12/26/2011

A alocução natalícia do primeiro-ministro

Por mero acaso – continuo a ver muito pouca televisão – presenciei ontem à noite a mensagem natalícia de Passos Coelho. Os políticos já raramente me surpreendem, mas por vezes ainda me revoltam. Com Portugal metido numa camisa de onze varas, na qual foi cair ao fim de décadas de governos menos bons ou mesmo maus, este primeiro-ministro bem-parecido e teleponticamente bem-falante, surge-nos vestido de forma irrepreensível, de gravata verde de esperança, a falar-nos nada mais, nada menos do que de confiança.
Numa linguagem que só não é novilíngua por ser usada por tantos outros como ele e que faria George Orwell pelo menos sorrir, usou um sem-número de palavras e expressões abstractas ou indefinidas, vagas, do tipo das que dão-para-tudo: “democratização da economia”, “reformas estruturais”, “privilégios injustificados”, “criatividade”, “dedicação”, “injustiças e iniquidades”, “transformação do país”, etc. Por exemplo: o que se poderá entender por democratização da economia? Que os ricos, que até aqui têm sido altamente beneficiados e por isso têm conseguido aumentar cada vez mais o fosso entre o seu bem-estar e o mal-estar dos outros, vão ser sujeitos a mais impostos para compensar os “privilégios injustificados” de que têm gozado nas suas empresas e nos seus investimentos? Ou uma ordem económica que combata as desigualdades, como o Cardeal-Patriarca pede?
Repare-se na beleza da seguinte frase, apropriada para um cartão de boas-festas: o governo de Passos Coelho propõe-se “criar as condições para que todos os portugueses, cada um dos portugueses, nas suas escolhas, com o seu trabalho, com as suas capacidades, construa o seu próprio futuro e, em conjunto, o futuro de todos!”
Em minha opinião, é um desplante tremendo que estas palavras saiam da boca de um primeiro-ministro que ainda há pouco recomendou aos professores desempregados que procurassem fora do seu país, junto de populações de língua portuguesa, o trabalho que não conseguem encontrar no país de que ele próprio é o chefe do governo. Constitui um afrontoso descaramento que um primeiro-ministro faça numa semana a proclamação de grandes sacrifícios que temos pela frente e na semana seguinte fale desta maneira.
E, contudo, não é nada surpreendente. Ao apodar, aliás justificadamente, de mentiroso o seu antecessor, ele procura eventualmente com isso camuflar as mentiras que ele próprio pregou ao povo português antes das eleições de que saiu candidato vencedor. Só que, conseguida dessa forma mentirosa, a legitimidade da sua aprovação pelo povo ficou definitivamente comprometida.
Pois agora é esta mesma pessoa que do alto do seu cavalo de candidatura logrou enlaçar o povo português através de promessas que não está a cumprir que vem pedir o estabelecimento de laços de confiança! Atente-se nas suas palavras: “A confiança é um activo público, é um capital invisível, é um bem comum, determinante para o desenvolvimento social, para a coesão e para a equidade.” “...são os laços de confiança que formam a rede que nos segura a todos numa mesma sociedade.” Lindo, não é? Fukuyama, que escreveu uma obra notável exactamente com o título Confiança, não o diria melhor. Só que ele nunca foi primeiro-ministro de Portugal.
Já agora, prestemos atenção ao próximo dia 29, data em que está prevista a publicitação da nova Lei das Rendas do governo. Pessoalmente, concordo com uma revisão da lei das rendas, mas sou declaradamente contra uma liberalização total do sector da habitação. Uma casa não é um bem como qualquer outro. Vamos a ver o que dali sai.

12/25/2011

Poesia de A a Z

Para a letra P, a poetisa Maria do Rosário Pedreira:


Ficou vazio o teu lugar à mesa

Ficou vazio o teu lugar à mesa. Alguém veio dizer-nos

que não regressarias, que ninguém regressa de tão longe.

E, desde então, as nossas feridas têm a espessura

do teu silêncio, as visitas são desejadas apenas

a outras mesas. Sob a tua cadeira, o tapete

continua engelhado, como à tua ida.

Provavelmente fiará assim para sempre.



No outro Natal, quando a casa se encheu por causa

das crianças e um de nós ocupou a cabeceira,

não cheguei a saber

se era para tornar a festa menos dolorosa,

se para voltar a sentir o quente do teu colo.


in "A Casa e o Cheiro dos Livros"

12/12/2011

"All (dis)quiet on the Western Front"

Os dias sombrios que a Europa vive trazem-nos a todos preocupados. Algumas semelhanças com os tempos que antecederam 1939 são preocupantes e dão que pensar.

