3/29/2009

Hoje, uma pergunta simples

Somos aquilo que pensamos, aquilo que dizemos/escrevemos, ou aquilo que fazemos?

3/27/2009

Desenvolvimento humano e tendências linguísticas nacionais

Acho que não é preciso ir a exposições como a de Darwin na Gulbenkian - que aliás recomendo fortemente - para entender que o aparelho fonador humano segue uma linha diferente da do macaco. Aquilo para que gostaria de chamar a atenção a quem eventualmente ainda não se tenha apercebido é que, para além dessa linha divergente, existe depois no humano uma adaptação que é mais ou menos rápida aos diferentes sons.
É óbvio que nenhum bebé começa por aprender palavras como tecnologia e relatividade. Também quando uma criança começa a andar, fá-lo primeiro rastejando, depois passa a andar de gatas e, só por último, de pé. Apenas posteriormente, e com muitos galos pelo meio, aprende a correr.
Ora, creio que o aparelho fonador tem um desenvolvimento em certa medida semelhante. Não poderá, pois, começar por pronunciar aqueles palavrões acima referidos. A linguagem mais rastejante, digamo-lo assim para comparar com o andar, faz-se através de palavras agudas, i.e. acentuadas na última sílaba, geralmente com sílabas repetidas para que não só o ouvido se adapte como também depois todo o aparelho fonador. É assim que temos sons fáceis como os de papá, mamã, bebé, cocó, xixi, e mesmo verbos como papar e beber.
Os nossos filhos e, eventualmente, os nossos netos fornecem-nos muito material a este respeito. Basta estarmos atentos. Recordo-me de verificar que tanto os meus filhos como os meus netos tiveram o mesmo problema inicial com uma mesmíssima palavra: túnel. Desde que eles eram miúdos que, quando passávamos de automóvel por um túnel, eu lhes mencionava a palavra. Todos tentaram dizer a palavra de forma correcta à primeira e nenhum conseguiu: o que lhes saía era sempre tonel. Porquê? Julgo eu porque o seu aparelho fonador não estava ainda suficientemente desenvolvido para pronunciar palavras fortemente graves, quase esdrúxulas (não fosse o número de sílabas). Com a minha filha recordo-me que sucedeu ainda que pronunciava sempre a palavra Philips, que eu naturalmente dizia com acento na sílaba Phi inicial, como PhiLIps. Só mais tarde é que passou a dizê-la correctamente.
Há dias, em conversa sobre este mesmo assunto, dizia-me alguém que a neta não era capaz de dizer túlipa e dizia sempre tulipa. Ela chegará lá – embora a forma tulipa também seja usada - , mas continuará mais um tempo com dificuldade em dizer túlipa.
Ora, facilmente chegaremos à conclusão de que túlipa é mais difícil de dizer do que tulipa e de que a sílaba final da palavra – – ainda é mais simples. Apercebemo-nos através disso de um desenvolvimento gradual, consoante a dificuldade, do aparelho fonador humano. Lembra a caixa de velocidades de um veículo, com a 1ª, 2ª e 3ª velocidades a serem geralmente usadas por esta ordem.
A par disto, temos, por assim dizer, a existência de uma determinada sílaba tónica mais comum numas línguas que noutras. Consideremos três idiomas nossos conhecidos: o inglês, o francês e o português. Imaginemos a palavra inglesa MANAGER. À vista deste termo, todo o francês (que ainda não saiba inglês) terá uma enorme tendência para dizer manaGER, acentuando aquela que é a sua última sílaba. O português, por seu lado, tenderá a dizer maNAger, fazendo recair o acento tónico na (sua) penúltima sílaba, enquanto o inglês lerá a palavra como MAnager. Isto é: três línguas diferentes possuem tendencialmente três acentuações diversas para a sílaba tónica das seus vocábulos. Isto não quer, obviamente, dizer que não existam em português, por exemplo, centenas de palavras agudas. Nestas, porém, dado que tendencialmente o nosso acento recai na penúltima sílaba, a última sílaba vem graficamente acentuada, como se vê em café, totó, teté, trolaró, etc. Também pelo facto de ser a penúltima a "normal", a antepenúltima, tal como na palavra antepenúltima que acabei de escrever, tem obrigatoriamente um acento.
Creio que entendemos assim melhor a razão por que o Benfica em França é BenfiCA, o Sporting é SportING e o Porto PorTÔ.
E entenderemos também o incómodo que representa para os portugueses pronunciarem correctamente algumas palavras inglesas – com o acento tónico o mais recuado que a voz humana permite – em vocábulos como manager, que atrás vimos. É por este motivo que há tantos portugueses a lerem a palavra inglesa development acentuando a sílaba que lhes dá mais jeito: lo. Na realidade, a palavra é acentuada na sílaba anterior (ve).
Numa palavra como Yorkshire, o português tende, pelas razões atrás apontadas, a avançar resolutamente para o acento em –shi – e, por consequência, a pronunciar qualquer coisa como Yorkchaia. Na realidade, o acento recai sobre York, o que faz com que o –i- não se leia –ai.
Este é, como se vê, um assunto extremamente simples e fácil de compreender. Lamentavelmente, nem sempre é explicado numa base comparativa. Esta base facilita muito as coisas e fornece uma visão que é não só global mas também humana. Se me perguntarem "Então, e as excepções?", responderei que, como em quase tudo na vida, há excepções, mas em 1000 palavras será que devemos prestar mais atenção a 5 do que a 995? O que acima se descreve aplica-se a muitos milhares de palavras.

3/25/2009

Realpolitik

A palavra do título é um dos relativamente poucos termos em língua alemã que subsistem no mundo económico e político moderno. Favorito de Bismarck ainda no século XIX, o conceito atravessou a História para traduzir, basicamente, uma política realista, que olhe mais a pragmatismos do que a ideologias. Tomemos as relações entre a China e os Estados Unidos: inimigos, inimigos, negócios à parte.
Presentemente, em face da crise financeira e económica que está a abalar o mundo, sente-se cada vez mais a necessidade de políticas pragmáticas. Por outro lado, paninhos quentes não chegam: são necessárias medidas realistas que não se quedem pelo papel.
Todos temos assistido a um recrudescer das intervenções estatais nos mais diferentes países. O suporte à economia, a injecção de dinheiro em bancos privados, etc. tem sido fundamentalmente obra do Estado. Ora, de onde podem vir os dinheiros necessários para que o Estado cumpra esta sua missão de apagar fogos? Tomemos o caso português: será eticamente admissível que o nosso Estado injecte capital que provém de todos os contribuintes para proporcionar o alívio de bancos que beneficiam, de facto, os mais ricos? Mesmo que se contemporize temporariamente com esta situação, há uma faceta relevante que não pode ser deixada de fora: os impostos devidos ao Estado por grandes fortunas, especialmente se estas fortunas foram colocadas em paraísos fiscais, chamem-se eles Lichtenstein, Jersey, Gibraltar, Andorra ou Suiça. Mesmo que esse dinheiro não regresse ao país, os impostos devidos – e em pura evasão fiscal – terão de entrar nos cofres do Estado. Vai neste sentido a maior transparência já exigida – e aceite – a países como o Lichtenstein e a Suiça. Como a crise toca a todos, o capital acumulado e que habitualmente foge aos impostos nos países em que se forma vai ter de cumprir a sua obrigação ética e realista de contribuir para os custos de construção e manutenção de escolas, hospitais, serviços de segurança social e justiça, estradas, etc.
Estou convicto de que a próxima reunião do G20 prevista para 2 de Abril em Londres vai dar um passo importante nesta direcção. Estão em jogo, à escala global, triliões de euros. Pragmatismo precisa-se. Res, non verba.

P.S. Um aspecto importante para que os governantes de qualquer país concordem em pôr em marcha uma maior transparência e colaboração efectiva dos paraísos fiscais é o facto de se tratar de uma medida que, longe de fazer perder votos em eleições, leva a ganhá-los em número muito apreciável. Constitui uma boa contrapartida ao real benefício estatal de apoio aos mais ricos através da banca.

