2/26/2010

As faixas do CD



Há determinadas expressões que por vezes começam como meras tiradas de humor e, mais tarde, se revelam não só bastante certeiras como também não necessariamente aplicáveis apenas ao alvo original. Dentro das milhares de expressões de humoranónimo, recordo-me agora especialmente de uma. Diz o seguinte: "A mulher é como um CD de música. Por causa de uma ou outra parte boa, acabamos por ficar com tudo."
Dando de barato que a piada provém de um homem, admito que, no presente caso, não seja a já habitual provocação masculina à mulher que me interessa particularmente. Parece-me muito mais importante a aplicabilidade da frase a muitas outras coisas.
Qualquer um de nós sabe que possui facetas que agradam a uns tantos e desagradam a outros. Essas facetas, que num CD são faixas de música, sempre se revelaram importantes para uma catalogação que tendemos a fazer dos outros e os outros tendem a fazer de nós. Apesar de sermos tão variados como as tais faixas musicais, criamos empatias com umas pessoas e antipatias por outras, porque determinadas faixas, positivas ou negativas, se tornam predominantes para nós. É nessa base que nos apressamos a classificar e a catalogar as pessoas que, de uma forma ou doutra, encontramos na nossa vida. Escolhemos as facetas que nos são mais queridas ou, pelo contrário, seleccionamos as outras a que somos avessos, e assim rotulamos A ou B, apenas por causa de duas ou três facetas. Em última análise, tomamos a parte pelo todo. Dentro deste âmbito, catalogamos sinteticamente as pessoas como falsas, bondosas, comunistas, socialistas, pretas, leais, ciganas, gays, engraçadas, velhas ou solteironas.
Os governantes, que naturalmente situamos num pedestal mais elevado relativamente a nós, são geralmente pessoas que a sociedade analisa, escrutina e sujeita depois ao seu veredicto. Das personalidades que estão no alto vêem-se melhor as várias facetas devido à sua maior exposição mediática. Examinamo-las friamente? Não. Na realidade, tendemos a classificá-las entre boas ou más, óptimas ou detestáveis. Sempre? Não. A verdade histórica é como o mar: anda ao sabor das marés. Vejamos alguns exemplos.
Lyndon Baines Johnson foi o 36º Presidente dos Estados Unidos, de 1963 a 1969. Anteriormente, entre 1961 e 1963, fora o Vice-Presidente de John F. Kennedy. LBJ, como era geralmente chamado, teve a seu favor o grande impulso que deu à Grande Sociedade norte-americana através de legislação apropriada que conferia direitos cívicos a quem os não possuía ainda. Lutou também contra a pobreza. Contudo, foi com Kennedy primeiro e depois com ele que o envolvimento americano na Guerra do Vietname, que já vinha de trás, triplicou. O resultado foi o enorme e progressivo descontentamento que surgiu na juventude americana, e não só. Em Washington e noutros pontos dos EUA, gigantescas manifestações e cantores-activistas como Joan Baez e Bob Dylan conseguiram retirar de Lyndon Johnson as facetas que lhe davam crédito. Substituíram-nas por frases deste tipo, cantadas em coro pela multidão contra a guerra no Vietname: "Hey, hey, L.B.J., how many kids did you kill today?" e por slogans que ficaram célebres, como "Draft Beer not Boys".
A Tony Blair sucedeu algo idêntico. Da coluna do Haver do ex-primeiro-ministro, uma substancial maioria da população britânica rasurou os lados positivos da paz conseguida na Irlanda, da ajuda a África, do combate ao crime, do impulso à educação e ao Serviço Nacional de Saúde. Ignorou a chamada 3ª Via. Hoje, para muitos britânicos, Tony Blair é aquele que mentiu sobre a intervenção britânica na guerra do Iraque, o His master’s voice do americano George W. Bush. A falta de apoio da rectaguarda inglesa já lhe custou a possibilidade de ocupar o lugar de Presidente da Comissão Europeia, ao qual acabou por não concorrer. Em Inglaterra tornou-se popular o trocadilho Bliar com as letras do seu nome, sugerindo as gravosas mentiras que ele terá forjado. Eis uma faixa negativa que cobre todas as positivas. Este é um CD que a população britânica hoje se recusa a comprar.
Mas será sempre assim? Poderá Blair ser um dia reabilitado? Só o futuro o dirá, mas nem sempre é fácil. Olhemos para três casos portugueses.
