5/18/2006

O Papa que mudou o mundo


Parte da frase do título é conhecida noutros parâmetros. Dir-me-ão que nunca houve alguém que, só por si, tivesse mudado o mundo. Aceito. Haverá algum exagero no título, mas existe também algo de concreto.
Há Papas e Papas. Alexandre VI (foto) foi eleito Papa em 1492, cargo que desempenhou até à sua morte, em 1503. Esteve longe de ser um Papa vulgar. Aos 25 anos já era cardeal, graças ao Papa de então, Calisto III, que era seu tio, espanhol como ele, natural da zona de Valência. Tanto Calisto III como o futuro Alexandre VI tinham naturalmente o mesmo apelido - Borja, frequentemente escrito Bórgia. Calisto chamava-se Afonso, Alexandre era Rodrigo. Até se tornar Papa, Rodrigo Bórgia desenvolveu intensa actividade e conseguiu amealhar uma fortuna considerável. Mulherengo, o então cardeal tinha quatro filhos da mesma mulher (Vanozza de Cataneis), um João, o famoso César Bórgia que ele fez cardeal, a não menos famosa Lucrécia Bórgia, e Jofré. De outras mulheres teve mais dois ou três filhos. Rodrigo Bórgia foi o Papa que viu um fervoroso dominicano - Savonarola - desafiar a sua autoridade em Florença. Savonarola irou-se com o facto de o Papa ter dois filhos muito influentes (César e Lucrécia) e uma amante bastante conhecida (Júlia Farnese). O dominicano denunciou a corrupção da Igreja: "Este padre dorme com a sua concubina, aquele com um rapaz, e de manhã vai dizer missa!" Disse mais: "A luxúria fez de ti, Igreja, uma prostituta desfigurada. És pior que um animal. Dantes, se os padres tinham filhos, chamavam-lhes sobrinhos; agora já não há sobrinhos, mas sim filhos." Rodrigo Bórgia viu-se obrigado a excomungar Savonarola, implicando com isso que alguém que ouvisse o dominicano e com ele concordasse seria igualmente excomungado. Em 1497, cinco anos depois de Rodrigo ter ascendido ao papado, Savonarola haveria de ser enforcado e o seu corpo queimado.
Alexandre VI terá sido inteligente nas suas lutas políticas, em que teve múltiplas intervenções, e foi um razoável gestor dos bens eclesiásticos, mas no que respeita ao seu papel de dignificação dos costumes da Igreja dificilmente poderia ter sido pior. O seu exemplo não contribuiu decerto para contrariar uma onda de reformismo que já vinha de longe, com Wycliffe em Inglaterra e Hans Huss em Praga, e que continuaria com Lutero e com Calvino.
Muito bem, dir-se-á. Tudo isto é interessante acerca de um tão fogoso homem da Igreja, mas nada tem a ver com o mudar o mundo. De facto, há um outro aspecto que não foi ainda abordado. Em meados do século XV, o seu tio Afonso (Calisto III) tinha outorgado a Portugal através da Ordem de Cristo o padroado exclusivo de todas as terras adquiridas e a adquirir, desde o Cabo Bojador até à Índia. Portugal ficava, assim, com uma situação especial de privilégio, o que não agradava à Espanha (a Inglaterra e a França estavam nesta altura algo fora da contenda devido à Guerra dos Cem Anos). Sucede que em 1492 Colombo chegou às Américas. Levantou-se imediatamente uma situação de litígio entre Portugal e a recém-unificada Espanha (dos reis católicos, Fernando de Aragão e Isabel de Castela). Poderia ter eclodido uma guerra entre os dois estados católicos da Ibéria. Foi aí que o valenciano Rodrigo Bórgia, Papa há cerca de um ano apenas mas influente cardeal há muitos mais, solucionou por arbitragem esse litígio, atribuindo a cada país os territórios do Novo Mundo. No ano seguinte, o Tratado de Tordesilhas pôs tudo em letra de forma.
Foi assim que Rodrigo Bórgia teve uma influência extraordinária no mundo. Evitou uma guerra peninsular, que não traria qualquer benefício para a Igreja. De uma penada, "criou" a América Latina, com o imenso Brasil português e todo o restante espanhol. É, inicialmente, graças a ele que hoje a sua Igreja Católica pode contar com tantos fiéis do México até à Argentina e ao Chile, e com os hispânicos da América do Norte. Manteve os privilégios dados a Portugal pelo seu tio, o que permitiu que o nosso país possuísse até há pouco mais de 30 anos um vastíssimo império e que a Igreja católica contasse com milhões de fiéis também em África e noutras partes do mundo. Possibilitou, e de que maneira!, a expansão das línguas castelhana e portuguesa no mundo.
Por outro lado, a sua vida licenciosa e de muitos que o rodeavam provocou reacções em cadeia, que obviamente se prolongaram nos papados seguintes e, de certo modo, abriram o caminho para a formação de igrejas cristãs protestantes, com tudo o que isso significou.
Admito que não tenha mudado o mundo, mas este Rodrigo Bórgia, aliás Alexandre VI, contribuiu bastante para formar o mundo que hoje temos.

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