3/22/2009

Uma jovem democracia


Ontem, na busca de umas tantas fotografias antigas, não foi sem alguma surpresa que a certa altura deparei com esta que acima reproduzo. Tive que voar para a segunda metade dos anos 70 para a situar. Depois, no entanto, a lembrança veio a galope e, o que é mais, com alguns pormenores para mim bastante interessantes.
Nesse ano, a minha mulher e eu tínhamos decidido fazer uns dias de férias só com o nosso filho, que tinha então à volta de cinco anos. Estávamos no Verão. Pessoalmente, pensei que gostaria de estar junto a uma praia, num sítio também com alguma natureza vegetal, longe das gravatas citadinas. Como meses antes, ainda na Primavera, tinha visitado a costa alentejana, fui tentado a ir pela primeira vez para um parque de campismo. Um que ia ainda ser inagurado! Vila Nova de Milfontes foi o local escolhido.
Ora, durante um dos dias da nossa estadia no parque recebemos a notícia de que o Presidente da República iria almoçar lá. Houve naturalmente um certo alvoroço. Nesse dia, voltámos da nossa manhã de praia um pouco mais cedo do que o habitual. Uma vez de regresso ao parque, confirmámos a notícia. Dei uma saltada ao local e, de caminho, levei a máquina fotográfica. Sem qualquer protocolo, sem qualquer segurança à vista, aproximei-me da mesa e pedi autorização para tirar uma fotografia. A autorização foi pronta e agradavelmente concedida. O sol alentejano batia forte na mesa, causando um glare que ficaria bem visível na foto mas que não consegui evitar. Porém, houve uma outra coisa que consegui evitar: a jarra com cravos vermelhos que estava à frente do casal Eanes e que pedi para retirar um pouco para o lado. Pedido aceite, tirei então a foto. Não sei bem quem é o indivíduo que está de costas, mas ao lado de Manuela Eanes vê-se aquele que é hoje o Ministro da Defesa, Nuno Severiano Teixeira, filho de um militar possivelmente colega de Eanes.
O que mais admirei na situação foi a frescura da democracia portuguesa, o à-vontade tão diferente da rigidez formal que eu tinha tantas vezes visto no cerimonial balofo de outras pessoas e outras paragens. Ali, naquele Alentejo amigo, estava toda a gente como em casa, saudava-se um respirar diferente. Quando, vestido com uma T-shirt, calções e ténis, regressei à tenda com o meu filho, vinha cheio de boas impressões do meu novo país, aquele onde o miúdo ao meu lado ia crescer.
P.S. Não me esqueci de repor os cravos vermelhos em frente ao casal. Eles mereciam-nos.

