5/30/2006

Provérbios e efeito-cascata

Em qualquer língua do mundo, os provérbios resumem em meia-dúzia de palavras a sabedoria de gerações. Todos nós conhecemos uma quantidade razoável dessa sabedoria encapsulada. De vez em quando, porém, notamos que alguns dos provérbios que ouvíamos frequentemente quando éramos crianças como que se sumiram do circuito comunicacional. Os dicionários e outras obras de referência continuam a mencioná-los como se nada se passasse, mas de facto só uma parte mais idosa da comunidade linguística faz uso deles.
A publicidade, com os seus slogans inteligentes, soube captar o jeito dos provérbios e, capciosamente, introduz-nos a sua nova rima nas nossas mentes. Há uns tantos slogans que já soam como provérbios e que são úteis. Lembremo-nos do "Há mar e mar, há ir e voltar", do Alexandre O'Neill. Mas a maioria não é tão pacificamente inocente. Na realidade, a dado momento são mais esses slogans do que propriamente a sabedoria acumulada através dos tempos que se transformam nos nossos guias mentais.
Confrontemos, como mero exemplo, o provérbio "Quem não tem dinheiro, não tem vícios." Está desfasadíssimo no tempo. Só um abencerragem ousa pronunciar uma coisa dessas. Em vez disso, "Quem não tem dinheiro, vai ao Totta" sai muito mais igual aos nossos dias. Seja ao Totta, seja a outro banco qualquer, o certo é que a influência sobre as mentes é forte. Se até já se pode ir buscar antecipadamente ao banco (com juros, evidentemente) o reembolso que nos é devido pelo IRS!
O 25 de Abril de há 32 anos trouxe para uma parte muito substancial da sociedade portuguesa uma noção fortíssima de re-volução. A liberdade implicava uma redistribuição dos bens terrenos, uma maior justiça social. Os pobres que o Cristianismo sempre considerou bem-aventurados e que deles seria o reino dos céus queriam ver a sua felicidade já na Terra. Os políticos substituíram o arreigado medo das populações pela liberdade de expressão. E puseram-se a prometer, como todo o político sempre promete, mas agora com maior descaramento.
Perdida para Portugal a mina africana com a descolonização, alguns anos passados começaram a vir cheques muito chorudos da CEE, passados ao Estado. Como vaca receptora, o Estado passou a ser a fonte do leite para quem tinha mais arte para mungir. Os pobres não foram totalmente esquecidos, tem de ser dito. O Serviço Nacional de Saúde e uma Segurança Social alargada a muitos mais beneficiários melhoraram substancialmente o país neste domínio. Só que, por serem muitos os pobres, os aumentos eram propagandeados em percentagens aparentemente interessantes, mas que, ao incidirem sobre rendimentos baixos, davam poucos resultados práticos, ainda por cima engolidos pela voragem da inflação. As mesmas percentagens aplicadas sobre salários elevados cavaram mais o abismo entre privilegiados e desprotegidos.
Os partidos políticos multiplicaram-se, primeiro, e reduziram-se depois. Os respectivos membros souberam criar no Parlamento leis que muito os beneficiaram ("Quem parte, reparte e não fica com a melhor parte, ou é tolo ou não tem arte.") A certa altura começou o descalabro através das promessas. Parecia que o dinheiro que vinha de fora chegaria para tudo o que se pedisse. "Quem não tem dinheiro, vai à Banca", pensaram os municípios. Qualquer semelhança entre a lei de meios e a execução orçamental começou a ser mais do que pura coincidência: passou a ser azar, para todos nós. Os bruxeleantes fundos vinham de cima, em cascata, e quem tivesse os braços mais altos mais depressa lá chegava. Mas o melhor mesmo era ter testas-de-ferro no governo. "O nosso homem na governolândia". Todos estes anos, a ribaldaria tem sido mais que muita. Das 19 ou 20 cidades que anteriormente tínhamos, passámos a ter mais de 150. Com custos acrescidos, evidentemente, e com indivíduos de carne-e-osso a arrecadarem esses custos estatais como receitas pessoais. A cascata funcionou sempre. Contas eram de merceeiro. Mesmo que economistas avisados clamassem contra desvios incomportáveis, logo que entravam para o governo esses mesmos economistas sucumbiam à força do aparelho político.
Cada vez concordo mais que é melhor para a democracia e para a riqueza de um país não dispor de dinheiro simplex, seja ele provindo de colónias, seja de fontes fáceis. Sem essas facilidades, o homem tem de puxar mais pela cabeça, valoriza-se mais, empenha-se com maior rigor nas tarefas que cabem à nação. Com facilidades, instalam-se mais facilmente a corrupção, a desregra, a excepção e os privilégios absurdos.

5/29/2006

De novo a avaliação no ensino

Há exactamente vinte dias, escrevi aqui um texto dividido em duas partes e intitulado "É a avaliação, estúpido!". Nesse post defendia a necessidade de avaliações no ensino, o que incluiria exames nacionais no final dos ciclos de ensino e implicava, inevitavelmente, uma apreciação do trabalho dos agentes de ensino. Referi-me ao posicionamento previsível dos sindicatos e defendi a vantagem de provas de admissão à profissão docente.
Coincidentemente, o Ministério da Educação acaba de apresentar, para discussão, propostas de revisão do estatuto da carreira docente, onde são tratados alguns destes assuntos. Quero crer que as propostas ministeriais subentendem a criação de exames de fim de ciclo, sem os quais as alterações agora sugeridas não teriam a mesma consistência e perderiam de vista que no sistema educativo o principal interessado é a sociedade, pelo que é a formação dos alunos que deve estar no cerne de todas as medidas.
Como sucede noutros casos, creio que os meios de comunicação social poderão deturpar o peso específico das medidas propostas. Já começaram a pegar no papel a desempenhar pelos pais na avaliação dos professores. De facto, é evidente e por demais ridículo imaginar que seriam os pais a terem um papel decisivo na avaliação dos docentes. Cada um de nós, adultos, pensará retrospectivamente que os nossos pais nunca teriam sido capazes de avaliar todos os professores que tivemos anualmente durante os diversos ciclos. Se eles nem os respectivos nomes conheciam! Portanto, esta é uma questão para esquecer. Tal como foi apresentada, está errada e presta-se ao ridículo, o que é o pior que pode acontecer a uma proposta que inclui várias outras facetas interessantes.
Infelizmente, não encontro qualquer referência a sondagens feitas anualmente aos alunos. Registei-as no texto acima mencionado, especificando algo sobre a sua natureza. Sem essa informação, vinda de quem melhor conhece a realidade, o processo passa a ser muito menos válido do que poderia.
O Ministério faz bem em pretender impor mais rigor à escola. Necessariamente com maior disciplina. Terá, porém, que zelar simultaneamente pela motivação dos agentes de ensino e pela elevação do seu status. O passar de muitos anos a obter resultados "para Bruxelas ver" conduziu inevitavelmente à diminuição da respeitabilidade que é devida ao corpo docente. Um acto de contrição por parte da tutela faria muito bem ao ego dos professores.

