. Se não houvesse telefones, ela também não poderia falar consigo todos os dias. Na idade dela, a senhora falava todos os dias aos seus pais?
- Vivi com eles até muito tarde.
- Pois é, outros tempos, outras vidas. Bem, gostei muito de vê-la, D. Marquinhas. Tome cuidado consigo e continue a fazer como fez hoje. Não deixe de sair à rua. É sempre bom fazer um bocadinho de exercício.
- Adeus, Sr. Jorge! Cá vou andando para a minha casinha!

1/12/2009

Três casos com algo em comum

O primeiro caso é antigo, os outros dois são actuais. No início da década de 60, estando eu em Angola em serviço militar como alferes miliciano, fui destacado com mais cerca de 40 homens para uma povoação de nome Chio, situada a relativamente poucos quilómetros do rio Cuanza. Estava no centro de um região pouco povoada, com cultivo predominante do algodão. Não era propriamente uma zona de guerra. Estávamos a uns cem quilómetros de locais onde se desenrolavam combates, mais a norte. Éramos os primeiros militares a ocupar aquela área.
A certa altura recebi ordem do Quartel-General para recolher todas as armas que a população local pudesse ter. Apesar do clima de paz, era sempre possível que o conflito rebentasse por aqueles lados, daí que a recolha das armas de fogo indígenas - canhangulos ou outro tipo de espingardas - fosse altamente aconselhável. A autoridade administrativa local tinha-me entretanto afirmado que tinham sido recolhidas todas as armas. À cautela, e porque o agente administrativo colocado naquela povoação não era homem para se meter pelas sanzalas adentro, decidi fazer as minhas próprias pesquisas, sempre bem auxiliado pelos sargentos e soldados que estavam comigo. Começámos por fazer croquis de todas as sanzalas da região - a zona tinha a área do Alentejo mas o número de sanzalas era relativamente reduzido -, identificámos todas as cubatas e depois procurámos encontrar um fio de informação que, se achado, poderia desdobrar-se até atingir um tamanho que não podíamos calcular de início. Convidámos cinco artesãos nativos para nos fazerem uma casa de madeira e colmo. Escolhemos artesãos que trabalhavam em madeira e poderiam facilmente ter sido os fabricantes de algumas das armas que procurávamos. Fomos bem sucedidos. Obtivemos informações preciosas, que anotámos.
Entretanto, assaltou-nos um problema: se os habitantes da zona nos entregassem as armas, como é que iriam eles caçar alguns animais que faziam parte da sua alimentação? Embora estivéssemos numa reserva de caça, calculávamos que eles, furtivamente, iam abatendo alguns animais. Ora, aconteceu que nesse ano o algodão subiu de preço. Por um lado, tratou-se da influência dos mercados internacionais. Por outro, o medo de alastramento do conflito levou as autoridades portuguesas a favorecer os angolanos, fixando um preço que se cifrava alguns pontos percentuais acima do praticado no ano anterior. Foi exactamente esta subida de valor do algodão, que acabava por representar mais dinheiro para os locais que o cultivavam, que usei na minha informação às sanzalas para justificar o prejuízo que eles teriam por não poderem usar as suas armas. O argumento usado foi, felizmente, bem recebido. Se não tivesse sido, o número de armas que conseguimos recolher - cerca de 200 - teria decerto sido muito inferior. Os habitantes daquela zona estavam a ficar prejudicados no seu dia-a-dia e teriam de receber alguma compensação.

