10/13/2012


Medidas de segurança – Já uma vez publiquei esta fotografia no mesmo blogue em que agora o faço. Tirei-a há muitos anos no parque de campismo de Vila Nova de Milfontes, quando Ramalho Eanes era o Presidente da República portuguesa. Salientei nessa altura a simplicidade com que o casal da Presidência se apresentava, a familiaridade de trato com as populações e a pouca ou nenhuma visibilidade de medidas de segurança.
            Leio agora no último número do jornal da terra onde nasci que o Ministro Nuno Crato teve recentemente um encontro numa localidade próxima da sede do concelho com representantes da comunidade educativa e, acima de tudo, com militantes e simpatizantes sociais-democratas do Oeste. Pois, para esta reunião que se realizou no salão da sede da Associação Recreativa da localidade, foram mobilizadas forças de segurança que deram bastante nas vistas. “Junto à sede estiveram em permanência vários militares da GNR, bem como no acesso ao largo da colectividade. Foram alocadas a este serviço pelo menos três viaturas. Três agentes do Corpo de Segurança Pessoal da Unidade Especial da PSP também estiveram presentes junto à colectividade, tendo chegado ao local horas antes para fazer o reconhecimento. Também esteve de prevenção, perto da localidade, um pelotão do Grupo de Intervenção de Ordem Pública da GNR.”
            Pasme-se!
A notícia continua: “Estas medidas invulgares de segurança devem-se ao relatório mais recente dos Serviços de Informação e Segurança (SIS), que subiu o nível de ameaça contra os ministros do actual Governo para 3, numa escala em que o nível mínimo é 5 e o máximo 1.”
            Sem mais comentários.

9/27/2012


A adoptar a cartilha do inimigo ou apenas um caso de Ao serviço de Sua Majestade, o Capital?


Há cerca de trinta anos foi criada uma notável rábula interpretada pela falecida artista portuguesa Ivone Silva. A rábula, intitulada Olívia Patroa, Olívia Costureira ainda hoje pode ser vista no YouTube. O tema é sobre o comportamento humano, o qual chega a ser diametralmente oposto quando somos patrões e quando não passamos de simples empregados. O mesmo se aplica a senhorios e inquilinos e a tantas outras situações. Na realidade, os pontos que são a favor de um desagradam invariavelmente ao outro. Se imaginarmos uma pessoa que seja simultaneamente senhoria num prédio e inquilina num outro, ela tem reacções que são sinceras mas naturalmente contrárias consoante a sua posição seja uma ou outra. Digamos que o livro que os senhorios lêem é um, e que aquele que serve de orientação aos inquilinos é outro completamente diferente.  
Ora, quem tem pouca experiência da vida ou do desempenho de determinada profissão tem frequentemente de recorrer a um livro para ver como deverá proceder. Daqui resulta a conhecida expressão inglesa by the book, também usada entre nós.
Governantes que o são pela primeira vez vêem-se na contingência de consultar o livrinho para ver quais são, num determinado momento e perante uma situação específica, os procedimentos adequados. E se em vez do livro certo, usarem o livro do adversário?
Num ensaio notável sobre a Questão Social, publicado pela primeira vez em 1997 na revista americana Foreign Affairs, o historiador Tony Judt considera que na Europa continental o Estado continuará a desempenhar o papel principal na vida pública por três razões de ordem geral.
A primeira é de ordem cultural. Por exemplo, quando os franceses exigem que o seu governo decrete menos horas de trabalho, salários mais elevados, segurança laboral, idade mínima de reforma mais baixa, e mais empregos, podem ser irrealistas mas não são irracionais. As pessoas esperam que o Estado – o governo, a administração, os ministérios – tomem a iniciativa. Em contraste com a obsessão política que existe nos EUA por cortes nos impostos, os franceses geralmente não fazem pressão por impostos mais baixos. Porquê? Porque reconhecem que os impostos elevados são os meios pelos quais o Estado pode satisfazer essas expectativas, e pagam de facto impostos altos, razão por que se irritam se o Estado não consegue cumprir os benefícios sociais que eles esperam. Em sociedades pouco estabilizadas ou mesmo fragmentadas, o Estado é muitas vezes o único meio de garantir um certo grau de coerência e estabilidade. A alternativa histórica para esses casos costuma ser militar, e tem sido sorte da Europa que esse caminho tenha sido pouco tomado nos tempos recentes.
            O segundo argumento para hoje preservar o Estado é pragmático. Não conseguimos ainda compreender que, no limiar do século XXI, o próprio Estado é uma instituição intermédia. Quando a economia e as forças e padrões de comportamento que a acompanham são verdadeiramente internacionais, a única instituição que pode efectivamente interpor-se entre essas forças e o indivíduo desprotegido é o Estado nacional.
            Por fim, a necessidade de democracia representativa – que torna possível a um grande número de pessoas viver juntas em certa harmonia, mantendo um mínimo de controlo sobre o seu destino colectivo – é também o melhor argumento para o Estado tradicional. É porque o livre fluxo de capitais ameaça a autoridade soberana dos Estados democráticos que precisamos de reforçá-los, e não de os entregar ao canto de sereia dos mercados internacionais, da sociedade global, ou das comunidades transnacionais. Tal como a democracia política é tudo o que se ergue entre os indivíduos e um governo todo-poderoso, assim também o Estado regulador e providencial é tudo o que separa os seus cidadãos das forças imprevisíveis da mudança económica. Na medida em que a estabilidade social e a estabilidade política são igualmente variáveis económicas importantes, e em culturas populares onde o Estado-providência é a condição para a paz social, ele é por isso uma vantagem económica local decisiva.
            Estas longas citações do ensaio de Judt, que me parecem avisadas, tornam-se tanto mais necessárias quanto é certo que a cartilha do inimigo – a dos mercados ditos globais, as multinacionais e os vastíssimos montantes de disponibilidades financeiras que circulam diariamente pelo mundo – pretendem notoriamente encontrar Estados débeis que possam facilmente manejar e manipular.
            Vem de há cerca de duas décadas uma notória insistência nos meios de comunicação social numa comparação entre os PIBs de determinados países e os movimentos de capitais gerados por largas multinacionais. Não se trata de uma comparação inocente. É mais uma demonstração da posição de força das multinacionais e uma óbvia tentativa de menorização dos Estados, como se um país fosse constituído apenas por factores de ordem económica.
            Na década de 60 do século passado, era costume considerar como elementos-base da economia de um país três indústrias: a produção de electricidade, de cimento e de aço. É verdade que os tempos mudam e, portanto, há alterações que surgem com o desenvolvimento da sociedade. É um facto, por exemplo, que o carvão não é hoje em dia tão importante como em tempos passados, parcialmente substituído como foi por outras fontes de energia. Mesmo assim, é curioso verificar que na segunda década do século XXI em que nos encontramos o Estado português já não possui o sector eléctrico, a nossa siderurgia não é relevante e, quanto às nossas grandes cimenteiras, elas foram vendidas a estrangeiros. Será que os elementos-base de uma economia sofreram em relativamente poucos anos uma transformação tão significativa que deixaram de ser importantes, ou estaremos a tratar basicamente de um caso característico do enfraquecimento de um Estado? 
            Cada vez me convenço mais de que a globalização, tal como está a ocorrer, não passa de uma forma moderna de colonização. E a colonização máxima é a feita pela finança à economia. Por colonização sempre entendi trocas comerciais e culturais injustas, por desiguais, entre o país colonizador e o colonizado. Desde os costumes à religião, à língua, à definição da economia no território colonizado, ao intercâmbio comercial, existe uma clara supremacia por parte do colonizador a que o colonizado tem de se vergar. No seu livro Social Statics, de 1850, o filósofo britânico Herbert Spencer escrevia: “O imperialismo pôs-se ao serviço da civilização ao limpar as raças inferiores da face da Terra. As forças que accionam o grande esquema da felicidade perfeita, sem tomarem em consideração o sofrimento incidental, exterminam qualquer parcela da humanidade que se atravesse no seu caminho. Quer seja humano ou besta, o obstáculo tem de ser afastado.”
            Hoje em dia, as forças imperialistas modificaram consideravelmente a sua forma de actuação. Uma tecnologia muito mais avançada do que a existente em meados do século XIX permite dominar, colonizar, sem ter de ocupar territórios. Há outras maneiras de o fazer, que vão desde a fixação de preços a nível mundial de produtos alimentares básicos até ao controle da economia feito pela banca e, no geral, da supremacia da finança sobre a referida economia. Quando se estima que os activos existentes em paraísos fiscais em todo o mundo são, grosso modo, equivalentes ao Produto Nacional Bruto (PNB) dos Estados Unidos somado ao do Japão, entende-se a ordem de grandeza dessa força majestática que percorre o planeta, pronta a aumentar os seus lucros.
            A sua táctica principal consiste em colocar no poder de países ditos soberanos governos que possuam a sua ideologia neoliberal e contribuam para a sua concretização no terreno. O que interessa a Sua Majestade, o Capital, não são as populações, a não ser na medida em que são necessárias para a produção. Quanto mais subjugadas e manietadas forem, quanto mais empobrecidas estiverem, tanto mais se submeterão às ordens de Sua Majestade. Daí que para a generalidade das populações de países que são há muito soberanos embora naturalmente interdependentes relativamente a outros, pareça estranha a atitude dos seus governos de alienarem as jóias da coroa que estavam na posse do Estado e que para ele constituíam significativas fontes de receita. Daí também que as populações não entendam a razão do seu empobrecimento se não contribuíram directamente para tal. Daí que as promessas governamentais sejam tão díspares da sua concretização, pois o povo nunca elegeria quem lhes prometesse o seu empobrecimento para chegarem a um futuro melhor. A população, a classe média nomeadamente porque é aquela que tem algum capital que pode ser mais facilmente confiscado, vê-se esbulhada dos seus rendimentos próprios através de novos impostos e eliminação de meses de salário e de privilégios especiais que conquistara e de que usufruía.
            Vários membros dos governos que assim actuam tenderão a ser futuramente recompensados com lugares materialmente muito interessantes em instituições ou nas empresas que ajudaram a vender ao grande capital: sem este incentivo, Sua Majestade não conseguiria aliciar muita gente para novos governos. Daí que nos pareça estranho que de repente tudo comece a desabar. É a globalização, sim, mas a globalização da pobreza, que outros já anunciaram há vários anos. Basta olhar para o governo através de um espelho: veremos uma imagem naturalmente invertida. Porém, é essa que conta. É contra ela que é urgente lutar.

