12/29/2009

Reservado

Nos transportes colectivos, lastima-se que os lugares reservados a pessoas inválidas e a grávidas ou com bebés ao colo sejam frequentemente ocupados por humanos que aparentam óptima saúde. "Pois é! Por fora parece que estou bem. Mas só eu sei como me sinto!" Com mais uns ais de dores contidas, uma senhora de cinquenta e tal anos rapa do seu doloroso historial de três operações, dois panarícios e uma coluna que Deus-te-livre. E, impante no seu sindroma de auto-coitadinha, continua sentada, à espera que seja outro a dar o lugar ao homem que traz o bebé ao colo.
Num país com uma velhice galopante, seria natural que aqueles lugares permanecessem vagos, aguardando que fossem pessoas de muita idade a usá-los. Não parece ser esse o sentido das coisas. E que tal se houvesse multas para quem se sentasse indevidamente nesses lugares, tal como há multas para quem for apanhado a viajar sem bilhete?

12/25/2009

Desejando a todos umas Boas Festas, não resisto a transcrever o poema "Dia de Natal", de António Gedeão. Vale a pena lê-lo, apesar de um bocadinho extenso...


Dia de Natal

Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.

É dia de pensar nos outros - coitadinhos - nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.

Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes, a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.

De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.
Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.
Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.

Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.
A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha~se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra - louvado seja o Senhor! - o que nunca tinha pensado comprar.

Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.

Cada menino
abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora
já está desperta.
De manhãzinha
salta da cama,
corre à cozinha
mesmo em pijama.

Ah!!!!!!!!!!

Na branda macieza
da matutina luz
aguarda~o a surpresa
do Menino Jesus.

Jesus,
doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.

Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.

Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.

Dia de Confraternização Universal,
dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.

12/24/2009

Boas Festas


Feliz Natal para todos! Para os que estão em Portugal, que 2010 seja um ano que, contra ventos e marés, consiga contrariar as pessimistas previsões que se fazem diariamente.