Enquanto este caso verídico da guerra colonial em Angola fará cinquenta anos em 2011, o segundo caso (recolhido de uma reportagem do jornal Público) está a decorrer no presente. E no norte de Portugal, mais concretamente no Parque Nacional da Peneda-Gerês (PNPG). O Instituto de Conservação da Natureza e Biodiversidade (ICNB) propôs-se, certamente com a aprovação de Henrique Pereira, responsável directo pelo Parque da Peneda-Gerês, fazer integrar o PNPG na rede europeia Pan Parks, à qual já pertencem países como a Finlândia, Bulgária, Polónia, Turquia e Roménia. Um dos requisitos para que um parque natural possa obter a certificação Pan Parks é que possua uma área superior a 20 mil hectares e integre uma zona sem qualquer intervenção humana (wilderness zone) com uma superfície mínima de cinco mil hectares, que deve passar a 10 mil hectares dentro de uma década. O objectivo do ICNB é o de aumentar o prestígio do Parque Peneda-Gerês para assim potenciar o ecoturismo.
Ora sucede que, para alcançar os cinco mil hectares exigidos no início, será necessário aumentar em 2250 hectares a actual zona de protecção total. Isso obrigará a interditar o pastoreio usado pelas populações locais. Estas não aceitam prescindir do direito à propriedade e aos usos e costumes que herdaram dos seus antepassados e que, aliás, estão reconhecidos legalmente. São terrenos dos concelhos de Terras do Bouro, Ponte da Barca e Montalegre (neste blog já foram produzidos textos e mostradas fotografias sobre garranos e bois dessa área). O presidente da primeira das autarquias acima referidas declarou que vai defender os interesses das populações do parque e os seus direitos ancestrais, na medida em que são as populações da montanha que têm preservado o ambiente. Tentar conjugar os anseios de todos é muito diferente de impor regras, muitas vezes determinadas por quem não conhece suficientemente bem o tecido social da zona e que acabam por prejudicar o povo que lá habita e labuta.
Como se irá resolver este caso, que traz as populações em pé de guerra? Para já, o director Henrique Pereira vai abandonar o seu cargo daqui a seis dias. Irá dirigir um laboratório de investigação na Faculdade de Ciências de Lisboa. O filme segue dentro de momentos.

O terceiro caso abandona a terra e penetra no mar. Não se passa em Portugal, mas em zonas do Oceano Índico, ameaçando alastrar a outras áreas. Têm assombrado o mundo os ataques de piratas a navios transportadores de cargas com enorme valor. O máximo atingido terá sido de 100 milhões de dólares, quando um super-petroleiro saudita foi tomado por piratas que fizeram a abordagem no alto mar e conseguiram surpreender a tripulação. Só no ano passado, mais de 100 navios de todos os tipos foram atacados por piratas na zona que é usada por 12 por cento do comércio marítimo e pela qual passa 30 por cento do petróleo mundial.
Piratas no século XXI? Todos nos lembramos de ter estudado os assaltos dos vikings a povoações costeiras. Mas quando foi isso? Há séculos e séculos. Também foi há séculos que Walter Raleigh foi agraciado pela Rainha Isabel I com o título de “Sir” por ter proporcionado tantas riquezas ao tesouro inglês com os seus assaltos às embarcações espanholas ajoujadas de ouro e prata no seu regresso da América Latina. É claro que sempre tem havido assaltos a barcos, mas não com a frequência e dimensão que as abordagens dos Somalis têm registado ultimamente. O que pretendem estes homens? Naturalmente, ganhar dinheiro através de resgates. Mas haverá alguma razão forte que os tenha levado a ser tão destemidos e a arriscar a vida para aprisionar barcos no alto mar? Quem são estes somalis e de onde vieram?
São, na generalidade, homens do mar. Cultos? Nem pensar! A Somália está um caos em matéria de país. A taxa de desemprego é enorme. Como não há muitas outras fontes de rendimento disponíveis, a pesca é algo a que a população tem necessariamente de recorrer. Ora, sucede que as grandes potências e os países asiáticos invadiram com as suas embarcações aquelas águas tanto para a pesca como para outras actividades. Nos mares desde sempre utilizados pelos habitantes locais! Além de peixes mais pequenos, os pescadores somalis costumavam capturar tubarões, lagostas e outros crustáceos. Primeiro tentaram reagir através de protestos, mas forças militares internacionais começaram a proteger os barcos estrangeiros.
Segundo um dos líderes dos piratas, "se somos forçados a abandonar a nossa pesca tradicional, então são esses navios comerciais que passam a ser o nosso peixe." Acredito que esta versão seja ultra-simplificada para justificar os actos dos piratas, mas haverá decerto alguma verdade nela.

Os três casos acima abordados são, obviamente, diferentes. Mas contêm pontos em comum que dão que pensar. Por isso, bem ou mal, juntei-os.

1/10/2009

A ribaldaria?