5/26/2006

Matriz de Acontecimentos (25 Maio 2006)

A exposição do MNA Antiga (ver a matriz de exposições) é imperdível.

Decorre até dia 27 a Festa no Chiado (consultar http://www.cnp.pt/).

No Teatro São Luíz conclusão da integral para piano de M. Ravel e C. Debussy por Artur Pizarro (dias 26, 27 e 28, às 21h00).

Quinta-feira, dia 25:

às 18h, no Parque Eduardo VII, abertura da Feira do Livro de Lisboa, fica até 13 de Junho;

às 18h30, no Salão Nobre de São Carlos, ciclo ?Histórias da Dança?, por José Sasportes ? 1913- Estreia em Paris de Le Sacre du Printemps de Nijinski?;

às 21h30, na Casa Fernando Pessoa (R. Coelho da Rocha, 16), ?Livros em Desassossego? debate com Vasco Graça Moura, Clara Ferreira Alves e Maria Filomena Mónica.

Sexta-feira, dia 26:

Miles Davis, o Picasso do Jazz, se estivesse por cá, faria 80 anos. A efeméride é assinalada pela Rádio Marginal (98,1 MHz) e, a partir das19h50, pela Mezzo;

às 21h30, na Sociedade de Geografia, concerto pela Orquestra Metropolitana de Lisboa (Festival Freitas Branco);

às 22h30, na 2:, primeira edição de ?Câmara Clara? «?talk show de cultura?» de Paula Moura Pinheiro;

às 23h30, no Quebra Club, Parque Verde do Mondego, Coimbra, Dixie Gang (!!! Se estivesse por perto não perdia?).

Sábado, dia 27:

às 15h00, no CAMJAP (?Centro Arte Moderna da Gulbenkian?) visita temática do ciclo ?Arte e Arquitectura? ?Pedro Cabrita Reis: A Relação entre Escultura e Arquitectura?, por Carlos Carrilho;

Domingo, dia 28:

às 12h00, no CAMJAP (?Centro Arte Moderna da Gulbenkian?) visita temática do ciclo ?Artistas da Colecção? ?Fernando Lemos e a Subjectividade Fotográfica?, por Lúcia Marques;

às 15h00, no Edifício Sede da Gulbenkian, visita à exposição ?Sede e Museu Gulbenkian: A Arquitectura dos anos 60? orientada por Aurora Carapinha incidindo em ?Jardins e Terraços Suspensos?

às 18h30, no Teatro Amélia Rey Colaço, Algés, ?Concerto para Crianças? por solistas da Orquestra de Câmara de Cascais e Oeiras.

Segunda-feira, dia 29:

às 19h00, no Instituto Franco-Português, ?Conto de Inverno? de Eric Rohmer.

Terça-feira, dia 30:

às 23h15, na 2:, Ana Sousa Dias conversa com Mário Zambujal.

Quarta-feira, dia 31:

às 18h00, no Museu Nacional de Arte Antiga, visita guiada a uma das 10 obras de referência do MNA: ?Biombos de Namban?;

às 21h30, na Biblioteca Municipal de Oeiras, ?Café com Letras? com José Saramago;

às 21h00, no Salão Nobre do Conservatório Nacional, recital com Miguel Henriques e José Paulo Sodré (piano) integrado na campanha ?Em Busca de um Salão Perdido?;

Quinta-feira, dia 1:

às 14h30, na Faculdade de Medicina Dentária de Lisboa, ópera ?O Rei Pastor?, de Mozart, pela Académica Metropolitana e Alunos da Academia Nacional Superior de Orquestra.

A seguir:

de 8 a 11 de Junho, III Festival Internacional de Dixieland, Cantanhede.

de 7 a 16 de Julho, XXV edição o Estoril Jazz.

Download do ficheiro das Sugestôes (25 Maio 2006)

Bom fim de semana

JMiguel

Montenegro


Memórias da minha adolescência trazem-me o eco do nome de Montenegro com ressonâncias exóticas. Local onde nunca fui, lembro-me de ter lá estado como se a região fosse uma ilha, quase desabitada e com a configuração e cor que o seu nome evoca. Fui até lá com os piratas que se reuniam no meu quarto do Bairro de Santa Catarina.
Recentemente, Montenegro apareceu-me na publicidade do Euronews, com a sua wild beauty. E agora, desde domingo, surge como país independente e candidato à União Europeia. Independente da Sérvia, que juntamente com algumas regiões mais, nos habituámos a ver como a terra dos eslavos do sul, a Jugoslávia. Que desapareceu com a morte do Tito, desintegrando-se com fragor. Não foi como a Suiça, que se mantém apesar das suas diferentes línguas. A antiga federação da Jugoslávia era mesmo um caso especial: nela falavam-se quatro idiomas, havia dois alfabetos e praticavam-se três religiões. A convivência fazia-se entre sérvios, macedónios e montenegrinos maioritariamente ortodoxos, católicos croatas e eslovenos, e bósnios e albaneses muçulmanos (desde a invasão otomana).
Há dias li um resumo extraordinariamente bem feito sobre os Balcãs. Fez-me mais uma vez recordar a importância da História. Foi nos Balcãs que passou a linha divisória entre o Império Romano do Ocidente, o de Roma, e o Império do Oriente, o de Constantinopla. Curiosamente, foi também pelos Balcãs que o Império Otomano logrou fazer avanços substanciais na Europa, o que fez com que os turcos chegassem a Viena. Não menos curiosamente, a coisa foi de tal ordem que ainda hoje a Áustria é o país que mais barra a entrada da Turquia na União Europeia.
E eis que, agora, o pequeno Montenegro, que tem no total uma população quantitativamente semelhante à da cidade de Lisboa (620 mil) e há anos vivia em união com a Sérvia, se emancipa. Sozinho não será fácil; se integrado na União Europeia, terá vantagens. Há tempos, em conversa com amigos lituanos, já membros da União Europeia, perguntei-lhes como se sentiam. Extraordinariamente bem, confessaram. Protegidos pela União, deixavam de ter o ancestral receio de serem invadidos pela grande Rússia. Suponho que o mesmo vai suceder a Montenegro. Terá sido com a perspectiva dessa futura união à Europa que os montenegrinos tanto se regozijaram com a sua independência.
(No mapa dos Balcãs acima apresentado, o Montenegro não vem assinalado. Ocupa a parte montanhosa que se inclina para o Adriático, a sul da Sérvia (aqui designada como Iugoslávia), entre a Bósnia-Herzegovina e a Albânia. A superfície total de Montenegro é idêntica à da nossa região de Trás-os-Montes e Alto Douro.)

