10/31/2008

Um pouco de Cesariny para o fim-de-semana

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco

10/29/2008

Interculturalidade

A Conferência Gulbenkian que a Fundação voltou a realizar este ano (ontem e hoje) foi bastante interessante. É um verdadeiro privilégio poder ouvir conferencistas de nível muito aceitável vindos de várias partes do mundo. Este ano, a temática da conferência perguntava "Podemos viver sem o outro?" e abordava as possibilidades e os limites da interculturalidade. Dado que o keynote-speaker era um conceituado indiano que presentemente trabalha em Nova Iorque e também na sua cidade-natal (Bombaim), sucedeu que pelo menos três dos oradores vinham da Índia. Esse facto acabaria por proporcionar algo curioso no dia de hoje: depois de o conferencista de abertura se ter referido ontem aos riscos inerentes ao diálogo entre pessoas e nações de culturas diferentes, uma escritora católica indiana abordou hoje alguns pontos de fractura na Índia dos nossos dias. Contemporizador, o keynote-speaker interveio no final da comunicação da sua compatriota para sugerir que talvez não fosse tanto assim. Começou aí um vivo diálogo/debate intracultural que levou a óbvia discordância. Se a questão é assim entre pessoas da mesma cultura, quanto mais difícil não será o diálogo entre pessoas de culturas diferentes!
A este propósito, uma professora de Estudos Islâmicos do U.S. Army War College foi muito contundente no que toca à política americana em países muçulmanos. Esclarecendo que falava em nome pessoal - ela própria é muçulmana -, denunciou o erro de práticas implementadas pelos Estados Unidos no Iraque, Síria e Irão pelo desconhecimento do "outro". Enumerou em detalhe uma série de pontos que lhe permitiram concluir aquilo que, afinal, o senso comum nos diz: Whatever is imposed is opposed.
A existência de limites no diálogo entre culturas diferentes acabou por ser um dos tópicos principais da conferência, pelo menos na parte a que assisti: para que conversas e negociações se possam efectuar produtivamente torna-se necessário que os itens de extrema diferença não sejam lançados para a arena. Caso contrário, isso implicará uma sempre indesejável fricção e ruptura, com atitudes fundamentalistas a surgirem de um lado e do outro.
Uma anotação que faço com todo o prazer relativamente às intervenções da assistência portuguesa é que na sua maioria foram curtas, inteligentemente incisivas e, além disso, em inglês fluente. São perfeitamente visíveis as vantagens dos numerosos intercâmbios e cursos no estrangeiro em que estudantes, professores e outros profissionais participam. Os horizontes estão a alargar-se, uma parte da sociedade portuguesa está claramente mais aberta, e dá-me um gosto especial poder testemunhar este desenvolvimento.

P.S. À noite, foi passada uma série de 18 filmes curtos, documentários com cinco minutos de duração cada. Os filmes foram especialmente encomendados pela Fundação e, francamente, só apetece ter em casa um DVD com aquelas pérolas. Dentro do mesmo tema da conferência, os documentários são muito diversificados e interessantíssimos, com contributos bem realizados por portugueses, japoneses, brasileiros, canadianos, mexicanos, croatas, chineses, iranianos, sérvios, coreanos, argentinos e namíbios. Uma volta ao mundo. Tão longe, tão perto!

10/26/2008

Democraticidade e tirania onomástica

Desculpe-se-me um título destes para um assunto tão simples e corriqueiro. O tema, trivial mas eventualmente útil, nada tem a ver com a sumptuosidade em epígrafe mas tem alguma relação com o seu significado. Basicamente o que pretendo perguntar é: quem tem um filho, deve dar-lhe apenas um nome próprio ou escolher dois?
Durante a minha vida profissional fui obrigado a ler muitos milhares de nomes e a decorar uma boa porção deles. Alguns eram tão neutros que não causavam o mínimo comentário, como foi o caso de Carlos Vieira da Silva ou Maria Teresa Brito Sousa. Outros, porém, obrigavam a fazer uma pausa na leitura e a usar uma língua mais ou menos desentaramelada: Ambrósio, Asdrúbal, Austregésilo, Leovegildo, Adalberta, Aldegundes, Felismina, Felizarda. Pessoalmente, sempre achei que um nome apenas estaria bem, i.e., João, Leonor, Vasco, Nuno, Sílvia. Porém, com o avançar da minha consciência democrática, passei claramente a preferir o conjunto de dois nomes, tanto para rapaz como para rapariga. Explico porquê.
Geralmente a situação passa-se desta forma: os pais conversam entre si o nome a dar ao bebé, questionam alguns membros da família, eventualmente os futuros padrinhos e, já está! O que pode "já estar" é o nome de "Adalberta". Isto significa que a criancinha vai crescer, passar a rapariga, a mulher adulta e sempre, inexoravelmente, a arcar sobre os ombros com este nome que, francamente, denota pouca caridade da parte de quem o escolheu.
Ora, admitindo que a rica madrinha tivesse feito questão de que o seu próprio nome passasse para a sua afilhada, bastaria um ligeiro toque para amenizar a dor que a criança iria um dia certamente experimentar. A tirania ficaria menorizada se, por exemplo, a criança se denominasse “Adalberta Isabel”. Com este simples passe de mágica, que a madrinha católica não deixaria de aprovar pela sua devoção a Santa Isabel, a criança poderia a determinada altura escolher ser “Isabel” em vez de Adalberta. O seu primeiro nome ficaria apenas para o registo escrito, mas socialmente a pessoa em questão cresceria entre os seus amigos e familiares como Isabel. (Para a abastada madrinha continuaria a ser Adalberta Isabel, claro!).
Seguindo esta linha de pensamento, mesmo dois nomes pouco controversos como Vasco e Rafael poderão ser preferíveis a simplesmente Vasco, ou simplesmente Rafael. Imaginemos que o rapaz a certa altura percebe que lhe puseram o nome de Vasco por causa daquele irmão do pai que ele detesta. Se lhe tivessem chamado Vasco Rafael, ele passaria a escolher Rafael e assim cortaria com qualquer ligação mental ao seu pouco-amado tio. Com raparigas, Ana Paula permite o uso de “Ana”, de “Paula” ou de “Ana Paula”. Três hipóteses, de entre as quais a portadora do nome pode um dia escolher a que mais lhe agrada. Com um nome só, não tem escolha! É daí que advém a citada tirania.
O mais curioso é que já tenho notado que, em certos casos, mesmo para os pais um nome simples não chega. Carece de uma bengala, especialmente quando esses pais estão menos contentes com o rapaz ou rapariga em questão. Ainda há dias ouvi uma mãe dizer para a sua pequena filha, em tom de ralhete, "I-nês Ma-ri-a, não mexas aí!" Questionei a mãe: "Ela é Inês Maria!? Não sabia!" A resposta não se fez esperar: “Na realidade, ela é só Inês, mas preciso de mais qualquer coisa quando quero repreendê-la!" Este era um dado que não me ocorria, confesso. Mas contra factos não há argumentos.