12/20/2009

Vocês

Há dias recebi um e-mail de um velho amigo, que é inglês mas fala e escreve português praticamente como nós. É alguém que já vive há longos anos na Ásia, tendo no entanto morado alguns anos em Portugal, onde foi professor de línguas. Tem mantido contacto com o nosso país através de familiares e amigos que aqui possui e que visita sempre que lhe é possível. Colocava-me uma pergunta aparentemente simples: o plural de "tu" é "vocês"? O problema dele derivava de uma cartinha que tinha escrito para as suas pequenas netas. "Vós" não lhe soava bem, mas nenhuma das suas gramáticas lhe dizia que a forma correcta era "vocês", a qual no entanto era a que lhe vinha de pronto à mente.
Respondi-lhe que sim e acrescentei-lhe mais alguns pormenores. Mas admito que fiquei a pensar no assunto. O que vou adiante escrever são algumas dessas cogitações, que serão eventualmente confirmadas ou rejeitadas por leitores deste blog, tão portugueses como eu.
Quando nos lembramos dos nossos tempos de escola, recordamos que os pronomes pessoais que nos ensinavam eram: eu, tu, ele, ela – no singular - e nós, vós, eles, elas, no plural. O "você" não aparecia, nem tão pouco o "vocês". Consultei uma gramática da língua portuguesa editada há três anos e constato que não existem alterações relativamente ao que me foi ensinado. Contudo...
Contudo, o "você" é usadíssimo, e o "vocês" não será possivelmente menos. Lembro-me de ouvir os meus familiares dizerem-me que "você" era uma forma algo depreciativa. Por essa razão ou por outra, pessoalmente uso-a muito pouco, eliminando geralmente o pronome pessoal sujeito na conversa. Ao dizer "Como sabe," a uma pessoa, digamos que não a estou a tratar por tu, mas também não utilizo o "você". Elido-o. É o que muitos outros portugueses fazem. Recordo-me que quando passei a ter na família pessoas que não tinha tido até então – sogros - fiquei com um problema: como é que os vou tratar? Pelo nome e por tu pareceu-me abusivo. Por "pai" e "mãe" não me calhava nada. A história da possibilidade de um dia vir a ouvir "Vai chamar pai a outro!" ocorreu-me. Resolvi a questão através da elisão do pronome pessoal e passei a dizer coisas do género de "Como já vos disse", ou, dirigindo-me apenas a um deles, "Como lhe contei no outro dia". Já lá vão quase quatro décadas e devo dizer que não tenho tido quaisquer problemas. Nunca me passou pela cabeça dizer-lhes: "Como vocês sabem,..." Pareceu-me, talvez pela minha educação – também nunca chamei "velhos" aos meus pais – que o termo "vocês" soava algo depreciativamente. Mas será mesmo assim? Entretanto, com outras pessoas que não tutuo (este verbo não existe no meu dicionário com o significado de "tratar por tu", mas deveria existir), digo coisas como "Ó Manuela, não acha que...?" e a questão fica resolvida.
O "você", tal como terei aprendido, deriva de uma forma hoje perfeitamente antiquada: "Vossa Mercê". Daqui terá passado a "vossemecê" e, posteriormente, a "você". De há várias décadas a esta parte, a influência do Brasil telenovelado terá contribuído fortemente para a divulgação do "você" em Portugal.
E será que "você" se usa com a mesma pessoa verbal de “tu”, i.e. a segunda do singular? Não. E não poderia ser de outra maneira, pois sempre que eliminássemos o pronome as formas do verbo sairiam iguais. "Você" usa-se com a terceira pessoa do singular. Por seu lado, "vocês" usa-se com a terceira pessoa do plural. A segunda pessoa do plural, v.g. "sabeis", "sois" está em vias de extinção e só se usa com "vós", que está igualmente moribundo, se exceptuarmos as palavras de membros eclesiásticos e de algumas pessoas do interior do país. (É interessante notar que, no decorrer da missa, se opera entre o padre e a congregação um algo inesperado "vós" e "tu", em latim: Dominus vobiscum (Que o Senhor seja convosco!) Et cum spiritu tuo (e com o teu espírito).