3/21/2009

Da ditadura ao regime democrático

Há uns tempos, assustou muita gente o facto de Salazar ter sido escolhido pelos telespectadores, através de uma longa eleição na RTP, como o maior dos portugueses. "Porquê Salazar?" foi a pergunta mais comum. Será que os jovens votaram em alguém que eles de facto não conheceram? Parece pouco crível. Terão sido os seus pais? Nalguns casos, certamente. Ou os seus avós? Nalguns casos também. Houve quem tivesse considerado a votação um escândalo, enquanto outros bateram palmas. O fantasma do ditador mostrou estar bem vivo. O interessante destas coisas é, sempre, perguntar porquê. Então, num regime democrático elege-se um ditador?!
Talvez seja de começar pelo substancial aumento de longevidade dos portugueses. Nunca como hoje houve neste país tantos sexagenários, septuagenários e octogenários. São todos pessoas que viveram os anos do regime denominado de Estado Novo (quem nasceu depois de 1970 já não conheceu o que significava viver sob esse regime). Se muitos cidadãos vivos referem com saudade esse (longo) período é porque, de uma maneira ou doutra, estabelecem o contraponto com os tempos actuais. É aqui que, a meu ver, começa a ser interessante a análise.
Em princípio, quando se fala com o homem da rua sobre as suas preferências – regime ditatorial ou democrático? -, a resposta que se obterá predominantemente é "regime democrático". Isto significa, obviamente, uma antítese ao regime ditatorial, que era o de Salazar. Nessa altura, quando havia eleições os resultados eram previamente concertados. Havia falta de liberdade de expressão em termos políticos. Existia uma altamente perigosa polícia de "defesa do Estado". Comissões de censura actuavam sobre a imprensa, rádio e TV, além de sobre filmes e livros. Apesar de tudo isto, não é geralmente este ramalhete de itens que muitas pessoas têm em mente quando falam saudosamente de um salazarismo que mitificam. Aquilo que a memória lhes traz de volta é a pacificidade dos tempos, o sossego nas ruas, a não-visibilidade de conflitos, a relativa estabilidade dos preços e uma apreciável garantia de emprego. Ora, a democracia, pela liberdade que é inerente à sua implementação, torna-se por natureza sede de um número maior de conflitos.
Mas creio haver algo mais, não irrelevante, no saudosismo desses cidadãos: a existência de uma figura tutelar, sempre a mesma, a "empunhar o leme da Nação". Salazar arranjou maneira de não ser elegível: ele era, tout court, o Presidente do Conselho de Ministros. Era ele quem escolhia os seus ministros e os dispensava quando lhe apetecia. Quanto a si próprio, não se sujeitava ao voto popular. Entroncava aí o regime ditatorial. Dos lugares de topo, quem se submetia a eleições era uma figura que ele próprio escolhia: o Presidente da República (P.R.). Geralmente não existiam grandes diferenças de opinião entre o P.R. e Salazar, mas se estas ocorriam o sacrificado era o primeiro e não o segundo. A este o país devia um regime autoritário. Porém, a sua honestidade pessoal não era posta em causa. Ninguém dizia que Salazar estava a governar para se locupletar. Sempre foi visto como uma pessoa austera e frugal, que via na sua missão o serviço ao país e não servir-se a si próprio -, a não ser através do uso do poder, o que, convenhamos, já não era pouco.
Graças às diferentes comissões de censura e a uma estratégia de marketing político, o país navegava entre ranchos do tipo "Como elas cantam e dançam em Paços de Brandão", jogos de futebol e de hóquei em patins mais ou menos animados e corridas de bicicletas. No povo incutia-se a noção do dever e da frugalidade. A ideia básica, de consolação e esperança, consistia no slogan mais interiorizado do que expresso "Não há benefícios sem sacrifícios". Incentivava-se a poupança. A ambição era combatida como qualidade negativa. A Igreja era uma aliada de peso do regime. A política do "baluarte da civilização ocidental" cerrava fronteiras contra os inimigos da Pátria, nomeadamente a ONU. Opiniões altamente discordantes não se ouviam a não ser em períodos de campanha eleitoral, o que facilitava ao regime encarcerar alguns dos dissidentes logo que aquele período excepcional de liberdade terminava.
Poderia chamar-se paz podre, mas havia paz e sossego. Mesmo a guerra no Ultramar foi encarada mais como missão do que como conflito real. E os causadores da luta não eram tanto as populações locais como "os interesses estrangeiros que se auto-desmascaravam no odioso aerópago da ONU".
Havia duas palavras que eram usadas com grande frequência: Nação e Pátria. Exaltava-se o orgulho nacionalista, clamava-se pelos patriotas e apodava-se os dissidentes de anti-patriotas. O que Salazar alegadamente fazia era, sempre, A Bem da Nação.
A contrapor a esta situação ditatorial, que vigorou durante décadas, temos o actual regime democrático, saudado pela esmagadora maioria dos portugueses graças ao derrube do antigo regime ditatorial, num mês de Abril de há 35 anos. Como era de prever, os vários interesses que estavam conjugados na sua antipatia à ditadura cedo se desuniram na sua visão de sociedade. Liberdade foi a palavra-chave, mas geraram-se conflitos de vária ordem, que os meios de comunicação social, já livres da censura, começaram a reportar para a população. Assim, de chofre, passou-se da concordância, podre ou falsa mas de qualquer forma aparente, a algum caos que confundiu muitas pessoas. Com a independência das colónias ultramarinas e o decorrer dos anos, palavras como Nação e Pátria passaram a estar fora de moda. Eram conceitos que faziam parte integrante do regime anterior. Bem ou mal, correspondiam à noção do "ser". Foram sendo substituídos por siglas mais da ordem do "ter", das quais a principal foi possivelmente o PIB. Procurava-se garantir um maior bem-estar das populações. Surgiram numerosos hipermercados bem recheados de produtos. Posteriormente, fez-se campanha pela aquisição de casa própria, medida que levou uma percentagem elevada de portugueses a ficarem endividados perante a banca, enquanto esta se endividava perante instituições estrangeiras. A felicidade transitou para a noção de "ter", o que levou ao derrube de numerosos padrões éticos. Imensas coisas melhoraram, desde a saúde à educação. Na saúde ocorreu uma espectacular baixa da mortalidade infantil em resultado de melhoria de cuidados; no domínio da educação, a massificação levou todas as crianças à escola e um número muito considerável a continuarem os seus estudos a nível superior. Tentou-se recuperar o atraso de décadas, embora se tenha embarcado num nível de facilitismo desnecessário e errado. A nossa entrada no Mercado Comum em 1986 contribuiu, através de vultosas ajudas comunitárias, para que aumentasse exuberantemente a nossa rede de auto-estradas. O país ficou mais pequeno. Novas tecnologias foram gradualmente sendo introduzidas. Portugal, que sempre foi um país de exportação de mão-de-obra, começou a importar trabalhadores estrangeiros em larga escala. As transformações que ocorreram não foram ligeiras. Nalguns aspectos, foram mesmo brutais.
Um desses aspectos com maior relevância na nossa transformação foi a mudança da sociedade dos deveres do período salazarista para a sociedade dos direitos pós-25 de Abril. A ambição deixou de ser considerada um defeito. Enfileirou, em vez disso, no ramo das qualidades mais positivas. A poupança passou para segundo ou terceiro plano. A Igreja perdeu muito da sua influência, principalmente nas grandes urbes. A população começou a habituar-se a ver nas ruas das cidades ou, através da ubíqua televisão, manifestações de toda a ordem. De metalúrgicos, enfermeiros, empregados do sector têxtil, professores, funcionários públicos, militares e até polícias.
E o regime? Cumpria as regras democráticas? De entre todas as regras principais, uma delas tem sido cumprida exemplarmente: a realização de eleições livres. As correspondentes campanhas de propaganda partidária, utilizando automóveis, megafones, cartazes, filmes televisivos, etc. trouxeram uma parafernália de colorido que nunca se tinha visto até então. A política começou a dominar os cabeçalhos dos jornais. E pontos de vista diferentes também. Qualquer medida governamental, fosse qual fosse o partido em exercício, era contrariada pela oposição: no Parlamento, na TV, na imprensa escrita. Mais tarde, quando um partido da oposição ganhava o poder, procedia muitas vezes da forma que antes criticara. E a liberdade, essa grande arma do regime democrático? A grande verdade, diga-se, é que a liberdade precisa de ser garantida pela justiça. Suponho que foi Lamartine que disse que "entre o forte e o fraco é a liberdade que oprime e a lei que liberta". Neste campo, a democracia portuguesa tem falhado inúmeras vezes. A justiça não é célere e tem sido pouco eficaz. As fraudes financeiras aumentaram muito e passam impunes. É um facto que a existência de offshores contribui muito para este estado de coisas, mas mesmo assim a nossa justiça não tem funcionado bem. Este facto desprotege os mais desprotegidos, como a citação entre aspas acima as indica. Desapareceu a censura, mas não desapareceu o medo na sociedade portuguesa. Com poucos objectivos dentro da área do "ser", valores éticos soçobraram, aliás tal como sucedeu no regime ditatorial. A grande diferença é que agora se tornavam visíveis, enquanto que na ditadura eram ocultados.
Lembremos ainda que, como é sempre no confronto com o outro que nós aprendemos a identificar-nos, a democracia procurou desmascarar muitas das tácticas abomináveis do antigo regime, o qual foi frequentemente apodado de fascista.
A passagem para a democracia teve, relativamente ao período da ditadura, outra grande diferença fundamental: enquanto Salazar possuía uma estratégia de continuidade – hélas, demasiado longa! -, presentemente os primeiro-ministros dos partidos eleitos governam por um período de quatro anos, que pode ou não ser continuado por via eleitoral. Isto significa que Salazar surgia quase como proprietário da sua nação, cujos destinos concebia e fazia cumprir. Em contrapartida, os primeiro-ministros democráticos já não são vistos como donos ou proprietários. São meros gestores ou administradores, que a votação popular pode fazer apear ao fim de um mandato. Este facto acaba por, de certa maneira, menorizar o papel dos ministros que constituem governo e obriga-os a seguir práticas com o seu quê de populismo, práticas essas que nem sempre seguem os sãos princípios da economia.
Sob este aspecto, será curioso analisar as estratégias habituais seguidas durante os mandatos democráticos. Nos primeiros dois anos/dois anos e meio introduzem-se as reformas que são consideradas essenciais; no ano em que as eleições voltam a realizar-se descomprime-se o país, desaperta-se o cinto o mais possível e são oferecidos bonbons especiais que irão melhorar a situação a curto prazo, mas que acabarão por ser pagos com língua de palmo anos mais à frente.
Cavaco Silva, professor de Economia e Finanças na Universidade, ensinava nos seus apontamentos que os políticos têm uma enorme tendência para fraquejar na parte final dos seus mandatos, a fim de conseguirem renová-los, cedendo nas despesas estatais que anteriormente tentaram conter. Note-se que Cavaco Silva foi, a princípio, muito comparado a Salazar, principalmente pelo seu jeito austero e também por ser originário da área das Finanças. Ora, é curioso verificar que o próprio Cavaco Silva, quando ocupou o seu cargo de Primeiro-Ministro acabou por tomar essa medida. Os funcionários públicos receberam um aumento superior ao que era habitual, o que veio onerar sobremaneira a Função Pública.
Presentemente, José Sócrates consentiu um aumento de 2,9 por cento aos funcionários estatais, portanto muito superior à inflação. Ele, que lutou noutras frentes – v.g. na Segurança Social – para controlar as despesas públicas. Esta forma de proceder, que é vulgar em regimes democráticos, retira alguma credibilidade ao sistema. Num só ano, desfaz-se aquilo que demorou os três anos anteriores a construir. Ainda por cima com efeitos perniciosos sobre o ciclo seguinte. Olhando apenas para o caso actual, notamos que José Sócrates mostrou algumas boas qualidades de liderança, a despeito de um claro excesso de arrogância. Contudo, falhou em aspectos basilares e teve pelo seu lado o azar de o 3-em-um lhe sair torto de várias maneiras. Por um lado, a existência da crise internacional beneficiou-o como desculpa externa; por outro, veio aumentar substancialmente o desemprego em Portugal. Para alguém que tinha prometido aumentar o emprego, é um descrédito. Além disso, um caso pouco claro na sua formação académica deixou que sobre a sua figura recaíssem suspeitas graves quanto à impecabilidade da sua formação em engenharia. A juntar a este facto sobrevieram outras suspeitas de um eventual caso de corrupção quando ainda era Ministro do Ambiente de outro governo. Se compararmos a folha limpa – neste aspecto! – de Salazar, o que era aliás reconhecido pela oposição, vemos que o posicionamento do actual primeiro-ministro deixa algo a desejar e, com isso, compromete o seu esforço para reeleição, mau grado o disparate financeiro do aumento de 2,9% ao funcionalismo público. Neste campo, note-se ainda que, sendo a classe dos professores um volumoso grupo dentro do funcionalismo, o descontentamento que a equipa ministerial grangeou entre o grupo vai fazer com que este despropositado aumento seja algo deitado à rua em termos de votos.
Este foi um breve passeio, muito à vol d’oiseau, desde a ditadura até à democracia. Espero que os leitores pelo menos reconheçam que houve uma sincera tentativa de objectividade na análise.

3/18/2009

Já!!!!