8/24/2012


A sanha destruidora

Dentro dos parâmetros da minha educação académica sempre me custou entender que, num determinado período em que deveria ter ouvido os meus professores falar sobre um facto ou evento importante, eles não o tivessem feito. Não estava no programa. E não estava no programa porque tinha sido considerado inconveniente incluí-lo. A descoberta desse evento ou facto só viria eu a fazer por vezes anos mais tarde. Geralmente por mero acaso. 
Talvez o facto que mais me tenha impressionado negativamente neste domínio foi quando visitei Rabat. Aí deparei com um imponente local sagrado, numa zona plana sobranceira ao mar (se a minha memória está correcta).  Nesse local, para além de uma grande e rica mesquita com relativamente poucos anos e do majestoso Mausoléu de Mohammed V, existia uma área enorme com um minarete (Torre de Hassan) que outrora teria sido bem mais alto mas que se encontrava parcialmente destruído. Em frente uma enorme quantidade de colunas – 365, tantas quantas os dias do ano - também com o aspecto de ruína. O guia informou-nos que naquela zona tinha em tempos sido erigida pelo sultão Almansor a maior mesquita do mundo muçulmano. Ali, onde a terra acabava e o mar começava. No Al Gharb (Ocidente) muçulmano. Quando, impressionado, perguntei o que sucedera à mesquita para estar assim em tão grande ruína, tive como resposta que fora destruída por um fortíssimo tremor de terra. Em que data?, perguntei. 1 de Novembro de 1755 da era cristã.
Senti-me perturbado. Durante a minha educação académica, incluindo a universitária, tinha estudado várias vezes o tremor de terra de 1755. Nunca ouvira dizer que esse mesmo terramoto tinha destruído a maior mesquita do mundo muçulmano. Mais do que perturbado, senti-me revoltado. Por que motivo teriam escamoteado aquela informação? Seguramente porque não era conveniente. Para quê incluir aquele “pormenor” de um mundo que, aparentemente, não era o nosso? Mais: que era nosso rival!
Anos mais tarde, quando no claustro da Sé de Lisboa foram descobertos restos de uma mesquita que tinha existido no local, confirmei a minha impressão: o que não é da nossa religião é para destruir. Ocultar. Exterminar.
Na mesma linha, entendi facilmente o que terá sucedido às centenas de sinagogas que certamente existiram em todo o Portugal. Sobraram muito poucas e em mau estado. Das três religiões monoteístas – islamismo, judaísmo e cristianismo – esta última tinha vencido aqui no território português e destruído o que nos seus domínios existia das religiões contrárias. Acabava-se a peçonha. No ensino, bastava não falar do assunto. Era uma censura conveniente.
Repare-se que em antigos mosteiros e conventos cristãos foram frequentemente instalados hospitais, escolas, repartições públicas e outras instituições. Mas no caso de edifícios de uma religião contrária, não era adaptação que se fazia, mas sim a destruição.
Entretanto, em Istambul gostei de ver que a famosa Mesquita – hoje Museu - de Santa Sofia tinha no passado sido uma catedral cristã (construída no século VI pelo imperador bizantino Justiniano). Tinham-lhe sido feitos aditamentos quando em 1453, com a conquista de Constantinopla pelos turcos otomanos, o templo foi transformado em mesquita, mas não existiu uma destruição. 
Em Portugal e em Espanha gostei de encontrar em museus numerosas estátuas romanas em razoável estado de conservação. Os muçulmanos, que como se sabe vieram para a Península Ibérica séculos após a dominação romana, não as tinham destruído. Eram demasiado belas. Tinham-lhes no entanto em vários casos retirado a cabeça, que enterraram, porque a sua religião não lhes permitia a representação da figura humana.

Tudo este intróito vem a propósito da sanha destruidora que os fundamentalistas do actual governo têm feito relativamente a instituições que, conquanto não fossem necessariamente más e fossem certamente passíveis de melhoria, ostentavam a chancela de criação ou manutenção feita por um governo diferente e rival: o socialista. Ao diabolizar o anterior chefe do governo, José Sócrates, o governo actual considerou, por assim dizer, que tudo o que o diabo havia feito tinha obrigatoriamente de ser exterminado. Arrancado pela raiz sempre que possível. 

José Sócrates cometeu erros graves. O descontrolo das contas públicas não foi certamente o seu mal menor. A criação de parcerias público-privadas, cujo pecado original provinha da construção da ponte Vasco da Gama (Lusoponte), idem. A aprovação da construção de auto-estradas com número claramente insuficiente de utentes, também. Assim como a visão super-optimista do TGV, com a qual nunca pude concordar. O aumento de 2,9 por cento concedido aos funcionários públicos em vésperas de eleições em que Sócrates era candidato foi com certeza mais um erro grave. E neste número cabe também a muito imperfeita resolução do caso BPN.
Entretanto, não terá sido o primeiro-ministro anterior o grande culpado pelos desmandos da banca portuguesa. Não foi dele a culpa máxima da construção desenfreada de imobiliário que se fez por esse país fora. Embora sem sucesso, tentou suster o descalabro da Madeira. Melhorou em muito o parque escolar (mas exagerou na despesa). Procurou mercados fora da União Europeia, como aliás países como a Alemanha e a França igualmente faziam.
Porém, pelo actual governo Sócrates foi visto como mais uma mesquita ou mais uma sinagoga que urgia deitar abaixo. Tal como a juventude costuma ridicularizar a experiência, em parte porque não a possui e gosta de proclamar a existência de um mundo novo que nada tem a ver com um passado que será para esquecer, este governo, o mais jovem e mais “angolano” que já tivemos, ignorou propositadamente muitas coisas boas que tinham sido feitas.
Nesta linha, atrevo-me a dizer que nunca houve um governo em Portugal que tivesse protegido tanto o conhecimento científico e a investigação. Os felizmente numerosos doutorados portugueses começaram a aparecer em equipas de investigação de topo em diversos campos a nível mundial. Hoje este investimento na ciência, que poderia dar de Portugal uma imagem diferente e contribuir de facto para o seu desenvolvimento, está a ser imensamente reduzido.
As energias alternativas, um domínio pioneiro em que Portugal se tinha há muito afastado dos últimos lugares e ocupado mesmo uma posição de certo relevo – o que permitiria a prazo diminuir a pesadíssima factura energética do país – deixou de ser assunto de primeira importância. Constitui um verdadeiro retrocesso.
O plano dos automóveis movidos a electricidade foi descontinuado. Porquê? Será que não tinha futuro? Ou será porque é mais fácil taxar os produtos derivados do petróleo e fazer deles uma boa receita para o Estado, como sempre sucedeu? Ainda anteontem em França, o actual primeiro-ministro Ayrault afirmava: “Há que dizer a verdade aos franceses. Num horizonte de 10, 20 anos, o preço da energia fóssil vai aumentar.”
Estamos perante um governo que atira aos patos que estão no chão – tiro fácil - como são os funcionários públicos, os pensionistas, os beneficiários do rendimento de inserção social – e esquece propositadamente aqueles patos que voam mais alto. Temos um governo de gente nova, bem preparada academicamente nalguns casos, mas obviamente com pouca experiência. O recente estudo feito sobre as fundações constituiu um exemplo representativo da sua falta de visão. Contém erros graves e inadmissíveis. Além do mais, e este aspecto é vital, as melhoras na sociedade portuguesa não são minimamente visíveis. Muito pelo contrário. As nossas dívidas ao estrangeiro aumentam. Algumas das nossas jóias da coroa (EDP, REN, Cimpor) estão já na mão de estrangeiros e outras (TAP, RTP e sabe-se lá mais o quê) para lá caminham. O habitual compadrio nas nomeações, com o consequente despedimento dos anteriores técnicos, mantém-se. São inúmeras as firmas que fecham. O desemprego atingiu níveis record.
Para quê tanto extermínio, se daí não saem resultados práticos? Onde está a novidade? A estratégia? Quanto não se perde do capital anteriormente ganho se em projectos antigos se fazem cortes pouco justificados? Sente-se que o serviço da dívida funciona para o país como areias movediças: quanto mais se mexe, mais ele se enterra. A eufemisticamente designada “ajuda financeira” da troika não passa de uma acção de empréstimos a níveis de juros agiotas, que levam o país a não conseguir endireitar-se.
As correcções que careciam de ser feitas acabam por ser  frequentemente mal concretizadas. A nova lei do arrendamento elaborada por este governo e aprovada pelo Parlamento e pelo Presidente reveste-se de aspectos que são cruéis, desumanos. Um número ainda indeterminado de pensionistas cumpridores dos seus contratos irão ser despejados das casas onde habitam há décadas se a lei for aplicada à letra.
Por seu lado, o Orçamento de Estado previa receitas fiscais com um excesso de optimismo, ignorando um dos princípios básicos da Contabilidade: o da prudência.
As correcções já anunciadas nas parcerias público-privadas não têm passado de cortes já contratualizados a fazer por empresas construtoras de estradas, por exemplo. Não se mexeu nas extraordinárias benesses que o Estado através de governos anteriores concedeu aos privados, que era onde se deveria ter mexido, tal como a Inglaterra fez no tempo de Mrs Thatcher.
Há em tudo esta acção governamental uma sanha destruidora. Abaixo o que a musa antiga canta, que outro valor mais novo e forte se alevanta! Pobre nação e pobre povo, que têm de aguentar todos estes desmandos!

Quero, entretanto, terminar com uma nota positiva. Respigo do editorial do Público de há três dias: “O gigantesco robô submarino que Sócrates comprou e que Cavaco quis conhecer quando tomou posse pela segunda vez, vai mergulhar no meio do Atlântico à procura de rochas e sedimentos para perceber até onde se prolonga o solo dos Açores no fundo do mar. Há dois anos que o Estado não investia em campanhas para melhorar a proposta de alargamento da plataforma continental que entregou à ONU e que, a ser aceite, fará com que a área marítima de Portugal passe a ser 41 vezes superior à terrestre – com todo o potencial de recursos, conhecimento e receitas que isso representa. A ONU vai analisar a proposta portuguesa a partir de 2016. É por isso elementar que o trabalho recomece. O ROV Luso foi comprado à Noruega em 2008, pelo governo PS, e continua agora o seu trabalho pela mão do governo PSD-CDS. E só pode ser assim. Uma política do mar séria tem de estar acima dos partidos e dos governos.”
Se se tivesse procedido assim em muitos dos projectos válidos de governos anteriores, não teríamos tido esta avassaladora sanha destrutiva, que nos condena a um futuro nada promissor.