No seu livro “Pós-guerra – História da Europa desde 1945” Tony Judt relembra:
«Foi para impedir o regresso dos velhos demónios (o desemprego, o fascismo, o militarismo alemão, a guerra, a revolução) que a Europa Ocidental encetou aquela nova via com que estamos hoje familiarizados. A Europa pós-nacional, do Estado-providência, cooperativa e pacífica, não emergiu do projecto optimista, ambicioso e aberto ao futuro que hoje, retrospectivamente, os euro-idealistas imaginam com orgulho. Ela é uma filha insegura da ansiedade. Sob o espectro da História, os seus líderes implementaram reformas sociais e ergueram novas instituições como medida profiláctica para manter o passado à distância».

Que os tempos são de grande ansiedade em relação ao futuro, ninguém nega. Que as medidas então tomadas para assegurar a paz social estão a ser completamente desmanteladas, é uma evidência.
O Estado-providência é hoje visto como uma fonte de despesismo, um mal para as finanças dos países.
Muitos são já os países à beira do colapso económico, quando é sabido que nos anos entre as duas guerras mundiais os conflitos internos e entre Estados foram exacerbados, quando não provocados, por esse mesmo colapso económico.
O desemprego grassa assustadoramente em variadíssimos países europeus; a insegurança social, intimamente ligada a todos estas situações, alastra.
A Alemanha volta a mostrar a sua arrogância em termos de supremacia política. Subjacente a tudo isto, o espectro do fascismo paira sobre as nossas cabeças, graças em grande parte à inépcia dos políticos dos regimes democráticos, que não têm sido capazes de impor ideais políticos à tirania dos poderes financeiros.

Em resumo, «as medidas profilácticas para manter o passado à distância» de que Judt fala estão em vias de desaparecer. Estamos a assistir ao esboroar do salto civilizacional que a Europa pós-guerras deu.

Que nos reserva o futuro?

12/11/2011

O selo e o euro


Desde miúdo que colecciono selos. É uma coisa que tem graça, embora para muitos pareça simplesmente ridícula. Hoje em dia, admito que a filatelia se alterou bastante com a introdução de novos meios de comunicação, os quais acabaram por substituir o processo convencional. Este é bem conhecido: escreviam-se cartas, que se metiam num envelope. Sobre este colocava-se, e ainda se coloca mas já bastante menos, uma marca que atesta que o respectivo porte está pago (por isso, em alemão “selo” se diz Briefmarke, sendo Brief a palavra para carta).
Esta brevíssima introdução é, no entanto, apenas para despistar, pois aqui o assunto principal não é o dos selos, mas sim o do euro. De facto, digamos que coleccionar selos, como digo acima, até está actualmente um pouco fora de moda.
Fiz uma pequena reprodução de dois selos que aparecem acima. São ambos portugueses, como se pode ver. O primeiro é do período imediatamente posterior à proclamação da República, o segundo é anterior. Poderá estranhar-se ou considerar-se uma verdadeira ironia que um selo com a tarjeta "República" a vermelho acabe por atravessar a efígie do rei D. Manuel II. Então o rei foi para o exílio e é o seu rosto que continua a circular nas cartas que se enviam dentro do país? Que revolução foi essa?
Bem, são as contingências da vida que obrigam a que assim seja. Nos dias e meses que se seguiram à vitoriosa revolução republicana ainda não estava naturalmente impresso qualquer selo emitido pela nova República. Havia que esperar. Existia no entanto uma solução que era simples e expedita e que, vista de outro ângulo, até constituía uma afronta para os monárquicos: verem o rei D. Manuel atravessado pela palavra "República". A solução foi económica e acabou por ser eficaz.
Bem, mas o que tem isto a ver com o euro? Possivelmente, muito. As vicissitudes por que o país está a passar e os problemas internos da União Europeia para solucionar uma crise que, sem margem para dúvidas, afecta a sua moeda circulante, permitem pensar, com algum grau de probabilidade, que alguns países acabem mais tarde ou mais cedo por terem de sair do euro. Como se irá possivelmente processar essa acção? O Jornal de Negócios online avançou muito recentemente com um artigo em que referia os diversos passos que poderiam ocorrer quando e se Portugal saísse do euro. Transcrevo o que me parece ser relevante: "Depois de um anúncio de fronteiras controladas e de levantamentos de dinheiro igualmente controlados, com proibição de movimentos de capitais, quando os bancos reabrirem as notas de euros estarão carimbadas. Dirão que valem por escudos, se assim se chamar a nova moeda. Impede-se desta maneira que o dinheiro físico saia do país, enquanto se produz e e coloca em circulação notas da nova moeda. Concluída a produção dessa nova moeda, os portugueses trocam os "euro-escudos" por "escudos". O Banco de Portugal assume a política monetária e o país pode imprimir notas e moedas sem limitações. A estreia da nova moeda no mercado cambial seria marcada por uma desvalorização de grande dimensão, da ordem dos 50 por cento ou superior."
Como se pode constatar, a solução não é muito diferente daquela que os republicanos de 1910 adoptaram para o uso continuado dos selos da Monarquia. O pior é o resto.