5/24/2006

A fuga de cérebros

Em termos de desenvolvimento a vários níveis da sociedade portuguesa, um dos aspectos que me preocupam como indicador negativo é o facto de, segundo números oficiais, o nosso país apresentar uma diferença muito significativa entre os portugueses qualificados que saem para o estrangeiro e os "cérebros" estrangeiros que vêm fixar-se entre nós. Neste parâmetro, Portugal infelizmente enfileira com os piores da União Europeia.
Todos sabemos que, em maior ou menor quantidade, os países do mundo exportam e importam produtos. No que respeita a pessoas (prefiro esta designação convencional à de "capital humano"), quando exportamos muitos dos nossos melhores intelectos para países mais apelativos, como os Estados Unidos e a Inglaterra, estamos a ficar mais pobres. Mostramos que algo vai mal.
O que entristece é verificar que a nação não está preparada para proporcionar condições de trabalho a pessoas que forma nas suas escolas. O número de desempregados com curso superior tem aumentado, o que é um indicador que nada de bom augura. Há, isso sim, cada vez mais estudantes de pós-graduação e investigadores portugueses nos EUA e em estados-membros da União Europeia. Esses cérebros não tencionam voltar tão cedo porque não encontram aqui grandes oportunidades de regresso. A economia portuguesa e, no geral, os sectores público e privado, não se mostram aptos a acolher de volta os que se estão a especializar lá fora. Entroncamos no clássico problema da produtividade, que é afinal o que determina o nosso nível de vida.
No geral, é sabido que pessoas com melhores aptidões geram crescimento económico ao criarem novos empregos ou ao melhorarem a execução de tarefas clássicas. O problema é que, quando falamos no mundo menos desenvolvido, essas pessoas com melhores aptidões precisam, para serem bem sucedidas, de um ambiente que inclua, em razoável proporção, esse mesmo tipo de aptidões. Wheelan, num livro ainda não traduzido para português, ilustra o facto com o caso de um cirurgião altamente especializado que só pode ser bem sucedido se no local onde estiver existirem hospitais bem equipados, enfermeiros com boa formação, empresas que abasteçam o mercado de medicamentos necessários e uma população com dinheiro suficiente para pagar as operações. Caso estes pressupostos não se verifiquem, os especialistas reconhecem que os seus talentos são mais valorizados noutro país do mundo onde exista uma maior proporção de especialistas como eles. Desta situação resulta a fuga de cérebros, que em inglês recebe desde há muito a designação de "brain drain".
É mais um caso de rios que correm para o mar, o qual já tanta água tem. Nós perdemos a nossa melhor seiva, todos os dinheiros públicos investidos na sua educação, enquanto outros países mais avançados vão recebê-los de mão beijada. São nacionais que vão involuntariamente contribuir para que aumente o fosso entre o país em que se instalam e o seu, que neste caso é também o nosso.

5/23/2006

Droga

Conforme dizem vários analistas, cada vez parece mais que Portugal voga ao sabor dos media. Não sou cliente da série Morangos Com Açúcar e, portanto, não fiquei certamente tão impressionado com a morte de Francisco Adam como os espectadores regulares do programa. Contudo, chocou-me, como sempre choca, saber de um jovem - afinal acabaram por ser dois - que perdia a vida num estúpido acidente de automóvel. Cada pai lembra-se automaticamente da possibilidade de algo semelhante ocorrer com um filho seu e aí sente uma dor mais funda.
Sobre a exploração mediática que posteriormente terá sido feita pelo canal televisivo que transmite a série e por várias revistas não me quero pronunciar. Mas gostaria de lembrar que o relatório final da autópsia realizada ao actor apurou que este estaria na altura do acidente sob o efeito de cocaína. Aliás, as análises revelaram que também Osvaldo Serrão, que com ele seguia, tinha consumido cocaína. Não sei se a família Adam não autorizou, o que será compreensível, que este aspecto de consumo de cocaína por parte do seu filho tivesse servido de mote a uma campanha contra o consumo da droga em questão. É que, se bem feita, essa campanha teria certamente a sua eficácia. No entanto, disto pouco se fala, neste país que foge da verdade como o diabo da cruz.
Entretanto, a Assembleia Municipal de Benavente, conjuntamente com a respectiva câmara, aprovou a construção de uma rotunda no local de entroncamento das estradas nacionais 119 e 118, onde o acidente ocorreu. Sobre a cocaína, nem uma palavra!