7/24/2012


Educadores natos



Humanidade

O Homem, disse o Diabo,
É bom para os seus semelhantes;
Não se quer emendar, mas antes
Quer emendar os outros.

Piet Hein (Gruks, 1966)

          Creio que dentro de muitos de nós – não direi “toda a gente” para não exagerar - existe um educador e/ou um polícia. É relativamente fácil descortinar este facto quando, por exemplo, se viaja de automóvel e ao nosso lado vai alguém que critica mais ou menos severamente a maneira de conduzir de um automobilista que segue no carro à nossa frente: “Já viste a manobra que aquele indivíduo fez? Ultrapassou com traço contínuo!”, ou “Para que é que ele tocou o cláxon? Não sabe que à noite é proibido usar a buzina? Indivíduos como este deveriam ter de tirar a carta outra vez, voltar a fazer o examezinho da praxe e depois se veria se passavam ou não”, ou ainda “Já viram a mecha com que aquele indivíduo vai? Ninguém respeita os limites de velocidade neste país! Estão as placas bem visíveis na estrada, mas tudo para eles é igual! Era bem feito que aparecesse um polícia ali à frente e o multasse por excesso de velocidade!”

Esta maneira de comentar as alegadas faltas dos outros pressupõe, como é óbvio, que quem assim comenta nunca procederia do mesmo modo. Em vez de poço de víboras que os outros são, verdadeiros inimigos da sociedade, o comentador é um sabichão das dúzias. Na realidade, ele pode ser também um poço, mas de sabedoria e virtude. Se alguém lhe chamar a atenção, o comentador reage de pronto: “Você prefere a incompetência à competência? Você não vê que condutores na estrada como estes são verdadeiros assassinos?”

Serão? Vamos imaginar que o mesmíssimo comentador segue no carro de um velho amigo dos tempos do liceu. Este seu amigo possui uma bela máquina, potente, que dá segurança nas ultrapassagens. Pois a amizade fará com que o indivíduo aplauda o seu amigo pela maneira como ultrapassou “este carro da lama; automobilistas que conduzem a quarenta à hora deviam ser proibidos de andar na estrada!” e mesmo ignore a velocidade que o carro do seu amigo atingiu para que a ultrapassagem fosse segura.

Não é coisa diferente o que frequentemente sucede nos transportes colectivos. Os “comentadores de serviço” preferem neste caso sentar-se nos lugares da frente, de molde a poderem falar com o motorista, ou então seguem de pé perto do homem que vai ao volante: “Ena pá, olha a maneira como arrumam os carros nesta rua! Um autocarro mal pode passar!” Aguarda desde logo um sinal de aprovação do motorista. Se este responde, está perdido: até sair do autocarro, o indivíduo não o vai largar. Vai falar com ele todo o tempo, com isso distraindo-o eventualmente na sua condução. Nisto não pensa ele, no entanto. Ter um indivíduo destes a sarnar um motorista é mais perigoso do que ter o motorista a utilizar um telemóvel enquanto conduz. Se por acaso ocorre um raspão numa viatura estacionada, o comentador põe-se logo do lado do chófer do autocarro:  “O gajo é que teve a culpa: não devia ter deixado o carro parado com a traseira fora do passeio.” Daí passa para a generalidade: “Agora nos exames de condução nem ensinam como se deve arrumar um carro!” E depois ataca mais uma vez o automobilista que estacionou o carro indevidamente: “Mas isto, a bem dizer, nem é preciso ensinar. Deve estar na cabeça de cada um. Já ninguém respeita os outros, depois trama-se!”

Entretanto, quem conhece o trânsito na Turquia ou na Índia chega facilmente à conclusão de que guiar em Portugal até é muito fácil. Os condutores são no geral educados e guiam razoavelmente. Mas como não são muitos os que vão a esses países, “em Portugal guia-se cada vez pior”. A seu favor nesta afirmação, os opinadores contam com o testemunho do vice-presidente do Automóvel Clube da Suécia, que há largos anos veio passar férias a Portugal e foi questionado sobre o que achava da maneira de conduzir dos portugueses. A resposta veio imediata: “Francamente, parece-me que conduzem como ladrões de automóveis.” A comparação com a condução calma na Suécia é evidente.

Na Alemanha, há um grande número de automobilistas que são simultaneamente educadores e polícias. Na cidade de Berlim, por exemplo, com as suas longas e largas avenidas, só se atravessa quando o sinal está verde para os peões. Pode estar a choviscar ou mesmo a chover forte que o alemão não atravessa. Muitos dos estrangeiros, porém, têm uma mentalidade diferente. Se, mesmo ao longe, o automobilista alemão os vê a atravessar com o sinal que para si está verde acelera o mais que pode para lhes dar um correctivo imediato. Confesso que não sei, num caso destes, se o automobilista é considerado culpado, mas estou em crer que não. Afinal, quem infringiu a lei foi o peão e não o condutor da viatura. A não ser que este vá com excesso de velocidade.

Mas deixemos Berlim, onde um português pode estar neste momento prestes a bater o record mundial dos 30 metros ao atravessar uma avenida o mais rapidamente que consegue para não ser atropelado por um daqueles alemães-que-não-perdoam.

Voltemos a Lisboa: “As pessoas hoje não se sabem comportar. Quem é que dá o lugar a esta senhora que traz o bebé ao colo?” pergunta a mulher que vai de pé no autocarro à cunha. É uma senhora já com alguma idade que se levanta. Um cavalheiro levanta-se do seu lugar e diz em voz alta: “Ó minha senhora, sente-se, sente-se, que já não é nova! Eu vou já sair. Dou o lugar àquela senhora com o bebé!” Conseguiu dois em um: para lá de deixar subentendido que a senhora que se tinha levantado era já velhota, ficou com os louros de oferecer o seu lugar. Grande homem!

          A questão do dar ou não dar o lugar persiste, porém, e a conversa estende-se lá para trás: “Vá lá, que mesmo assim houve alguém que se levantou. No outro dia uma senhora com mais de 80 anos foi de pé o tempo todo agarrada a um varão. Eu estava mesmo a ver quando o autocarro dava um solavanco maior e a senhora não se aguentava e caía!” “E você ia sentada?” perguntou-lhe outra passageira. “Fui a primeira a entrar no autocarro. Claro que ia sentada!” “Mas não deu o seu lugar à senhora de 80 anos!” “Nem tinha que dar. Esses lugares são lá mais para a frente. Estão reservados. Eu vinha desde o terminal!” “Ah, já percebi!” “Já percebeu o quê?!” “Já percebi que você é só garganta!” “Garganta é você! Donde é que me conhece? Andou comigo na escola? Nunca a vi lá! Se calhar nem à escola foi!” “Ó sua lambisgoia, veja lá com quem é que se está a meter! Ora esta! Vem uma pessoa sossegada para o autocarro e logo aparecem pessoas desta laia. Era só o que me faltava! Acabou a conversa!” “Acabou a conversa, nada! Então agora a senhora é que manda “Alto e pára o baile”? Só pára quando eu quiser. Por acaso vou sair na próxima, mas não me esqueço de si, sua velhaca!” O autocarro pára e a mulher sai. A passageira alvejada comenta para quem a quer ouvir: “Agora os autocarros estão cheios desta gentinha. Ofendem os outros e depois vão-se embora. Ai que saudades que eu tenho dos tempos da outra senhora. Havia outra educação, não se chamavam nomes.” Saem mais passageiros. A senhora fica a falar sozinha. Ninguém lhe responde. Por hoje o teatro acabou. Amanhã há mais.

7/23/2012

Curto vs. longo prazo


          Se me perguntarem qual é o adjectivo que melhor caracteriza o tempo actual, concretamente neste país em que vivemos, direi que esse adjectivo é “precário”. Dependendo do ponto de vista mas sempre com a mesma conotação, admito que “instável” poderá ser escolhido alternativamente.

É bem conhecida a oposição entre as perspectivas de curto prazo e as de longo prazo. Quem pensa em termos de curto prazo prefere negociatas a negócios, privilegia a ocasião à estratégia à la longue, cultiva uma imagem de rapidez de decisão e odeia a hesitação (“decidir, mesmo que eventualmente não muito bem, é sempre melhor do que não decidir”). Quem pensa assim, toma como sua uma cartilha de mudança constante, adora o poder e surfa a onda que “está a dar”. Tem fraca cultura histórica, na qual aliás não vê grande utilidade, porque o mundo está a alterar-se profundamente, pelo que o mundo dos nossos dias é de tal forma novo e diferente dos anteriores que a propalada experiência das pessoas mais velhas não tem validade maior do que a de um pente para carecas.

Esta é uma forma de olhar o mundo com insistência no “já!” e no “agora!”, tendo possivelmente em mente a reflexão keynesiana de que a longo prazo estamos todos mortos. A vida é para se viver. Instante a instante. Carpe diem! Quem não gosta, que se adapte! Se não o fizer, tanto pior para ele!

Estamos num mundo de desregulação, ou de liberalização, como lhe queiramos chamar. Quem tem unhas é que toca guitarra. Se uns têm mais poder e são ricos é, quase com certeza, porque se adaptaram melhor à mudança. Constituem em certa medida um paralelo ao grupo dos dirigentes da sociedade romana. Fareed Zakaria lembra-nos, em O Futuro da Liberdade, que “enquanto a Grécia deu ao mundo a filosofia, a literatura, a poesia e a arte, Roma deu-nos os pressupostos do governo limitado e o Estado de Direito. O ponto mais frágil da lei de Roma residia no facto de, na prática, não se aplicar à classe dirigente.” Ora, este último ponto é assaz relevante para os tempos de hoje. A desigualdade que resulta da competição ou concorrência liberalizada justificar-se-á inteiramente. Essa desigualdade é apenas o produto de uma melhor adaptação aos tempos, tal como as espécies estudadas por Darwin mostraram que os animais que sobrevivem são aqueles que melhor se adaptam ao ambiente que os rodeia.