10/23/2008

Mais uma questão de ética deplorável


Nos anos 60 do século passado, americanos e ingleses estiveram na primeira linha das nações que exigiam a descolonização. "África para os africanos" foi o seu slogan principal. Por seu lado, "independência" e "libertação" eram as palavras que mais ressoavam no grande areópago das Nações Unidas em Nova Iorque.
Ontem, a britânica Câmara dos Lordes deu o seu parecer relativamente a um caso que ocorreu exactamente entre 1967 e 1973. Não se tratou de nenhum acto de independência, libertação ou descolonização. Pelo contrário. O que se passou foi a expulsão pura e dura dos habitantes nativos das suas casas e terras em ilhas que em certa medida se assemelham às paradisíacas Maldivas e não ficam longe destas. As ilhas Chagos constituem um arquipélago de atóis no meio do Oceano Índico. Nos anos 60 já eram território britânico. Um entendimento entre a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, as duas grandes "nações descolonizadoras", fez com que a maior das ilhas - Diego Garcia - fosse concessionada aos americanos para estabelecimento de uma base militar. Na altura dizia-se que as ilhas eram atóis praticamente desertos. Afinal havia pelo menos duas mil pessoas a viverem lá. Contra indemnizações que muitos acabaram por não receber, os nativos foram enviados para outros locais. Alguns deles foram convencidos a irem passar férias fora, com a oferta de um bilhete. O problema é que esse bilhete não contemplava a viagem de regresso. Em 1973 completou-se a total desafectação das pessoas do arquipélago. Diego Garcia, a ilha mais a sul e hoje uma das maiores bases aéreas dos americanos em todo o mundo, pronta a actuar em conflitos na Ásia ou em África, foi entretanto convenientemente apetrechada. Nela convivem cerca de dois mil militares, ao lado de bombardeiros de longo raio de acção e aviões de vigilância e controlo. Constitui, aliás, pedra basilar para ataques aéreos ao Afeganistão e ao Iraque.
Os 500 antigos habitantes que ainda estão vivos, juntamente com quatro mil descendentes, pretendem voltar às suas terras. Há oito anos conseguiram que o Supremo decidisse que os expropriados podiam voltar a todos as ilhas, com excepção de Diego Garcia. O veredicto final pertenceria, no entanto, à Câmara dos Lordes. Ora, os mesmos países que apoiaram os judeus no seu regresso à terra prometida de Israel recusam categoricamente o regresso destas pessoas. Os mesmos países que repetidamente trompetearam através dos seus media a urgência da independência de tantos povos acabaram por fazer pior do que o oposto daquilo que proclamavam. A Câmara dos Lordes deu ontem razão ao governo britânico: os habitantes de Chagos estão proibidos de voltar ao seu arquipélago. Na votação final, o júri assim o decidiu, por três votos contra dois.

10/21/2008

Nacionalização de fundos privados de pensões

A notícia chega como uma bomba: na Argentina, a Presidente da República já assinou um projecto de lei que irá nacionalizar os dez fundos de pensões que existem no país. O projecto ainda precisará da aprovação do Congresso mas, dado que o partido governamental possui a maioria, a nacionalização concretizar-se-á. Tomada com a finalidade de proteger os pensionistas da turbulência financeira mundial, a medida não é impopular junto dos muitos argentinos que estão descontentes com as comissões que são impostas sobre as pensões e com a não-existência de uma pensão mínima garantida. O director da Segurança Social argentina declarou que a experiência dos fundos de pensões privados tinha fracassado e estava na altura de lhe pôr termo. Será interessante ver a reacção da imprensa portuguesa, dominada por grupos económicos interessados nesta área, à notícia vinda da Argentina.