Sebastião José de Carvalho e Mello, que sem ter sido o único Marquês de Pombal é aquele a quem nos referimos quando falamos do "Marquês", foi um homem de grande poder no nosso século XVIII. Braço direito do rei Dom José, tomou numerosas medidas para reformar a sociedade portuguesa, tanto em Portugal como no Brasil. Ganhou a admiração de muitos e, digamos, a aversão de outros tantos. Quando a estátua equestre de Dom José foi colocada no Terreiro do Paço em 1775, ela continha na parte central do seu pedestal virado ao Tejo um medalhão de homenagem ao Marquês. Alguns anos depois, com o cair em desgraça de Sebastião de Carvalho e Mello e o seu exílio para Pombal, a rainha D. Maria ordenou a retirada do medalhão e a sua destruição. O filho do artista que o tinha esculpido retirou-o, mas não o destruiu. Escondeu-o em sua casa. Quando décadas mais tarde, já com os liberais, o Marquês foi reabilitado, o medalhão reapareceu e foi recolocado no seu lugar primitivo. As graças e desgraças históricas vogam ao sabor das marés. E só em 1934 é que o Marquês teve a sua própria estátua na praça de Lisboa que tem o seu nome.
Um caso mais recente é o de Oliveira Salazar. O seu CD teve, como geralmente todos os discos têm, várias faixas. Governante austero, restaurou a princípio a lei e ordem no país após um período muito conturbado. Gradualmente, deu estabilidade à moeda nacional, o escudo. À sua maneira, com disciplina, autoridade e repressão de liberdades, criou aquilo a que chamou o Estado Novo. Foi um estratega durante a 2ª Guerra Mundial, tendo evitado a entrada de Portugal no conflito, embora à custa de notórios sacrifícios da população. Por outro lado, avançou para um conflito no Ultramar que duraria 13 longos anos e causaria um elevado número de mortos. Aderiu à EFTA. Manteve durante longos anos uma odiada polícia política, a PIDE. Ora bem, quando ocorreu a revolução de Abril de 1974, Salazar, que tinha já morrido 4 anos antes, foi considerado, juntamente com Marcelo Caetano e todo o regime, o grande ditador fascista. De toda a política da União Nacional se falava então como "a pesada herança" de 48 anos de fascismo. Todas as faixas do seu CD estavam reduzidas a uma. A estátua de Salazar em frente ao Domus Justitiae de Santa Comba Dão, sua terra natal, foi entaipada.
Hoje, mais de 35 anos após a revolução dos cravos de Abril, têm sido publicados numerosos livros sobre Salazar e ele próprio foi consideradoem 2007, num controverso programa da RTP intitulado "Os grandes portugueses", "o maior português de sempre". Dos 159 mil votos válidos recebidos, Salazar logrou obter uma generosa fatia de 41 por cento. O segundo classificado, Álvaro Cunhal, quedou-se pelos 19 por cento. Por seu lado, o Marquês de Pombal não chegou a recolher 2 por cento dos votos. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Poder-se-á dizer que a vitória póstuma de Salazar foi mais uma reacção por contraste com a indisciplinada, conflituosa, livre mas corrupta sociedade pós-25 de Abril. É possível que tenha sido um cartão amarelo mostrado à sociedade actual. Note-se, entretanto, como a tendência é para o muito bom ou para o muito mau. Compra-se o CD ou destrói-se aquele que temos cá em casa?
O terceiro caso com que avanço é o do actual primeiro-ministro, José Sócrates. Começou por conquistar por larga margem a maioria absoluta após o desastre de Santana Lopes. Mostrou-se voluntarioso, optimista. O seu disco parecia um CD quase só com música agradável. Com as suas reformas, v.g. Segurança Social, Sócrates desagradou a muitos, mas mostrou-se um hábil comunicador. Sarkozy elogiou-o precisamente por ter conseguido reformar sem grandes problemas a Segurança Social (ainda hoje, a reforma de idêntico sistema no seu país está a causar ao Presidente francês grandes engulhos). Sócrates fez, como todo o político faz, numerosas promessas, a lembrar a cínica mas quase sempre correcta frase de Schlegel "As promessas de ontem dos políticos são os impostos de hoje". Marcou pontos na Europa e foi "Porreiro, pá!" na aprovação em Lisboa do tratado da União Europeia com o nome daquela cidade. Entretanto, os adversários que foi ganhando não lhe pouparam críticas quanto à forma pouco clara como terá obtido a licenciatura em engenharia; lançaram dúvidas sobre um eventual recebimento de luvas no caso do licenciamento do Freeport, em Alcochete, já há vários anos. Reformas na educação revoltaram os professores. As aplaudidas reformas iniciais já estão esquecidas, as faixas positivas do seu CD só lhe deram uma maioria não absoluta nas novas eleições. Hoje é acusado de tentar amordaçar os media que não lhe são favoráveis. Os números do desemprego são os mais altos de sempre em Portugal, parcialmente como resultado da crise mundial, mas quem está a governar é que paga. É a lei da vida.
Como irá a História vê-lo um dia? Como um Pinóquio mentiroso? Como um azarento no final do seu primeiro mandato? Como um poluítico? Como um mediático orador? Tudo depende de quem escrever essa História e do momento político que se viver. Para já, não existem presentemente muitas pessoas interessadas em ouvir todas as faixas do seu CD.