Os aspectos éticos que subjazem a comportamentos que seriam antigamente criticáveis, como a colocação de enormes lucros em centros offshore para evitar pagar vultosas parcelas de capital ao Estado, são atirados para debaixo do tapete. Os fracos que os invocam e censuram não têm, infelizmente para eles, unhas para o fazer. É tudo um problema de aptidão e de selecção de pessoas. A oligarquia justifica-se a si mesma. Há fracos e fortes na sociedade. Segundo a cartilha, é justo que sejam os fortes, para bem de todos, a definir as leis.

E que leis? Qual o lugar a atribuir à maioria dos mais fracos? Primeiro, terão que aprender a não “dormir na forma”. Assim produzirão mais. A produção está na base de tudo. Só manduca quem trabuca. Viver à custa dos outros amolece as pessoas. Há, por isso, que lhes criar instabilidade. Não deixar que ganhem raízes. Cada um deverá mostrar o que vale, dia após dia. A produção irá com certeza aumentar. As desigualdades poderão manter-se e até alargar-se, mas esse até acaba por ser um bom sinal. Quem parte e reparte, e não fica com a melhor parte, ou é tolo ou não tem arte. Aqui a classe dirigente não é tola. De facto, são uns verdadeiros artistas.

Se entre o forte e o fraco a liberdade oprime e só a lei liberta, importa controlar a lei. Fechar o circuito. Controlar tudo. Quem, entre os juízes, tiver pruridos éticos, deverá ser liminarmente afastado mais tarde ou mais cedo. Preferivelmente, mais cedo. Criar instabilidade entre os juízes é também uma política correcta.

O ideal para um patrão, que é quem manda, consiste na possibilidade de, com responsabilidades mínimas da sua parte, dispor das pessoas que com ele colaboram. Assim, idealmente, uma firma terá um pequeno núcleo duro de empregados fiéis, mas todos os restantes serão angariados segundo as necessidades da firma. A lei deverá permitir-lhe dispensar os empregados que ele achar conveniente e, eventualmente, readmiti-los mais tarde com um salário mais baixo. Se cada um souber que o seu lugar não está garantido, todos trabalharão com muito mais afinco para impressionar bem e manter o posto de trabalho. A precariedade laboral tem as suas vantagens. É possível que daí resulte que um casal de trabalhadores não se sinta com estabilidade suficiente para casar, comprar uma casa – imóvel – e ter filhos, mas isso é um problema de cada um. Se existir uma volumosa bolsa de desempregados, haverá sempre possibilidade de recrutar as pessoas certas a preços competitivos. E, se provar mal, o defeito é dele. Rua!

Há uns largos anos já, criou-se, salvo erro nos Estados Unidos, o just in time, por vezes abreviados para jit. Do ponto de vista da gestão, o just in time justifica-se perfeitamente. Tomemos o caso de uma farmácia, que tem necessidade de possuir um largo stock de medicamentos para atender as sempre inesperadas levas de pessoas que surgem com as mais diversas receitas. Para ter esse largo stock de medicamentos, a farmácia teria de dispor de um espaço enorme e de um substancial fundo de maneio. Tudo se resolve, porém, se usarmos o just in time. Graças a este sistema, o proprietário da farmácia terá no seu estabelecimento apenas umas tantas unidades dos medicamentos mais comummente receitados. Um telefonema ou um e-mail para uma central de compras à qual a farmácia está agregada pode resolver-lhe o problema passadas umas horas, ou eventualmente até menos. Com isto, a existência de um vultoso fundo de maneio torna-se desnecessária e, no estabelecimento, passa a existir mais espaço, por exemplo para vender produtos cosméticos que conferem uma óptima margem de lucro ao proprietário.

E se, em vez de medicamentos, uma firma pudesse aplicar este sistema a muitos dos seus empregados? Colocá-los-ia em stand-by, pagando-lhes um mínimo nos dias em que não fossem necessários, e compensando-os depois com um largo número de horas de trabalho, as que fossem precisas, para resolver casos de urgência ou os chamados “picos” laborais. Não haveria estritamente nenhum vínculo laboral, mas o empregado-precário saberia que poderia eventualmente contar com a firma sempre que houvesse laboração que o exigisse. Just in time.

As novas leis laborais portuguesas caminham neste sentido. A parte leonina cabe cada vez mais ao patronato, que beneficia dos enxames de pessoas em busca de trabalho, quase que a qualquer preço.

Mas não são só as leis laborais que se modificam, como se poderia prever. As mudanças vão igualmente incidir sobre a componente mais essencial ao homem: a habitação. A liberalização das rendas de casa antigas, i.e., os contratos anteriores a 1990, será a próxima grande bomba social a deflagrar. Não só muita gente será despejada por impossibilidade de cumprimento de rendas especulativas, como também a nova lei, aprovada na Assembleia da República apenas pelos partidos que detêm o poder, trará a sua componente forte de precariedade: os novos contratos terão, por norma, a extensão de… dois anos. Mais instabilidade. De dois em dois anos, os senhorios disporão da possibilidade de não renovar os respectivos contratos. O que isto significa em termos de instabilidade é indizível. Compram-se móveis para uma casa, onde ficam bem, que podem não caber na outra para onde as pessoas se vejam obrigadas a mudar. Criam-se hábitos de vizinhança, que podem perder-se totalmente passado o biénio. A regra é: não deixar criar raízes. A instabilidade é uma virtude, a estabilidade um vício. Daí que também o Estado não deva continuar a garantir postos de trabalho a ninguém, salvo a um núcleo duro essencial para dar continuidade a determinadas secções e departamentos.

Esta precariedade lembra-me, e de que maneira, o que vi na Índia. E se não vi noutros países do sudeste asiático foi porque não fui lá. Aí também é possível obrigar um homem a fazer “uma directa” de trabalho, sem se deitar, para ter de manhã pronta uma encomenda para o cliente que parte cedo no dia seguinte. Just in time!

 Esta instabilidade e  a não-criação de raízes passam também para o mundo da natureza florestal. De onde vem mais rapidamente dinheiro: do pinheiro ou do eucalipto? Em termos de rapidez – o tal “já!” e “agora!” – o eucalipto vence sem qualquer dúvida o pinheiro. Ou o sobreiro. Pois o que está na forja (em fase adiantada)? Lembrando o conhecido aforismo que nos diz que “A ignorância e a criatividade, quando no poder, constituem uma mistura explosiva”, a nova legislação prevista vai permitir que áreas inferiores a cinco hectares, mas na prática até dez hectares, incluindo áreas de regadio, sejam facilmente convertidas em eucaliptais. Os lobbies das celuloses rejubilam. O país já está a arder. Preparam-se novas terras para que os eucaliptos possam medrar. Um eucaliptal não é uma floresta, constituída como toda a floresta por ervas, arbustos e árvores. Um eucaliptal tem eucaliptos. Unicamente. Esgota facilmente de toda a água a terra onde é plantado. É essa água, juntamente com o sol e com o solo, que alimenta a árvore e a faz crescer  rapidamente.

Disse há dias na televisão uma habitante da serra algarvia que viu muitos dos seus tradicionais sobreiros serem devorados por chamas assassinas: “Estou triste. Fiquei sem nada. Nem uma árvore tenho para deixar aos meus filhos!”

Este pensamento de deixar árvores para os filhos é exactamente o oposto da política actual. Lucros rápidos, exportações a crescerem e o país a deteriorar-se cada vez mais, comprometendo seriamente o seu futuro. Nem os pinheiros, nem os sobreiros devem poder criar raízes. Instabilidade lucrativa. Criatividade destruidora. O capitalismo no seu melhor!

6/17/2012

Poesia de A a Z

Já próximo do fim do abecedário, a letra T com Miguel Torga: Miragem Passa um navio ao largo dos meus olhos. (Os meus olhos, agora, são azuis, Imensos e navegáveis...) Passa moroso, como um desejo Insatisfeito. Passa, e morre desfeito Em bruma de ilusão Na curva do horizonte cruciante Que cerca a solidão De quem sonha, tolhido, um cais distante...