10/19/2008

Fim-de-tarde na Alameda

Morar junto à Alameda Afonso Henriques tem imensas vantagens. Uma delas é a de poder numa tarde de domingo como a de hoje sair de casa e dar logo uma rápida espreitadela a ver como estão as coisas por lá. E aí alegra-se a alma. Sol lindo, céu com nuvens de um lado e absolutamente limpo do outro. A relva, que já cresceu bem depois das pequenas chuvas que têm caído - ontem foi o dilúvio, mas digamos que foi a excepção - brilha ao sol e fica bonita como pano de mesa colocado para vários grupos de rapazes e homens que, na sua maioria, jogam futebol. Num flash de memória voo até ao tempo da minha juventude. Não seria decerto permitido pisar a relva. Muito menos jogar à bola sobre ela. Os jardins e parques nacionais eram para ser mantidos totalmente impecáveis, mas também sem grande uso pelas pessoas. Estas sentar-se-iam nos bancos ou espalhar-se-iam por ali – mas não em cima da relva! Esta é a primeira grande diferença que noto. Mas existem tantas outras! Os fatos cinzentos dos homens, com a clássica gravatinha, desapareceram por completo neste domingo ensolarado. Hoje, o O’Neill já não escreveria "Portugal, país engravatado todo o ano e a assoar-se à gravata por engano". Hoje há cor: as bolas com que se joga são de vermelho vivo, de amarelo garrido, brancas-e-pretas, verdes. As raparigas jogam no meio dos rapazes, e têm mais habilidade que alguns deles. Há camaradagem a sério. E uma sociedade profundamente heterogénea no que respeita a nacionalidades. Aqui estão indianos a jogarem o seu jogo favorito – o cricket -, estão brasileiros com as suas T-shirts canarinhas, africanos de Angola, de Cabo Verde e de Lisboa, ucranianos, romenos e russos. A tarde continua linda, já com algumas sombras a cair. Junto aos muros que bordejam a Alameda as buganvíleas brilham ao sol. As habituais mesas debaixo das árvores estão repletas de jogadores de sueca, reformados que aos domingos não sabem mesmo o que hão-de fazer senão isto. Quatro estão sentados, um em cada lado da mesa, os outros acotovelam-se para ver as jogadas. Mas há também quem, melancolicamente, se arrime a um banco, meditando e sentindo a vida a escorrer-lhe pelo corpo abaixo minuto a minuto. Os mais pequenos brincam dentro da área do pequeno parque dos baloiços e dos escorregas, com as mães do lado de fora a não pararem de lhes gritar indicações desnecessárias. A algazarra é muita. Mas os bancos também convidam aquele casal além para namorar, os mais velhotes a darem dois dedos de conversa, e os turistas a observarem o panorama ao mesmo tempo que tiram umas fotos. Ali, quatro rapazes mais velhos, transpirados, fazem uma pausa no jogo para tragarem uma sandocha e fazê-la acompanhar por uma bejeca geladinha. Chegam dois cães a correr. Um miúdo foge espavorido julgando que é ele o alvo. Mas a cãzoada está apenas feliz na sua liberdade. Passa uma mulher imensa, brazuca pelo sotaque, a falar ao telemóvel. Aqui há miúdos pequenos, de uns sete ou oito anos, a fazerem o seu jogo. Quase a sério. O pai de um deles trouxe de casa duas balizas de hóquei, equipadas com redes e tudo. O jogo é de futebol. Também com raparigas à mistura. A Fonte Monumental, com as suas belas tágides e o lindo cavalo ao centro não pára de jorrar água. Um velhote sentado no murete que circunda a fonte ouve o seu telemóvel tocar, atende, mas protesta que não consegue ouvir nada. Vai ter que escolher entre o ruído da fonte e a chamada telefónica. Eis que chega agora o arco-íris! Não pode começar a chover, dizem. O céu não tem a mesma opinião. Não é chuva a sério, mas os pingos são bem grossos. O arco-íris está lindo, faz a volta completa mesmo por cima da fonte. Do outro lado o sol brilha ainda em pleno. As pessoas hesitam. Passado um pouco, começa a debandada geral. Este Outubro é um pouco traiçoeiro. Os bebés não podem molhar-se. Pais chamam os filhos, acaba a brincadeira. "De qualquer forma a relva vai ficar molhada e isso não é bom." Ala, que se faz tarde! Os putos que têm andado sempre ali às voltas nas suas bicicletas pelo lado do cimento dão umas pedaladas mais fortes. Está também a anoitecer. Acaba a algazarra por hoje. No próximo fim-de-semana há mais.

10/18/2008

Os petrodólares

Ao longo dos anos, têm sido muitos os artigos que li sobre o poderio dos Estados Unidos e a forma como a América conseguiu, após a desintegração da União Soviética, constituir um mundo unipolar, em que se arvora como país dominante, não aceitando regras mais ou menos universais como as do Tribunal Internacional de Haia e do Protocolo de Quioto, tentando impor a sua democracia a países que possuem culturas diferentes, fazendo guerra a nações ricas em petróleo, marimbando-se para o mundo relativamente aos tratamentos dados a prisioneiros em Guantanamo, etc.
Como todos sabemos, essa unipolaridade presentemente já não existe e o recente escândalo financeiro que se iniciou nos Estados Unidos e contaminou todo o mundo veio levantar novas questões ou fazer ressurgir algumas antigas. A questão dos petrodólares que dá o título a este post está longe de ser nova. Mas foi algo que evoluiu com os anos. Chegou-me recentemente um PowerPoint assinado por um desconhecido para mim - William R. Clark -, que apresenta uma tese que me parece digna de consideração, onde a questão dos petrodólares é reanalisada a uma nova luz. O que ele diz é mais ou menos o seguinte: Aquilo que as pessoas crêem, que a guerra no Iraque e as ameaças ao Irão têm a ver com a existência de armas nucleares, com terrorismo ou mesmo com petróleo, não possui grande razão de ser. Do que verdadeiramente se trata é da manutenção do maior conto do vigário dos últimos anos: o esquema americano dos petrodólares.
Sucedeu que, em 1971, os EUA imprimiram e gastaram mais notas de dólar do que a cobertura-ouro aconselharia. Alguns anos depois, quando os franceses exigiram o resgate em ouro das suas reservas de dólares-papel, os EUA viram-se obrigados a recusar o pedido: não estavam em condições de o satisfazer. A América decidiu entretanto fazer um pacto com os sauditas, que dominavam a Organização dos Países Produtores de Petróleo (OPEP): todas as vendas de petróleo da OPEP seriam única e exclusivamente efectuadas em dólares. A partir dessa altura, todo o país que quisesse comprar petróleo teria primeiro que se munir de dólares dos EUA, o que significaria que aos americanos bastaria imprimir mais dólares em troca de bens e serviços. Era um passe de mágica.
Porém, o aparecimento do euro veio colocar uma alternativa real ao dólar. Tratava-se de uma moeda forte, sustentada por economias de 15 países, entre eles a Alemanha, a França, a Áustria, a Holanda, a Bélgica, o Luxemburgo, a Itália e a Finlândia. Foi aí que, descontente com os americanos por razões que facilmente se entendem, Saddam Hussein começou a vender petróleo iraquiano directamente em euros. Para os americanos só restou uma solução: eliminar Saddam. Os EUA aproveitaram o pretexto da destruição das torres do World Trade Center em Nova Iorque para meter o Iraque na ordem. Sem qualquer razão objectiva, como sabemos. Depois, uma das primeiras coisas que asseguraram foi que o sistema de venda do petróleo voltasse unicamente aos dólares.
Entretanto, o venezuelano Hugo Chávez começou a negociar petróleo também noutras moedas, incluindo o euro, o que terá levado a (infrutíferas) tentativas da CIA para o eliminar. Por seu lado, o Presidente do Irão decidiu avançar com a mesma medida, e foi mais categórico ainda do que Saddam: venderia petróleo em qualquer moeda, excepto em dólares americanos.
Nesta altura, se mais países fizerem o mesmo, acaba-se a maminha americana mais cedo do que os EUA esperavam. Sem esta verdadeira mina, o império americano entrará em declínio.
O que dizer desta tese? Não me parece totalmente inverosímil, de outra forma não a citaria aqui, mas gostava de ouvir algumas opiniões.