Sob a alegação de que é necessário acudir rapidamente ao problema do emprego fomentando obras públicas - posicionamento que até aplaudo se essas obras públicas, de pequena ou média dimensão, se justificarem amplamente -, o governo propõe-se decretar que as autarquias passem a ter a possibilidade de ajuste directo de obras até ao valor de 5,1 milhões de euros (33 vezes mais do que até agora). Ajuste directo significa basicamente "sem concurso". Sabendo-se como em Portugal o BdF* é pelo menos tão importante como o BdP**, estranha-se que, numa altura em que o próprio Estado português não está a nadar em dinheiro, surja esta possibilidade tão repentina de delegação de poderes aparentemente sem controlo apropriado. Espera-se que os mecanismos de controlo, que ainda não foram anunciados, incluam uma justificação das obras, o obrigatório "visto" do Tribunal de Contas, penalizações severas por incumprimento das normas e obriguem à sua publicitação.
Ainda há dias, num apontamento relativo a um discurso de Luís Amado, tive ocasião de referir a necessidade que desde sempre os portugueses tiveram de austeridade e disciplina, algo que mantém alguns cidadãos lusos de mais idade saudosos de um Salazar disciplinador, esquecendo as enormes iniquidades que ele permitiu na nossa sociedade. A inclusão de Portugal no euro obriga-nos a uma disciplina a que não estamos habituados e à qual os nossos governantes, especialmente em anos de três eleições - legislativas, autárquicas e europeias - tendem a ser especialmente avessos.
James Madison, que foi o principal autor da Constituição americana e o quarto presidente dos EUA, escreveu que "Se os homens fossem anjos, a existência de governos não seria necessária." Tinha toda a razão. Os homens não são anjos. E os que não são anjos mas detêm o poder, gostariam que todos os outros fossem anjinhos. Assim estaria tudo bem. Foi baseado nesta experiência de vida que o advogado Madison avisadamente propôs sistemas de checks and balances, coisa que em tradução para a nossa língua pode dar algo como "freios e contrapesos".
Ora, haverá os necessários freios e contrapesos nesta proposta governamental? A corrupção em Portugal, de que todos temos amplo conhecimento, lembra uma baleia que vem à tona de água para pouco tempo depois mergulhar de novo no olvídio do reino submarino. Coisa pouco angelical, em que medida é que a sua intromissão está devidamente protegida? Se o governo não acautelar os interesses dos seus cidadãos de uma maneira geral e preferir adular os autarcas com uma medida que pode, como tantas outras já têm feito, permitir - de forma legal - favores a amigalhaços, presta um péssimo serviço ao país.
Mais ribaldarias não! Estamos fartos!

*- Banco de Favores
**-Banco de Portugal.

1/09/2009

Avaliação de Professores - Recomendação de leitura

Dado que este blog se debruçou várias vezes sobre o tema, esta é uma breve linha para recomendar a leitura de um artigo bem escrito, equilibrado e inteligente acerca da questão da avaliação dos professores do ensino secundário. O artigo em questão é da autoria de Lídia Jorge e foi publicado no jornal Público de hoje, 9 de Janeiro.

1/08/2009

A importância do passado no futuro

Como tantas outras pessoas, colecciono de há muito reflexões de outros que me pareceram interessantes na altura em que as li ou que as ouvi. Mesmo anotando determinadas frases ou ideias, acabo por esquecê-las, substituídas que são por novas expressões estimulantes. Quando os computadores apareceram, sempre que podia registava-as numa base de dados. Entretanto, ia apagando algumas que já não me pareciam relevantes. O aparecimento da Internet não me levou a esquecer este hábito, embora reconheça que alguns desses pensamentos, citações, provérbios, etc. são encontráveis numa breve busca que se faça. Mas mantenho a minha base de dados, à qual recorro com relativa frequência quando estou a escrever.
A que vem isto a propósito? Tendo precisado de uma expressão que sabia ter registado há uns tempos, não só a encontrei como resolvi fazer uma busca um pouco mais detalhada. Aí choveram surpresas que, nesta altura, ainda vão a meia-via. Ao todo tenho cerca de 400 fichas, todas elas com sete linhas preenchidas totalmente, geralmente de forma abreviada.
Um exemplo: a certa altura deparei com uma reflexão minha - "A verdade histórica lembra os oceanos: anda ao sabor das marés." Embora concordasse com a asserção e a entendesse como inserida num curso que regi, admito que já não me lembrava de a ter escrito. Umas boas páginas à frente, encontrei um pensamento muito interessante, em parte sobre o mesmo assunto mas com um cunho bem mais abrangente. O autor era Fernando Ilharco, professor de Ciências da Comunicação na Universidade Católica. Achei inteligente o que ele escreveu: "Quem controla o presente controla o passado, e quem controla o passado controla o futuro. À medida que os dias correm, as histórias do passado vão sempre mudando; umas vezes num sentido, outras vezes noutro, e umas vezes mais depressa, outras vezes mais devagar. Essa é a forma como se prepara a chegada do futuro, de maneira a que "assente que nem uma luva".
Acho que valeu a pena guardar este excerto.

1/06/2009

O (nosso) euro em questão?