6/11/2012

A Espanha pede ajuda financeira para a sua banca


       Como tem sido amplamente noticiado, a Espanha acaba de pedir auxílio financeiro à União Europeia para acudir ao seu sistema bancário, do qual sobressai uma unidade: o Bankia. A ajuda financeira não é de pequena monta. Embora se tenha de considerar que a população espanhola é cerca de quatro vezes mais numerosa do que a portuguesa, os 100 biliões de euros de que a Espanha diz necessitar para recompor o seu sistema bancário representam mais de oito vezes aquilo que a troika considerou ser necessário para “endireitar” a banca portuguesa. Em princípio, isto significa que a banca espanhola está ainda mais torta do que a nossa.
         O sector que mais contribuiu para o afundamento da banca foi, indubitavelmente, o da construção civil. Os problemas com que a banca portuguesa se debate, e também a irlandesa, têm muitos pontos de contacto. Os banqueiros tanto tentaram lucrar através de (1) empréstimos a empresas de construção civil e (2) mais empréstimos a particulares para adquirirem os andares acabadinhos de construir, que quando a coisa estoirou ficaram com centenas de bebés nos braços. Bebés de contas intoxicadas, entenda-se. E, além dos bebés, ficaram com o enorme problema de terem que reembolsar os bancos estrangeiros que lhes tinham emprestado rios de dinheiro – também eles interessados em explorar através de juros o boom da construção.
         Não é por pura coincidência que a Espanha foi, a determinada altura, de longe a maior detentora de notas de €500 entre todos os países do euro. A lavagem de dinheiro obtido, entre outros meios, pelo vasto comércio da droga, processou-se durante anos. A construção absorveu igualmente muito desse dinheiro.
         Em Espanha ocorreu ainda um outro factor – o das regiões autónomas - que, no nosso país, só teve um paralelo semelhante: o da ilha da Madeira. A divisão autonómica regional proporcionou um real desequilíbrio nas contas do Estado. Tanto quanto sei, o acima mencionado Bankia reuniu a partir de certa altura as contas de várias Cajas regionais, exactamente algumas daquelas onde havia maior desequilíbrio. O resultado está à vista.
         Infelizmente para qualquer economia que assente na exportação, as casas são um produto não-exportável. Como a construção foi de longe o sector que atingiu maior desenvolvimento, uma crise nesse sector afectou necessariamente toda a economia e levou a Espanha a níveis elevadíssimos de desemprego.
         Todo este panorama só pode ter ocorrido através de negociatas entre o poder político e empresários, o que permitiu esconder numerosas dívidas criadas quase que à rédea solta. É aqui que mais uma vez encontro três países de profundas tradições católicas, como são a Espanha, a Irlanda e Portugal, a serem atingidas por males semelhantes. Insisto num ponto que já abordei noutras ocasiões: ao permitir que os pecados das pessoas sejam perdoados com enorme facilidade por um sacerdote bem-intencionado, estabelece-se uma enorme desresponsabilização dos pecadores, que nestes casos de políticos não são em reduzido número. Mesmo que a consciência lhes pese inicialmente, a verificação de que há muitos outros a cometerem o mesmo género de faltas alivia-lhes a noção do mal que eventualmente causarão. Se fosse perante o Deus em que dizem crer que ficassem totalmente responsáveis - assim como perante a justiça terrena, como é óbvio - o problema da consciência pessoal e do respeito pelos valores que a maioria das pessoas reconhece como válidos para a constituição de uma sociedade correcta obrigaria muitas pessoas a agirem de outra forma. Assim, a era do facilitismo instala-se: o trabalho infantil é notório nos países católicos apesar de ser oficialmente considerado um crime grave; o enriquecimento ilícito não é levado a sério; o egoísmo campeia em vez de um altruísmo mais são e produtivo. Julgo que isto em grande parte sucede, porque a desresponsabilização que a religião involuntariamente provoca coloca o problema mais nas mãos de Deus do que dos homens. Nas igrejas, choca-me imenso ouvir os sacerdotes dizerem e fazerem a congregação repetir várias vezes “Senhor, tende piedade de nós!”. Admitimos as nossas fraquezas e pedimos a Deus que de nós tenha piedade. Se Ele não tiver essa piedade que lhe pedimos – Ele que é “infinitamente misericordioso” – a culpa passa a ser dEle. Nossa não é!
         Em países onde a religião é praticada com maior seriedade e noutros moldes, responsabilizando o homem pelos seus actos e criando-lhe problemas sérios de consciência, questões como estas existem igualmente porque onde possa a natureza humana espreita oportunidades, mas a escala em que isso ocorre é muito menor. O sistema funciona de maneira mais perfeita, até porque as desigualdades sociais são geralmente mais atenuadas.

6/03/2012

Um caso aparentemente grave


          Há talvez uns 20 anos, leccionava eu então numa instituição de ensino superior privado, fui informalmente convidado pela Direcção (i.e., não por escrito) para integrar o Conselho Científico da instituição. Foi-me lealmente explicada a razão do convite: havia um grupo de professores que integravam aquele órgão que em certos itens relevantes pretendiam votar contra as orientações da Direcção. Eu, juntamente com mais uns três ou quatro colegas, seria co-optado para, no que respeita a votos dentro do Conselho, fazer pender as decisões para o lado da Direcção. Não fui elucidado sobre quais eram esses itens. Fiel ao meu sentimento de independência ética – seja em que local for, não me importo de tirar o chapéu em sinal de respeito mas nunca tirarei a cabeça -, respondi que agradecia e aceitava o convite, na condição de votar de acordo com a minha consciência e não a priori a favor da Direcção.
         Nunca mais ouvi falar do assunto, que aliás também nunca mencionei a quem quer que fosse. Porque é que me lembrei dele neste momento? Por ter lido no jornal Público de 1 de Junho que uma ex-governadora civil do Porto e actual deputada do Partido Socialista tinha, em reunião privada, advertido os seus colegas de bancada “que a maioria PSD/CDS, tendo consciência de que o corte dos subsídios é inconstitucional, pretende colocar no TC juizes que assegurem a conformidade da medida do Governo face à Lei Fundamental”. Caracterizou a actual situação como “inaceitável”. Pessoalmente, eu não utilizaria outra adjectivação.
         E de onde provém o seu posicionamento? De um facto que a muitos poderá infelizmente parecer um simples fait-divers: o juiz-conselheiro Artur Costa, indigitado pelo PS, terá visto o seu nome vetado pela maioria PSD/CDS “com base no facto de o juiz ter escrito num blogue que era inconstitucional o corte dos subsídios de férias e de Natal dos trabalhadores do sector público e dos reformados”.
          Pelas notícias sobre este mesmo assunto já vindas a público anteriormente em mails que têm sido profusamente reenviados na Net, julgo perceber que se está a fazer a escolha de juizes para preencher as vagas em aberto no Tribunal Constitucional (TC) segundo as suas opiniões a favor ou contra determinados preceitos constitucionais. Na habitual contagem de espingardas para ver quem possui maior número de votos, não será preciso, parece-me, que se mude a Constituição: bastará mudar alguns juízes que sobre ela votam no TC.
         Não se me assemelha que este seja um processo saudável em democracia. E o eventual leitor deste blog, o que acha?

5/28/2012

Um livro que recomendo

Um velho amigo meu, americano, trouxe-me recentemente um livro que comprou no aeroporto de Nova Iorque. Uma vez que vinha passar uns dias a Lisboa, cidade onde já vivera e trabalhara há uns bons anos, nada de mais natural do que tivesse sido atraído pelo título da obra: LISBON - War in the shadows of the great city of light, 1939-1945. O autor, Neill Lochery, é um escritor de origem judaica. Conhece bem a cidade de Lisboa, onde se fixou durante algum tempo para colher elementos para este livro deveras interessante sobre o período da periclitante neutralidade portuguesa mantida durante a 2ª Guerra Mundial.
         É bem conhecida a história da existência de numerosos espiões germânicos e britânicos na cidade e arredores – nomeadamente no Estoril e em Cascais. Entre esses espiões conta-se o famoso escritor Ian Fleming, que terá criado o não menos célebre 007, James Bond, inspirado em Popov, espião russo que conheceu no Casino Estoril de então. Ian Fleming não foi o único escritor que, entre nós, trabalhou em serviços de espionagem para o seu país. Graham Greene, para citar apenas mais um caso, também teve uma estadia em Lisboa durante esse período. No livro acima referido, cuja tradução aconselho vivamente na medida em que alcançará decerto óptimas vendas, a simples menção de jogos de azar disputados em salas privadas do Casino entre judeus e membros da Gestapo é algo menos conhecido e, sem dúvida, hilariante.
         Também Salazar jogava o seu jogo, no qual se mostrou aliás um exímio intérprete. Conseguir encontrar, num processo por demais dinâmico como é o de um conflito bélico à escala mundial, um equilibrado meio-termo entre britânicos e alemães de modo a não se comprometer nem com uns nem com outros, e ainda lograr entretanto auferir  ganhos económicos e financeiros com essa convivência dupla foi realmente obra! A isso se deve em grande parte o facto de Portugal ter mantido, durante os seis longos anos entre 1939 e 1945, a sua independência política e não ter sido invadido, conjuntamente com a Espanha, pelas tropas beligerantes.  
         Devo dizer que o encontrar neste livro frequentes jogos duplos praticados por personagens diferentes me encantou. Estar bem com Deus e com o Diabo é sempre uma faceta curiosa. Por exemplo, na zona do Cais do Sodré, de há muitas décadas famosa pelos seus bares e clubes nocturnos, várias prostitutas foram de início contactadas pelos alemães para lhes fornecerem informações colhidas aos marujos britânicos que aportavam a Lisboa e que com elas se embebedavam para saudar a vinda a terra. Que tipo de informações? As óbvias: que movimentos se esperavam de barcos, para onde e de onde; que tipo de barcos. Depressa os ingleses perceberam o risco dessas informações e, por seu lado, começaram também a pagar a prostitutas, muitas vezes às mesmas, para que fornecessem aos alemães falsas informações. Imagine-se a cena!
         O jogo duplo não era pertença exclusiva das meretrizes do Cais do Sodré. Por exemplo, alguns funcionários superiores da polícia secreta portuguesa, que então usava a sigla PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado), não se faziam rogados naqueles tempos difíceis de racionamento e embolsavam à socapa pagamentos por informações prestadas frequentemente tanto ao lado do Eixo como ao dos Aliados. Como complemento aos seus relativamente fracos vencimentos, claro!. Comer em dois carrinhos sempre foi bom.
         Mas o caso mais interessante que li na obra que acima refiro foi sem dúvida o de Juan Pujol. Espanhol de nascimento, era um homem que tinha tanto de espírito de iniciativa e perseverança como de falta de integridade. Em resultado da guerra civil espanhola (1936-39), Pujol tinha desenvolvido um ódio declarado tanto ao fascismo como ao comunismo. Ofereceu-se em Madrid aos britânicos. Queria trabalhar para eles. Não o aceitaram. Tentou então os alemães, que o ouviram, tal como os britânicos o tinham escutado. Ofereceu-se para trabalhar como espião para eles tanto em Lisboa como na Inglaterra. Depois de terem estudado as suas propostas, acabaram também por não as aceitar.  
         Pujol não desistiu. Como os alemães lhe tivessem dito que se ele conseguisse trabalhar em Inglaterra, então a coisa mudaria de figura, veio até Lisboa e conseguiu aqui arranjar um passaporte falso como membro da delegação espanhola na cidade. Voltou para Madrid, onde apresentou os seus documentos aos alemães. Depois de efectuarem controlos de segurança de vária ordem, os serviços alemães entregaram-lhe o equivalente a 3 mil dólares, que ele escondeu num preservativo e trouxe para Lisboa. Entretanto, recebera uma formação especial dada pelos serviços secretos alemães sobre como escrever com tinta invisível.
         Apesar de os germânicos o mandarem para Inglaterra, Pujol ficou-se por Lisboa. Com base apenas nesta cidade, ludibriava os alemães tentando tudo para parecer que de facto se encontrava em Londres. Os relatórios que elaborava baseavam-se nas conversas que ia tendo com vários refugiados nos cafés da Baixa, especialmente no Chave D’Ouro. Nas livrarias do Chiado ia lendo ou comprando livros sobre Londres para tornar mais verosímeis os seus relatos.  
         Entretanto inventava falsas orgias em bordéis e referia-as como sendo passadas em Londres, contendo informações erróneas sobre movimentos de tropas. A certa altura, os ingleses descobriram a marosca através da decifração que lograram fazer de mensagens trocadas entre serviços das tropas de Hitler. Contrataram-no então, finalmente, para trabalhar para eles como agente duplo. Para os alemães, Pujol tinha-se entretanto tornado um dos seus agentes mais bem-sucedidos, com uma rede de 27 sub-agentes, nenhum dos quais na realidade existia. Ele agia absolutamente sozinho.
         O nosso homem manteve-se operacional durante cerca de três anos. Os seus relatórios eram sempre coloridos e brilhantes, recheados de episódios vivíssimos. O seu êxito foi tão inegável que, no final, se tornou um dos raríssimos agentes a serem condecorados por ambos os lados durante a 2ª Grande Guerra. Em Julho de 1944 foi informado de que Hitler o condecorara com a Cruz de Ferro pelo seu contributo para a causa alemã. Em Dezembro do mesmo ano, Pujol recebeu uma medalha de mérito por parte da Grã-Bretanha.
           Um livro a não perder! Talvez eu volte ao blogue com o assunto de pelo menos mais um capítulo geralmente pouco conhecido entre nós. Além do mais, o que me agrada mais na obra de Neill Lochery é o facto de todas as suas numerosíssimas fontes estarem registadas – os documentos datados dos anos da 2ª Guerra Mundial, incluindo os diários de Salazar, já estão abertos ao público há vários anos.