5/21/2006

Gestão pública e privada: um caso

Há dias, a Ministra da Educação revelou que nos últimos anos passaram mais de 400 mil alunos pelo ensino secundário sem o concluírem. Este facto trouxe-me à memória um outro, igualmente relacionado com o ensino, embora na sua vertente superior. O caso que vou relatar foca principalmente a dicotomia gestão pública / gestão privada.
Como já aqui terei dito, trabalhei activamente em várias escolas privadas e igualmente no ensino público. Numa das escolas superiores privadas em que leccionei, desempenhei múltiplas funções de coordenação e direcção. De imediato entendi que a diferença flagrante entre o ensino público e o privado em termos de propinas pagas pelos alunos não era algo negligenciável a vários níveis. Simplificando as coisas, direi que no sector privado tínhamos que cativar muito mais os alunos do que nas escolas públicas. É que, entre outras coisas, um aluno que desiste é um aluno que deixa de pagar as suas propinas, as quais constituem a base de suporte da escola.
A minha função principal era de assessoria pedagógica e não de contabilidade, mas tudo acaba por estar obviamente ligado. Entre os motivos que me levavam a proceder com grande regularidade à auscultação das turmas, por escrito e oralmente, sobressaía sem dúvida a vertente pedagógica. O descontentamento eventualmente notado por uma razão ou outra era uma preocupação a sanar, dentro da medida do possível. Era a qualidade da instituição e de todos nós que estava em jogo.
Aos serviços da Secretaria dei instruções para me informarem concreta e imediatamente de casos de alunos que falassem em desistência. Ao longo dos anos, conversei com muitos deles nestas circunstâncias. As razões eram múltiplas. Muitas nada tinham a ver com a escola, estando estreitamente relacionadas com o orçamento familiar da família e com a necessidade de o aluno arranjar um emprego de imediato em face da morte de um pai ou da situação de desempregado de outro. Por vezes arranjavam-se esquemas interessantes com a Administração para resolver estes casos. Quando era a família do estudante que se mudava para outro local, nada havia a fazer. Se, porém, o abandono se devia a razões de natureza pedagógica, as informações que esses alunos me forneciam eram preciosas. No fundo, todo o cliente que protesta está a dar à empresa um eventual motivo para que ela se corrija e melhore. Devo dizer que esta política, conjuntamente com outros factores, deu muito bons resultados. A percentagem de abandono sempre foi baixa e devidamente registada em relatórios, ano após ano. Aos alunos era dada a possibilidade de se expressarem com total liberdade em inquéritos mistos (questões fechadas e abertas).
Tendo saído da escola privada, passei ao regime de exclusividade na instituição pública. Embora ninguém me atribuísse essas funções, comecei a fazer, por auto-inciativa, análises múltiplas da escola, sempre escritas e com relatórios detalhados. Uma das minhas primeiras questões foi a de perguntar aos serviços qual era a percentagem de desistências no 1º Ano. Amavelmente como sempre, responderam-me que não sabiam. Como assim? - perguntei. Então um aluno desiste, deixa de pagar propinas e não se anota? Não se sabe o que o levou a desistir?
Reparei que as minhas perguntas não tinham razão de ser. Financeiramente, para a escola até poderia ser penalizador se informasse o Ministério dessas desistências, que tinham apenas efeito estatístico no final do ano. A instituição recebia um financiamento com base no número de alunos que se matriculavam de início. Até ao final do ano recebia o mesmo, estivessem os alunos a frequentar as aulas ou não. Apesar de nunca ter verificado a contabilidade, foi com esta impressão que fiquei. Aliás, quando coloquei aos órgãos directivos este problema, nunca me foi dada nenhuma outra explicação.
Daqui resulta que não existia - agora talvez já haja mais - praticamente qualquer incentivo para avaliações pedagógicas que espelhassem o grau de satisfação dos alunos. O que era prática naquela instituição era-o, certamente, em todas. No entanto, bastaria que o Ministério, se fosse zeloso e olhasse verdadeiramente pela qualidade do ensino e pela despesa pública, obrigasse as escolas a comunicarem em tempo útil os nomes dos alunos que tinham desistido, sendo aí automaticamente abatido o respectivo financiamento nos trimestres seguintes. Quem não o fizesse, seria penalizado no ano académico seguinte, com juros de mora. Isto daria um incentivo muito mais poderoso para a vigilância da boa qualidade do ensino do que tantas palavras que por aí circulam. E, a propósito, ajudaria a diminuir a diferença entre gestão da instituição pública e gestão da empresa privada.