Entretanto, a (con)fusão do plural com o singular é algo que nos faz pensar um pouco na estratificação da sociedade em classes, umas mais elevadas do que outras. Se repararmos em Vossa Majestade e Vossa Alteza, em Vossa Senhoria e na mencionada Vossa Mercê já em desuso, mas também no Vossa Excelência ainda hoje muito frequente, notamos que o "vossa" é pedido emprestado ao pronome possessivo com características de plural – "o vosso pai" ou "a vossa mãe" geralmente implica que se está a falar para mais de uma pessoa. Mas é um facto que poderei estar a dirigir-me apenas a uma pessoa que tenha muita idade e/ou por quem eu nutra muito respeito e tenha alguma hesitação em usar o mais comum "o seu pai" ou "a sua mãe". Isto implica que a consideração que um rei ou uma princesa nos merece, ou alguém que ocupa um importante cargo político pode levar-nos a olhá-los como mais do que uma pessoa. Por isso, Papas, Reis, Presidentes da República e quejandos usarão o plural majestático: "Parece-nos que..." (Se eu, ao dar a minha opinião a um amigo, lhe disser "Parece-nos que..." ele dir-me-á de pronto: "Parece-nos a quem? A ti e à bicha solitária que tens aí dentro?", no que terá toda a razão).
Ora, aqui coloca-se a pergunta: esta estratificação de classes também entrará no uso de "vocês"? Estou em crer que sim. Imaginemos uma casa de gente rica e algo snob que contrata uma empregada para tomar conta da Filipinha e da Inês, meninas pequenas como são as netas do meu amigo inglês. Se a mãe das pequenitas ouve a empregada a repreendê-las "Vocês não podem fazer isso!" poderá chamar-lhe a atenção para que não use o "vocês" (ela não é suposta tratá-las por "tu"), mas sim "A Filipinha e a Inês não podem fazer isso" ou "As meninas não podem fazer isso!"
O que digo aqui para uma casa rica é também verdade, creio eu, em jardins de infância, nomeadamente naqueles em que casais com mais posses depositam os seus filhotes. "Os meninos e as meninas" será a forma correcta. "Vocês" não deve ser usado.
E aqui entramos na última forma que me proponho abordar, que está ligada também ao sentido de superioridade de classe de uma determinada pessoa, um género de "o menino" ou "a menina", mas agora na versão adulta. Quando o menino se forma em Engenharia e a menina em Direito passam a ser, respectivamente, "o senhor engenheiro" e "a senhora doutora". A partir daí, o protocolo continua a exigir que, com excepção de familiares chegados, quando alguém se lhes dirige deva dizer "Como está o Senhor Engenheiro?", ou "A senhora doutora vai de férias em Agosto?", isto é: embora esteja na presença do engenheiro e da advogada, quem se lhes dirige fala com eles como se estivesse por exemplo a falar com a mãe deles. É a grande distância hierárquica que impera na sociedade portuguesa ainda a funcionar. Aliás é a distância hierárquica que leva casais de famílias "bem" a usarem entre si "você" em vez de "tu", para se distinguirem dos mais comuns mortais, como se não fossem para a cama juntos. Mas isso seria outra história.
Já agora, em inglês é tudo you, não é verdade?
Para finalizar, espero que vocês desculpem a lenga-lenga. E Boas Festas para todos vós!