3/19/2012

errata

O meu tributo ao dia Mundial da Poesia veio, obviamente, um pouco adiantado! Provavelmente pelo matutino da hora, baralhei-me.
Mas mais dois dias, menos dois dias, o que é mesmo importante é a Poesia. E essa já cá ficou, para deleite de quem gosta.

Poesia de A a Z

Não poderia deixar passar o Dia Mundial da Poesia sem voltar a este espaço.
Hoje, para a letra S, um poema de José Carlos Ary dos Santos que, de certa forma, é também um tributo à Primavera que começa:


Conquista

Dispo a tristeza inútil que me invade.
Resumo a minha vida num só beijo.
E, em frémitos de sangue e mocidade,
Ascendo para além de quanto vejo.

Ateia-se a vertigem da ansiedade
E perco-me nas brumas do desejo.
Mais para além da vida e da saudade,
- Fulgor de estrela em fúlgido lampejo.

Ergo nas mãos a lança da vitória
E corro pelos céus, ébrio de glória,
Abrindo ao Sol as asas da alegria.

E canto na certeza do porvir,
Que todo o mundo é meu e eu vou partir
À conquista dos reinos da poesia!

José Carlos Ary dos Santos, "Obra Poética", Edições Avante

3/05/2012

Negociatas megalómanas


Às vezes penso no assunto e por aí me fico. Hoje, o facto de ter ocasionalmente encontrado um velho artigo, datado de Junho de 2007 da autoria de João Soares, leva-me a escrever umas brevíssimas linhas.
Já se pensou a quanto mais teria ascendido a dívida portuguesa, pública e privada, se se tivesse construído um novo aeroporto para servir a cidade de Lisboa? Já se constatou a perfeita demagogia dos números que foram esgrimidos para persuadir a população portuguesa da urgente necessidade de retirar o aeroporto do sítio que ocupa há umas sete décadas? Já se pensou nas negociatas à volta dos terrenos que seriam abandonados na Portela e na desnecessária construção imobiliária que no local se faria?
O tempo desmascara e mata muitos argumentos. Hoje não se ouve já falar da premente urgência de abandonar o aeroporto da Portela: é que o discurso oscila segundo as conveniências do momento. Os aviões continuam tranquilamente a aterrar e a levantar voo. Otas, margem sul? A mesma megalomania dos estádios de futebol a passar para um novo aeroporto, TGVs e sabe-se lá mais o quê.
O mal da crise fez escrever direito por linhas que estavam a ficar demasiado tortas.

2/27/2012

Uma explicação

Vários amigos que se habituaram a visitar este blog têm-me perguntado qual é o motivo por que, sendo eu geralmente tão assíduo na minha escrita, pareço ter subitamente deixado de escrever.

Ora, como é do conhecimento de qualquer pessoa que, por pressão interior, gosta de fazer uma determinada coisa, essa pressão não desaparece a não ser por razões de saúde. Não sendo este felizmente o caso, a minha pressão da escrita pode é ser encaminhada para outras vias. Tem de facto sido.

Aqui pode porém colocar-se uma segunda questão: por que razão foram escolhidas outras vias e deixada esta, que se mantém quase há nove anos? Será que a temática se esgotou? Ainda por cima num blog que se diz de A a Z?

De facto é impossível que a temática se esgote, tantos e tão vastos são os temas; porém, existe um factor que vem funcionando quase como um travão que me tem impedido de voltar aos meus temas favoritos, que são sem dúvida os de ordem social. Esse factor tem que ver com a situação portuguesa, que considero verdadeiramente lastimável e, afirmo-o sem pessimismos lamurientos, tem uma forte tendência para se agravar.

Vou tomar como exemplo uns tantos factos que um exemplar do jornal que diariamente compro – o Público – nos traz a todos.

Começa por nos informar que o governo avaliza novo empréstimo de 300 milhões de euros ao BPN. Ora, esta história não é só agora que começa a cheirar mal; há muito que tresanda. A maioria das pessoas concorda que há muita coisa mal contada relativamente a este banco. Conhecemos os nomes de algumas das figuras mais gradas da política portuguesa que entram neste imbróglio. Essas figuras são predominantemente ligadas ao partido mais votado do presente governo. Sabemos também que houve um número considerável de pessoas que procuraram o banco para auferir rendimentos maiores do depósito do seu capital. O banco estoirou, e apresentou um défice nunca verdadeiramente esclarecido perante a opinião pública. Trata-se de um défice que em muito ultrapassou o já de si inaceitável saldo contabilístico negativo incorrido pela governação da ilha da Madeira. O BPN causou um prejuízo assumido de 2,4 mil milhões de euros para o Estado e avales da ordem dos 5,5 mil milhões através da Caixa Geral de Depósitos, um banco estatal. Pois agora aí vem um novo crédito de 300 milhões, decerto concedido em condições de juros que pouco terão a ver com a “generosidade” com que os mercados emprestaram dinheiro ao Estado português.

Como é que se pode consentir que isto suceda? Vemos a classe média a empobrecer a olhos vistos; a consequente retracção da economia não se fez esperar; mas, por seu lado, o recebedor dos nossos impostos que é o Estado abre os bolsos para salvar os mais ricos! Como é isto possível num governo que foi eleito pelo povo, mas que está a muitas milhas de cumprir o seu programa eleitoral, programa esse que foi apresentado ao povo português já depois de ter sido firmado pelo anterior governo um acordo com a famigerada troika-katastroika? Então os bancos não são os responsáveis principais pelos riscos que assumem? Sejam os bancos, sejam empresas agrícolas ou industriais, todos devem assumir a sua responsabilidade. Se colhem os lucros quando os resultados lhes são favoráveis, não existe qualquer razão para alijar essa responsabilidade quando esses resultados são negativos.

Mas se calhar existe mesmo. De facto, uma outra notícia informa-nos, já sem surpresa para o contribuinte mas compreensivelmente geradora de um forte sentimento de revolta, que o parceiro privado do município que gere a água da cidade de Faro tem uma taxa de rendibilidade garantida de 8,41 por cento, independentemente do resultado de exploração da empresa de ambos. Que maravilha! Tal como parece ser o que continua a suceder no BPN, se há lucros privados, embolsam-se; se há prejuízos, o tio Estado que pague. Uma mina!

Mas não é isso também que sucede com as vias “sem custos para os utentes”, vulgo SCUTs? Outra mina! Afinal não era só no passado que tínhamos ouro no rio que dele ganhou o nome! E, tal como o rio corre para o mar, também os proventos correm para quem já não é parco deles.

Como já vem sendo hábito, andam uns tantos portugueses a explorar todos os restantes, com o apoio de testas-de-ferro governamentais que zelam mais pelos interesses privados – dos quais não raramente vêm a beneficiar após a cessação das suas funções mais directamente políticas – do que pelos interesses que juraram defender.

Na Alemanha, nos últimos três anos já são dois os presidentes da república que se viram obrigados a abandonar os seus cargos por motivos distintos. No nosso país tenderiam a ficar impunes e a permanecer nos seus postos.

Leio entretanto com gosto uma notícia. No entanto, ela mostra-me claramente a existência de dois países em Portugal, com um a colonizar o outro. A boa notícia é que durante a semana que passou foi finalmente inaugurada luz eléctrica em cerca de 60 montes e explorações agrícolas isoladas na serra de Serpa. Imagine o leitor citadino os anos que aquelas populações que, entre outras coisas, produzem o belo queijo de Serpa, tiveram que esperar para usufruir desse extraordinário sinal de progresso! As populações tinham luz graças a geradores que adquiriam, assim como compravam o gasóleo para os alimentar. E, naturalmente, usavam os velhos candeeiros a petróleo e o Petromax nas suas casas…

A resposta à pergunta por que motivo deixei de escrever tão assiduamente é só uma: custa-me viver num país tão injusto e, infelizmente, cada vez mais desequilibrado. Não admira que a criminalidade se avolume. É extremamente penoso ver pessoas com poder a negligenciar o cuidado devido ao ser humano que passa por dificuldades. Entretanto, não quero ser eu próprio injusto e omitir a menção de instituições que possuem um carácter fortemente positivo. Refiro-me àquelas organizações que fornecem, a preços baixos ou mesmo de forma gratuita, cuidados de saúde aos idosos e apoiam os muitos que passam fome num país com recordes de desemprego.

Mas pensar que estas instituições são tanto mais precisas quanto mais desequilibrada a nossa sociedade está, é algo que vejo como tremendamente revoltante.

2/13/2012

Poesia de A a Z

Para a letra R, as palavras belas e sábias de Ricardo Reis:

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

((Ricardo Reis, in «Odes e Outros Poemas»)

1/24/2012

Poesia de A a Z

Para a letra Q, um poema de Carlos Queiroz:


Canção Grata

Por tudo o que me deste:
– Inquietação, cuidado,
(Um pouco de ternura? É certo, mas tão pouco!)
Noites de insónia, pelas ruas, como um louco...
– Obrigado! Obrigado!

