11/26/2006

Galileo Galilei

Acabada de chegar do Teatro Aberto, onde fui ver a peça Galileo (que recomendo sobretudo pelos excelentes diálogos) vim reler o poema homónimo de António Gedeão que ainda ontem, a propósito do centenário do nascimento do poeta, tive o prazer de ouvir, na Antena 2, magistralmente dito pelo Mário Viegas.

Com a promessa de que tão cedo não volto a maçar ?vos com mais poesia, não resisto à tentação de o transcrever, apesar da extensão...

Poema para Galileo

Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,

aquele teu retrato que toda a gente conhece,

em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce

sobre um modesto cabeção de pano.

Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.

(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.

Disse Galeria dos Ofícios.)

Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.

Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria?

Eu sei? eu sei?

As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.

Ai que saudade, Galileo Galilei!

Olha. Sabes? Lá em Florença

está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.

Palavra de honra que está!

As voltas que o mundo dá!

Se calhar até há gente que pensa

que entraste no calendário.

Eu queria agradecer-te, Galileo,

a inteligência das coisas que me deste.

Eu,

e quantos milhões de homens como eu

a quem tu esclareceste,

ia jurar- que disparate, Galileo!

- e jurava a pés juntos e apostava a cabeça

sem a menor hesitação-

que os corpos caem tanto mais depressa

quanto mais pesados são.

Pois não é evidente, Galileo?

Quem acredita que um penedo caia

com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da praia?

Esta era a inteligência que Deus nos deu.

Estava agora a lembrar-me, Galileo,

daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo

e tinhas à tua frente

um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo

a olharem-te severamente.

Estavam todos a ralhar contigo,

que parecia impossível que um homem da tua idade

e da tua condição,

se tivesse tornado num perigo

para a Humanidade

e para a Civilização.

Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios,

e percorrias, cheio de piedade,

os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.

Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,

desceram lá das suas alturas

e poisaram, como aves aturdidas- parece-me que estou a vê-las -,

nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.

E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual

conforme suas eminências desejavam,

e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal

e que os astros bailavam e entoavam

à meia-noite louvores à harmonia universal.

E juraste que nunca mais repetirias

nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,

aquelas abomináveis heresias

que ensinavas e descrevias

para eterna perdição da tua alma.

Ai Galileo!

Mal sabem os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo

que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,

andavam a correr e a rolar pelos espaços

à razão de trinta quilómetros por segundo.

Tu é que sabias, Galileo Galilei.

Por isso eram teus olhos misericordiosos,

por isso era teu coração cheio de piedade,

piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos

a quem Deus dispensou de buscar a verdade.

Por isso estoicamente, mansamente,

resististe a todas as torturas,

a todas as angústias, a todos os contratempos,

enquanto eles, do alto incessível das suas alturas,

foram caindo,

caindo,

caindo,

caindo,

caindo sempre,

e sempre,

ininterruptamente,

na razão directa do quadrado dos tempos.

11/23/2006

Ouvi há poucos dias a notícia de que no Irão foi criado um Índex. Livros como O Código Da Vinci e Rapariga com Brinco de Pérola (entre muitíssimos outros que a notícia breve não referia) e música dos Beatles ou dos Queen (segundo a mesma notícia muito do agrado da juventude iraniana) foram proibidos, por perniciosos.

Estando nós às vezes um pouco esquecidos de que pela ocidental praia lusitana já perpassaram os mesmos ventos censores, aqui deixo um poema de Manuel Alegre, desses tempos de má memória:

As Palavras

Palavras tantas vezes perseguidas

palavras tantas vezes violadas

que não sabem cantar ajoelhadas

que não se rendem mesmo se feridas.

Palavras tantas vezes proibidas

e no entanto as únicas espadas

que ferem sempre mesmo se quebradas

vencedoras ainda que vencidas.

Palavras por quem eu já fui cativo

na língua de Camões vos querem escravas

palavras com que canto e onde estou vivo.

Mas se tudo nos levam isto nos resta:

estamos de pé dentro de vós palavras.

Nem outra glória há maior do que esta.