10/16/2008

Reflexões-relâmpago

Não sei bem porquê, toda esta crise financeira a nível global me traz à cabeça duas brevíssimas citações. A primeira, de Bertolt Brecht, diz-nos que "Pior do que assaltar um banco é... fundar um banco."
A segunda é de Sir Humphrey, aquela interessante personagem criada pela série britânica Yes, Minister!: "Não se deve acreditar numa notícia antes de ela ser oficialmente desmentida."

10/14/2008

Democracia

Agradou-me ler, no Diário Económico do dia 13, algo que João Paulo Guerra escreve e que é há muito a minha convicção, aliás já aqui expressa neste blog: "O sentido de voto imposto pelas direcções partidárias aos deputados é uma prática que avilta a natureza da democracia representativa. É mesmo de duvidosa legitimidade democrática que um eleito pelo povo tenha depois de submeter-se a outras soberanias que não as da sua consciência e do seu compromisso com quem o elegeu."
Permito-me recordar que o britânico Edmund Burke (séc. XVIII), deputado à Câmara dos Comuns, abordou este tema, tal como no século passado o fez o americano J. F. Kennedy. Nessa linha, um deputado ou um senador, uma vez eleito, passa a representar mais a nação do que os cidadãos que o elegeram. Pertencer ao Parlamento ou ao Senado de um país significa, primeiro que tudo, representar os interesses nacionais e só depois, caso os interesses locais não colidam com os nacionais, defender os locais. É sem dúvida controverso este posicionamento, mas tem a sua lógica.
Dentro desta lógica, também, os deputados e os senadores deveriam despojar-se da sua ideologia partidária, caso em consciência notassem que a orientação de uma determinada proposta do seu partido pudesse ser contrária ao interesse nacional. Isto representaria, teoricamente, a isenção máxima, desde que a honestidade mental dos deputados e dos senadores fosse mantida sem quebras de continuidade.