Por aquela tão doce e tão breve ilusão.
(Embora nunca mais, depois que a vi desfeita,
Eu volte a ser quem fui), sem ironia: aceita
A minha gratidão!

Que bem me faz, agora, o mal que me fizeste!
– Mais forte, mais sereno, e livre, e descuidado...
Sem ironia, amor: – Obrigado, obrigado
Por tudo o que me deste!


Carlos Queiroz, in Poemas de Amor

1/20/2012

AS SUGESTÕES DO JOÃO MIGUEL

- Na próxima semana a Mezzo propicia uma tetralogia completa em diferentes dias. O maestro é sempre o mesmo, Lothar Zagrosek, mas os encenadores (todos alemães) mudam pela seguinte ordem: Joachim Schlömer, Jossi Wieler, Christof Nel e Peter Konwitschny
- O Institut français du Portugal recruta um(a) adido(a) audiovisual, responsável pela coordenação da Festa do Cinema francês, pela organização de ciclos de cinema ao longo do ano e pelo apoio às indústrias musicais e audiovisuais francesas.
- De 20 a 22, às 21h30 (dia 22 às 16h00), no Centro Cultural de Carnide, Dizendo e Cantando Ary dos Santos, pela Companhia de Teatro Umbigo (7€)
- Dias 20 (às 18h00) e 21 (a partir das 10h00), no Teatro Maria Matos, seminário internacional: Manifestos & Manifestações - Política, Linguagem e Revolta (0€)
- Dia 21 arranque da programação oficial (a de Janeiro é de perder o fôlego) de Guimarães 2012 - Capital Europeia da Cultura

Segunda-feira, dia 23

- às 8h30, na Mezzo, Fiction: Quatuor Ebène aux Folies Bergères (o Quatuor Ebène esteve na Gulbenkian, em Dezembro pp, com um repertório que não se adapta muito às Folies Bergères …; 88’)
- às 19h00, no Institut Français du Portugal, Ciclo Cinemas do Mundo: Bye Bye, de Karim Dridi (0€)
- às 19h00, no Grande Auditório da Gulbenkian, The Tempest (versão filmada da ópera de Thomas Adès; 0€)
- às 21h30, na Barraca (Largo de Santos, 2), Encontros Imaginários: António Aleixo, Cândido de Oliveira e Juiz Veiga (5€)
- às 21h30, na Cinemateca, Carl Th. Dreyer, de E. Rohmer
- às 21h30, na Casa da Achada, O Meu Tio, de J. Tati, apresentado por João Rodrigues

Terça-feira, dia 24

- às 12h30, na Mezzo, O Ouro do Reno (2003; Staatsoper de Stuttgart; 153’)
- às 21h30, no Salão Nobre do Ateneu Comercial do Porto (Rua Passos Manuel, 44), Sulle ali del belcanto italiano, por Gabriella Morigi (soprano) e Sérgio Garcia (piano)
- às 18h30, no Pequeno Auditório da Culturgest, conferência do ciclo Mudando de Mundo Globalização e Conflitos no Novo Século: A emergência das Ásias e os violentos conflitos que podemos esperar, por J.M. Félix Ribeiro (senhas a partir das 18h00)

Quarta-feira, dia 25

- às 11h45, na Mezzo, A Valquíria (2003; Staatsoper de Stuttgart; 230’)
- às 15h30, na Cinemateca, O Último Adeus (I Girasoli), de V. De Sica
- às 18h00, no Museu Nacional de Arte Antiga, visita guiada, a uma das obras de referência do MNA: Cortesã (J. A. Backer; 1630-1650)
- às 19h00, na Cinemateca, Casque d’Or, de J. Becker
- às 19h00, no ISEG, Concerto Antena 2, com Filipa Lopes (soprano), Ana Serôdio (meio-soprano) e Paulo Oliveira (piano)
- às 21h30, na Cinemateca, Jacques Becker, de C. Givray
- às 21h30, na Biblioteca Municipal de Oeiras, Café com Letras (conversa entre) Carlos Vaz Marques e João Tordo

Quinta-feira, dia 26

- às 11h50, na Mezzo, Siegfried (2003; Staatsoper de Stuttgart; 251’)
- às 15h30, na Cinemateca, Finalmente Domingo, de F. Truffaut
- às 19h00, na Cinemateca, Robert Bresson ni Vu ni Connu, de F. Weyergans
- às 21h30, na Cinemateca, We Can’t Go Home Again, de N. Ray
- às 22h00, na Cinemateca, Os Anjos do Pecado, de R. Bresson

A seguir:

- De 26 Janeiro a 3 de Fevereiro, no São Jorge, KINO 2012, 9ª Mostra de Cinema de Expressão Alemã
- Dia 27, às 11h15, na Mezzo, O Crepúsculo dos Deuses (2003; Staatsoper de Stuttgart; 266’)
- Dia 28, às 17h00, no Palácio Fronteira, Café Filosófico, moderado por Roberto Merril e Fernando Mascarenhas (10€, com chá e bolinhos…)
- Até dia 30, inscrições para o curso: História dos Estuques Decorativos (6 sessões das 18h30 às 20h45; de 7, 9, 14, 16, 23 e 28 de Fevereiro; Palácio Fronteira; 125 €)
- Até dia 30, inscrições para o curso: Uma Viagem pela História do Cinema (por António-Pedro Vasconcelos e Miguel Simal; 11 sessões das 18h30 às 21h00, com visionamentos às 21h30 de; de 7 de Fevereiro a 16 de Abril; Appleton Square; 175 €)
- De 15 a 19 de Fevereiro, ARCOmadrid2012 - International Contemporary Art Fair

Neste http://azweblog.blogspot.com poderá encontrar, a negro e itálico, eventuais actualizações desta informação.

Boa semana!

JMiguel

1/18/2012

A pequinização dos trabalhadores e do trabalho

Devo dizer que a forma como reagi ao que acabava de ouvir foi de estupefacção: como era possível que uma central sindical como a UGT desse a sua concordância a uma concertação social que ia tão violentamente contra os trabalhadores? Como é que toda uma eventualmente necessária redução de preços do produto final recai na totalidade sobre os custos do trabalho e não, também, sobre as margens de lucro dos proprietários?
A questão anteriormente levantada pelo Governo relativa a uma meia-hora suplementar dada por cada trabalhador à empresa – sem qualquer remuneração acrescida – acabou, ao ser declarada como sem efeito pelo Governo, por constituir a chave para a aceitação de todo o resto de um pacote de medidas excepcionalmente duro. Estamos de certeza em presença da meia-hora mais cara que alguma vez os trabalhadores portugueses pagaram nas últimas décadas.
Todo o esquema foi montado de forma maquiavelicamente inteligente. Quem leia o preâmbulo da proposta de concertação social pode, se for ingénuo, acreditar naquelas excelsas medidas. Só que, depois, o articulado desmente cabalmente a encenação idilicamente exposta.
Os trabalhadores saem prejudicados na precariedade, que é em muito aumentada por várias alíneas, sendo que a da maior facilidade dos despedimentos não constitui o item menos relevante. Devido a falta de adaptabilidade a uma máquina tecnologicamente mais avançada o trabalhador pode ser despedido. Idem, devido ao não cumprimento dos objectivos previamente definidos pela firma.
Os trabalhadores saem prejudicados no corte de feriados e, pasme-se, as "pontes" eventualmente decretadas pelos proprietários são contabilizadas para efeitos de dias de férias dos trabalhadores, que ficarão por conseguinte reduzidas. A juntar aos dias feriados que vão ser em menor número.
A flexibilização do trabalho envolve a flexibilização do trabalhador, que se sujeitará a trabalhar em alturas em que poderia – e deveria - estar a descansar. É que o trabalho quando em excesso fatiga. Sobre a motivação / desmotivação para o trabalho não ouvi nada de concreto. É que o trabalhador é cada vez mais visto como uma máquina, um recurso tangível com a característica de ser "humano", razão por que de há muito as Direcções de Pessoal foram substituídas por Direcções de Recursos Humanos.
O pagamento das horas extraordinárias é, de uma maneira geral, reduzido para metade. O trabalhador que ganhava 100 por cento mais nas horas extra que fazia passa a ter um acréscimo de apenas 50 por cento. Se tinha direito a 50 por cento, passa a auferir 25 por cento mais. Trata-se de um pequeno corte, como é fácil de constatar…
As indemnizações eventualmente a pagar aos empregados pelo patrão sofrem cortes gritantes. A antiguidade deixa de contar como até agora.
Tudo isto para, como o canto embalador da sereia declara no preâmbulo, fomentar o emprego e dar aos jovens mais oportunidades de trabalho. Sacrifica-se o emprego do bode para dar trabalho precário ao cordeiro. A mão-de-obra torna-se com certeza mais móvel, mesmo volátil. Depois, graças a umas piedosas manipulações nas estatísticas, a taxa de desemprego baixa como efeito milagroso destas medidas. Sinal de que se está no caminho certo.
Henry Ford, numa das suas frases mais citadas, dizia que queria pagar bem aos seus trabalhadores porque, afinal, eram muitos deles que compravam os seus automóveis. Aqui, pelo contrário, é o poder de compra dos trabalhadores que é drasticamente diminuído. Preserva-se a formação de riqueza para os mais ricos, que, em vez de a distribuírem, a acumulam depois como almofada de segurança para dias eventualmente mais difíceis. Os offshores aguardam notícias. Quanto aos outros, que se governem!
Os culpados destas medidas, que são "obrigatoriamente tomadas porque não existe outra alternativa", não são os membros do actual governo nem os patrões ou os grandes accionistas. São os suspeitos do costume. O grande culpado já se sabe que é o Sócrates. E será por muito tempo. Mas junta-se-lhe toda a conjuntura internacional. E os famosos "mercados", que só aparentemente não têm rosto.
O exemplo do trabalho na China, barato devido a um excesso de mão-de-obra e a condições que a nós, ocidentais, parecem pouco humanas, terá dado o mote. Gradualmente, à medida que os trabalhadores chineses forem subindo, os nossos irão descendo. Até que se encontrem. É a pequinização do trabalho e dos trabalhadores. Em homenagem a Pequim.

1/16/2012

Aleluia!