A questão do curto, médio ou longo prazo não é, como todos sabemos, uma questão, mas pelo menos três. Pensar a curto prazo é coisa bem diferente do pensamento a médio prazo e ainda mais do pensar a longo prazo. Quando um pai educa um filho, tenta imaginá-lo a médio e a longo prazo. A educação irá em princípio conferir-lhe uma sustentabilidade que constituirá a sua base de sobrevivência na sociedade pela vida fora. Este é um pensamento estratégico, pelo que faz todo o sentido arredar o curto prazo dessas cogitações. É, além disso, uma acção nobre. Tal como existe nobreza no pelicano que, em caso de necessidade última, pode deixar as crias alimentar-se da carne do seu peito, os pais nobres de alma educam os filhos da melhor maneira que lhes é materialmente possível.
Esta visão a longo prazo revela também vistas largas, aquilo que em língua inglesa se denomina de far-sightedness. Pelo contrário, o conceito de "vistas curtas" não é considerado brilhante. E brilhante não é, certamente, mas a uma escala egoísta, de pensamento anti-social, mais da pessoa em si própria do que nos outros, pode ser altamente rentável. Os espertos usam muitas vezes o curto prazo, "o que está a dar"; os inteligentes perdem frequentemente essa oportunidade, preocupados que estão mais nas perspectivas de médio e longo prazo.
Sempre houve e haverá indivíduos espertos e indivíduos inteligentes. No meio, está o grosso da população, mais ou menos amorfa, conduzida ora por uns, ora por outros, mediante os resultados obtidos.
Se forem colocadas duas perguntas sobre os tempos que correm, nomeadamente se estamos numa era de certeza ou de incerteza, de paciência ou de impaciência, estou convicto de que a esmagadora maioria - se não a totalidade - dos inquiridos responderá “estamos em tempos de incerteza e de impaciência”. Tempos de "Já!!!!!" Não é raro que quando um subordinado pergunta ao seu chefe "Para quando pretende este trabalho?", obtenha como resposta "Para ontem!". Esta ideia de urgência e de curtíssimo prazo espelha falta de planeamento e de organização. Sofremos muito com isso hoje em dia. Daqui resultam erros que têm tanto de evitáveis como de gravosos.
Esteve há dias em Portugal Ram Charan, um reputado guru indiano que veio falar a uma plateia constituída pelos nossos mais influentes CEOs. Baseando-me em reportagens que li na imprensa, direi "ainda bem que veio!" Se as suas palavras vão ser seguidas ou não, ninguém sabe ainda. Elas fazem todo o sentido, porém. Não são exactamente uma novidade, mas é bom que alguém que conhece o mundo melhor do que o cidadão comum venha abordar de forma sui generis a questão empresarial, que tem muito a ver com todo o resto.
Para gestores, ele falou, entre outras coisas, do curto, do médio e do longo prazo. No meu exemplo acima - dos pais relativamente à educação dos filhos -, atrevo-me a pensar, com naturais ressalvas, na família como empresa. Num exemplo concreto: se uma empresa vê que não tem mercado para os seus produtos, é lógico que suspenda temporariamente o seu fabrico para não ir à falência. Poderá eventualmente encontrar vias alternativas. Na família moderna, preocupada com a promoção social futura dos seus filhos, a preocupação em limitar o número de filhos apenas a um ou dois tem igualmente, por parte dos pais, a ver com o espírito empresarial de não aumentar a produção desmedidamente. Para quê? Para sobrevivência da família e para promoção social dos filhos, que são o prolongamento natural da família. E numa empresa real, deve atender-se à sociedade no seu todo ou mais aos "pais" da empresa, os accionistas? Mais especificamente: deve atender-se à situação da sustentabilidade e continuidade da empresa - e consequente continuidade dos trabalhadores -, ou pensar primordialmente nos lucros dos accionistas?
Esta é mais uma questão que tem a ver com o "Já!!" Now! Right now! A crise que deflagrou em 2007 e se agudizou em 2008, prosseguindo ainda no corrente ano, oferece-nos um panorama muito interessante, com larga margem para reflexão. Uma empresa que tem lucros, tanto pode reinvestir a parte mais substancial desses lucros como distribuí-los. Se antigamente havia a tendência para distribuir apenas uma parte pequena dos lucros a fim de formar uma almofada de segurança maior para a sustentabilidade da empresa, nos anos que precederam o rebentar da crise a distribuição de dinheiros das firmas pelos administradores e, no fundo, pelos maiores accionistas, atingiu níveis muito elevados. Ora, reflictamos: se eu sou accionista, a empresa é minha na devida proporção das minhas acções. Tal como The Economist lembrou num dos seus últimos números, se eu levantar dinheiro da minha conta através do Multibanco não é por isso que fico mais rico. O mesmo se passa com os dinheiros da empresa. Se os dinheiros dos lucros empresariais são em grande parte levantados, ocorre, relativamente a uma optimização do capital da empresa, uma descapitalização. Ou, se pretendermos, uma diminuição do volume da tal almofada que poderia amortecer uma queda empresarial, sempre possível. Por que razão se mostrarão os administradores, gestores e grandes accionistas de uma maneira geral tão ávidos pela distribuição do dinheiro? Por causa do "Já!!". Antes que seja tarde! Por causa da incerteza - nos seus bolsos o dinheiro estará certo, nos cofres da empresa nunca se sabe. E por causa da impaciência: a vida é para viver. Usando a conhecida frase de John Maynard Keynes: "a longo prazo estaremos todos mortos".
Ora, em que medida pode este comportamento ser anti-social? Na exacta medida em que, se existirem problemas, os mais ricos estarão a coberto deles, com o dinheiro já no bolso, enquanto os trabalhadores podem ser alvo de despedimentos - o que não é nada raro -, com todos os imensos problemas que esses despedimentos acarretam para as famílias. Ficarão parcialmente a cargo do Estado através do fundo de desemprego. Por seu lado, numa situação como a actual, a empresa pode ver-se compelida a pedir a intervenção estatal, i.e. através do dinheiro dos contribuintes, o que sucederia em menor escala se aquele lauto bodo não tivesse ocorrido.
Depois, resta aos gestores organizar conferências sobre "o papel social das empresas". Fica bem, será politicamente correcto, não tem é rigorosamente nada a ver com o seu comportamento factual.
Neste sentido, pedem-se medidas correctivas e regulatórias, a bem do erário público e duma maior justiça social. E maior transparência nas contas, pessoais e empresariais, para que não sejam os contribuintes a financiar os egoístas evasores. Punições céleres para estes. Já!! A crise de valores passa por aqui.
É o "Já!" que faz com que se escolha uma árvore de crescimento rápido como o eucalipto em vez do tradicional pinheiro. É o "já" que faz com que a sustentabilidade do ambiente seja muitas vezes uma pura fachada para defender valores que, de repente, cessam para dar lugar a um empreendimento turístico irrecusável - para classes mais abastadas, possivelmente para os anti-sociais accionistas das tais empresas. O Ministério do Ambiente foi em princípio criado para teoricamente contrariar a insustentabilidade do "Já!". Infelizmente, existe uma expressão próxima - o “Já agora! - que ocasionalmente consegue comprar o ambiente (em Portugal, basta que a um projecto seja aposta a classificação de Projecto de Interesse Nacional - PIN). Introduzem-se dificuldades na lei, mas criam-se facilidades na prática para alguns - a corroborar a conhecida máxima que nos diz que "a burocracia é a arte de criar dificuldades para depois vender facilidades". Mais uma para o enorme saco da crise de valores. A pedir verdade e transparência. Já!!

3/17/2009

Um livro


Um dos filmes que mais me emocionaram até hoje foi sem dúvida o Cine Paradiso, de Giuseppe Tornatore, arte maravilhosa de como fazer cinema sobre o cinema. Com a criação da figura excepcional de Alfredo, o projeccionista que fazia rodar as bobines para uma sala entusiástica que só protestava quando havia quebra da fita – geralmente motivada por cortes de censura – e um pequenote que era seu assistente e admirador, Tornatore logrou, entre múltiplas outras virtudes, trazer à baila a importância da censura nos filmes e como ela se processava na Itália da 2ª Guerra Mundial.
A propósito de censura de filmes, não vou anunciar nada de verdadeiramente novo, mas ontem calhei a encontrar na Livraria Municipal da Avenida da República (a poucos metros da Versalhes) um livro publicado já há alguns anos mas com grande interesse ainda para todos os que se interessam pelo período salazarista em Portugal, dada a consabida censura de livros, revistas e filmes então existente. A obra está recheada de fotos e, principalmente, de anotações dos revisores da Comissão de Censura, de cartas facsimiladas das distribuidoras a contestarem os cortes ou a não-autorização de importação/passagem de determinado filme, etc. Uma preciosidade para os que se interessam por uma história agora já com uns anitos mas sempre útil.
Apenas dois exemplos ao acaso (ainda não pude ler o livro todo). O primeiro refere-se a "Zabriskie Point" (Destino Zabriskie), um filme realizado em 1970 por Michelangelo Antonioni. "O tema do filme - a revolta da juventude numa América do Norte que atingiu um nível industrial que não responde aos seus anseios - leva-nos a considerá-lo inconveniente no momento actual. Por este motivo, reprovamos o filme, que não deve ser importado." Esta reprovação data de 6 de Abril de 1970. A 10 do mesmo mês, o censor Pedroso de Almeida comenta: "Reprovamos o filme: a revolta da juventude nas primeiras partes e a destruição da civilização na última, são os motivos determinantes. Já não se fala nas cenas pornográficas da 8ª parte facilmente elimináveis."
Um segundo exemplo. O filme "Oh! What a lovely War" (Que Delícia de Guerra), do inglês Richard Attenborough (1969). "Reprovamos o filme, pois que apesar de ser apresentado como farsa, é um libelo cruel contra a guerra. O pacifismo e derrotismo que dele resultam à evidência desaconselham a sua apresentação entre nós, pois que as famílias com soldados em África ficariam terrivelmente deprimidas… com a frequente afirmação de que não há nenhum ideal que justifique o sacrifício. Não deve, pois, consentir-se a importação."
O livro tem cerca de 250 páginas e está neste momento em promoção. Custa €7. Good value for your money.