10/11/2008

Seis personagens à procura de algo em comum

Tomemos seis figuras portuguesas: o Marquês de Pombal, Humberto Delgado, Álvaro Cunhal, Mário Soares, Freitas do Amaral e Cavaco Silva. Que têm elas em comum? Coloquei informalmente a pergunta a quatro ou cinco amigos que me responderam que todos eles eram pessoas conhecidas, mais ou menos ligadas ao poder e à política. Acrescentaram que os três primeiros já tinham morrido e os restantes continuavam vivos. Admito que não era esse o tipo de resposta que eu pretendia, mas não é improvável que eu próprio, se fosse apanhado desprevenido, respondesse da mesmíssima forma.
A resposta que eu gostava que me tivesse sido dada tinha a ver com o facto de cada um deles ter tido contactos, de forma mais ou menos relevante, com outras sociedades e outras culturas. Explicando-me melhor: sinto que o país onde nasci possuiu, e possui ainda até certo ponto, uma corrente conservadora que favorece o monolitismo e olha com reservas determinados contactos com o estrangeiro. A conotação negativa ainda hoje dada aos "estrangeirados" portugueses, pessoas como Luís da Cunha, Ribeiro Sanches, Verney e o Abade Correia da Serra, expressa bem a preferência pelos grandes "patriotas" nacionais, que muitas das vezes não saíram sequer as fronteiras do país.
Foi o Padre António Vieira, conhecido jesuíta e diplomata do século XVII, homem viajado e com múltiplos contactos ao longo da sua vida, que escreveu no seu Sermão de Santo António: "Sem sair (de Portugal) ninguém pode ser grande." Curiosamente, o que tem sido divulgado desta passagem do sermão de Vieira é apenas aquilo que vem a seguir ao pensamento acima citado: "Para nascer, pouca terra; para morrer, toda a terra; para nascer, Portugal; para morrer, o mundo." Assim se gaba a universalidade dos portugueses que criaram um império nas várias partes do planeta, mas simultaneamente se escamoteia o outro princípio básico do pensamento de Vieira: "Sem sair (de Portugal) ninguém pode ser grande." (Certeiramente, José Cutileiro disse num artigo seu a propósito daqueles que se orgulham dos grandes feitos dos nossos antepassados mas que hoje se quedam mais em admiração do que em acção: "Os portugueses de hoje não são descendentes dos que foram à Índia; são descendentes do que cá ficaram.")
De facto, sem sairmos das nossas fronteiras talvez não possamos, como Vieira disse, ser verdadeiramente grandes. Comparar uma parte do país com outra, v.g. o Algarve com o Minho, pouco resulta e é quase como olhar unicamente para o umbigo. E o curioso é que a maioria das pessoas que verdadeiramente se distinguiram na vida portuguesa e alcançaram um nível que vai para além dos limites territoriais da nação são aquelas que, por uma razão ou outra, não se confinaram às fronteiras portuguesas. Condição de preferência: que já possuíssem uma boa base educacional. (Sem esta, tomar contacto com o estrangeiro ajuda, mas muito menos.) Não é verdade que foi em Inglaterra que Eça de Queiroz escreveu a maior parte da sua obra? Não é um facto que a estadia de Almeida Garrett na mesma Inglaterra foi decisiva para a formação do seu pensamento, quer do ponto de vista romântico, quer de consolidação das suas ideias liberais?
Ora, no mesmo saco cabem as seis figuras acima. Demos uma vista de olhos a cada um deles. Talvez encontremos algumas coisas interessantes, a juntar às que já conhecemos.
Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro Marquês de Pombal, ganhou muitas das suas ideias algo revolucionárias para a sociedade portuguesa antes de servir o rei D. José. Foi na Inglaterra protestante, onde viveu vários anos como embaixador, que o Marquês compreendeu aquilo que é um lugar comum dizer-se: a Reforma religiosa do século XVI, pelos novos princípios que criou nos países que a adoptaram, foi o movimento mais importante da civilização ocidental dos últimos séculos. Esses novos princípios tinham conduzido a um maior sentido de liberdade e responsabilização do homem na sociedade (accountability), a um sadio desrespeito pelos dogmas e pelas autoridades antigas, a um independentismo criativo e a uma forte curiosidade pelo saber. Que espanto foi para Sebastião José encontrar um país assim, em que a ciência se desenvolvia, o tempo contava, as finanças privadas funcionavam e havia uma classe claramente ilustrada! Portugal, sentiu ele, precisava de uma revolução de mentalidades. Fez o seu diagnóstico ainda no estrangeiro, de onde aliás foi escrevendo cartas ao seu rei D. João V que estão hoje reunidas sob o título de Escritos Económicos de Londres e que são a mais importante contribuição de estudos económicos que Portugal recebeu nesse século.
Uma vez regressado ao país e com os grandes poderes que adquiriu depois do "divino" terramoto de 1755, ensaiou a revolução. As linhas da Baixa lisboeta testemunham o seu querer. Os relógios de caixa que encomendou para os vários ministérios também (haveriam de desaparecer, encafuados em conventos e mosteiros quando o Marquês caiu em desgraça). Contribuiu para a expulsão dos Jesuítas e reformou a Universidade de Coimbra, ensaiando parcialmente as ideias do estrangeirado Luís António Verney. Criou a Aula do Comércio para que os filhos dos seus compatriotas mercadores ficassem a saber algo mais sobre comércio internacional. E realizou várias outras coisas, desde a criação da Região Demarcada do Douro até à fundação de uma cidade geometricamente planeada ab initio, como Vila Real de Santo António, passando pelo fomento da indústria nacional.
Com toda a naturalidade, num país que já tinha, dois séculos antes, expulso os grandes criadores de fortuna - os judeus, que acabaram por ir aumentar a riqueza das nações protestantes da Inglaterra e da Holanda, as quais os acolheram de braços abertos -, o Marquês revolucionário acabou por ser apeado do seu lugar e exilado para Pombal. As suas ideias seriam reconhecidas mais tarde por intelectuais como Garrett e, já no século XX, pelos republicanos que lhe erigiram a grande estátua que coroa a avenida de Lisboa crismada com o nome mais querido dos liberais: Liberdade.
Com Humberto Delgado, que foi, aos 47 anos, o general mais novo das Forças Armadas portuguesas, passou-se algo interessante também. Homem do Colégio Militar, onde se formara, tomou parte activa na revolução do 28 de Maio de 1926, que iria desembocar no Estado Novo de Oliveira Salazar. Humberto Delgado era um conservador, ultra-apoiante do regime salazarista. De que outra forma se entenderia que tivesse promovido a general ainda tão novo?
Entretanto, no espaço temporal de 5 anos – de 1952 a 1957 – esteve nos Estados Unidos a chefiar a missão militar portuguesa em Washington. Passado esse tempo, o homem que voltou da América era outro, de espírito mais aberto, consciente do que era a democracia e do que ela representava para o progresso das nações. A transformação foi radical. Apercebendo-se disso, a oposição, que sempre acreditou que uma revolução só seria possível em Portugal através da colaboração das Forças Armadas, congregou-se à volta do General (mais tarde, seria o General Spínola, lembram-se?), propondo-o como candidato presidencial em luta contra o Almirante Américo Tomás, proposto pelo regime. Numa famosa entrevista que deu à imprensa, quando lhe perguntaram o que faria com Salazar caso fosse eleito Presidente da República, Delgado respondeu desassombradamente: “Obviamente, demito-o.” A oposição chamou-lhe “General Sem-Medo”. O regime salazarista pretendeu ridicularizá-lo apodando-o de “General Coca-Cola” (bebida então proibida em Portugal e olhada como droga poderosa do capitalismo americano: os EUA já nos perturbavam na ONU por causa dos territórios ultramarinos). Será inútil continuar com a história da fraude eleitoral que todos conhecemos, do exílio forçado de Delgado e da sua morte às mãos da PIDE, convenientemente perto mas ainda fora das fronteiras portuguesas. O que nos interessa aqui é a fulcral estadia na América do General Delgado.