(O Canto e as Armas, 1967)

11/18/2006

O calcanhar de Aquiles de Sócrates

Em países democráticos, um político consegue geralmente ascender ao poder através de um convencimento da opinião pública de que as suas promessas são exequíveis no futuro, algo que é facilitado pela acumulação de erros graves de um seu antecessor. Prometer um futuro melhor é o que também as religiões fazem, incluindo naturalmente a cristã. O paraíso celestial aguarda os que sofrem na Terra; o pobre desta vida, se trabalhador e virtuoso, será o rico dos céus. No caso concreto das religiões, trata-se de uma questão de fé. Como realidade virtual que esta é, nunca se poderá provar se A ou B alcançaram o paraíso pós-terreno. Aliás, o mesmo acontece com os homens-bomba suicidas de outros credos. A crença num futuro bom e estável é fundamental para justificar o labor e o penar na vida.
Com um governo, porém, a questão não se põe em termos de realidade virtual, como sabemos. As pessoas querem acreditar num futuro melhor concreto e por isso lutarão se estiverem convencidas de que os seus sacrifícios resultarão num bem posterior. Baixas de ordenado e o corte de algumas regalias têm sido aceites em todo o mundo economicamente mais desenvolvido por trabalhadores que admitem esses sacrifícios em troca da garantia de manutenção dos seus postos de trabalho e, consequentemente, de estabilidade.
Em Portugal, com o arquétipo salazarista a servir de paradigma, a população apreciou o pulso forte - sinónimo de força estável - de Sócrates e a sua luta contra praticamente todos os sectores, a fim de pôr a casa em ordem o mais depressa possível. E era uma casa desgovernada em muitos aspectos, algo que aliás não se consegue corrigir da noite para o dia. Vieram ao de cima insuspeitados casos de privilégio. Tem sido elaborada nova legislação. Muitos dos efeitos práticos dessa legislação estão ainda por vir, pelo que 2007 irá doer muito mais do que 2006.
Contudo, e é aqui que reside o ponto mais vulnerável de Sócrates, conseguirá ele manter a convicção nos eleitores de que estamos a trabalhar para um futuro melhor ou, pelo contrário, tenderá a instalar-se gradualmente no país a sensação de dúvida quanto à razão do sacrifício e esforço? Se sim, isto pode ser fatal. Estar-se inseguro quanto à manutenção da denominada segurança social é um paradoxo não só de palavras. Estar-se inseguro perante o emprego é atroz. Verificar que a nossa dependência não diminui, antes pelo contrário se acentua. Ter a sensação de que a corrupção política e empresarial continua a grassar, talvez apenas com um desmando menos acentuado. Registar que estamos a ser ultrapassados em ranking de bem-estar por países que há anos estavam muito atrás de nós. Ver os encargos com a saúde tenderem a aumentar no futuro. Assistir a défices orçamentais que teimam em persistir e são inegavelmente superiores ao estabelecido pelo PEC europeu, a despeito da alienação constante de bens do Estado e das vultosas remessas de Bruxelas. Tudo isto conduz a uma pergunta.
A pergunta "Valerá a pena?" é a que não pode instalar-se na população portuguesa. Se sim, desmorona-se de vez o edifício da confiança. A nação não conseguirá distinguir o seu rosto no futuro. E sem essa crença de que estamos a trabalhar para um amanhã mais justo, estável e seguro, Sócrates ou qualquer outro governante terá tantos problemas que acabará por soçobrar. É por isso que este mundo de extraordinário desenvolvimento em vários países, incomparavelmente melhor que no passado, está difícil. Somos todos terrivelmente dependentes dos que são economicamente mais fortes. Podemos fazer o nosso melhor, mas um jogo de preços de energia no mercado internacional pode deitar tudo a perder, por exemplo.
Seja como for, se não corrigirmos as múltiplas situações de injustiça social, o que inclui um vigoroso combate à corrupção com medidas exemplares, tudo ficará pior. A alternativa continua a ser a imaginação criadora, o trabalho profícuo, uma educação de bom nível e, sem dúvida, a confiança no futuro.