Depois das férias natalícias passadas no seu país, os embaixadores costumam participar num seminário que tradicionalmente abre o ano diplomático. Em Portugal, o ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, Luís Amado, discursou nesse seminário e não se escusou a mencionar algumas verdades que, por inusitadas, se estranha ouvir da parte de uma individualidade governamental.
Luís Amado afirmou que a rápida convergência de Portugal para o euro (no final da década de 90) tinha tido como consequência um gradual processo de divergência, de onde advieram problemas estruturais para o país, como a existência de um Estado pouco eficiente, uma economia pouco competitiva e uma sociedade excessivamente dependente do Estado. Prosseguiu, afirmando que neste momento o Estado tem limitações e constrangimentos orçamentais inquestionáveis, a que se juntam as fragilidades do tecido produtivo português e a fraqueza da sociedade portuguesa. A seguir tirou uma conclusão importante: só com esforço e sacrifício poderá Portugal manter-se no núcleo duro da EU.
Se a minha interpretação está correcta – e poderá, obviamente, não estar - restarão duas grandes alternativas ao país: 1) esforço e sacrifício para se manter na Zona Euro; 2) saída da Zona Euro.
Relativamente à nossa entrada na "eurolândia", permito-me aqui recordar excertos de um texto que escrevi há cerca de dez anos, em Novembro de 1998:
"A existência de uma moeda única não só irá aumentar o número de transacções de toda a ordem como ainda constituirá uma arma de defesa contra o todo-poderoso dólar e irá elevar a importância da União Europeia no mundo.
Algo que vai quase decerto acontecer na sociedade portuguesa é uma maior disciplina. A isso obriga a União Europeia em que Portugal está inserido. É natural que, por essa via e só por essa, a fiscalidade portuguesa passe a ser mais transparente e surja uma maior justiça social. Presentemente, como se sabe, Portugal não apresenta uma carga fiscal especialmente gravosa comparativamente à de outros países; só que, dada a evasão espantosa que se regista ainda hoje por parte dos potenciais contribuintes de maiores réditos, os impostos directos são pagos sobretudo pelos empregados por conta de outrem, que são deveras penalizados. Ficam entretanto de fora as grandes fortunas, que parece não existirem. É possível que uma maior disciplina imposta pelas contas europeias venha a ter os seus reflexos numa menor fuga aos impostos. Mesmo assim, é sempre de considerar os numerosos paraísos fiscais existentes. Algo interessante é que esta imposição de disciplina orçamental (e não só) venha do estrangeiro. Lembra a arremetida do Marquês de Pombal na 2ª metade do século XVIII. Será esta mais bem sucedida?
Em termos económicos e financeiros, Portugal fica, à semelhança de outros países pequenos, bastante manietado. Desaparece a possibilidade de desvalorização da moeda, que tem constituído desde sempre uma almofada para o desemprego, e vem toda uma disciplina penalizadora que um leonino Pacto de Estabilidade e Crescimento determina. As consequências podem ser graves para Portugal. Inversamente, também tudo pode representar uma enorme terapia de choque para acordar de vez com determinados marasmos nacionais."
Devo dizer que quando Sousa Franco conseguiu o milagre de fazer Portugal reunir as condições de acesso ao euro fiquei agradavelmente surpreendido. Meses antes, eu não esperava que isso fosse possível. Ainda bem que foi. É verdade que de início, em 2002, houve um enorme salto nos preços. Muitos vendedores passaram a considerar uma moeda de euro como correspondente a 100 escudos. Uma mina! Ultimamente tem havido no entanto uma contenção maior neste aspecto. O mesmo sucedeu em países como a França e a Holanda, por exemplo.
Aliás, se não estivéssemos no euro a nossa taxa de inflação seria hoje muito mais alta e já teríamos decerto tido várias desvalorizações da moeda, como aconteceu na Hungria, que teve de pedir o auxílio do FMI, e em vários outros países europeus.
Se estivéssemos fora do euro, as pensões dos portugueses reformados estariam hoje muito mais baixas em real poder de compra. Actividades como o turismo ou o sector das exportações tanto poderiam lucrar como perder, mas o tecido social português perderia sempre.
Temos tido uma moeda forte mas, em minha opinião, não temos estado à altura dela. Infelizmente, não temos tido nem honestidade nem tem havido verdadeira competência política por parte de muitos dos nossos governantes. Embora em menor escala, a indisciplina continua a reinar. Veja-se a fatia de dívidas das autarquias que se mantém, espantemo-nos com os 90 por cento do PIB que nossa dívida externa atingiu, constate-se a contínua desfaçatez do governo madeirense. Um pormenor final: li ontem na imprensa que os transportes públicos não irão este ano aumentar. Porque não, se tudo aumenta pelo menos para cobrir a taxa de inflação? "Porque é ano de eleições" não é resposta aceitável. O que se gasta hoje a mais tem de ser pago amanhã, e com língua de palmo.