5/18/2006

O Papa que mudou o mundo


Parte da frase do título é conhecida noutros parâmetros. Dir-me-ão que nunca houve alguém que, só por si, tivesse mudado o mundo. Aceito. Haverá algum exagero no título, mas existe também algo de concreto.
Há Papas e Papas. Alexandre VI (foto) foi eleito Papa em 1492, cargo que desempenhou até à sua morte, em 1503. Esteve longe de ser um Papa vulgar. Aos 25 anos já era cardeal, graças ao Papa de então, Calisto III, que era seu tio, espanhol como ele, natural da zona de Valência. Tanto Calisto III como o futuro Alexandre VI tinham naturalmente o mesmo apelido - Borja, frequentemente escrito Bórgia. Calisto chamava-se Afonso, Alexandre era Rodrigo. Até se tornar Papa, Rodrigo Bórgia desenvolveu intensa actividade e conseguiu amealhar uma fortuna considerável. Mulherengo, o então cardeal tinha quatro filhos da mesma mulher (Vanozza de Cataneis), um João, o famoso César Bórgia que ele fez cardeal, a não menos famosa Lucrécia Bórgia, e Jofré. De outras mulheres teve mais dois ou três filhos. Rodrigo Bórgia foi o Papa que viu um fervoroso dominicano - Savonarola - desafiar a sua autoridade em Florença. Savonarola irou-se com o facto de o Papa ter dois filhos muito influentes (César e Lucrécia) e uma amante bastante conhecida (Júlia Farnese). O dominicano denunciou a corrupção da Igreja: "Este padre dorme com a sua concubina, aquele com um rapaz, e de manhã vai dizer missa!" Disse mais: "A luxúria fez de ti, Igreja, uma prostituta desfigurada. És pior que um animal. Dantes, se os padres tinham filhos, chamavam-lhes sobrinhos; agora já não há sobrinhos, mas sim filhos." Rodrigo Bórgia viu-se obrigado a excomungar Savonarola, implicando com isso que alguém que ouvisse o dominicano e com ele concordasse seria igualmente excomungado. Em 1497, cinco anos depois de Rodrigo ter ascendido ao papado, Savonarola haveria de ser enforcado e o seu corpo queimado.
Alexandre VI terá sido inteligente nas suas lutas políticas, em que teve múltiplas intervenções, e foi um razoável gestor dos bens eclesiásticos, mas no que respeita ao seu papel de dignificação dos costumes da Igreja dificilmente poderia ter sido pior. O seu exemplo não contribuiu decerto para contrariar uma onda de reformismo que já vinha de longe, com Wycliffe em Inglaterra e Hans Huss em Praga, e que continuaria com Lutero e com Calvino.
Muito bem, dir-se-á. Tudo isto é interessante acerca de um tão fogoso homem da Igreja, mas nada tem a ver com o mudar o mundo. De facto, há um outro aspecto que não foi ainda abordado. Em meados do século XV, o seu tio Afonso (Calisto III) tinha outorgado a Portugal através da Ordem de Cristo o padroado exclusivo de todas as terras adquiridas e a adquirir, desde o Cabo Bojador até à Índia. Portugal ficava, assim, com uma situação especial de privilégio, o que não agradava à Espanha (a Inglaterra e a França estavam nesta altura algo fora da contenda devido à Guerra dos Cem Anos). Sucede que em 1492 Colombo chegou às Américas. Levantou-se imediatamente uma situação de litígio entre Portugal e a recém-unificada Espanha (dos reis católicos, Fernando de Aragão e Isabel de Castela). Poderia ter eclodido uma guerra entre os dois estados católicos da Ibéria. Foi aí que o valenciano Rodrigo Bórgia, Papa há cerca de um ano apenas mas influente cardeal há muitos mais, solucionou por arbitragem esse litígio, atribuindo a cada país os territórios do Novo Mundo. No ano seguinte, o Tratado de Tordesilhas pôs tudo em letra de forma.
Foi assim que Rodrigo Bórgia teve uma influência extraordinária no mundo. Evitou uma guerra peninsular, que não traria qualquer benefício para a Igreja. De uma penada, "criou" a América Latina, com o imenso Brasil português e todo o restante espanhol. É, inicialmente, graças a ele que hoje a sua Igreja Católica pode contar com tantos fiéis do México até à Argentina e ao Chile, e com os hispânicos da América do Norte. Manteve os privilégios dados a Portugal pelo seu tio, o que permitiu que o nosso país possuísse até há pouco mais de 30 anos um vastíssimo império e que a Igreja católica contasse com milhões de fiéis também em África e noutras partes do mundo. Possibilitou, e de que maneira!, a expansão das línguas castelhana e portuguesa no mundo.
Por outro lado, a sua vida licenciosa e de muitos que o rodeavam provocou reacções em cadeia, que obviamente se prolongaram nos papados seguintes e, de certo modo, abriram o caminho para a formação de igrejas cristãs protestantes, com tudo o que isso significou.
Admito que não tenha mudado o mundo, mas este Rodrigo Bórgia, aliás Alexandre VI, contribuiu bastante para formar o mundo que hoje temos.

5/15/2006

Quando o crime compensa

Este pequeno texto derivou de uma amena cavaqueira de café com o J.M., conhecido aqui no blogue por João Ratão. É dele a ideia básica.
Os Mandamentos da Lei de Deus incluem vários preceitos que têm em vista levar as pessoas a comportarem-se de modo a constituírem uma sociedade harmoniosa e não quezilenta ou mesmo criminosa. Neste sentido, surgem "Não roubarás", "Não cobiçarás a mulher do próximo", "Não levantarás falsos testemunhos" e outros. Qual é a punição para o prevaricador? A ira de Deus e eventualmente punições eternas, porque estes são mandamentos e não meras recomendações.
Nas coisas terrenas, as coisas passam-se de modo semelhante. James Madison dizia que se todos os homens fossem bons, não haveria necessidade de governos. Temos de admitir que se não existissem regras, leis e punições, o mundo tornar-se-ia ingovernável. Por isso foi criado o mundo do direito, para salvaguarda de todos. De forma igual? É este o ponto.
Cito o velho ditado inglês "Quem rouba um lenço é ladrão; quem rouba um condado é duque" a propósito de um facto que pode por vezes passar despercebido. Há dias o Governo criou mais uma multa: os banhistas que entrarem na água do mar quando a bandeira vermelha estiver içada, ficarão sujeitos a uma coima que oscilará entre 55 e 1000 euros. Mil euros é pesadote para quem só tem uma tanguinha ou um bikini sobre o corpo e ainda por cima pode ser daltónico. Também o Código da Estrada prevê multas pesadas para vários tipos de infracções. Por seu lado, a Brisa, concessionária de auto-estradas, determinou que quem passar indevidamente nas portagens fica sujeito a uma multa correspondente a duas vezes o valor máximo praticado nessa portagem. A Carris e o Metro publicaram recentemente o seguinte anúncio: "Prefere pagar 65 cêntimos ou 65 euros por uma viagem? Multa 100 vezes superior ao preço da viagem de valor mais baixo."
Tudo isto é altamente dissuasor. O potencial prevaricador pensará duas vezes antes de pecar. Vejamos agora o que tem sucedido a grandes empresas que são apanhadas em truques baixos (sobre valores altos), como o uso de facturas falsas através da criação de empresas-fantasma. Para começar, muitas dessas ilícitas negociatas não são descobertas, o que joga em benefício do infractor. Porém, quando são, o Estado tem-se limitado a cobrar o que lhe seria devido se não tivesse havido o crime. Por outras palavras: o Estado calcula os montantes em dívida com base no que teria recebido de imposto (e não recebeu), junta-lhe o IVA que a firma recebeu indevidamente e... se a empresa saldar essa dívida motu proprio fica totalmente ilibada. Não tem que pagar nem o dobro, nem o triplo, nem cem vezes mais. Apenas o que as Finanças computarem em dívida.
Em vez de constituir um elemento dissuasor, este tipo de punição é um verdadeiro incentivo à fraude. O crime acaba por compensar. Como geralmente sucede, são mais uma vez os grandes que beneficiam.