2/21/2010

Olhar e ver




Creio que todos nós já sentimos, intuitivamente, que olhar e ver não são exactamente a mesma coisa. Passeemos um bocadinho pelo tema.
Recordo-me de, numa manhã límpida e já relativamente quente de Maio, ter visto na praia um homem a brincar com o seu cachorro. O indivíduo estava a fazer uma experiência interessante, sobre a qual, aliás, acabámos nós os dois por vir a falar posteriormente: tinha andado a recolher pauzinhos e pedaços de cana praticamente iguais e tinha-os depois colocado sobre a areia. Depois, com um pauzinho idêntico aos outros – com a única diferença de ele lhe ter feito um pequeníssimo traço - chamou o cão para a brincadeira. O bicho não o largou mais e corria entusiasmado atrás dele. Com o cão excitadíssimo a correr à sua volta e a saltar a ver se lhe conseguia tirar o que ele tinha na mão, o homem deixou cair o pauzinho no meio dos outros e continuou a correr. O cão estancou imediatamente ao ver cair aquilo que procurava alcançar. Começou a olhar e a farejar. Do meio daquele montículo retirou um pauzito e foi, de rabo a abanar, levá-lo ao dono. Quando este lho tirou da boca, o cão ladrou de contentamento. O homem examinou o pau e constatou aquilo de que já suspeitava: o seu cão tinha-lhe trazido o pauzinho certo. Não fôra, obviamente, pelo traço quase invisível que o animal reconhecera o pedacito de madeira. O cheiro deixado pela mão do homem na madeira possibilitou ao animal a identificação da peça correcta. Ora, em princípio, nenhum de nós chegaria lá. E certamente não da maneira rápida que o cão conseguiu. No meio dos pauzitos todos, não seríamos capazes de descortinar aquele que era especial. O cão descobriu-o, porém, porque aprendeu a ver de outra forma, com a combinação de sentidos.
Será que esta combinação de sentidos é inata também no homem, ou somos nós que a desenvolvemos e melhoramos? Tudo isso. Mas o cão tem a vantagem especial de ver, para além dos olhos, com o nariz. Como sabemos, o seu olfacto, vulgo "faro", é muito apurado. Também no nosso caso, a própria existência dos sentidos, uns mais desenvolvidos do que outros, possibilita a sua combinação. Mas onde podemos começar a ver mais é através da educação e/ou da experiência, que pode e deve ser entendida como uma componente da educação. Um engenheiro vê coisas numa torre que possivelmente me passam despercebidas, um arquitecto descobre pormenores menos correctos numa casa que, para mim, não seriam exactamente defeitos mas para ele são; um matemático delicia-se com números da mesma maneira que um linguista com palavras, e ambos descobrem coisas que outros não vêem. Um médico vê coisas numa radiografia de que eu nem suspeito, assim como um músico pode deliciar-se com um simples olhar para uma partitura que, infelizmente, nada diz à esmagadora maioria das pessoas.
Por outro lado, da mesma maneira que temos a razão lógica e a emoção a controlar e marcar as nossas decisões, também temos a nossa razão e a nossa sensibilidade a definir os nossos gostos. Do seu apuramento, geralmente através da educação e da experiência – education and training, em certa medida – podem nascer sensibilidades brilhantes que produzem obras que surpreendem o ser humano comum. Não é necessário que sejam coisas complicadas. O importante é que se consigam ver coisas que não são aparentes numa primeira leitura para a maioria das pessoas.
Com alguém que me é muito caro – uma mulher - recordo-me de uma brincadeira, por sinal também numa praia, que costumava deliciar-me. Na areia ainda molhada mas já não assaltada pelas ondas, eu riscava uns traços à toa. Dez, doze, quinze traços. O que eu riscava não fazia qualquer sentido para mim, mas constituía um repto agradável para a pessoa com quem eu estava. Ela iria tentar "ver" alguma coisa ali. Estonteava-me ver o que a minha companheira fazia: geralmente depois de dar uma ou duas voltas àquele conjunto de traços sem sentido, lograva ver aquilo que eu nem por sombras via. Ela nada me dizia, não falava. Mas estava visivelmente contente por ser capaz de ver mais longe. Juntava mais um traço aqui, outro ali, uma forma arredondada além e, de repente, aquele desconchavado amontoado de traços que eu tinha deixado na areia começava a fazer sentido: estava ali uma figura perfeitamente identificável, que anteriormente já existira em embrião, por assim dizer. Essa figura podia ser uma paisagem, uma criança a transportar um cesto, um animal, ou outra coisa qualquer.
Ressalvadas as devidas proporções, aquela situação trazia-me à memória a bem conhecida, e bela, peça literária do padre jesuíta António Vieira, no seu Sermão do Espírito Santo: "Arranca o estatuário uma pedra dessas montanhas, tosca, bruta, dura, informe; e, depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão, e começa a fazer um homem, - primeiro, membro a membro, e depois feição por feição, até à mais miúda; ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, avulta-lhe as faces, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos; aqui desprega, ali arruga, acolá recama; e fica um homem perfeito, e talvez um santo que se pode pôr no altar."