3/13/2009

Negativo-Positivo

Em tempos, tive como colega uma inteligente socióloga que, na opinião de vários amigos, só enfermava de um problemazito: adorava apontar os defeitos das coisas, as inenarráveis incompetências dos ministérios, a falta de sensibilidade das pessoas duma maneira geral e, em particular, de quem estava à frente da gestão autárquica. Não elogiava nada.
Um dia, antes de ela ir fazer uma conferência, da qual me leu e a uma outra pessoa que estava connosco – um engenheiro seu amigo de infância - alguns excertos, o engenheiro deu-lhe um conselho: "O.K., Antónia, pisa e repisa se quiseres as ervas daninhas todas, mas depois aproveita para fazer com elas um monte que te permita avistar também os malmequeres, as maravilhas e as margaridas. Se os teus olhos não estiverem igualmente postos em flores, o público a certa altura deixa de te ouvir. Hoje em dia as pessoas estão fartas de ouvir dizer mal, estão cansadas de entender que lhes destroem pouco a pouco a esperança. Sê agradável para com elas. Enche-lhes os ouvidos de papoilas e de amores-perfeitos. Elas vão-te retribuir com atenção e aplausos."
Reparei que a Antónia o ouviu atentamente. Cerca de uma quinzena mais tarde, ela voltou a estar connosco. Disse-nos que tinha seguido o conselho e cortado algumas partes do seu bilíaco discurso. Lembrara-se de que cem gramas de mel são melhores do que uma tonelada de fel. Contou-nos que não só o público tinha gostado muito, mas também que ela própria se tinha sentido francamente melhor.
Chegado aqui, pergunto-me a mim próprio: porque será que há tantos jornais que vêm continuamente com toneladas de fel? Dos desastres fazem parangonas, de medidas governamentais elaboram manchetes que são críticas à nascença, enquanto boas notícias são via de regra ignoradas - pelo menos em primeira página? Existe uma excepção notável: quando a selecção nacional de futebol ganha, ou o Cristiano Ronaldo conquista mais um troféu para a sua colecção ou qualquer atleta nacional ganha uma medalha de ouro numa competição é quase garantido que surge um grande título e uma fotografia a cores na primeira página. Justificadamente. Faz erguer o orgulho nacional. Satisfaz as pessoas. Afinal, os leitores são como a plateia que qualquer conferencista como a Antónia enfrenta.
Será Portugal um país que gosta de saber e de falar de coisas negativas? Será Portugal um país masoquista, como o próprio fado o é ao partilhar as mágoas de alguém com os ouvintes? Não sei responder concretamente a esta pergunta, mas creio que é o segmento mais idoso da população que tende a ser mais negativo e a esperar o pior. Conjuntamente com o segmento menos educado e viajado. Alguém que é jovem, ou pelo menos intelectualmente jovem, não liga tanto a esses aspectos. Quando há pouco mais de um ano aqui escrevi sobre a Índia, lembro-me de ter realçado o optimismo da esmagadora maioria das respostas dos indianos à minha pergunta sobre se estavam contentes com a vida. Notei que respondiam espontaneamente. Revelavam apreciáveis índices de felicidade. Falavam confiantemente na sua situação e esperavam uma melhoria substancial para si e para o seu país. Faziam-no em tom positivo. Já agora: setenta e cinco por cento da população tinha menos de 35 anos. Em Portugal, uma pergunta idêntica levaria pelo menos a algumas respostas bem diferentes: "A situação está preta." "Nunca vi isto tão mal como agora!" "Por este andar, não sei onde vamos parar." Ou, ligeiramente melhor: "Por enquanto não me posso queixar!" "Ora, cá vamos andando! Seja o que Deus quiser!"
Quer queiramos quer não, o tom negativo gera negatividade. A nossa produtividade desce. A nossa felicidade também. É por isso que urge inverter a situação.
Em Portugal há óptima comida; por outro lado, os portugueses ainda são, de acordo com estatísticas internacionais, os que, na União Europeia, mais comem fora de casa. Porém, o que se vai geralmente buscar é que há muitos portugueses com deficiências alimentares - o que não deixa de ser verdade mas, por amor de Deus, não batam todos na mesma tecla!
O rendimento mínimo de inserção (RMI) existe em Portugal, ao contrário do que sucede em muitos outros países. Devo dizer que a reação mais comum que ouço ao RMI é a afirmação de que é irrisório e não dá para nada; ou então que deseduca as pessoas de trabalhar e as faz viver encostadas à sombra da bananeira, enquanto "nós" estamos a pagar para esses mandriões, que ainda assaltam carros e roubam casas.
No que diz respeito à segurança, é notório para todos aqueles que conhecem razoavelmente países estrangeiros que se nota calma nas nossas ruas e estamos longe de ser um país perigoso. Contudo, é evidente que há alguns carteiristas e há assaltos a bancos e a lojas de vez em quando. Mas será só aqui? Será que a desigualdade social que entre nós existe, bem patente nos números estatísticos, não poderia causar ainda muitos danos mais? É evidente que se tomarmos a situação de zero-problemas como a ideal, quedar-nos-emos sempre àquem desse ideal. Mas será que quem faz esses comentários é, ele próprio, um bom cidadão cem por cento cumpridor e que não explora ninguém nem o próprio Estado (outra forma de roubar)?
Portugal é um país de juventude bonita. Este início de primavera mostra-o à evidência. Mas é claro que também há muito gordinho e gordinha que deveria fazer dieta e resistir mais à publicidade de doces e quejandos. Será que é só cá? Demos uma saltada até aos Estados Unidos e ficaremos arrepiados.
Temos zonas muito bonitas do país, como suponho que muitos conhecem. Por vezes com belos monumentos. Infelizmente, não há dinheiro para restaurar todo e qualquer monumento. Fazer uma listagem desses monumentos em grande decadência pode ser óptimo para artigos de jornal, mas será que os restaura? Dir-se-á: sem essa chamada de atenção, será ainda pior. Possivelmente. Mas que dêem uma visão equilibrada dos monumentos restaurados e dos que estão em estado de degradação. Todavia, não insistam primordialmente nos negativos! Seremos, por natureza, do contra?
Às vezes páro a olhar para a beleza das estações do Metro em Lisboa. O metropolitano possui azulejos lindíssimos. Houve na decoração das estações um visível planeamento – algo que os portugueses são constantemente acusados de não fazerem. Temos como autores dessas composições artistas portugueses notáveis, como Bartolomeu Cid dos Santos, Menez, Querubim Lapa, Helena Vieira da Silva, Noronha da Costa, e alguns estrangeiros de nomeada, como Hundertwasser. Muitos desconhecem-nos.
O Parque das Nações, nas instalações da antiga EXPO-98, é um óptimo local para quem está cansado do bulício da cidade. Impecavelmente seguro, sossegado e limpo! Compare-se o que sucedeu a este parque pós-exposição universal com a área similar de Sevilha 92, que ficou uma lixeira! Entretanto, é possível e natural que no futuro a volumetria dos edifícios a construir aumente e que as áreas de relvados diminuam. Mas, enquanto a situação está como está, que seja usufruída e elogiada. Não se lastime por antecipação aquilo que eventualmente se pode perder, a não ser que seja necessária luta para que se mantenha.
Os portugueses auto-flagelam-se tanto que chegam a pedir desculpa aos estrangeiros se, num determinado dia, em vez de fazer sol estiver a chover: como se estivessem a pedir desculpa pelo facto de o Pai Deus, de que eles são filhos, não estar nesse dia tão bem-disposto como é hábito.
Em Portugal há hoje rapazes e raparigas, homens e mulheres jovens, a brilhar no domínio da ciência e da investigação. São muitos os novos doutorados que temos. E são novos doutorados que estão à vontade no mundo internacional, que falam inglês suficientemente bem para se expressarem fluentemente. Era assim no passado? Porque não reconhecer este progresso?
Se virmos bem, o nosso sistema de Segurança Social não é tão mau como alguns pretendem. Há, por exemplo, muitos meios auxiliares de diagnóstico que são grátis ou quase, enquanto nalguns países estrangeiros os médicos não têm sequer a oportunidade de os prescrever dado o seu custo. Entretanto, o que está sempre a dar é atacar o serviço público!
No campo cultural, temos melhorado imenso. Ainda há dias ouvi no programa "Câmara Clara" da RTP2 António Tabucchi tecer um enorme elogio à expansão que se nota no meio cultural português. Perfilho a mesma opinião. Umas semanas antes, Mário Soares falou sobre Novas Políticas numa sessão do INATEL no Teatro Trindade. No final, houve a habital sessão de perguntas-e-respostas. A primeira pergunta que alguém lhe fez foi sobre "a confrangedora pobreza do nosso país no domínio das artes e da cultura". A resposta de Mário Soares, viajado e conhecedor de meio-mundo, foi simples: "Nunca como hoje em dia vi tão grande desenvolvimento cultural no nosso país, seja nas grandes cidades, seja em centros mais pequenos!" Pensemos na programação da Casa da Música, no Porto, e do CCB em Lisboa. Música e ópera no S. Carlos. Clubes de Leitores. Tertúlias. Conferências, exposições, festivais e teatro em montes de sítios. Será pouco? Dantes havia mais?
E que dizer do êxito de obras de arte moderna de colecções portuguesas que são exibidas no estrangeiro? E dos arquitectos portugueses que são convidados para projectos em todo o mundo - e só o muito distraído é que pensará, ao ler esta linha, apenas no Siza Vieira!
Se olharmos bem, repararemos que o êxito de vários escritores portugueses tem sido notável. Hoje, temos escritores traduzidos no estrangeiro muito mais do que anteriormente. Consideremos, por exemplo, Gonçalo M. Tavares, A. Lobo Antunes, Saramago, Lídia Jorge. Mas há muitos mais.
Da distribuição de milhares de unidades do pequeno computador Magalhães nas escolas procura-se retirar basicamente o elemento de escárnio e gozo. Ao resto não se liga. Enfatiza-se aquilo que toda a gente sabe: que, na realidade, não é um computador que ensina a pensar. Mas de que ensina muitas outras coisas não pode haver dúvidas.