12/08/2011

A minha rua continua a contar histórias

A minha rua, da qual tenho já aqui falado mais do que uma vez, poderia ser vista como um pedaço de estrada alcatroada com uns 300 metros de comprimento e com prédios dos dois lados. São os prédios que flanqueiam a estrada que a tornam "rua". No entanto, essa não será a grande diferença. Creio que esta reside principalmente no facto de que enquanto uma estrada tem viajantes, uma rua tem residentes. E são sempre as pessoas que mais contam.
Dela já aqui falei da existência de uma casa de gelados à moda antiga, das oficinas de automóveis e garagens que muitas vezes a entopem, de uma típica papelaria de bairro com gente simpática e de uma escola de ensino básico. Hoje permito-me informar que, infelizmente, a farmácia que aqui existia há várias décadas fechou as suas portas. Tratou-se de uma questão de negócio para o proprietário do alvará, não de falta de negócio.
Mas sendo as pessoas o que mais conta, forçoso é que eu volte a falar no Nolasco. O Nolasco não será má pessoa de todo, mas é decerto um sério candidato à classificação de "o indivíduo mais chato que conheço". Pegamasso. Vê-lo ao longe já significa um perigo. Se ele nos apanha ao virar da esquina, porém, sem termos tempo de sorrateiramente nos escaparmos para o passeio oposto, então podemos considerar fatal o ataque que o Nolasco desencadeia. Homem dos seus 70 anos, adora cultura. À sua maneira, entenda-se. Mas, principalmente, venera-se a si próprio. Costumava escrever artigos para o jornal da sua terra, o que possivelmente ainda hoje faz. Pois trazia sempre um desses artigos no bolso, dobrado com algum cuidado já que se tratava de propriedade sua. Quando me encontrava – possivelmente faria o mesmo com outros vizinhos - retirava do bolso o papel e começava a lê-lo, com trejeitos de voz e um arquear de sobrancelhas indagante "está a perceber?".
No mês passado estive fora durante os dias. Calhou mal para o Nolasco, que tinha voltado da terra com uma poesia nova, um canto louvando o local onde nasceu, algures na Beira. Tão pressuroso estava relativamente à exibição dos seus versos – oito quadras ao todo – que ousou bater à minha porta. Atendeu-o uma senhora que cá estava. Reconhecendo-o da rua, abriu-lhe a porta. Vinha entregar-me aquela sua nova composição. Na capa, via-se o castelo do torrão natal do Nolasco. Mas era lá dentro que estava o mel, as tais oito quadras. Como eu não estivesse, deu em mão o papel – uma folha A4 dobrada ao meio – para me ser entregue. Porém, de súbito ocorreu-lhe que estava ali uma potencial ouvinte das suas composições de vate inspirado. Zás, pespegou-lhe com os primeiros versos recitados como só ele sabe. A senhora disse-lhe polidamente que gostaria muito de ouvir o resto, mas que infelizmente não tinha tempo. Tinha as suas horas e o seu trabalho para fazer.
Quando regressei a Lisboa, encontrei os versos sobre a minha secretária. Li-os, naturalmente. Os versos são sinceros, estilo naïf. O poeta fala à sua terra como se de sua mãe se tratasse e narra para o leitor parte da sua história já antiga.
Foi só ontem que o Nolasco me encontrou. Eu estava sem escape possível. Como seria lógico, desfechou-me a pergunta sacramental: "Já leu?" Que sim, respondi. Acrescentei que tinha gostado e achado interessante. Ocorreu então aquilo com que eu nem sonhava: o Nolasco não só sabia os seus versos de cor, como num repente ele aí estava a cantar-mos em plena rua, como se de um fado de Coimbra tipo-Hilário se tratasse. Senti-me perdido. Iria ele cantar-me as oito quadras? Ali? Fiz um gesto com a mão e ele decidiu parar. Mas depois insistiu tanto, que ainda cantou a segunda quadra. Perante a minha surpresa pela cantoria, comentou "Então não viu que era A minha terra que eu canto?" Sim, tinha lido a palavra "canto", mas não imaginava…
Tenho algum temor, confesso, de que numa próxima vez o Nolasco me queira cantar as restantes seis quadras. Sentidamente, como só ele sabe.
De facto, a minha rua é bem diferente de uma estrada por onde apenas se passa. Adoro viver aqui.