Por vezes podemos estranhar a inteligência de pessoas sem grande educação para solucionar problemas. Nunca me esquecerei da vez em que, durante o meu período de serviço militar em Angola, fui chamado para socorrer o condutor e ajudante de um enorme camião que se tinha virado na picada estreita, com uma enorme carga de sacos de café. Levei comigo duas viaturas militares equipadas com potentes guinchos, e vários soldados. Foram ligados cabos à camioneta e accionámos os guinchos, com o máximo de força. Nada. Ao fim de mais duas tentativas que fizemos, sem resultado, um dos soldados, rapaz inventivo e inquestionavelmente inteligente, por vezes algo sujeito a perturbações mentais, explicou que os guinchos não estavam na posição correcta relativamente ao camião. Pediu-nos para fazermos da forma que ele indicava. Assim se fez, e a camioneta, com a sua pesada carga, levantou-se gradualmente até ficar na posição devida, apta para prosseguir viagem. O facto de o soldado, sem nunca propriamente ter estudado Física, ter "visto" qual a posição correcta para exercer a força foi para mim uma experiência interessantíssima.
Pessoas sem grande educação revelam frequentemente um apurado sentido prático das coisas. Há tempos, dava eu um pequeno passeio pelo campo com um conhecido meu. A certa altura, ele perguntou-me se não precisava de umas fisgas. "Fisgas? Já não tenho idade para isso", respondi-lhe. “Não é dessas para se porem elásticos. Estou a falar de ramos de árvore, forquilhas,com a forma de um "v", que servem, por exemplo, para escorar os ramos de uma planta que tenha em casa." Nunca me tinha ocorrido tal coisa. Como havia, de facto, necessidade de algumas dessas "fisgas" para as plantas de interior lá de casa, arranjou-me num instante umas três ou quatro. Ainda hoje estão a cumprir a sua útil missão. Naquele dia, porém, eu não as tinha visto. Olhava sem ver.
Numa outra ocasião, com mais uma dessas pessoas para mim notáveis - o meu sogro -, calhou dar também um passeio pelo campo. Estávamos em 1975, numa ocasião em que se tornou moda construir parques infantis nas localidades. O meu sogro deteve-se, a certa altura: "E se levássemos aquele tronco além, que está caído? Vinha mesmo a calhar para fazer uma girafa para o parque!" Como?! Onde é que eu iria desencantar uma girafa ali no meio daquelas árvores caídas? No entanto, foi isso mesmo, desencantar uma girafa, que ele fez. Viu a cena. Mostrou poder de observação, imaginação, criatividade. Voltámos para arranjar uma serra manual, regressámos ao sítio e, passados uns minutos, já estávamos a carregar a "girafa" para o seu novo habitat. Foi uma alegria para a miudagem que estava a ver o parque a ser construído (foto). A improvisada girafa aguentou-se ao longo dos dois primeiros anos em que o parque permaneceu impecável. Uma noite, uns tantos vândalos saltaram o muro e destruíram tudo o que lhes apareceu à mão. A girafa não escapou, mas até lá portou-se valentemente. Graças ao meu sogro, que via coisas onde os outros nada viam.
Tal como muitas outras pessoas, a Joana Vasconcelos é uma artista muito interessante na sua criatividade. Os seus originais e inventivos sapatos Marilyn, artisticamente feitos de tachos e tampas, foram recentemente objecto de compra por um preço elevadíssimo na Christie’s, de Londres. O ano passado, tive ocasião de ver, na antiga casa pessoal de Calouste Gulbenkian em Paris, uma exposição da artista. Muito interessante! Bonecos de pano, coloridíssimos, que chegavam até ao tecto (foto). A juntar-se-lhes, grandes corações e peças da conhecida Fábrica Bordalo Pinheiro, devidamente cobertas por uma fina rede branca. Um espanto!
Ora bem. Não só a Joana Vasconcelos vê coisas onde outros se limitam a olhar como também não pára. Quem já deu uma vista de olhos a um relativamente pequeno jardim, integrado nos terrenos do Museu da Cidade, ao Campo Grande, não deu certamente por mal empregado o seu tempo. Matreira e artisticamente, a Joana Vasconcelos colocou lá muita da bicharada cerâmica que a Bordalo Pinheiro ainda fabrica. É uma animação ver aqueles gafanhotos (foto), macacos, sapos, lobos, sardões, cobras, caracóis, etc. a darem um novíssimo aspecto ao jardim. Há uns dois anos, ela foi até ao Museu. Viu o jardinzito. Visualizou-o diferente. Depois, foi só apresentar o plano, obter a devida aprovação, conseguir que as peças fossem fabricadas, e animar os arbustos, as fontes e as paredes. Mais uma vez, viu tudo onde outros apenas olhavam.
Já se terá entendido ao longo deste arrazoado que admiro estas pessoas. Por mim, possivelmente aquilo em que consigo ver algo mais do que a maioria dos meus amigos é nas palavras. Em várias línguas. Nas palavras que estão dentro e ao lado de outras palavras. Automaticamente sopeso-as, separo-as nos seus elementos, corto-as, reconstruo-as. Sei que não é nada de especial quando comparado com os casos que acima relato. Esta é uma das razões por que os admiro. Eles vêem o que os outros não vêem. Vêem muito para além do olhar. Aliás, "ver" é mesmo isso na linguagem comum: "Estás a ver a cena?"