Este arrazoado todo pode não ter a mínima razão de ser. É possível que o Luís Amado, pessoa inteligente e culta, não tenha querido ir tão longe. Terei estado, por conseguinte, a tomar a nuvem por Juno. Sinceramente, espero que sim.

1/02/2009

Binário protesta-contesta

Hoje de manhã, à saída do metro da estação do Rossio ouvi atrás de mim uma exclamação de protesto de um miúdo para a mãe: "Ó mãe, olha o que fizeste! Até me descalçaste o sapato." Logo a seguir chegou-me aos ouvidos a reacção da mãe: "Atravessaste-te à minha frente!"
Não pude deixar de achar graça, até porque a situação veio na sequência de algo com que me deparei na rua na manhã do dia anterior, de Ano Novo. Um indivíduo, cambaleando sob o efeito de uma dose descomunal de vinho, passou perto de mim na rua deserta e, uns segundos depois, deu subitamente uma guinada para a direita que lhe fez semi-perder o equilíbrio e quase o atirava ao chão. Acto contínuo, exclamou para si próprio: "Ei, quem é que me empurrou?!"
É tão vulgar este binário acusação-desculpa no relacionamento entre as pessoas, seja de que nível elas forem e nas circuntâncias mais diversas, que achei paradigmáticos os dois casos. No primeiro, a mãe ainda arranjou uma razão plausível. Notei que não tinha pedido desculpa ao filho - não se sentia minimamente culpada e, assim, censurava até a atitude do miúdo para com ela. Mas muitas vezes, como no caso do bêbado, a auto-desculpa aparece sem ser convidada.
"Então, chefe, não vamos receber nenhum aumento este ano?" "Isso não é do meu pelouro. A Administração é que sabe.
"Apesar dos sacrifícios todos que nos têm pedido, continuamos a atrasar-nos relativamente à Europa, senhor ministro." "Isso depende de como se vêem as coisas. Há muitos indicadores em que estamos muito acima da média. Aliás, sem os sacrifícios de que fala estaríamos bem pior."
"Esta é uma instituição pública e as nossas propinas estão incrivelmente altas, senhor Presidente." "Se você conhecesse a verdade das contas e do financiamento do Estado, não diria isso. Admita que o montante é uma ninharia quando comparado com as propinas do ensino superior privado."
"Este ano o nosso Natal foi fraquinho, pai." "Dá-te por muito contente por teres tido o que tiveste. Houve muitos meninos sem nada."
"Tu prometeste que me levavas hoje ao cinema, mãe!" "Se pudesse, filha, se pudesse! Foi isso que eu te disse. Fica para outro dia."
"Este barulho que ouvi é dum copo que acabaste de partir, correcto?" "Não sei quem é que deixa os copos mesmo à beirinha da mesa. Uma pessoa passa e, sem querer, lá vai o copo parar ao chão..."

Quem tem mais poder sente, geralmente, que não fica bem ter que dar razão a quem o interpela. Não há volta a dar. Este sistema de uma acusação que é logo seguida de uma desculpa é tão comum que o acusador até já se pergunta, antes de formular a sua questão, "vamos a ver que desculpa é que é ele/ela me vai dar". Mas quase de certeza que vai arranjar qualquer coisa. Humanamente, é assim que agimos.

Mensagem de Ano Novo do P.R.

Concordo na generalidade com que o que Cavaco Silva disse na sua mensagem de Ano Novo. Não se trata de ser a favor ou contra o primeiro-ministro: é apenas uma questão de bom senso e de sentido de responsabilidade. O Presidente tocou na tecla que é uma das minhas favoritas: é melhor falar verdade do que deixar as pessoas viverem na ilusão através de mentiras repetidas umas sobre as outras. Num ano de eleições, é importante que a arrogância e o optimismo desconchavado do primeiro-ministro não levem o governo a cometer actos fortemente imprudentes e a aumentar a já grande dependência do país no capítulo de dívidas ao exterior. Um bom líder preocupa-se com a sustentabilidade dos investimentos que aprova, governando para as gerações e não para eleições.