12/05/2011

O nosso fado levanta a crista

À semelhança do que julgo ter sucedido a quase todos os portugueses, fiquei radiante com o muito aguardado reconhecimento que deram ao nosso fado como património imaterial da humanidade. Foi bonito e justo. Cá dentro e lá fora a canção que nos fala do destino e da saudade ("a presença da ausência"), de amores frustrados e paixões sentidas, e que abarca uma vasta gama de facetas da vida, passa a ser vista de outra forma. Comercialmente, este acto é também importante: trata-se de uma credencial validada por um órgão das Nações Unidas. Acresce que, dentro do actual ambiente de incerteza e depressão existente na sociedade portuguesa, este galardão veio em óptima altura.
Dito isto, questionemo-nos: por que razão surgem estas oportunidades? Porquê agora? Quais são os países mais interessados em verem aspectos ditos "imateriais" da sua cultura reconhecidos internacionalmente?
Estas questões parecem-me relevantes. A UNESCO já existe há imensos anos. Por que razão só começou em 2008 esta designação de Património Cultural Imaterial da Humanidade e de onde vem o interesse por esse reconhecimento?
Na minha resposta geral a este tipo de questões, admito que tudo me leva à globalização. Como já tem sido várias vezes referido neste blog, a globalização alterou, ou tentou alterar em muito o relacionamento no mundo. Ao considerarem o conceito de globalização mais relevante do que o propositadamente esquecido espírito de pátria, as nações dominantes têm-se entretido a realizar um jogo – o PIBismo - que não é inocente: como medida da importância dos países, comparam os respectivos PIBs com a facturação de grandes empresas multinacionais. De uma penada, privatizam assim a ideia de nação, que fica reduzida a aspectos meramente económicos. Facetas culturais, a existência de um património nacional e a já aludida noção de pátria são liminarmente ignoradas.
Como que a substituir a língua materna de cada indivíduo, as nações dominantes, nomeadamente as de língua inglesa, impõem o seu idioma. Os seus monoglotas governantes não têm que falar qualquer língua estrangeira; são os outros, todos eles, que terão de falar a sua língua.
Globalização e colonização andam de mãos dadas. Relativamente aos países mais poderosos, os outros tendem a ser vistos e tratados como colonizados. Quando antigamente os brancos portugueses e os brancos ingleses chegavam pela primeira vez de barco aos seus territórios coloniais, parecia-lhes que todos os nativos eram iguais. Praticamente indiferenciados. Só gradualmente é que alguns começaram a compreender que havia diferenças tão grandes entre eles como entre os brancos. Gente boa e gente má. Uns argutos, outros pouco inteligentes, uns carinhosos, outros rudes, uns falsos, outros tremendamente leais e sinceros.
É contra esta visão de um mundo pretensamente igual que muitas nações levantam a crista e cantam à maneira do galo as suas diferenças. Elas não são iguais a todas as outras. Têm as suas características próprias. Possuem uma identidade nacional, quer os poderosos queiram ou não queiram. É deste sentimento de revolta, creio eu, que nascem as candidaturas deste tipo. Contra as injustiças da globalização, as nações menos mediáticas pretendem um reconhecimento que seja igualmente global – através de um órgão representativo dos múltiplos países do mundo, como é a UNESCO.
Este ano, lado a lado com Portugal e o seu fado, estiveram, entre outros, os mariachi do México, a poesia ao desafio típica de Chipre, o teatro de sombras chinês, artes marciais da Coreia, canções da Croácia e rituais da Colômbia. A marcarem a diferença. Não competem entre si. Procuram apenas mostrar-se, exibir a sua especificidade própria perante um mundo que não pretendem ver estandardizado.
Curiosamente, as grandes potências de língua inglesa, v.g. Estados Unidos, Reino Unido, Austrália e Canadá, nem sequer ratificaram a convenção que sustenta a eleição para Património Imaterial da Humanidade. Não precisam. Entrar nestes domínios de características específicas até as faria perder a sua força total.
A terminar, alguns dados que retirei de uma notícia do Público: em 2009 houve 76 reconhecimentos oficiais, em 2010 foram aprovadas mais 47 candidaturas e este ano apenas 19, entre as quais a do nosso fado. Nesta luta pela identidade na era da globalização, viva o fado português!