2/16/2010

Gatos na formação de líderes

Haverá certamente entre os leitores quem se lembre da história do alentejano que foi admitido pela CIA. Começa assim: a Polícia Secreta dos Estados Unidos, Central Intelligence Agency, vulgo CIA, resolveu recrutar um atirador para as suas fileiras. Após várias selecções, entrevistas e testes, foi elaborada uma short list com três candidatos apenas: um francês, um inglês e um português (alentejano). Para a prova final, decisiva, os agentes da CIA colocaram, um a um, os candidatos sozinhos numa sala, diante de uma porta metálica e entregaram a cada um deles uma pistola. "Queremos ter a certeza de que cumprem as instruções, quaisquer que sejam as circunstâncias."
Chamaram primeiro o candidato francês: "Por detrás da porta daquela sala, você vai encontrar a sua mulher sentada numa cadeira. Terá que a matar!" "Está a falar a sério? Eu jamais mataria a minha mulher!" "Então, lamento", diz-lhe o agente, "mas você não pode ser considerado apto."
Ao candidato inglês foram dadas exactamente as mesmas instruções. Ele pegou na arma e entrou calmamente na sala, onde ficou sozinho. Após cinco minutos em que tudo se manteve em total silêncio, o inglês voltou à sala onde estavam os agentes. Trazia lágrimas nos olhos. "Tentei, mas não consegui disparar. Não posso matar a minha mulher!"
"Em vista disso, não podemos apurá-lo. Você não está totalmente preparado para trabalhar na CIA. Lamentamos", disse-lhe um dos agentes. "Agradecemos que vá buscar a sua mulher."
Chegou enfim a vez do alentejano! O nosso homem recebeu as mesmíssimas indicações. Depois, entrou na sala, onde, tal como os outros, ficou apenas consigo próprio. Passado menos de um minuto ouviu-se uma detonação. Outra veio a seguir. E depois, o barulho de mobília a partir-se, um grito. Voltou a calma e o sossego. O alentejano regressou lentamente à sala onde antes tinha estado com os agentes. Limpava o suor da testa. "Vocês bem me podiam ter dito que os tiros eram de pólvora seca! Tive que a matar com a cadeira!"

Esta historieta ocorreu-me quando li, já há alguns dias, uma entrevista que mão amiga me fez chegar. A entrevista em questão, excelentemente conduzida, é da autoria de Ana Gerschenfeld, jornalista do Público, e veio, naturalmente, inserida nesse jornal. Devo admitir que não costumo já surpreender-me muito com o que leio. Aqui, mais do que isso, arrepiei-me. Horrorizei-me com o que li. É que não é uma mera história de alentejanos, mas sim a realidade crua. Demasiado crua, de facto. O entrevistado chama-se Christophe Dejours, é psiquiatra e psicanalista, além de Professor em Paris, no Conservatoire National des Arts et Métiers.
Dessa longa entrevista, vou transcrever uma parte, sobre o assédio no trabalho. Até este ponto a conversa tinha incluído outros assuntos, entre eles os numerosos casos de suicídio no local de trabalho na France Telecom e noutras empresas, não só em França como também na Bélgica.