Voltando aos nossos jornais e telejornais. Parecem apostados em dar ao povo aquilo que julgam que o povo tem gosto em comer. Tricas e mais tricas, má-língua, disputas entre políticos, bota-abaixo, questões ditas de lana caprina.
Com isto não estou de forma nenhuma a falar de governos, sociais-democratas, socialistas ou seja lá o que forem. Isso não é o principal, a não ser que cometam erros sobre erros. Olhemos as grandes linhas, sejamos exigentes para com os governantes mas principalmente no que respeita a uma melhor distribuição dos rendimentos (maior justiça social), a um combate a sério à corrupção, a uma administração célere de justiça, a uma educação rigorosa e não facilitista, a comportamentos éticos e não falsamente éticos, apenas encobridores de grandes maroscas, por parte das elites. Exijamos responsabilização e punição dos culpados. Estes não são temas menores.
Seria bom e mostraria um maior conhecimento do mundo se deixássemos de ouvir dizer coisas como "Só no nosso país é que se vê uma coisa assim!". Pense-se. Se o nosso país fosse tão mau como muitos portugueses e os media parecem gostar de apregoar, será que haveria entre nós tantos estrangeiros que, voluntariamente, se deixaram "tribalizar" pelo nosso clima e pelas nossas gentes? Pessoalmente, conheço umas duas dúzias deles. Por alguma razão cá se mantêm há tantos anos!
Desculpem o longo arrazoado. Não pretendo ter razão em tudo, mas parece-me que o assunto merece alguma reflexão.

3/09/2009

Custa a acreditar

Como já aqui tenho referido, trabalhei durante largos anos, com prazer, numa instituição de ensino superior privado. É evidente que, apesar da minha satisfação, havia sempre uma coisa ou outra que considerava menos bem. Foi este o caso dum episódio relacionado com oferta de livros. Como coordenador do departamento de línguas, eu fazia encomendas relativamente grandes de livros para os alunos. Foi-me fácil arranjar junto de uma livraria alguns descontos que, por comum acordo, seriam traduzidos em oferta de obras para a biblioteca da instituição. Assim, no final de cada ano eu fazia na livraria em questão uma selecção de livros que considerava úteis para a biblioteca, dentro do montante previsto. Num determinado ano, fui surpreendido com um reparo do director e proprietário da instituição: uma das obras que eu tinha seleccionado não seria muito recomendável. O livro em questão era Uma Breve Interpretação da História de Portugal, de António Sérgio. Eu próprio possuía o livro em casa e estranhei que ele não fizesse parte do acervo da biblioteca. Quando ele foi entregue, foi levado pela bibliotecária com mais um monte de outros ao gabinete da Direcção. Sabendo do reparo, falei com o director, que era professor de História, e inquiri qual o problema com o livro em questão. "Não é bem a nossa linha". Argumentei, naturalmente, que são sempre necessários vários pontos de vista para que as pessoas possam formular a sua opinião. Apesar do reparo citado, o livro foi para a biblioteca. Comentei para mim que ali estava um caso típico de censura prévia. Como o director, que infelizmente já faleceu, era monárquico, murmurei para comigo: "L’État c’est moi." Reflectindo posteriormente sobre o assunto, concluí, bem ou mal, que como proprietário de uma instituição privada ele tinha o direito de impor as suas regras dentro de sua casa. Aqui, gostaria apenas de acrescentar que a estranheza que senti se deveu ao facto de nas aulas os professores gozarem de total liberdade. Aliás, tanto quanto sei, nunca ninguém foi obrigado a sair da escola por expressar os seus pontos de vista, fossem eles quais fossem.
Porque é que me ocorreu ontem esta história? Por uma notícia que li no Público. Porém, aqui tratava-se não de propriedade privada, mas da coisa pública. O texto que segue é praticamente uma reprodução da notícia, assinada pelo jornalista Tolentino da Nóbrega.
Informa a notícia que, na Região Autónoma da Madeira qualquer decisão dos serviços técnicos que, sem conhecimento de Alberto João Jardim, inviabilize projectos privados "é ferida de nulidade". "Sempre que em qualquer serviço da administração pública sob tutela do governo regional a informação ou parecer sobre iniciativa de investimento for negativa ou contrarie substancialmente a proposta inicial, o competente membro do governo, antes de a subscrever, apresentará o processo ao conselho de governo", cabendo ao presidente "a decisão de agendamento". No preâmbulo de uma portaria reguladora, o Presidente do Governo Regional da Madeira refere que "algumas vezes os serviços vetam iniciativas de investimentos" ou "pronunciam-se em parecer negativo", admitindo que "na maior parte dos casos possa existir fundamento bastante para o efeito". Noutros, "se a visão meramente técnica fosse completada por uma mais profunda análise do bem comum - exigível sempre, nomeadamente em regime democrático -, talvez mais alguns obstáculos fossem ultrapassados". Assim, "sendo o governo aquele que dá a cara ante a opinião pública", o Presidente chama a si a "decisão terminal".
A notícia termina com a informação de que "recentemente a directora do Parque Natural da Madeira, Susana Fontinha, foi afastada do cargo, depois de ter emitido um parecer negativo sobre o projecto do teleférico no Rabaçal, a ser edificado em plena floresta de laurissilva, sítio Rede Natura 2000 e declarada em 1999 pela UNESCO Património Mundial da Humanidade."
Comentários?