É tão degradante a cena nacional neste momento que nem apetece falar dela. De ordenados chorudos pagos em empresas e instituições bem conhecidas a homens claramente escolhidos por conveniência política e pressões de clientela até ao escandaloso incumprimento de variadíssimos itens mencionados durante a campanha eleitoral vai todo um chorrilho de asneiras e indecorosas acções que será melhor não especificar.

Mas eis que surge agora uma medida claramente moralizadora, que esperamos seja a primeira de muitas outras: a aprovação de legislação que acaba com vários privilégios dos gestores de empresas e institutos públicos. Conquanto não se saiba em concreto se esta legislação se aplica também aos gestores actualmente em funções ou apenas aos que irão entrar a partir da sua publicação no Diário da República, é uma lei que se saúda. Quanto a vencimentos, não poderá haver nenhum membro da equipa de gestão que aufira um vencimento mensal superior ao do primeiro-ministro (€ 5300 ilíquidos). Tanto a utilização de cartões de crédito, que tantos abusos causou, como a apresentação de despesas de representação são regalias retiradas a partir de agora. Os contratos passarão a englobar objectivos que, em caso de incumprimento, podem originar demissão, a qual nunca dará azo a indemnização se o gestor não tiver ainda cumprido um ano de serviço.

Era bom que surgissem rapidamente mais medidas deste género em vários domínios para que não se fique com a ideia – amplamente justificada – de que a austeridade quando é decretada é muito mais para uns do que para outros. E que não haja excepções! Duas ou três excepções destroem todo e qualquer edifício que se pretenda construir.

1/08/2012

Não é só a falar que a gente se entende: também a escrever!

Confesso que fiquei tão revoltado e abatido com a aprovação do Acordo Ortográfico que não me apeteceu mais abordar esse assunto nestas páginas do blog, até porque nunca aplicarei o Acordo nos meus escritos. Volta e meia, no entanto, o tema volta-me à baila e, para fazer a respectiva descarga cerebral, hoje vou abordá-lo mais uma vez.
A evolução das línguas é imparável, como imparável é a evolução das sociedades. Só quando uma sociedade desaparece, e com ela a língua que ela usava, é que passa a falar-se de uma língua morta. Essa, de facto, não evolui. A dinâmica da evolução linguística – uso ou desuso de determinados vocábulos, neologismos, alterações gramaticais notórias por contacto com pessoas de outras nacionalidades, hegemonia linguística de uma determinada zona asfixiando outras do mesmo país, etc. – tudo isso é próprio de uma língua que está viva.
Já a escrita não tem necessariamente que mudar da mesma forma. Na generalidade dos países e línguas que conheço, mantém-se mesmo na escrita uma memória muito acentuada das origens, que é apenas mais forte nuns aspectos do que noutros. As mudanças na ortografia podem e devem ocorrer quando as alterações forem de tal ordem que se tornasse verdadeiramente obsoleto manter a mesma escrita. Mas mesmo nestes casos a ortografia pode não se alterar substancialmente. Daí que a escrita seja no geral bem mais conservadora do que a língua oral.
Quando em inglês se escreve, por exemplo, light, night, fight, ou eight, se a escrita fosse apenas fonética poder-se-ia facilmente escrever lite, nite, fite, ate. No entanto, isso não sucede. Porquê? Que cada um olhe para as palavras em questão, pense um pouco e dê a sua resposta.
Um dos motivos primordiais consiste no seguinte: a escrita não deve confundir as pessoas – nem quem escreve, nem quem lê – ou, se se preferir, deve confundir o menos possível porque a língua é um fenómeno muito complexo. A escrita deve ensinar quem aprende a ler a dizer a palavra bem.
Aqui vão mais uns exemplos retirados da língua inglesa: quando escrevo dinner, assim com nn, estou a dizer que o –i- é breve, isto é, lê-se mais ou menos como o –i- português e não ai, como acontece quando escrevo dining-room (apenas com um n no sítio onde dinner tem dois).
Dentro da mesma linha mas agora ilustrando com outra vogal,-o-, eu sei que hoped tem um –o- longo, o qual se pronuncia mais ou menos como o ou português, porque a grafia contém apenas um –p-. Se eu escrever com –pp- (hopped), em vez de dizer "esperava" estarei a dizer "saltava" (hop, hop, como o nosso galope). Ou seja, a escrita ensina-me, quando eu leio, que se trata de um –o- fechado ou um de um –o- aberto.
O mesmo sucede com todas as outras vogais: super (grafado apenas com um –p-) é muito diferente de supper, tanto em pronúncia como, naturalmente, em significado. Quando no teclado de um computador como o que estou a usar leio o que está escrito na tecla delete, eu sei imediatamente, embora possa nunca ter encontrado a palavra, que a pronúncia de delete nada tem a ver com a de letting, por exemplo, embora ambas as palavras possam à vista ter vários pontos de contacto. Por que razão sucede isto? Para não confundir o leitor, para ensiná-lo a ler bem e, depois, a escrever em conformidade: para que outros leiam igualmente bem e entendam sem dificuldade o que está escrito.
Em alemão acontece o mesmo em palavras com consoantes dobradas, que indicam que a vogal que as precede é aberta: Sonne (sol) pronuncia-se com um –o- aberto, Sohn (filho) com um -o- fechado. Os nomes Weber e Webber são diferentes, com o primeiro a ter um –e- longo e fechado, parecido com o nosso –e- de medo ou de cedo, enquanto Webber tem um –e- aberto e breve, que soa um pouco como o –e- de credo ou de tecto.
Em francês ocorrem aspectos semelhantes, mas vou referir-me apenas a uma faceta relacionada com a escrita que tem muito a ver com a memória das palavras e que os meus concidadãos portugueses entenderão bem. Olhemos para a palavra francesa tête. E para bête. E para même. O que notamos? Possivelmente que todas elas têm um –e- com um acento circunflexo. Poder-se-á perguntar? Para que serve aquele acento, que também, por exemplo, aparece em hôtel e hôpital? Ora, se pensarmos um pouco, até acabaremos talvez por achar graça verificar que aquele acento circunflexo assinala uma antiga queda, oral e gráfica, de uma letra: o s. Assim, existe uma ligação entre tête e a palavra portuguesa testa. Assim como entre bête e besta. E même e mesmo. E, ainda, entre hôtel e hostal e hôpital e hospital. É a memória da língua a manter-se viva. Tal como a própria língua é viva.
Ora, o facto de uma língua ser viva ou não reveste-se de uma enorme importância, como facilmente se compreenderá. Já se referiu acima que o que é vivo evolui. Vejamos um caso interessante desta evolução. Tomemos um adjectivo português que hoje caiu em desuso: ledo. Muitos dos que leram Camões lembrar-se-ão de uma "triste e leda madrugada". O que significará leda? Não deve ser o mesmo que triste, pois isso seria uma repetição. Mas o contrário também não parece, ou pelo menos não soa como tal. Amargo e doce fazem realmente um contraste, mas triste e ledo aparentemente não. E não porquê? Porque o –e- de ledo é fechado. Na realidade, no tempo de Camões leda pronunciava-se léda, com um –e- aberto, tal como acontece com alegre e com belo. Ledo provém do latim laetus, palavra pronunciada com –e- aberto. Letícia significa alegria, como se sabe.
Ora, é aqui que quero chegar. Há sinais convencionais, letras, que são usados no latim e em tantas outras línguas, como por exemplo a portuguesa, para mostrar que a antecedê-los está uma vogal aberta, nomeadamente se se trata das vogais intermédias –e- e –o-, mas também de -a-. Essas letras convencionais são basicamente o –c- e o –p-. Embora não se leiam em muitos casos, ajudam a ler! E isto foi totalmente ignorado pelos bárbaros autores do famigerado acordo ortográfico, que tanta polémica, infelizmente sem resultado, originou. Quando escrevo correcto e coreto, espectador e espetador, eu sei que, tal como distingo a diferença entre dinner e dining-room, que estou a ler palavras com –e- aberto ou fechado. Sei que directo e excepto têm, necessariamente um –e- aberto. Sei que redacção não é redação (com –a- fechado, como em relação).
Terei de concluir que, a partir deste acordo, os alunos ficam com uma tendência para, na leitura, fechar vogais que são abertas na língua oral.
Na língua oral portuguesa? Sim. E na língua oral brasileira? Bem, aí o caso muda de figura. Se a língua é um fenómenos social, é não só possível como natural que, na sua condição de social, a língua portuguesa falada no Brasil tenha evoluído de forma diferente da portuguesa europeia: são sociedades diferentes influenciadas por factores diversos e separadas por um largo e vasto oceano. No português que se fala no Brasil, muitas das vogais que entre nós continuamos a abrir, já se fecharam – e como tal são grafadas! Alguns exemplos apenas, dos muitos que existem: econômico, fenômeno, manicômio, contrôle.
E, já que entrei no domínio do português falado e escrito no Brasil, não será curioso que, pelo menos já na década de 1950 – constato-o através de edições brasileiras que existem nas minhas estantes – no Brasil se escrevesse objeto para objecto, objetivo para objectivo, ceticismo para cepticismo, jato para jacto, ato para acto, efetivo para efectivo, caráter para carácter, exceção para excepção, exceto para excepto, onipotência para omnipotência, otimismo para optimismo, adotar para adoptar, correto para correcto, atual para actual, sutil para subtil, coletivo para colectivo, seletivo para selectivo, afetivo para afectivo, afetuosamente para afectuosamente, exato para exacto e exatamente para exactamente?
A razão por que os rapazes e raparigas portuguesas que estão a aprender as primeiras letras na escola são obrigados a embarcar nesta nau continua a ser um mistério para mim. Não hesito no entanto em considerar que se trata de uma vergonhosa colonização – para Portugal – da língua que no seu território desenvolveu, levada a efeito, com misteriosos compadrios lusos, pelo parceiro mais poderoso que hoje é o Brasil.
Infelizmente, não existe nenhum rigor científico nem clareza no acordo. Existe, sim, uma evidente e lastimável perda de soberania da nossa parte. Ficamos menos europeus – mais distantes na escrita de línguas como a espanhola, a francesa, a inglesa e até a alemã - , obrigamos os nossos filhos e netos a cometerem mais erros de grafia ao escreverem textos nessas línguas, criamos-lhes maiores dificuldades. E, sinceramente, tudo sem qualquer necessidade nem efeitos positivos para nós e para a nação portuguesa.