"As pessoas que são alvo de assédio são justamente as que acreditam no seu trabalho, que estão envolvidas e que, quando começam a ser censuradas de forma injusta, são muito vulneráveis. Por outro lado, são frequentemente pessoas muito honestas e algo ingénuas. Portanto, quando lhes pedem coisas que vão contra as regras da profissão, contra a lei e os regulamentos, contra o código do trabalho, recusam-se a fazê-las. Por exemplo, recusam-se a assinar um balanço contabilístico manipulado. E, em vez de ficarem caladas, dizem-no bem alto. Os colegas não dizem nada. Já perceberam há muito tempo como as coisas funcionam na empresa, já há muito que desviaram o olhar. Toda a gente é cúmplice. Mas o tipo empenhado, honesto e um tanto ingénuo continua a falar. Não devia ter insistido. E como falou à frente de todos, torna-se um alvo. O chefe vai mostrar a todos que é impensável dizer abertamente coisas que não devem aparecer nos relatórios de actividade.
Um único caso de assédio tem um efeito extremamente poderoso sobre toda a comunidade de uma empresa. Uma mulher está a ser assediada e vai ser destruída, uma situação de total injustiça: ninguém se mexe, mas todos ficam ainda com mais medo do que anteriormente. O medo instala-se. Com um único assédio, consegue-se dominar todo o colectivo de trabalho. Por isso, é importante, ao contrário do que se costuma dizer, que o assédio seja bem visível para todos. Há técnicas que são ensinadas, que fazem parte da formação em matéria de assédio, com psicólogos a darem essa formação.
Uma formação para o assédio?
Exactamente. Há estágios onde se aprendem essas técnicas. Posso contar, por exemplo, o caso de um estágio de formação em França em que, no início, cada um dos 15 participantes, todos eles quadros superiores, recebeu um gatinho. O estágio durou uma semana e, durante essa semana, cada participante tinha de tomar conta do seu gato. Como é óbvio, as pessoas afeiçoaram-se ao bichano, cada um falava do seu gato durante as reuniões, etc. E, no fim do estágio, o próprio director deu a todos a ordem de... matar o seu gato.
Está a descrever um cenário totalmente nazi...
Só que aqui ninguém estava a apontar uma espingarda à cabeça de ninguém para o obrigar a matar o gato. Seja como for, um dos participantes, uma mulher, adoeceu. Teve uma descompensação aguda e eu tive que tratá-la – foi assim que soube do caso. Mas os outros catorze mataram os seus gatos. O estágio era para aprender a ser impiedoso, era uma aprendizagem do assédio.
Penso que há bastantes empresas que recorrem a este tipo de formação – muitas empresas cujos quadros, responsáveis de recursos humanos, etc., são ensinados a comportar-se desta maneira."