11/04/2006

À distância

Lê-se no jornal: "Presidente afegão critica ataque da NATO que matou civis". Responsáveis falam em cerca de 60 vítimas, incluindo um grande número de civis. Há uma semana morreram nove civis numa outra operação da NATO em Kandahar. O pior incidente deste género terá ocorrido em Julho de 2002: um raide norte-americano matou 46 civis e deixou 117 feridos. A maioria das vítimas estava numa festa de casamento. A notícia lembra ainda que os pilotos chegaram a bombardear membros da força internacional, tendo havido um soldado canadiano morto por fogo vindo de aviões americanos em Setembro deste ano.
No Outono de 1898, o general britânico Kitchener, posteriormente agraciado com um grau honoris causa em Cambridge, abriu o vale do Nilo "à influência civilizadora dos empreendimentos comerciais". A vitória das suas tropas sobre os sudaneses em Omdurman significou a morte de 11 000 sudaneses, contra 48 britânicos. Uma desproporção imensa! Essa batalha constituiu um exemplo típico da morte à distância, uma especialidade europeia na altura. Nunca nenhum sudanês esteve a menos de 300 metros das tropas britânicas.
Antes da Revolução Industrial, a principal exportação europeia era a força. Por todo o resto do mundo, os europeus eram vistos como guerreiros nómadas ao estilo dos mongóis e dos tártaros. Enquanto estes estabeleciam a sua supremacia da garupa dos cavalos, os europeus faziam-no do convés dos seus navios. Mesmo povos que eram mais avançados do que os europeus - por exemplo, os indianos - não tinham navios capazes de resistir ao fogo de artilharia ou de transportar armas pesadas. Em vez de melhorarem a sua frota, os mogóis preferiram comprar serviços de defesa aos Estados europeus, que assim não tardaram a ver-se numa posição que lhes permitia assumir na Índia o papel de governadores. No século XVI, os europeus tornaram-se deuses de canhões que matavam muito antes de as armas dos seus opositores os atingirem. Trezentos anos mais tarde, esses deuses tinham conquistado um terço do mundo. Em última instância, o seu reinado assentava sobre o poder dos canhões dos seus navios.
Ao conceber o primeiro barco a vapor, Robert Fulton acabou por incrementar decisivamente o poderio militar de algumas nações, que assim começaram nos meados do século XIX a transportar canhões europeus para o interior da Ásia e da África, abrindo uma nova era na história do imperialismo. A canhoneira tornou-se um símbolo do imperialismo em todos os principais rios africanos - o Nilo, o Níger e o Congo - possibilitando aos europeus controlarem pela força das armas áreas imensas até aí inacessíveis.
E as espingardas? Bem, aí também os europeus atingiram uma superioridade absoluta. Até meados do século XIX a arma típica era o mosquete de pederneira, carregado pela boca e com cano de alma lisa. Era uma arma que podia ser igualmente fabricada pelos ferreiros dos povoados africanos. O alcance do mosquete não chegava a cem metros, embora fizesse um barulho assustador. Com a descoberta da espoleta e depois do cano de alma estriada, o mosquete melhorou extraordinariamente de precisão. Em 1853, os britânicos criaram as espingardas Enfield, que já tinham um raio de 500 metros mas ainda obrigavam os soldados a pôr-se de pé para dispararem. Foram usadas pela primeira vez nas colónias. Na Prússia, introduziram-se entretanto vários avanços técnicos nas espingardas. Em 1866, durante a guerra entre Berlim e Viena pela hegemonia da Alemanha, os prussianos conseguiam disparar sete vezes as suas espingardas no tempo que levava os austríacos, de pé, a carregar e disparar um tiro apenas. O resultado foi o previsível. Em 1869, os britânicos passaram para a Martini-Henry. Seguiram-se os franceses com a espingarda Gras e os prussianos com a Mauser, ainda usada pelo exército português na década de 1960. Assim, os europeus eram superiores a qualquer inimigo concebível dos outros continentes.
Imagine-se agora no século XXI em que nos encontramos. Os europeus e, particularmente os americanos, estão claramente à frente de todos nestes aspectos de tecnologia militar. É fácil destruir casas alvejando-as de bordo de um avião a uma considerável distância, ou atingi-las com mísseis de grande poder de destruição, ou ainda arrasá-las de dentro de um tanque armado. Tudo à distância.
Quando se trata de ocupar as zonas bombardeadas, de patrulhar estradas e ruas, aí o caso muda bastante de figura. Mas a primeira parte do show pode ser tão demolidora que leve imediatamente à rendição total: veja-se os casos de Hiroshima e Nagasaqui em 1945.
É sempre bom ter coisas deste tipo presentes quando vemos, ouvimos ou lemos as notícias.

Nota: Uma parte significativa desta informação foi retirada do livro de Sven Lindqvist Exterminem Todas as Bestas, publicado entre nós pela Caminho e que recomendo fortemente a todos os que se interessam por Colonialismo.