Álvaro Cunhal simboliza, em certa medida, a antítese do capitalismo americano. Defendeu sempre, tenazmente, o comunismo russo. Homem de elevada estatura intelectual, licenciado em Direito pela Universidade de Lisboa, esteve preso várias vezes em Portugal, tendo logrado fugir rocambolescamente da prisão-fortaleza de Peniche, onde a polícia de Salazar o mantinha enclausurado. Aproveitou as suas leituras e a sua longa estadia na União Soviética e em Paris, cidade em que viveu cerca de oito anos na clandestinidade, para depois conduzir como verdadeiro líder, idolatrado, as hostes do seu partido em Portugal. Quando, após o 25 de Abril de 1974, os que o detestavam diziam, jocosamente e para o colocar em ridículo, que sempre que ele ia à casa de banho se limpava duas vezes - a cópia era para enviar para Moscovo -, estavam implicitamente a reconhecer a influência que a União Soviética tinha exercido sobre ele. Se se tivesse confinado ao território adentro das fronteiras lusas, Cunhal não teria sido o mesmo, certamente.
O grande oponente de Álvaro Cunhal, Mário Soares, escolheu parcialmente uma educação semelhante à daquele que foi seu grande rival. Como licenciado em Direito e em Ciências Histórico-Filosóficas, Mário Soares foi e continua a ser um pensador mas também um homem de acção. Feito prisioneiro pela PIDE uma dúzia de vezes, acabou por se exilar no estrangeiro - um pouco à semelhança do que tantos liberais se viram forçados a fazer para fugirem à sanha das conservadoras forças miguelistas no século XIX. Escolheu a França como país de refúgio, tendo colaborado em várias universidades. Com mais talento para a política do que para línguas, ficou famoso pelo seu "ami Miterã" e pelo seu castelhano perroqueño. Impôs-se como líder socialista, cultivando amizades um pouco por todo o lado, como foi o caso de Willy Brandt, o chanceler alemão daquele tempo. Leu muito do que era leitura absolutamente proibida pelo regime em Portugal. Cultivou-se de forma notória, embora sempre com maior propensão para as letras do que para os números. Foi várias vezes Primeiro-Ministro, tendo contribuído para a abertura de Portugal à Europa. Chefiou a República durante dez anos (1986-1996). Aí tornou-se um verdadeiro globetrotter. Ele reconhecia a vantagem de ver as coisas in loco. Ainda hoje continua activo, com uma boa visão geral. Actualizado, mantém-se o paladino da liberdade que sempre foi.
Passando ao nosso quinto personagem, Diogo Freitas do Amaral, também homem de Direito como Álvaro Cunhal e Mário Soares, foi, como este último, candidato a Presidente da República em eleições que haveria de perder por poucos votos. Haverá ainda quem o ligue à fundação de um partido da direita, o CDS. Com razão, aliás. Ele foi um dos seus fundadores. Jurista de renome, o seu pai tinha sido um claro apoiante de Salazar e deputado pelo círculo de Braga.
Freitas do Amaral sempre se mostrou um homem inteligente, seguro, bem-educado. Pelas suas qualidades de homem de saber, moderação e equilíbrio, foi em 1995 nomeado para desempenhar as funções de Presidente da Assembleia-Geral da ONU, em Nova Iorque. É bom aqui recordar o que sucedeu a Humberto Delgado com a sua estadia na América. Com Freitas do Amaral ter-se-á passado algo de semelhante. Freitas tinha, no entanto, uma bagagem intelectual francamente maior do que a do General Delgado. No grande areópago que são as Nações Unidas, teve que contactar líderes de todo o mundo, alargar em muito os seus horizontes, estabelecer novas linhas de pensamento. É neste sentido que não deve causar grande admiração que, regressado a Portugal, ele se tivesse tornado um homem politicamente diferente. Muito mais aberto do que anteriormente e sempre interessado na educação superior, modernizou a Faculdade de Direito em que leccionava. Politicamente, inclinou-se para uma luta por uma sociedade mais justa. Neste sentido, não hesitou em criticar vivamente a Administração Bush pela invasão do Iraque, para grande desespero dos apoiantes do CDS. Não esteve contra os democratas dos Estados Unidos, mas sim contra a política agressiva e violadora do direito internacional de Bush. Na mesma linha, aceitou o convite que o governo socialista de Sócrates lhe endereçou e sobraçou a pasta de Ministro dos Negócios Estrangeiros, cargo que iria abandonar por motivos de saúde.
Mais uma vez se nota neste caso uma forte influência do estrangeiro. O professor Miller Guerra disse um dia que ninguém deve esperar que as faculdades se reformem a si próprias. De facto, as revoluções têm que vir de fora. De dentro, em sociedade encasulada, só teremos mais do mesmo. Daí que haja necessidade de uma abertura cada vez maior, de um número de coutadas progressivamente mais reduzido. Quanto mais aberta e competitiva a sociedade for, tanto melhor. Com a rule of law a imperar.
Estranhamente, poderá julgar-se, vem agora a sexta personagem: o actual Presidente da República. Perguntar-se-á: onde está a comparação, por exemplo, com o homem revolucionário e lutador que foi Mário Soares? Não há comparação, de facto, nem é isso que se pretende. Nem estão nele representadas muitas das características dos outros personagens. Os tempos são outros. Cavaco Silva será, admito, aquele que destes seis menos mostra a influência que o estrangeiro terá tido sobre si. Mesmo assim, escolhi-o para a galeria para mostrar - eu, que nem o apoiei para a Presidência - que fez muito bem em ter-se doutorado no estrangeiro. Não escolheu doutorar-se entre os seus amigos e antigos colegas. Fugiu à endogamia tão típica da sociedade portuguesa. O tempo que passou em Inglaterra foi-lhe benéfico, embora ele não seja, por feitio, uma pessoa aberta e comunicativa. Creio que o facto de ter vivido em York e de ter necessariamente contactado a sociedade inglesa, muito diferente da algarvia de Boliqueime, lhe emprestou algumas qualidades que agora sobressaem no seu mandato como Presidente. Quero, principalmente, realçar um ponto que considero bastante significativo: o seu posicionamento contra o facto de muitas empresas portuguesas tenderem a encostar-se ao Estado. Pugna por um maior empreendedorismo e por uma sociedade civil com mais espírito de independência e iniciativa. A materializar este seu desejo, sempre que vai em visita oficial ao estrangeiro leva na sua comitiva líderes de empresas como a Y-Dreams (António Câmara), para dar uma imagem da modernidade do país e da inovação empresarial. Pessoalmente, Cavaco Silva tem-me surpreendido positivamente na sua acção. Factos como o que atrás aponto são algo que associo mais à sociedade aberta portuguesa, que defendo, do que ao conservadorismo de determinados grupos que, infelizmente, ainda existem em grande número.
Muito mais haveria a dizer sobre este tópico, mas alongar-me seria pouco consentâneo com o espaço que um blog concede e com a paciência dos eventuais leitores. Deixemos a continuação para uma outra oportunidade. Espero, entretanto, ter ajudado as seis personagens acima, "políticos conhecidos", a encontrarem algo extra de comum entre si. Quot erat demonstrandum.