12/02/2011

Cristianismo, marxismo e marktismo

Quando, há oito anos, um pequeno grupo de amigos pensou em criar este blog e dar-lhe um nome, achámos todos que "azweblog" poderia ser uma boa designação, na medida em que nos permitiria abordar assuntos de A a Z. É dentro deste amplo leque que hoje me proponho abordar de forma muito sucinta algo que terá certamente a ver com a sociedade dos nossos dias.

O cristianismo é, tal como o judaísmo e o islamismo, uma religião monoteísta que procura salvar o homem, impondo-lhe um conjunto de regras que o ajudem a viver melhor em sociedade. As religiões reconhecem que o ser humano é possuidor de uns tantos instintos básicos que precisam de ser combatidos a fim de permitir que a sociedade em que as pessoas vivem seja tão justa quanto possível e, principalmente, pacífica. O decálogo que encontramos para os judeus e para os cristãos abarca uma série de mandamentos que procura cercear o mau uso dos instintos humanos – a parte mais animal do homem, por assim dizer – a fim de proporcionar uma sociedade sem grandes problemas. No cristianismo ordena-se algo que considero bonito, embora perfeitamente utópico - "Amar o próximo como a nós mesmos." É imposto, por outro lado, todo um conjunto de "nãos", de que são exemplos os conhecidos "não matarás", "não roubarás", "não cobiçarás os bens do próximo", "não levantarás falsos testemunhos" e, ainda, "guardarás castidade nos teus pensamentos e desejos".
Por seu lado, uma oração fundamental dos cristãos, o Padre-Nosso, pede ao Senhor para perdoar os nossos pecados, "assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido".
Ora, diga-se o que se disser, todos estes mandamentos e ditames constituem uma violência para a natureza humana. Qualquer humano tem mais probabilidade de não respeitar um destes princípios e assim cometer pecados do que uma moeda atirada ao ar tem de ficar em pé.
Pessoalmente, como aliás digo acima, considero irrealista pretender que amemos o próximo tanto como a nós próprios. Se o que nos acompanha na rua é a nossa própria sombra e não a de outrem, se o sofrimento quando vem é sofrido por nós mesmos, como se poderá pretender que eu goste tanto do meu vizinho como gosto de mim mesmo? Só se me retorcer todo é que conseguirei cumprir este desígnio. Contudo, depois desse esforço titânico, é altamente provável que não responda por mim.
E como se poderá compreender que eu deva perdoar aos outros o mal que me fazem? Conhecendo a humanidade, se eu perdoar ao infractor, ele continuará a infringir as regras do bom-viver. Mais: se eu declarar previamente que lhe perdoo qualquer mal que ele faça, existem sérias probabilidades de ele não só continuar a cometer o mal como também de não sentir qualquer peso na sua consciência.
Se seguido à letra, o que o cristianismo preceitua é, pelo menos em minha opinião, muito contranatura, conquanto nos indique um caminho por assim dizer santificado e utopicamente desejável.
O cristianismo reconhece sete pecados mortais: a gula, a avareza, a luxúria, a ira, a inveja, a preguiça e a soberba ou vaidade. A gula é em princípio o desejo insaciável por comida e bebida, mas está também directamente relacionada com a cobiça, com o querer ter sempre mais e mais, o que a faz ligar à avareza ou ganância, que como todos sabemos demonstra um prazer excessivo por bem materiais. Os outros pecados capitais são, aliás como os anteriores, facilmente identificáveis, mas principalmente reconhecíveis como característicos do ser humano. Precisamos, em numerosos casos, de nos controlarmos firmemente ou nos "domesticarmos" para não incorrer neles. Fazem parte da nossa natureza, uns mais do que outros. A religião, e a educação que com ela vem, tenta denodadamente corrigi-los. Ainda que com bons propósitos, a sua acção corresponde a uma certa violentação de reacções nossas que consideraríamos normais e que assim nos esforçamos por reprimir.