12/17/2009

Uma prenda de Natal emprestada

Ao contrário do que sucede quando nos oferecem uma coisa, sempre que algo nos é emprestado temos obrigação de proceder à respectiva devolução tão depressa quanto possível. Acabo de receber um soit disant "empréstimo" que me alegra e que, dada a quadra que atravessamos, me permito incluir nas minhas prendinhas natalícias.
Leio no título principal do jornal Público que a "entrada em vigor do acordo ortográfico nas escolas não ocorrerá antes de 2011/2012". Sem ser óptima, é uma notícia satisfatória. E satisfatória pelo menos por três motivos: primeiro, porque os responsáveis entendem que deve haver um período de reflexão anterior à entrada do dito acordo, com preparação conveniente por parte dos professores; segundo, porque durante esse período preparatório e de reflexão pode acontecer que finalmente se descortine o tremendo disparate que o acordo representa e a falta de discussão democrática que ele registou; terceiro, porque a notícia não fixa uma data para a entrada em vigor do acordo nas escolas – sabemos apenas que não será antes de 2011/2012. Esperamos que fique adiado para as calendas.
O meu sapatinho de Natal ficou mais confortado.

12/14/2009

Felicitando o Metro



Sempre gostei do Metro de Lisboa. Depois daquela arrancada já há 50 anos, em que os comboios eram confortáveis e as estações foram decoradas com azulejos geométricos na sua maioria por Maria Keil, veio a fase de expansão e re-decoração de algumas das estações antigas. Passámos a contar com um Metropolitano excepcional. Os anos 90, com a construção da estação da Alameda e depois a linha vermelha até à EXPO’98, hoje Parque das Nações, terão sido o período mais brilhante. Artistas de todo o mundo embelezaram com a sua arte, geralmente através da azulejaria, as novas estações. Entre estas, sobressaem – a escolha é difícil - as do Campo Pequeno, do Parque, Olaias, Oriente, Bela Vista, mas também as da Cidade Universitária, o Campo Grande, Jardim Zoológico, a de Entrecampos com o belo trabalho de Bartolomeu Cid dos Santos, etc. Se na minha listagem me esqueci de alguma mais significativa, creio que me redimo ao dizer que gosto praticamente de todas elas.
Por outro lado, sou há muito um felizardo por morar junto à Alameda Afonso Henriques. Agora ainda mais no que diz respeito a transportes. No final do Verão passado abriu um troço pequeno mas extremamente útil. Parabéns ao Metropolitano de Lisboa por ter avançado com obras que foram morosas, dispendiosas e certamente difíceis. O pequeno troço a que me refiro não criou propriamente nenhuma nova estação, mas ligou três delas que passaram a ser vitais. E, felizmente, muito concorridas – por serem utilíssimas. O número de carruagens aumentou para o máximo, i.e. todas as vastas gares são ocupadas. O conforto no interior das carruagens não diminuiu e as vantagens são notórias.
Contudo, e esta é a razão principal que me levou a deixar aqui umas linhas, muito pouca gente veio elogiar esse facto. Que eu tivesse visto ou ouvido, ninguém gabou a obra. Porquê? Talvez porque aparentemente só se fala do que está mal. Quando se termina uma coisa bem feita, é como se nada tivesse ocorrido. Ignora-se. É uma situação que me lembra aquilo que sucede quando somos miúdos e nos esforçamos por agradar aos adultos, e depois estes apenas nos dizem "Não fizeste mais do que a tua obrigação!". É por estas e por outras que, com justeza, os homens do marketing nos informam que uma acção de melhoria da imagem das empresas ou instituições tem, em regra, um efeito multiplicador de 3. Por seu lado, uma notícia negativa sofre um efeito multiplicador de 11!
Para nos darmos conta da melhoria introduzida por este troço que subterraneamente atravessa o edifício do Instituto Superior Técnico, o Arco Cego, a Avenida da República, a Avenida Duque de Ávila e chega a S. Sebastião da Pedreira, consideremos o caso de uma pessoa que, durante anos, utilizou o Metro para ir da Praça de Espanha para a Alameda. Como a Praça de Espanha fica na linha azul e a Alameda na linha verde, a pessoa em questão fazia o percurso até à Baixa-Chiado, onde tomava então um comboio da linha verde. Ao todo, passava 12 estações. Presentemente, essa mesma pessoa, faz uma estação até S. Sebastião, e aí muda para a Alameda. Em vez das doze estações anteriores, passa apenas três! Do esquema antigo para o actual vai, em matéria de tempo e de comodidade, uma distância muito razoável. Pois disto não se fala!
Este novo troço intercepta em pontos centrais a linha azul, a amarela e a verde. Como esta liga com a linha vermelha, a solução foi notável. Não aumentou a velocidade dos comboios, mas proporcionalmente e ressalvadas as devidas diferenças, os ganhos foram incomparavelmente maiores do que os prometidos pelo muito badalado TGV. No entanto, repito, sobre esta inovação os media não expressaram qualquer regozijo. Embora se saiba que cada um vê a realidade com os seus próprios olhos, sente-se que a generalidade dos portugueses está mais virada para agredir com palavras do que para se congratular pelas obras realizadas. Pessoalmente, sinto que existe uma necessidade urgente de o país mudar de agulha na sua formatação mental e tornar-se mais positivo. Ficará, sem dúvida, menos azedo e mais feliz.
Os metropolitanos de Londres, Paris e Madrid possuem uma rede bem maior do que a do Metro de Lisboa. Mas não os queiram comparar em termos de beleza, conforto e modernidade com o nosso. Seria bom que se reconhecesse isso.

12/12/2009

Pode não ser a mesma coisa, mas é muito bom!


A Casa da Música, do Porto, inaugurou um canal televisivo na Internet, através do qual emitirá regular e gratuitamente os concertos nela realizados, além de disponibilizar outros conteúdos. Sabendo-se que, se considerarmos apenas os melómanos da região do Porto interessados em assistir aos concertos, os lugares que existem são muito disputados, esta constitui uma óptima notícia, na medida em que proporcionará em directo a transmissão dos concertos para todo o país e estrangeiro. Proximamente, segundo um dos administradores, será constituído um arquivo on line. Até lá, se não tem ainda o endereço, anote-o: www.casadamusica.tv
É bom poder saudar o aparecimento desta possibilidade no nosso país. Nos finais do século XIX, só um privilegiado como o rei D. Luís conseguiu que fosse instalada uma linha telefónica directa do S. Carlos para o Palácio Real, a fim de que ele, então de luto, pudesse ouvir a música executada a uns quilómetros de distância. Agora, este é um verdadeiro serviço público, democratizado, que, segundo as palavras do administrador-delegado da Casa da Música, representou um investimento muito pequeno. Quando se quer, conseguem-se coisas interessantes.

O espírito colonizador não desaparecerá tão cedo


A crença na superioridade do homem branco sobre todas as outras gentes do globo ressalta claramente da recentíssima afirmação de Tony Blair aos microfones da BBC: "Teria sido correcto derrubar Sadam mesmo sem provas da existência de armas de destruição maciça."
Mais comentários para quê?