10/09/2008

Três apontamentos de honestidade

Num curto espaço de tempo, tive a oportunidade de testemunhar três pequenos actos de honestidade, que me deixaram mais satisfeito com o mundo. Ainda por cima, provieram de três comerciantes. Nesta era de sacralização do lucro em que "quem não maximiza os ganhos é parvo", soube-me bem ver que não se pode nem deve extrapolar para a generalidade dos casos uma corrente que, de facto, parece ser dominante. Os episódios abaixo descritos são de reduzida importância em termos materiais, mas denotam uma atitude mental e ética que me dá gosto registar.
Na história número 1, fui a uma florista daqui do bairro comprar uma orquídea. É linda e não foi cara. Interessado em manter a flor pelo período mais longo possível e, mais tarde, fazer nascer uma nova, perguntei à dona da loja se tinha algum produto adequado para o efeito. Respondeu-me afirmativamente. E acrescentou, da sua experiência pessoal, um detalhe que apreciei: “Ponha sempre um pouco menos do líquido do que eles recomendam! A quantidade indicada é excessiva para a água que eles dizem. E não regue mais do que de três em três semanas. Esta flor não é como as outras.” Ali estava uma comerciante a ensinar-me não só de forma grátis aquilo que os anos lhe devem ter custado a aprender como ainda a aconselhar-me a usar menos produto, o que naturalmente significava gastar menos frascos e, para ela, ter menor lucro. A ética foi para ela mais importante.
Na história número 2, a minha mulher, que tinha há dias comprado um carro, foi comigo a uma oficina que lhe indiquei. Íamos mandar pôr um alarme no carro, o que parecia altamente aconselhável numa cidade em que os roubos não são raros. "Francamente", disse o rapaz novo que nos atendeu, "tratando-se deste tipo de Volkswagen acho que a senhora não precisa de gastar dinheiro no alarme. É um certo desperdício. O carro já vem equipado com sistema anti-roubo." Nós não sabíamos. A honestidade do atendedor poupou-nos umas centenas de euros.
No caso número 3, estávamos três adultos e uma criança de cinco anos sentados à mesa de um restaurante à espera que alguém nos trouxesse o menu. Já tínhamos antecipadamente escolhido o prato, no entanto: posta à mirandesa. Íamos recomendados por alguém que tinha comido esse prato na véspera e adorado. Foi exactamente isso, aliás, o que dissemos quando encomendámos duas doses. O dono do restaurante, que estava a atender-nos, mirou-nos aos quatro e sugeriu, tão honestamente quanto se pode ser, que uma dose e meia seria perfeitamente suficiente. Nós não tínhamos sequer colocado a questão. E a dose e meia, que estava deliciosa, chegou de facto para todos.
Estes são três breves apontamentos que espero contribuam um pouquinho para a elevação do nosso moral e nos façam ver que é obviamente errado acreditar na generalização do vozeario que clama a "podridão do mundo e total ausência de valores que campeia por aí". Há também muita coisa boa! Convém acarinhar estes comportamentos e, já agora, segui-los!

10/06/2008

A liberdade segundo Nolasco

O Nolasco, de quem uma vez vos narrei aqui um episódio que considerei algo rocambolesco, é, presentemente, o maior chato que conheço. O Asdrúbal era certamente ainda mais chato, mas, infelizmente para ele, já não é pessoa que eu possa voltar a encontrar aqui na rua. Mas quanto ao Nolasco, o melhor é fugir! A rua não é larga e, penso eu nas vezes que o vejo à distância, porque não há-de haver um terceiro passeio de um lado que não dê nas vistas? Como normalmente não uso telemóvel, a situação é embaraçosa. Nunca posso ter aquela chamadinha salvadora. Assim, só mesmo se um familiar meu aparecer na rua é que logro alcançar a salvação; mesmo assim, provisória ou apenas abreviante. Lembro-me da ocasião em que a minha mulher me encontrou, postado em frente dele com o ar mais seráfico que conseguia, e se esforçou por estender-me uma mãozinha. Ficou ela presa também, ainda que de facto não por muito tempo.
Desta vez o Nolasco deteve-me na rua, com o seu tradicional sorriso radiante de predador que encontrou a presa e, não me lembro já bem porquê, veio-me com uma história nova: tinha pertencido à PIDE. "Suponho que já lhe disse isto." Não, nunca me tinha referido o caso. E também não usou o acrónimo habitual da instituição, antes o nome completo: "Polícia Internacional de Defesa do Estado". Tacteando o caminho a princípio, aventurou-se depois mais na sua divagação, contou a vez em que, postado perante um tribunal no pós-25 de Abril, respondeu com firmeza e garantiu que nunca tinha feito mal a ninguém, ele só tinha protegido a Nação (insistiu que era com letra maiúscula) como bom português, era um administrativo, tinha lá estado "só três anos" e depois pedira a exoneração do cargo. A qual saiu oficialmente no Diário da República. "Pode imaginar o significado de sair da Polícia naquela altura!" Calculo, disse eu. "Sempre fui um amante da liberdade," prosseguiu o Nolasco. E, perante os meus insistentes protestos de que se estava a fazer tarde e eu tinha coisas para tratar - o que até era menos verdade naquela manhã de sábado - disse-me que só me queria mostrar como ele definia a liberdade. Contou-me então a história de uma vez que, junto à sua terra, nos solitários campos da Lousã, tinha ficado surpreendido com o piu-piu de um passarinho. Não parava o piu-piu da avezinha. Deparou com uma cobra que estava em plena acção de encantamento da ave. Angustiado, porque o passarito ia acabar nas goelas da bicha, o Nolasco agarrou então numa pedra "não para matar a cobra mas só para a espantar". O encantamento desapareceu, o passarito deixou finalmente o seu aflitivo piu-piu e voou para bem longe. Em liberdade total. Aí estava definida a liberdade para o Nolasco, contente com a sua acção para toda a vida.
Então, e a liberdade das pessoas? perguntei-lhe eu. "Depois de trabalhar algum tempo na António Maria Cardoso, sem gostar muito porque alguns dos meus colegas viam-me com maus olhos devido ao meu superior comportamento moral, pedi a minha transferência para Coimbra, já mais perto da Lousã." Então, e a liberdade das pessoas? insisti. Não o incomodava tratar de processos que punham indivíduos dentro por um mero delito de opinião? "Os mais ricos até gostavam muito de mim. Sabe porquê? Eu ajudava-os. Não conseguia vê-los prejudicados." Compreendi que muito provavelmente tinha havido ali mais uma fatia de rendimento a juntar-se à outra economia de estar mais próximo da terra natal. "Sempre fui um amante da liberdade, mas a Nação estava à frente." Mesmo se a nação fosse definida de uma certa maneira e não abrangesse todos os cidadãos? "A Nação é sempre a Nação", atirou-me ele. E, de rajada, após uma brevíssima busca das palavras certas entretanto já um pouco esquecidas, jogou-me à cara a habitual definição de nação tal como era feita pelo regime salazarista.
"Tenho muito orgulho em ter pertencido à Polícia Internacional, sabe? E porque não havia de ter? Agora não continua a haver a Interpol?" Claro que sim, respondi-lhe. Retirei com cuidado a mão com que ele estava a agarrar-me o braço na sua veemente ânsia de contar a sua história. Numa próxima vez a gente conversa mais um bocado, disse-lhe. O Nolasco sorriu. Tenho a certeza de que não me vai perdoar a próxima!