Tanto o cristianismo como o marxismo – embora este seja não uma religião como o cristianismo mas sim uma doutrina política – advogam a justiça social. Karl Marx enraivece-se com a desigualdade social existente, manifesta-se contra a crueldade de uns possuírem muito enquanto outros passam fome e padecem de uma miséria atroz. Pretendeu criar um sistema que tornasse possível na Terra algo que o cristianismo messianicamente prenuncia e defende. Na base dos enunciados do marxismo reside uma exaltação do altruísmo e um sentimento profundo contra o egoísmo.
Inquirir se, quer o cristianismo, quer o marxismo genuínos são praticáveis é outra questão.É, porém, uma questão altamente relevante. O cristianismo e o marxismo apelam à natureza do homem, ao ser. É legítimo perguntar se ao ser humano bastará o ser. E onde fica o ter?
A pergunta tem toda a razão de existir, já que é um facto que ao comunismo se seguiu o consumismo. Passámos do ideal comunista à realidade consumista. Foi um compositor americano dos nossos dias quem enunciou bem a questão e de uma forma extremamente simples: "O comunismo não resulta, porque as pessoas gostam de ter coisas."
E é aqui que presentemente entra em grande força o marktismo. (Crio o neologismo utilizando como base a palavra alemã Markt (mercado) em vez do inglês market a fim de permitir uma sonoridade mais aproximada à de "marxismo", mas escrever "marketismo" é perfeitamente possível também.) Se o marxismo constitui, afinal, tal como o cristianismo, uma tentativa de controlo da besta humana que há dentro de nós, por seu lado o marktismo explora a libertação dessa bestialidade. Serve-se dos instintos menos controlados e mais ansiosos de prazer das pessoas para lhes apresentar uma doutrina aparentemente libertadora que é simultaneamente uma prática altamente lucrativa para os seus mentores. Com isto cria a evidente crise de valores de que muitos se queixam. É a política do vale-tudo. Enquanto cristianismo e marxismo aspiram a uma maior igualdade social, o marktismo combate-a, na medida em que a acha contranatura. Não só aceita a libertação do animal que está dentro de nós como a fomenta. Se aceita ajudar um pouco os mais pobres, fá-lo apenas como manta ilusória e por razões de conveniência social, para sua própria segurança.
Para o marktismo, o desemprego constitui apenas um fenómeno natural; o cumprimento de objectivos dos que desempenham um lugar numa empresa ou na administração pública transforma-se no objectivo número um. A acumulação de riqueza por uns poucos, que se tornam extraordinariamente poderosos em comparação com o que sucedia num passado ainda recente, isenta de julgamentos de valor esses mais poderosos porque a fortuna os torna "predestinados". Não consideram falta de ética mas sim um mero uso do seu poder o facto de manipularem a justiça e usarem os seus lobbies para conseguir legislação que os favoreça. Rotulam de invejosos os que os contestam. Eventualmente apodam-nos de "velhos do Restelo" também (em vez de rebaterem argumentos, atacam os mensageiros). O mundo é seu. O poder inebria-os. A globalização deu-lhes a volta à cabeça, os meios tecnológicos serviram-lhes às mil maravilhas para escapar a realidades que fariam reduzir os seus réditos.
O que daqui resulta é um extraordinário sentimento de revolta na população que fica de fora e que, pelos princípios actuais, é considerada “redundante”: os “indignados” manifestam-se exuberantemente, a maioria permanece silenciosa e igualmente receosa: revoltar-se contra o poder pode custar caro.
Não é impossível que este marktismo seja de longa duração – fazer previsões é quase sempre errar – mas não lhe auguro bons resultados. Onde prevalece actua ditatorialmente apesar de consentir umas tantas liberdades, entre elas a de voto, mas a farsa não pode durar sempre. Confiemos na revolta da humanidade contra o presente statu quo.

12/01/2011

Poesia de A a Z

Para a letra O, a dificílima tarefa de escolher apenas um poema de Alexandre O' Neill. Depois de grande hesitação, aqui fica o incontornável «Portugal»:


Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!

*

Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há “papo-de-anjo” que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...


Alexandre O'Neill in Feira Cabisbaixa