12/09/2009

Comparando

Hoje ao serão tive oportunidade de dar uma vista de olhos no Público e no último número da Newsweek. Houve dois artigos, um no jornal e o outro na revista, que me chamaram a atenção. Se não se importam, partilho um pouco dessa leitura convosco.
No artigo do Público, intitulado "Portugal de cócoras" e assinado por Santana Castilho, li o seguinte, mais ou menos no início: "Os dirigentes da Europa reuniram-se em Lisboa, em Março de 2000, e definiram vários objectivos a serem atingidos pela Estratégia de Lisboa em 2010, visando tornar a Europa na realidade económica mais competitiva do mundo. A educação e a formação ocupavam boa parte dos propósitos. Chegados ao momento da verdade, 2010 está aí, tudo falhado. Desolador! Palavras, propósitos atrás de propósitos incumpridos."
Por sua vez, o director da Newsweek titulou o seu artigo "As raízes da estabilidade". Começa assim: "Há um ano, parecia que o mundo ia desabar. O sistema financeiro mundial, que tinha sido o motor da grande expansão do capitalismo e do comércio, desmoronava-se. O modelo americano parecia não fazer sentido, e as certezas da era da globalização – as virtudes do mercado livre, do comércio e das novas tecnologias – estavam na mira dos cépticos. Os mercados emergentes que tinham anteriormente patenteado grande saúde estavam em queda, o comércio registava os níveis mais baixos desde a década de 30 do século passado, enquanto os analistas começavam a falar de instabilidade política e de violência nas zonas do globo mais atingidas pela crise. Em todo o mundo existia apenas uma firme certeza: nada voltaria a ser como dantes. Ora, um ano depois, contamos com dois bancos a menos na Wall Street (três, se incluirmos o Merril Lynch), e houve alguns bancos regionais falidos. Mas, à parte isso, o mundo parece estar muito na mesma. Garantidamente, não está na situação em que se encontrava nos mencionados anos 30."
O que notamos à primeira vista? Duas formas de comparar o presente com o passado. Só que, enquanto o articulista português se serve da ambiciosa Estratégia de Lisboa do ano 2000 para depois, eu diria "triunfalmente", desaguar no actual panorama "desolador", o americano faz a sua comparação entre as negras perspectivas do ano passado e a situação actual que, afinal, como afirma, não é tão má assim. Quem ler o artigo português assiste ao desancar dos governantes e das suas promessas não cumpridas, concluindo com o "Portugal de cócoras". O leitor do artigo americano alegra-se com o facto de as raízes da estabilidade não terem sido tão sacudidas como a princípio se julgava.
São duas perspectivas bem diferentes de escrever e de olhar o mundo. Numa delas, atiram-se farpas e nada se constrói. Na outra, recorda-se que a maioria das nuvens negras tem uma orla prateada que nos dá esperança.
Longe de mim dizer que todos os artigos portugueses são desancadores e auto-flageladores e que todos os americanos são optimistas. Mas que uns e outros para aí apontam não tenho a mínima dúvida, embora não possua números que me permitam fundamentar a opinião.
Será que os meus amigos, com quem partilho esta leitura, concordam? E quais são os resultados dessa diferença de atitude em termos de satisfação e de produtividade?

12/05/2009

Escrita apócrifa

A notícia de que dois ou três textos que circulavam ontem na rede de e-mails e de blogues eram falsos não pôde deixar de me alegrar. Não exactamente devido às pessoas que neles intervinham, que até poderão ter dito coisas semelhantes, melhores ou piores, mas porque finalmente há algo que serve publicamente de alerta relativamente à veracidade ou falsidade do que aparece escrito na Internet.
Dois dos documentos em questão também chegaram às minhas mãos. Dei-lhes uma vista de olhos e reenviei-os no mesmo mail para apenas duas pessoas que ficariam, em princípio, contentes com a sua leitura. Claro que duvidei da sua autenticidade, principalmente quando li no "Assunto" VERDADEIRA TRANSCRIÇÃO (falar alto, como é escrever em letras maiúsculas, implica muitas vezes o querer ter razão embora não a tendo).
Na realidade, a prática de escrita apócrifa vem de muito longe, incluindo textos religiosos. A invenção da imprensa veio incentivá-la. A existência da Internet disseminou-a com toda a facilidade. Curiosamente, ainda esta semana escrevi a um familiar que me tinha enviado um texto, chamando-lhe a atenção para a grande probabilidade de aquele texto não ser verdadeiro. O facto de uma coisa estar escrita não quer de maneira nenhuma dizer que ela seja verdadeira e, como todos sabemos, pode ser – e é frequentemente – uma forma manipulada de influenciar a nossa opinião.
Que me tenha apercebido, nos e-mails que todos nós ajudamos a polinizar, circulam principalmente três autores com textos que eles nunca escreveram: Fernando Pessoa, Eça de Queirós e Eduardo Prado Coelho. Deste último tem-me chegado de várias fontes um em que o autor castiga exemplarmente os políticos. Ora, EPC era, felizmente, um homem de ideias, as quais adorava debater, e não se imiscuía muito na vida política desta forma. Gostava de ir ao fundo das coisas e não ficar pela superfície avulsa dos personagens que adornam a cena política. Curiosamente, a primeira vez que me chegou esse texto, ele trazia a indicação da data em que EPC tinha falecido mas não mencionava o mesmo relativamente ao jornal ou dia em que o referido texto tinha sido publicado. Na segunda vez que se me deparou o mesmo texto, já vinha acompanhado de uma caricatura do autor!
O sagaz António Aleixo, poeta algarvio do século passado (1899-1949), descreveu, na forma comprimida de quadra que ele tão bem conhecia, a técnica da mentira:

P’rá mentira ser segura
E atingir profundidade
Tem de trazer à mistura
Qualquer coisa de verdade.

Uma caricatura, um retrato, uma assinatura, podem ser bons exemplos dessa "qualquer coisa de verdade".
Porque é que se escolhem pessoas conhecidas como Fernando Pessoa ou Eça de Queirós? Porque, tal como nos anúncios de pastas dentífricas que são "recomendadas por 95 por cento dos médicos", é conveniente que esteja alguém respeitável a atestar a veracidade da coisa. Os textos de Fernando Pessoa que circulam de vez em quando nas catadupas de e-mails com que amigos de boa-fé nos bombardeiam com regularidade são geralmente em prosa, como prosaica é a maneira de pensar actual que eles revelam. Com o Eça passa-se o mesmo. E ambos já morreram...
Poderá perguntar-se: qual é o gozo de fazer isso? Imenso! Ser capaz de ludibriar meio-mundo pode dar um gozo extraordinário. Pessoalmente, recordo-me de três histórias em que fui interveniente e que me deram especial prazer. Se me permitem, conto-as aqui abreviadamente. A primeira ocorreu no meu 7º Ano de liceu. Eu adorava Walt Whitman, que lia numa edição baratucha – que ainda hoje conservo – da Pocket Books, Inc. A minha admiração pelo poeta americano era tal que não conseguia resistir a ler vários dos seus poemas em voz altíssima, pelo que sofri uma repreensão na casa onde estava então a morar. Uma vez escrevi o meu primeiro poema em inglês e mostrei-o ao meu professor de então, no final de uma aula. Perguntei-lhe se ele conhecia aquele poema do Whitman. Que não, disse-me ele, mas que tinha gostado muito. Enchi-me de coragem e disse-lhe que eu o tinha escrito na véspera, inspirado no estilo do autor. Não acreditou e repreendeu-me por eu estar a tentar gozar com ele. Avisou-me que era a última vez que isso sucedia. Eu era um dos melhores alunos da aula. Fiquei contente com a sua reacção. Até hoje não a esqueci, como se vê.
Numa outra ocasião, durante a guerra colonial em Angola, resolvi ensaiar uma velha táctica da contra-informação. Espalhei um boato que nos era favorável e que continha variados pontos que o tornavam verosímil. Foi com grande prazer que ouvi o dito repetido meses depois em Nambuangongo (próximo de onde eu estava na altura) e em Luanda, mais tarde.
O terceiro caso que me ocorre foi bastante diferente. Durante a década de 90, a minha actividade profissional levou-me a assistir a vários congressos, simpósios e seminários sobre turismo. Uma vez, num seminário realizado num hotel de Cascais juntei-me, durante a pausa para o café, a um grupo de pessoas que, em frente ao bar, contavam as coisas mais diversas. Uma delas chamou-me a atenção: alguém que eu nunca tinha visto estava a falar sobre a correcta maneira de actuar dos guias-intérpretes. Citou o caso de um guia que, no Palácio do Hermitage, em São Petersburgo, sabendo que no grupo que conduzia havia portugueses, os levou expressamente a uma sala geralmente não visitada onde estava um enorme e impressivo retrato de Inês de Castro,pintado por um francês. Salientou o indivíduo que estava a narrar o caso que aquela era a prova provada de que o guia-intérprete precisa de saber quem tem no seu grupo e falar de acordo com isso. Em suma: deve adequar o discurso ou a visita ao cliente. Pessoalmente, ouvi a história com grande interesse. A pessoa que a contou foi fiel ao que tinha lido num livro saído havia pouco tempo sobre a temática dos guias-intérpretes. A história era verdadeira e, o que é mais, tinha-se passado comigo, que a tinha descrito no dito livro.
Experimentei na altura uma sensação bastante interessante. Senti o poder da divulgação de ideias e como é útil a partilha. Não me dirigi logo à pessoa em questão, mas quando voltávamos para a sala onde se realizava o seminário apresentei-me e dei-lhe os parabéns pela forma como ele relatara o episódio.
Ora bem. Se eu próprio conto aqui estes factos, é porque imagino o enorme gozo que um indivíduo criativo deve sentir quando inventa uma treta qualquer, a despacha por e-mail e vê um sem-número de pessoas a engoli-la. O supremo prazer ocorrerá quando, após um circuito maior ou menor, a referida balela lhe for um dia enviada por um amigo que desconheça em absoluto quem foi o seu autor.
É por este conjunto de razões que aprecio que tenha sido tornada pública em vários jornais, e certamente na televisão, a notícia de que os textos que ontem circularam eram falsos. O aviso fica dado e é bom que sirva de lição. Ajuda a formar aquilo que geralmente se denomina de "massa crítica".