10/04/2008

Memória(s)

Alguns dos meus familiares e amigos já me têm dito que tenho uma memória de elefante. Confesso que não sei se têm razão. Pressinto que o que sucede é que quando evoco um episódio que eventualmente vivi em conjunto com quem me está a ouvir, essa pessoa não se lembra do que aconteceu ou tem apenas uma ideia muito vaga. Em face do facto de não se recordar, lança-me à cara a história da memória de elefante. Com isso passa a considerar o seu esquecimento do dito episódio como um facto banal - que o é - e elefantiza-me.
A verdade parece-me ser outra. Há coisas que outros nos contam e de que não nos lembramos minimamente ou temos apenas uma ideia nebulosa. Na realidade, nós recordamo-nos das coisas que provocaram em nós, na ocasião em que ocorreram, um afluxo especial de adrenalina. Por uma razão ou por outra. Apesar de serem iguais uns aos outros em muitos aspectos, os seres humanos diferem também notoriamente. Logo, algo que impressionou uma pessoa e se tornou inesquecível pode perfeitamente ter sido totalmente ignorado por outra que estivesse presente. Porquê? Simplesmente porque não a impressionou.
O que me leva a falar do assunto, porém, tem a ver com o déjà vu. Se é a novidade que nos provoca a grande variedade da vida, não dispormos dessa variedade leva-nos a bocejar perante o rotineiro e consabido. É por este motivo também, como é evidente, que rememoramos uma viagem a um país ou região que anteriormente não conhecíamos.
A memória divide-se, suponho eu, em dois grandes tipos: a da realidade e a da ficção. Consoante as nossas características pessoais, tendemos a fixar mais ou episódios reais ou os de ficção. Devo admitir que relembro razoavelmente a realidade mas tenho a tendência para esquecer a ficção – seja ela em livros, em teatro ou cinema. Embora tenha lido Os Maias três vezes – e nunca por obrigação escolar – sinto que não seria neste momento verdadeiramente capaz de reproduzir as características ou mesmo os nomes de muitas das personagens. Ressalvaria apenas os dois protagonistas. Mantenho, porém, uma óptima "impressão" do romance, assim como de vários outros.
Ora, este esquecimento da ficção é muito conveniente, como ainda hoje tive oportunidade de experimentar. A Cinemateca apresentava um filme que vi há cerca de 40 anos. Tinha desde então ficado com a ideia de que se tratava de um filme bastante interessante. O titulo? "Testemunha de Acusação". Resolvi rever o filme, aguardando que determinados passos me fizessem recordar o enredo. Qual quê! O memória-de-elefante estava absolutamente em branco. Longe de me assustar ou surpreender, regozijei-me. Estava a ver o filme como se fosse a primeira vez! Qual déjà vu! Os rostos do Tyrone Power, da Marlene Dietrich e do Charles Laughton eram-me familiares, mas também os vira em montes de outros filmes. Foi um prazer enorme chegar ao fim e poder usufruir a sensação de novidade total.
Fiquei assim a saber, com satisfação, que possuo esplêndidas oportunidades de rever bons filmes. Em vez de lastimar a não-retenção das imagens, antevejo a possibilidade de experimentar sensações que, muito possivelmente, há alguns anos senti de forma semelhante, embora com outra idade. E quando na nossa memória os itens estão classificados do lado dos bons, vale sempre a pena revê-los! Apetece-me comentar, positivamente, que neste caso a natureza está do nosso lado!

10/01/2008

A bushiana figura

Na década de 80, um amigo americano a quem eu andava a mostrar uns locais de Lisboa comentou que a disposição das nossas avenidas lhe fazia lembrar um pouco o estilo de longas mesas de casamento com um bolo em cada ponta. Assim, a Avenida da Liberdade com o "bolo" do monumento dos Restauradores de um lado e o monumento do Marquês do outro; a Fontes Pereira de Melo, com a estátua do dito marquês numa das extremidades, corria depois até se encontrar com o outro "bolo" - a estátua de Saldanha. E assim por diante. Achei interessante o comentário, que nunca me tinha ocorrido.
Mas ele veio-me à cabeça nesta altura em que estão a chegar as eleições americanas e, com elas, o fim do segundo e último mandato do Presidente Bush. É curioso que o primeiro mandato tenha praticamente começado com as torres do World Trade Center, ícones da alta finança e do comércio mundial, a serem destruídas - infelizmente com a morte de mais de três milhares de pessoas inocentes. Agora, no final da longa avenida do tempo, são, metaforicamente, as torres da banca de investimentos e das companhias de seguros dos Estados Unidos a ruírem com o maior choque financeiro que a América conhece desde a Grande Depressão.
Se pensarmos nos muitos milhares de iraquianos e nalguns milhares de militares americanos que, neste meio tempo, já perderam a vida na guerra iniciada por Bush no território da antiga Mesopotâmia, compreendemos por que razão os mandatos bushianos não vão deixar saudades a muita gente.