5/12/2006

Pousada de Santa Maria do Bouro


Olho para este longo corredor, na enfiada de antigos apartamentos de monges de Santa Maria do Bouro, e tento imaginar através da laje fria do chão os séculos que por aqueles espaços perpassaram, as pessoas diferentes que por eles caminharam, os pensamentos tão diversos ali cogitados por homens de eras passadas, que só aparentemente nada teriam a ver com o mundo de hoje. Afinal, avistaram e admiraram os mesmos verdes prados e as serranias agrestes que cercam o mosteiro, respiraram o mesmo ar, tiveram alegrias, prazeres e emoções como nós. É repousante, alongado e temporalmente profundo estender assim o olhar por corredores como este, que tanto nos levam até onde quisermos chegar em remotos tempos idos como nos permitem olhar apenas o presente, saboreá-lo a pequenos sorvos e tentar, singelamente, captar uma imagem para com outros partilhar.

5/09/2006

É a avaliação, estúpido! (I)

O já clássico slogan da campanha de Bill Clinton no início dos anos 90, "It's the economy, stupid!", tem sido várias vezes glosado. Permito-me fazê-lo aqui também.
É consabido o facto de sucessivos relatórios estrangeiros e nacionais salientarem a baixa produtividade do sistema educativo português. Isto quer dizer, resumidamente, que aos dinheiros gastos com a educação não corresponde o rendimento dos educandos. Em minha opinião, os factores são, como sempre, de vária ordem, mas o principal parece-me ser inegavelmente um: a não-existência de avaliações regulares no sistema de ensino.
Os alunos deverão avaliar os seus professores? É óbvio que sim. Pelo menos uma vez por ano essa avaliação deverá ser feita e incluirá igualmente a opinião que os alunos formam sobre a escola e os seus serviços. A avaliação deverá ser feita de surpresa e os seus resultados mantidos com um grau de confidencialidade que não comprometa a existência de boas relações humanas na instituição. Os Conselhos Executivos ou Directivos deverão retirar dessas avaliações as ilações que considerarem pertinentes e actuar em conformidade. As desculpas de que os alunos são vingativos e dão opiniões desfavoráveis nessa base são apenas de mau pagador. Esses casos podem acontecer esporadicamente, mas nunca deverão impedir o normal exercício da classificação das pessoas. É necessário distinguir os melhores dos mais fracos. Como está, o sistema desmotiva os melhores e beneficia os piores. Para estes, como alguém disse, a qualidade irrita.
E os alunos não deverão ser sujeitos a avaliações regulares a nível nacional? É claro que sim. Da mesma forma que em múltiplos aspectos da nossa vida temos provas para ultrapassar, é impensável que a escola, que se diz preparar para a vida, se comporte de modo diferente. Que os alunos tenham provas nacionais apenas ao fim de doze anos de aprendizagem é inadmissível. Quem passa doze anos da sua vida sem controlos comparativos - a escola faz as suas próprias provas, que podem ser muito inferiores em exigência às de outras instituições do mesmo grau - goza de um estatuto de permissividade nada compaginável com as exigências sociais que os governos e os media constantemente repetem relativamente à educação. Num país em que a honestidade não impera e onde se instituiu um clima em que a balança entre deveres e direitos pende nitidamente mais para o lado destes últimos, haveria necessidade de uma prova nacional no final do 1º ciclo, de uma outra na passagem do 6º para o 7º ano, de uma terceira no final do 9º Ano e de uma última no final do ensino secundário para ingresso no ensino superior. Dir-se-á que esta proposta é um exagero. Em que medida? Afinal, ela não representa mais do que aquilo que sucedeu com várias gerações. Sem traumas de maior e com resultados aceitáveis.
Poderá à primeira vista parecer a quem ler este texto que estou contra os professores. Na realidade, não são eles o meu principal alvo. O meu alvo número um é o Ministério. Não os seus técnicos, que os terá competentes, mas as sucessivas levas de políticos que acabam por impor a sua vontade. Há décadas que o Ministério da Educação é culpado ao facilitar o ensino de tal maneira que o conduziu a um estado que, na generalidade, é deplorável para os docentes mais profissionais e mais honestos. Na sua ânsia de mostrar trabalho espectacularmente realizado em poucos anos e de, assim, continuar a receber avultadíssimas verbas de Bruxelas, o Ministério preferiu escandalosamente a quantidade à qualidade. Retirou muitos dos obstáculos que obstavam à passagem de ano dos alunos. Vários professores do ensino básico e secundário narraram-me em tempos como era mais difícil reprovar um aluno do que passá-lo. Quando entravam pela primeira vez numa aula num determinado ano, perguntavam-se como é que alguns alunos que ali estavam à sua frente tinham obtido passagem no ano anterior. Os critérios de exigência baixaram enormemente numa quantidade apreciável de escolas. Nivelou-se claramente por baixo. Não incluirei nesta fórmula todos os estabelecimentos de ensino, o que seria manifesta injustiça. Houve os que se portaram tanto mais condigna e briosamente quanto é certo que estavam rodeados por muitos outros de baixo nível.

É a avaliação, estúpido! (II)