2/10/2010

O Grande Café Central


Embora possa haver, não me ocorre o nome de nenhuma terra portuguesa com a categoria de vila ou cidade que não tenha o seu Café Central. Cidades maiores, como Lisboa, têm até cafés centrais de bairro, como o Café Central da Encarnação, o Café Central da Boavista ou a Central da Baixa. Seja central ou não, o Café ou Café-pastelaria é uma instituição muito popular em Portugal, que sempre serviu de ponto de encontro, antigamente quase só para homens, nos dias de hoje para mulheres, homens, jovens e velhotes (frequentemente reformados). O ponto de encontro é igualmente um local de conversa, conversa que pode ser de negócios relativamente simples ou, mais comummente, de pura cavaqueira em que os últimos mexericos vêm sempre à baila. Se em tempos passados o Café era um costumeiro poiso de informadores pidescos, o que fazia com que as pessoas tivessem muito cuidado com a língua, actualmente não há problema no facto de qualquer um falar num grupo de amigos a favor ou contra o governo, mexericar isto ou aquilo, lançar "a última que ouvi" e coisas do género. Uma bica, um copo de água e um pastel de nata ou um queque podem pagar umas horitas bem passadas, numa vida que tem muito de monótono nomeadamente para quem já se reformou.
Esta instituição continuará a existir, mas possui agora um suposto concorrente. É um concorrente sui generis, na medida em que a favorece ao constituir uma óptima fonte abastecedora de conversas, de boatos e de mentiras-com-alguma-coisa-de-verdade, como o António Aleixo diria. Essa fonte é a Internet. A Internet transformou-se não em mais um Café Central mas sim no Grande Café Central. Tem, aliás,todos os ingredientes para o ser. A Internet começou por ser, através de anexos de e-mails, uma extraordinária fonte polinizadora de atracções turísticas sob a forma de montra de cidades, monumentos, paisagens, museus, praias, montanhas, etc. Muito mais económica e eficaz do que as informações em papel couché que seriam necessárias para levar a cabo a mesma publicidade, a informação passada pela Net não só abrange um número incrivelmente maior de potenciais clientes como também possui a considerável vantagem de ser reencaminhada por um amigo, que a recebeu e resolveu passá-la a mais vinte amigos e conhecidos. É uma polinização que ainda hoje resulta. À escala mundial.
Entretanto, no nosso país, o que bate presentemente toda a concorrência em anexos de e-mails e em blogs é a propagação da notícia escandalosa, do comentário político, do boato, da "cacha" que ainda quase todos desconhecem. O portador de uma determinada notícia ainda não revelada ganha status, o que o faz transmiti-la de pronto. Aos seus amigos. Que têm outros amigos e conhecidos. O processo é idêntico. Através do "spam" dos e-mails que são virtualmente gratuitos, a notícia percorre um número de "portas" de casas que nenhum carteiro do mundo conseguiria atingir em tão curto espaço de tempo. E, assim, a Net transforma-se no Grande Café Central, com cada um confortavelmente sentado em casa à sua secretária, com um computador em frente - sem a necessidade da bica e do bolinho da praxe, mas esses virão noutra altura, amanhã durante o dia. Entretanto, vamos a esta "pouca-vergonha de sujeiras atrás de sujeiras de um governo que nunca mais nos larga", destes "políticos que são uns verdadeiros tachistas", "já se viu o valor das reformas que estes gajos têm?", "olha, até o padre franciscano, com a sua tradicional pobreza, governou-se bem durante a vida e arrecadou uma pensão de tomo", "o primeiro-ministro é gay e por isso teve tanta pressa em aprovar uma lei sobre os homossexuais", etc. etc.
Desportistas de bancada, comentadores desportivos de café? Voyeurismo puro? O velho gosto da má-língua? De tudo isso um pouco, certamente. Porém, se aprofundarmos um pouco, talvez encontremos também algum sentimento de desforra e possamos entender melhor esta febre de "estendal de roupa suja". Afinal, os políticos só cuidam verdadeiramente dos cidadãos por ocasião das eleições. A partir daí, a partir da legitimização que os cidadãos lhes concedem, eles pouco contam e não são tidos nem achados. O diz-se diz-se do Grande Café Central pode, ao fim e ao cabo, conter uma percentagem mais ou menos elevada de vingançazinha pela falta de poder que os cidadãos-eleitores sentem, e da qual se ressentem. Ainda por cima quando os outros parecem levar uma vida assaz confortável e banquetear-se com trafulhices rentáveis tanto em termos de poder como de bem-estar material.
Além do mais, este é também o preço a pagar pela justiça que temos: ineficiente, morosa e, com isso, ineficaz e injusta.