3/07/2009

A Índia revisitada, a propósito do Slumdog Millionaire




O êxito do filme que em Portugal está a ser exibido com o título "Quem quer ser bilionário?" trouxe de novo a Índia à ribalta. Justificadamente. Escreveram-se nos últimos anos muitas páginas elogiando o extraordinário desenvolvimento da Índia. Por outro lado, circulam na Net numerosos ficheiros em PowerPoint mostrando o que de mais belo existe no país e, em quantidade ínfima, também o que de mais sórdido o país apresenta. A minha estadia de um pouco menos de um mês na Índia durante o ano passado não me permite, logicamente, emitir opiniões categóricas e, portanto, não é de maneira nenhuma isso que farei. Por outro lado, sei que dois estrangeiros podem visitar os mesmos locais de um país ao mesmo tempo e, no final, possuírem opiniões bem diversas sobre o que viram, aprenderam e apreenderam. De onde resulta que este pequeno arrazoado não é mais do que um parecer, sincero mas indubitavelmente contestável.
O "Quem quer ser bilionário?" não foi bem acolhido na generalidade da Índia, muito embora os protagonistas do filme tivessem sido apoteoticamente recebidos em Mumbai (antiga Bombaim) aquando do seu regresso da América, onde estiveram presentes na entrega dos Óscares. Qual a razão por que o filme em si não agradou ao governo indiano e à comunidade mais rica da Índia? Obviamente, por mostrar a parte dos slums (bairros de lata), que abundam em Mumbai. E abundam também em Delhi, em Calcutá, em Varanasi, etc. Após desenvolver durante largos anos uma campanha promocional do país sob o signo "Incredible India", campanha que aliás tem sido tão bem sucedida como dispendiosa, o Slumdog Millionaire (com o seu título de marketing, chocante e pouco respeitador) vem mostrar a outra face - não pequena - da realidade indiana. Todo o visitante da Índia se depara com aspectos lindíssimos do país, com monumentos impressionantes - o Taj Mahal, de Agra, tornou-se o símbolo de todos, mas há muitos outros extremamente interessantes - , com hotéis de luxo, com boas praias por exemplo na zona de Goa, mas, por outro lado, não pode ficar cego perante uma realidade bem diferente, de pobreza, sujidade e indigência. O facto de a Índia possuir um mar de gente - com 1,1 bilião de habitantes, é o segundo país mais populoso do mundo - e cidades com 10, 12, 15, 18 milhões de habitantes, a que se junta uma gama de religiões diferentes, com larga predominância do hinduismo mas também com uma enganadora percentagem de muçulmanos (12 por cento de muçulmanos significa qualquer coisa como 130 milhões de pessoas!), tudo faz com que o país se debata com problemas de grande vastidão.
A independência da Índia tem pouco mais de 60 anos. Antes da independência, que ocorreu em 1948, a Índia fez parte do império colonial britânico. A verdade é que os ingleses, que entraram na Índia como todos sabemos pela mão dos portugueses e exactamente em Bombaim (a Indian Gate da cidade lá está para o assinalar), nunca se interessaram por corrigir verdadeiramente o que lhes parecia estar mal na Índia, desde o regime de castas até às flagrantes diferenças entre a classe privilegiada dos ricos e as grandes manchas de pobreza do país. Não me atrevo a considerar que os ingleses, como colonialistas que eram, não tiveram razão. Se metessem mãos à obra para transformar radicalmente a Índia, teriam tido enormíssimos dissabores e provavelmente não se aguentariam. Mesmo assim, criaram boas estruturas administrativas e tiveram o grande mérito de unificar um país que estava por demais dividido entre diferentes estratos sociais, religiões e etnias. Além disso, o império inglês deu à Índia um importante elemento aglutinador: uma segunda língua, que a população pobre hoje não fala, mas que todos os mais abastados dominam e que se estuda com grande empenho nas escolas. Os indianos só têm vantagem em fazê-lo. Alguns dos melhores jornais - e que qualidade eles têm! - são escritos em inglês, com excelentes artigos de opinião e uma ampla variedade de temas.
Entretanto, o governo tem estado interessado, como acima digo, em apresentar ao mundo - e aos próprios indianos - um retrato francamente em ascensão da sua "Incrível Índia". E, como já referi noutros textos, este retrato não é totalmente falso. O que lá se mostra existe. O que se oculta é que é muito. O Slumdog Millionaire terá enfermado do grande pecado de ter apresentado a faceta menos "mostrável". Por este motivo, o filme foi encarado na Índia como parte da propaganda negativa ocidental - filme realizado por um inglês e produzido igualmente por um inglês - cidadãos do país dos antigos colonizadores. O filme seria, de acordo com determinadas fontes alinhadas com o ponto de vista governamental, um caso típico de voyeurismo pornográfico da pobreza. Infelizmente para este argumento, "Quem quer ser bilionário?" baseia-se num romance escrito por um diplomata indiano - Vikas Swarup. Por outro lado, é um filme optimista, na medida em que dá a ideia de que é possível sair do labirinto da miséria, nem que seja através de um concurso televisivo.
Ainda irá demorar muito tempo até que a Índia consiga proporcionar um nível de vida aceitável à maioria da sua população. Aliás, não é tarefa fácil. Mais fácil é seguir a política inglesa de não atormentar os "marajás", usando-os até como instrumento de controlo das massas. Esta política traduz-se no apoio a grandes fortunas, a dinâmicos empresários, a bairros de luxo com belas residências - como a zona alta de Hollywood, como lhe chamam em Mumbai, não muito longe de locais que são verdadeiros contínuos de bairros de lata ao longo de quilómetros bem dentro do perímetro da cidade. O filme não inventa nada. O contraste é flagrante. Mas, afinal, esse é também um motivo de interesse para o visitante ocidental e ajuda-o sobremaneira a entender com maior verdade a realidade indiana, que é, confessemo-lo, a um tempo incrível e fascinante.


P.S. Junto duas fotografias. Uma é de um lavadouro público em Mumbai, aliás incluído no filme. A outra foto, também minha, mostra uma parede com um emaranhado louco de fios no Mercado Crawford, no centro de Mumbai. Constitui, em minha opinião, um retrato simbólico do labirinto cultural e civilizacional da Índia de hoje. Como nos poderemos admirar que, de quando em quando, ocorra um curto-circuito?