E tudo isso fez desaparecer a avaliação comparativa a nível nacional. Como reagiram os professores? A esmagadora maioria não reagiu. As ordens vinham de cima. Manda quem pode. Afinal, o trabalho ficava facilitado para eles. Assim, acabavam por serem avaliados apenas os que estavam no 12º Ano. Porque, e esta parte é essencial na compreensão do fenómeno, ao não serem avaliados os seus alunos, os professores não recebiam igualmente qualquer avaliação. E a maior parte dos professores reagem como os juízes: gostam de avaliar, mas detestam ser avaliados. Ora, toda a gente sabe que, em ano de exame, tanto professores como alunos se aplicam mais. O rendimento sobe inegavelmente. Mas isso seria exigir produtividade, o que a ninguém verdadeiramente pareceu interessar. Os estafados argumentos dos exames que causam traumas aos alunos e são maus instrumentos de avaliação mais não constituem muitas vezes do que um escudo ardiloso para proteger os próprios docentes de uma avaliação e, cumulativamente, de mais trabalho.
Quando se chegava ao 12º Ano, notas baixas dos candidatos acabavam também por ser contornadas pelas escolas de ensino superior com total conivência do Ministério, que precisava de alimentar as numerosas instituições, privadas e públicas, que entretanto tinham proliferado como cogumelos. Bastava que duma média de duas disciplinas num dos conjuntos pedidos pela escola resultasse uma nota x, a que depois se juntava a média do secundário com coeficientes que, mais uma vez, beneficiavam a quantidade em detrimento da qualidade, para os alunos entrarem. Para outros candidatos em situação mais complexa, arranjaram-se em numerosas instituições, incluindo algumas estatais, percentis que garantiam que praticamente qualquer aluno entrava, se estivesse dentro do numerus clausus pré-estabelecido.
Entretanto, há meia-dúzia de anos apareceram provas multinacionais a baralharem o sistema que se praticava no país. O PISA (Programme for International Student Assessment) foi lançado pela OCDE a fim de medir a capacidade dos jovens de 15 anos para enfrentar os desafios da vida real. Aí, tanto a literacia matemática dos alunos portugueses como a sua capacidade para resolver problemas ficaram muito aquém do desejado. A careca do sistema ficou à mostra.
Por seu lado, interesses corporativos de engenheiros, juristas, economistas e outros ergueram-se ultimamente contra a enxurrada de novos concorrentes. Exigiram outra ordem. Maior rigor no ingresso no ensino superior.
Assim chegámos o ano passado a algo qualitativamente mais correcto no que respeita a esse ingresso. Mesmo assim, houve muitas instituições que deram a volta à questão de maneira menos ética, substituindo a Matemática, por exemplo, por provas de ingresso mais fáceis de maneira a garantirem a entrada de mais alunos. Suponho que se está presentemente a caminhar no sentido certo, mas falta ao Ministério ser honesto na totalidade. Seguir uma política de verdade e não de poluítica.
E os sindicatos? Esses, formados por professores e defendendo obviamente os interesses da classe, preocupam-se basicamente com os seus associados, muito mais do que com a denúncia de situações que teriam efeito de boomerang sobre eles próprios.
Esta é uma questão complexa mas que, a partir de agora, só pode melhorar. Infelizmente, o ingresso no mundo do ensino por parte do corpo docente não é ainda condicionado, tanto quanto sei, por provas que atestem a capacidade de um professor ou de uma professora para leccionar. Não me refiro, obviamente, a conhecimentos científicos, que esses constarão dos diplomas outorgados pelas várias instituições de ensino, mas sim a provas práticas e teóricas de admissão à docência. Se antigamente a docência era praticada por pessoas que a escolhiam como sua opção número um, há muito que a explosão do sistema educativo e o aumento de desempregados detentores de graus de ensino superior arrastaram para a docência pessoas que a escolheram muito mais como recurso do que como primeira vocação. Isso pode ter claros efeitos contraproducentes no rendimento final dos formandos. Desde os docentes do 1º ciclo - tão ou mais importantes nas suas funções como os do 1º Ano das instituições de ensino superior -, deverá haver um controle de qualidade de todos os agentes de ensino.
E deixemos de nos comparar com países estrangeiros mais evoluídos, copiando deles apenas aquilo que serve os nossos interesses. Um todo não pode ser mutilado, especialmente quando a base estrutural não é a mesma. À maneira árabe, os portugueses ligam mais às palavras do que aos actos, mais à forma do que ao conteúdo. Talvez seja por isso que a palavra inglesa accountability, que significa responsabilização e prestação de contas, é usada tão frequentemente entre aspas e na sua forma original.

5/07/2006

Dona Sancha


Na única vez em que estive na Polónia, surpreendeu-me ouvir que, "se na Europa se traçar uma linha de norte para sul e outra de oeste para leste, Varsóvia está exactamente no ponto em que essas linhas se cruzam". Nascido neste ocidente à beira-mar prantado, sempre supus que Varsóvia ficasse, em termos relativos, muito mais para leste. Isto vem a propósito de Vila de Rei, hoje nas bocas do país. Sei, através de um ex-colega que lá nasceu, que "se fosse traçada uma linha em Portugal de norte para sul e outra de leste para oeste, Vila de Rei ficaria no seu exacto ponto de intersecção." Está ali, portanto, o centro de Portugal. Situado como estou, fico feliz por ver a povoação transformada hoje noutro centro - o de atenções, devido a uma acção de povoamento do território. A dinâmica autarca (na foto, retirada do Público com a devida vénia) já tinha mostrado a sua força e mediatismo aquando dos incêndios que devastaram o país e aquela zona. Não baixou entretanto os braços, ao contrário do que é timbre em muito Portugal, e transformou-se em Dona Sancha. Não é de maneira nenhuma depreciativo nem sequer irónico este título, note-se. Se o nosso rei D. Sancho I foi cognominado de "O Povoador", o apodo de D. Sancha não poderia assentar melhor a D. Irene Barata. (As mulheres que herdam nomes tornam-se por vezes mais célebres do que aqueles de quem os herdam. Veja-se a Bacalhoa e a Gioconda, como dois de muitos exemplos.)
Estas famílias que agora chegam a Vila de Rei como imigrantes legalizados do Brasil (o número é reduzido: são por ora apenas 14 pessoas, dos quais oito são adultos e seis são crianças) podem com o tempo mostrar iniciativa que crie muito mais do que os oito postos de trabalho que presentemente vão ocupar. Em economia, um mais um não é igual a dois. Decerto que hoje a terra de onde eles vieram e para onde, no passado, vários portugueses emigraram, se desenvolveu graças à acção dos que para lá foram. Se agora aqui chegaram de livre vontade, é porque vêem em Portugal uma oportunidade de melhorar a sua vida. Quantos milhões de portugueses não fizeram o mesmo no passado para múltiplos cantos do mundo? E quantos indivíduos e famílias não o fazem ainda agora?
Porque nos admiramos tanto deste caso de Vila de Rei? Possivelmente devido ao facto de estes imigrantes virem quase que como colonos. Oferece-se-lhes a paisagem de terra queimada, que aparentemente não interessava a portugueses. Há outra diferença flagrante: o facto de trazerem seis crianças enfatiza a ideia de colonização. Vêm para ficar.
Haveria muitos comentários a fazer e questões a levantar relativamente ao nosso país, mas apetece-me principalmente realçar o espírito de iniciativa da autarca. Poderia ter recrutado o mesmo tipo de pessoas de entre os milhares de brasileiros que já se encontram em Portugal? Certamente que sim. Preferiu lançar o convite para o lado de lá do Atlântico. Tomar uma opção, mesmo que eventualmente não a óptima, é sempre preferível a não tomar opção nenhuma. Se tivesse ficado de braços cruzados, a senhora enfileiraria no longo rol dos políticos angariadores-de-votos que, nas suas campanhas, invariavelmente prometem combater a desertificação do interior e, depois, nada fazem. Por essas e por outras é que as assimetrias portuguesas vêm crescendo a olhos vistos, embora muitos dos imensos fundos recebidos nos últimos vinte anos da Europa comunitária tivessem como desígnio principal fomentar um maior nivelamento das regiões.