2/06/2010

O que os gregos pensavam



Uma das lembranças fortes que tenho das coisas aprendidas no liceu diz respeito à disciplina de História. E, devo dizê-lo, não foi propriamente pelo que aprendi, mas pelo que me fez revoltar contra a formatação mental que estavam a tentar impor-me (a mim e aos meus colegas). O exemplo que escolhi para título parece-me esclarecedor: num teste normal (naquela altura usávamos mais a palavra "ponto") era vulgar aparecer-nos uma questão deste tipo: "Caracterize o pensamento grego no século de Péricles". É claro que todos escrevinhávamos o que o professor tinha dado em aula e que era, afinal, sensivelmente o mesmo que vinha no manual adoptado. Quem tivesse estudado não tinha grande dificuldade em obter nota positiva (mas o facilitismo não existia como hoje). Para mim próprio e possivelmente para alguns dos meus colegas ficava sempre no ar a pergunta: será que os gregos pensavam todos da mesma forma? Será que, ao longo do tempo de um século, não tinham altos e baixos na sua maneira de pensar, períodos de maior euforia e outros de desânimo e crise? A era de Péricles ocorreu, grosso modo, há dois mil e quinhentos anos. Existem registos, há textos de autores consagrados, mas daí partir-se para uma generalização que incluísse toda a população sempre me pareceu um claro exagero. Esse exagero criava o mito e desprezava a realidade.
Terá esta questão algum interesse para a vida dos nossos dias? Creio que sim. Não pelos gregos em si, mas pela mesma forma de tentar pensar num povo em bloco, como se os indivíduos não existissem isoladamente. Na minha actividade de professor, tentei várias vezes em aulas de um curso de turismo em que preparava guias-intépretes discutir as características essenciais do povo português. A discussão era sempre feita em inglês, o que favorecia sobremaneira a desinibição (a língua estrangeira como que coloca os seus utilizadores fora das fronteiras do país). A idade da maioria dos alunos oscilava entre os 19 e os 25 anos. Para essa aula-tipo, alinhavei uma listagem de características nacionais dos portugueses e logo vi que não se podia impor absolutamente nada taxativamente. Porquê? Porque, como o sociólogo indiano Arjun Appadurai disse há uns anos em Portugal, "as características essenciais de um povo são geralmente mais um produto de ideólogos do que da realidade. Podem enumerar-se umas tantas características, mas também os seus contrários."
Assim é, de facto. Pode dizer-se que os portugueses são egoístas? Claro que sim. Mas há decerto inúmeros exemplos de altruísmo entre os cidadãos lusos. Múltiplos casos de hoje e de sempre. Poderá dizer-se que os portugueses são honestos? É evidente que se pode. Mas também é possível apresentar instâncias de concidadãos nossos que revelam uma imaginação que é tão poderosa quanto desonesta. Poderá dizer-se que os portugueses são tristonhos? Não duvido. Também dantes aprendíamos que os gregos tinham um ideal de beleza pautado por parâmetros x e y. Então e a gente alegre que pulula por todo o lado neste país? Há pessoas de alegria contagiante, seja a divertir-se a si próprias, seja a divertir os outros. Essas não contam?
Dir-se-á, num posicionamento conciliatório: "quando se fala que os portugueses são assim ou assado, referimo-nos à maioria, não a todos, como é evidente." E quem é que apurou essa maioria? E se realmente a apurou, fê-lo na cidade ou fora do meio citadino? Que camadas etárias estudou? Pessoas com estudos ou sem estudos? Ricos ou pobres?
Há coisas que são indiscutivelmente características da nossa sociedade, que se podem medir e, como tal, são alvo de medição: a percentagem de jovens até aos 15 anos relativamente aos idosos com mais de 65; o rácio mulheres / homens; a comparação entre as notas obtidas por rapazes e raparigas nos seus estudos; a quantidade aproximada de peixe, de arroz, de carne ou de cereais consumida em Portugal; o número de casamentos religiosos vs. o número de casamentos pelo civil ou meras uniões de facto, etc., etc. Estes são indicadores que dizem alguma coisa sobre o povo e fornecem informações importantes. Quanto a dizer "os portugueses acham que...", a afirmação produzida, seja ela qual for, é capaz de provocar, inadvertidamente ou não, a exclusão de uma parte significativa da sociedade. Além de, como Appadurai diz, permitir a afirmação do seu contrário.
Curiosamente, mantive as aulas que referi sobre as características nacionais dos portugueses. Porquê, se não se apuravam dados concretos? Porque davam azo a discussões acaloradas, com um ardor que raramente se encontrava no debate de outra temática. Eram aulas que permitiam aos alunos expor as suas ideias com exemplos vivos e veementes e, simultaneamente, praticar o seu inglês com o total à-vontade que o calor da argumentação favorecia. Para mim, como professor, eram aulas excelentes. (Aqui e ali tomava nota de algumas deficiências linguísticas dos alunos, que procurava eliminar em aulas seguintes, geralmente com razoável sucesso.)
O curioso destas coisas é que variedade e uniformidade jogam segundo o gosto do cliente. Assim, Portugal é variedade paisagística para o turismo: entre as montanhas do norte e as planuras do sul há diferenças substanciais, assim como as há entre o país de granito ao norte e o do barro ao sul. Igualmente profundas são as diferenças entre o interior e o litoral, entre o Portugal atlântico e o mediterrânico. Isso, que é real, dá para vender turismo – e justificadamente. Mas quanto ao resto, parece que Portugal é um bloco, como que cortado especificamente para ser Portugal e só Portugal. E a população será uniforme? É um facto que não existem separatismos como há noutros países, de que a vizinha Espanha é um bom exemplo. Mas estamos longe, muito longe de sermos todos iguais. Nada de mais previsível e lógico, afinal, se pensarmos que somos descendentes de iberos, de celtas, de romanos, de suevos, de alanos, de vândalos, de visigodos, de mouros, de judeus e de sei lá mais o quê. Por aqui se vê que pretender uma uniformidade cabal é ficção e puro mito. Mas que nos sentimos todos, ou praticamente todos, portugueses, que o país é o mais antigo da Europa com as mesmas fronteiras, que existe uma alargada base cristã no país e que a língua é a mesma de norte a sul e de este a oeste, é também um facto. Contudo...
Há muito pouco tempo li uma opinião sobre este mesmo tema em entrevista dada pelo historiador Rui Ramos e, francamente, tendo mais a concordar com ele do que com aqueles que dizem "os portugueses acham que..." (Este "acham" está a tornar-se tão vulgar que já justificou a criação de um conceito novo: o achismo.) Dizia ele: "Quando há dez milhões de portugueses, há dez milhões de maneiras diferentes de se ser português." É claro que aqui poderá haver também algum exagero, porque, por exemplo, o uso da língua condiciona em grande medida o nosso mundo e a nossa maneira de pensar e constitui portanto uma fonte unificadora, mas de qualquer forma prefiro esta perspectiva à afirmação de que "os portugueses são sentimentais, pessimistas e melancólicos", que me lembra terrivelmente a clássica "assim pensavam os gregos no século de Péricles."