3/03/2009

A desglobalização


A história do mundo regista já a existência de várias globalizações, de que a actual terá sido apenas a mais completa. Pode falar-se de globalizações pelo menos desde as grandes viagens de exploração e comércio de portugueses e espanhóis há mais de cinco séculos. Por diversas razões, nas quais as guerras desempenham um papel relevante, as sucessivas globalizações têm sido interrompidas por períodos mais ou menos longos.
Fundamentalmente, aquilo que leva à globalização é o espírito das trocas comerciais e a possibilidade de exploração de oportunidades lucrativas noutros locais que sejam acessíveis por meios de transporte. Se no século XVI tínhamos que nos confinar basicamente a embarcações, hoje em dia dispomos também de aviões, caminhos-de-ferro, estradas e, além disso, de comunicações electrónicas ultra-rápidas. Olhando um pouco retrospectivamente, numa perspectiva de curto prazo mas já com interesse histórico, chegar-se-á à conclusão de que, com tal panóplia de meios, seria difícil há uns anos atrás às nações mais poderosas resistirem a encetar uma nova globalização. Irreversível, diziam muitos. Talvez, mas atenuável, dir-se-á hoje com maior propriedade. Presentemente é notório um fortíssimo abrandamento da globalização. Vamos tentar entender melhor porquê.
Da gama de possível exploração de oportunidades comerciais em larga escala escolho duas formas fundamentais: ou, como agora se tentou, através da exportação de capital e know-how para países de mão-de-obra barata, ou, como sempre se fez, através da importação de mão-de-obra barata para países com riqueza por explorar.
Nesta perspectiva, não hesito em considerar o movimento da escravatura até ao século XIX como uma parte significativa de um movimento globalizador. A mão-de-obra africana que foi encaminhada tanto para a América do Norte como para a América Latina constituiu um aproveitamento que apresenta algumas semelhanças, por parte do explorador, com a actual utilização da mão-de-obra chinesa, indonésia e indiana. A escravatura foi um movimento que se prolongou durante séculos e que terá levado à emigração forçada de vários milhões de africanos para países como o Brasil e os actuais Estados Unidos, além da Grã-Bretanha, que foi a grande potência colonial desde o séc. XVII até ao século passado. Para tal dispunha, como se sabe, de uma poderosa armada e de uma marinha mercante de elevada importância no comércio mundial.
Aqui chegados, convirá formular a seguinte pergunta: se a exploração da mão-de-obra barata que vinha das terras de África permitia a formação de grandes fortunas através das plantações de algodão e tabaco (nos EUA), da exploração de minas de ouro e diamantes (no Brasil), etc., por que motivo foi a escravatura abolida? A resposta parece mais importante ainda quando pensamos que, de entre todas as nações europeias, a Grã-Bretanha foi o primeiro país a aboli-la, em 1834.
Como todos sabemos, não existe geralmente uma explicação única para a ocorrência de um determinado fenómeno. Para diversos autores, em opinião que perfilho, a razão primordial da abolição da escravatura foi o surgimento na Grã-Bretanha da dupla revolução agrícola e industrial. Este facto levou ao emparcelamento de terras e à construção de inúmeras fábricas. Ora, tanto nas terras como nas fábricas, havia necessidade de trabalhadores, mas agora já em número que dispensava a vinda de escravos africanos. Além disso, a principal colónia da Grã-Bretanha - o território da América do Norte - tornara-se independente em 1776. Os escravos continuavam a ser importantes nas plantações do sul dos Estados Unidos, mas na Inglaterra já se mostravam excedentários. Pelos motivos acima expostos e não tanto por alegadas razões humanitárias que entram em clara contradição com a chacina de negros que se manteve por parte do exército colonial britânico em terras de África, a escravatura foi abolida. Causava problemas aos nacionais. Apesar de o vastíssimo império colonial inglês constituir uma forma de emprego para muitos britânicos, da Índia à Birmânia, da África do Sul à menos desejada Nigéria, era urgente arranjar emprego para os ingleses na sua própria terra.
Entretanto, o que aconteceu a Portugal, aliado da Inglaterra e grande transportador de escravos nos seus navios negreiros? É evidente que sendo os ingleses "uma nação de comerciantes", como Napoleão gostava de lhes chamar, eles não iam consentir que Portugal continuasse com o comércio da escravatura, o que daria ao nosso país uma importante vantagem comparativa nalguns produtos (o romance Equador, de Sousa Tavares, e agora a série televisiva com o mesmo nome abordam este assunto da concorrência entre o preço do cacau obtido graças à condição de escravos dos trabalhadores das roças de S. Tomé e o preço que na altura era conseguido pela fábrica de chocolates Cadbury inglesa). Em consequência da situação, Portugal foi obrigado a ceder e declarou oficialmente a abolição da escravatura em 1869. ("Fica abolido o estado de escravidão em todos os territórios da monarquia portuguesa, desde o dia da publicação do presente decreto." D. Luís, Diário do Governo, 27 de Fevereiro de 1869.)
Foi em 1807 que os Estados Unidos, pela mão de Thomas Jefferson, assinaram a lei que passou a proibir a importação de escravos, a qual se registava desde o século XVII. Nesse ano de 1807 havia mais de quatro milhões de escravos nos EUA, que mantiveram a sua condição, trabalhando especialmente nas plantações do Sul. Como no Norte do país, mais industrializado e, portanto, menos dependente da agricultura, os escravos não faziam falta, a escravidão não era bem aceite. Digamos que esse foi um dos factores que conduziram à Guerra Civil americana de 1861-65, a qual terminou com a vitória dos yankees sobre os dixies. Só em 1865 o Presidente Lincoln pôde aprovar a 13ª emenda constitucional, que aboliu a escravatura em todas as suas dimensões.
Deste breve apanhado de coisas passadas saliento o facto de os governos pretenderem, com alguma lógica - que se aceita ou reprova -, guardar os empregos para os seus concidadãos. Foi em certa medida neste sentido que há cerca de dois anos Sarkozy se insurgiu contra uma medida da União Europeia: os subsídios que a UE estava a conceder a países como a Hungria e a Polónia para a instalação de fábricas multinacionais que assim abandonavam outros países da União, incluindo a própria França. Argumentava Sarkozy que o conjunto de subsídios da União Europeia, acrescido de uma forte redução fiscal, levava as empresas multinacionais a deslocalizar-se e a causar um indesejado desemprego nos países onde estavam previamente a laborar. Por outras vias, a União Europeia estava a fazer funcionar as hungrias e as roménias como um Oriente Próximo.
O mundo estava a funcionar sobre rodas, pode dizer-se. Só que os pneus das rodas, de tão cheios que estavam, podiam explodir a qualquer instante. Aquele ar a mais estava a causar grandes bolhas. Acabaram por rebentar. A partir daí, tocou o sino de alarme em muitos países. E tocou mais em países, cada um prioritariamente a olhar mais por si do que olhando globalmente para o mundo. Afinal, os problemas internos é que têm de ser resolvidos pelos políticos, alguns com eleições à porta.
No caso concreto da União Europeia, seria de esperar uma acção concertada que envolvesse quase trinta países? Só um inveterado optimista o esperaria. Porquê? Por um lado, porque a União ainda é demasiado jovem. Nem o Tratado de Lisboa recebeu ainda a ratificação de todos os países. Fazem-se reuniões ditas informais das nações mais representativas, deixando de fora as mais pequenas. Nada disso deve verdadeiramente surpreender em períodos de crise, mas é um facto que as diferenças são demasiado notórias para que uma união possa funcionar bem e em consonância logo de início. As línguas são muitas e quase todas diferentes. E não se diga que a língua não é um factor de união, também cultural: veja-se o caso belga como prova categórica da antítese dessa união. Por outro lado, as culturas individuais de cada país, que datam de há vários séculos, encontram frequentemente mais pontos de fricção bélica do que de alianças amigáveis. A religião, que também esteve na origem de múltiplos conflitos, está muito longe de ser comum a todos os países. As economias são diversas, o que pode constituir uma enorme vantagem, mas a capacidade organizativa e de trabalho das pessoas, também diverge bastante. O sistema educativo apresenta igualmente diferenças notórias. Tudo isto provoca uma união algo difícil. Como se poderia esperar que todos pensassem primeiro no todo europeu e só depois na sua própria nação? Daqui advém um lógico nacionalismo, que aliás é bem nítido quando existem competições desportivas entre equipas ou selecções de países diversos mas pertencentes à mesma União.
O nacionalismo tende a provocar algum proteccionismo, o qual só as nações maiores se podem dar ao luxo de implementar. O proteccionismo contraria o comércio livre e, numa primeira instância, beneficia os Golias e afecta os Davids. À la longue, afecta todos.
O desemprego que grassa por todo o lado nas sociedades ocidentais – a Espanha já tem cerca de 3 milhões e meio de desempregados – deveria ser a má-consciência dos homens do capital globalizado. Porém, isso só sucederia se eles tivessem verdadeira consciência. Esta é, porém, abafada pela química do lucro, pelo que os homens do capital arranjarão sempre pretextos para se defenderem. A verdade é que nas últimas décadas os capitalistas afortunados apostaram no risco e ganharam fortunas à custa da exploração humana. Puseram indiscutivelmente sempre o capital à frente das pessoas, as quais eles habitualmente rotulam de recursos (humanos, para que se distingam de todos os outros recursos que surgem nas rubricas contabilísticas). Agora que vêem evaporar-se muito do seu dinheiro através das quedas das bolsas, esperam que seja o Estado a socorrer e a empregar as pessoas. Moldam-se à situação que mais lhes convém. Tal como não interessa a cor do gato desde que cace ratos, também para eles a ideologia é de somenos importância.
De tudo resulta que a globalização já perdeu o forte ritmo que a animou durante vários anos e está presentemente a ceder. O movimento de exportações e importações declinou substancialmente. Quando e como tudo terminará, ninguém verdadeiramente sabe. Mas há duas coisas que foram aprendidas. Uma delas é que a grande regra da economia e da finança que se manteve, ao contrário de múltiplas outras que soçobraram, foi a de que é altamente conveniente que as pessoas não coloquem todos os ovos no mesmo cesto. Trata-se de uma verdade consagrada.
A outra grande verdade, em minha opinião, é a de que a noção de que o progresso é graficamente representado por uma linha recta em constante ascensão é tão perigosa como a ideia de que o mercado se auto-regula através da celebrada "mão invisível". Mãos invisíveis existem, de facto, mas com outras finalidades bem diferentes.