5/05/2006

Alcobaça e Canadá


Nos remotos tempos medievais e noutros posteriores, a Abadia de Alcobaça originou uma tradição popular, segundo a qual toda a moça solteira que quisesse arranjar marido mais não teria do que molhar o dedo na água benta da fonte que se encontra no claustro principal e fazer o sinal da cruz. Casamento era garantido a prazo máximo de seis meses. Más-línguas diziam que essa era a maneira astuciosa de os frades fazerem entrar as ditas moçoilas dentro da sua área conventual.
Esta história ocorre-me a propósito de notícias vindas do Canadá, onde existe um movimento anti-terrorismo que incide sobre os muçulmanos que vivem no país. Sabendo que o Corão preceitua que todo o homem casado que vir completamente nua outra mulher que não a sua deverá suicidar-se, foi pensado que se mulheres canadianas passeassem sem roupas nos seus bairros, e não só, acabariam fatalmente por ser vistas por muçulmanos, os quais estariam assim auto-condenados. É uma luta singular contra o terrorismo, devemos admitir. A foto acima ilustra um desses casos.
Não sei porquê, parece-me que o movimento terá sido engendrado por fradescas mentes masculinas do Canadá.

5/04/2006

Mudanças

Quando se fala no longo rol de disciplinas do ensino básico hoje em dia e nos horários praticados, não se procure nas necessidades futuras das crianças e dos adolescentes a resposta para essa alteração, que foi muito significativa relativamente ao passado. A resposta mais correcta reside nas necessidades do mercado. E o mercado das escolas é constituído mais pelos pais do que pelos filhos. Manter as crianças ocupadas durante todo o dia numa boa escola, em segurança e até o mais tarde possível, essa é a situação ideal. Ganham os pais, que ficam mais descansados nos seus empregos relativamente aos filhos. Ganham os professores, porque têm mais disciplinas para leccionar. Os sindicatos não se opõem ao elevado número de disciplinas, como não poderia deixar de ser, porque isso aumenta as possibilidades de emprego dos seus sócios. Quanto aos alunos propriamente ditos, talvez seja melhor não lhes colocar a pergunta. Afinal, o que sabem as crianças deste mundo?
Estou em crer que, de forma relativamente semelhante, várias escolas superiores que tiveram recentemente de adaptar os seus cursos ao chamado Processo de Bolonha acabaram por reestruturar os respectivos planos de estudo mais de acordo com as necessidades dos seus corpos docentes do que dos alunos propriamente ditos. É uma salvaguarda que é humana e que se pode entender. Ninguém se vai ciliciar a si mesmo se puder deixar de fazê-lo. E, como as reestruturações são geralmente feitas e aprovadas pelos Conselhos Científicos, nos quais apenas docentes têm assento, convenhamos que até é natural que isso suceda.
É assim a vida.

5/03/2006

Novelas antecipadas

(Nem sempre crítica, nem sempre política) Embora admita que não se trata de nada de novo, constato com relativa admiração o sucesso das revistas ligadas a telenovelas. Fiz algumas perguntas simples sobre a sua venda na papelaria onde quase diariamente compro o jornal e em dois quiosques conhecidos. Anotei igualmente a sua leitura em vários locais públicos. Os compradores dessas revistas são quase invariavelmente mulheres, ao que me informaram.
O que contêm as revistas? Fundamentalmente, antecipam episódios que os ecrãs apresentarão nas semanas seguintes. Contam como tudo vai ser. Narram as atribulações de A e B, os amores desavindos, as traições e as reconciliações entre os elementos da trama ficcionada que decorre ao longo de meses na televisão. Não sou normalmente visionador de telenovelas, mas custava-me a princípio admitir que houvesse pessoas interessadas em preferir apenas motion a emotion (desculpem-me o inglês, mas em português o jogo de palavras não dá). Quando vejo um desafio de um desporto que me interesse, algo fundamental para mim é manter a expectativa quanto ao resultado final. Pessoalmente, nunca veria um jogo cujo resultado final já fosse do meu conhecimento. Exactamente da mesma maneira que nunca leria um romance policial se de antemão soubesse o nome do criminoso. Então, por que motivo haverá interesse por parte de tantas pessoas em conhecer antecipadamente o que vai acontecer?
Uma das senhoras a quem coloquei a questão explicou-me, com toda a sinceridade, que não gosta de sofrer frente ao ecrã. "Se já estiver preparada, posso sofrer, mas é pouco. Vejo com interesse, porque ver é sempre diferente de ler, mas já sei o que se vai passar. Isso entretém-me e dá-me prazer." Então, insisti, é por isso que compra as revistas? "Não só", explicou-me. "Quando me reúno com amigas minhas no café ou noutro sítio do género, gostamos de falar no assunto. Se uma já sabe mais do que as outras, aparece como a mais conhecedora e isso dá-lhe uma posição que as outras também não desdenhariam ocupar. Todas entendemos isso, embora não o confessemos abertamente. Por isso, procuro estar informada também. Depois, trocamos algumas das revistas entre nós e mais tarde falamos sobre as personagens. Sempre é melhor falar sobre personagens de ficção do que sobre pessoas que todas nós conhecemos. Assim, não se pode dizer que estamos na má-língua."
A verdade é que muitas dessas pessoas, por vezes já com alguma idade, gostam de acompanhar as telenovelas nos seus rotineiros dias. A sua capacidade de emoção, talvez como auto-defesa, já não é tão grande devido à idade. Já não aceitam desafios com o mesmo à-vontade dos jovens. As revistas acabam por ajudá-las.