12/02/2009

O nobelizado Obama


De Deus para diabo ou, como se costuma dizer em Portugal relativamente ao futebol, de bestial para besta - nada disto se passa com Obama. Mas dizer que ele está, na presidência dos EUA, a ter o mesmo sucesso que teve como candidato será uma enorme mentira.
No seu próprio país, onde pretende encetar algumas das reformas que fazem parte do seu programa, entende-se, de certo modo, que haja reacção, por vezes forte e acalorada. As reformas agradam quase sempre à maioria, mas geralmente desagradam a uma minoria que se encontrava feliz no seu statu quo. A guerra no Médio Oriente e a questão da saúde são os casos mais importantes. Mas o pior é que os seus opositores aproveitam tudo para o deitar abaixo: fez uma vénia demasiado respeitosa ao imperador japonês; tem gasto pouco do seu tempo com o problema mais agudo do país: o desemprego; regressou da Ásia de mãos a abanar no que respeita a vitórias diplomáticas; não obteve nenhum sinal de respeito por parte dos israelitas; consentiu que os alegados conspiradores do 11 de Setembro de 2001 fossem julgados em tribunal penal e não pelos militares; tem hesitado muito relativamente ao Afeganistão; etc. etc.
Pessoalmente, o que mais me custa em Obama é vê-lo, afinal, a seguir não só a mesma política de Bush relativamente ao Médio Oriente como a usar a mesmíssima argumentação. Que é falsa. Veja-se: We did not ask for this fight. On September 11, 2001, 19 men hijacked four airplanes and used them to murder nearly 3,000 people... Just days after 9/11, Congress authorised the use of force against al-Qaeda and those who harboured them - an authorisation that continues to this day... Estas foram as palavras que ele utilizou. Toda a gente sabe, oito anos passados desde o 11 de Setembro, que já existia toda uma estratégia delineada pelos Estados Unidos relativamente ao Iraque e ao resto. Quanto ao Iraque, foi impressionante, por exemplo, ver como tudo o que dizia respeito ao assalto ao Museu Nacional de Bagdad estava cuidadosamente preparado. O 11 de Setembro que, aliás, continua com alguns enigmas por esclarecer, constituiu o gatilho de que Bush necessitava para desencadear mais uma acção bélica americana. Considerar a destruição das Torres Gémeas do World Trade Center como um ataque ao país (!) foi a decisão imediata dos EUA, para que os seus aliados da NATO pudessem colaborar com eles na aventura do Médio Oriente. Quando houve o atentado de Atocha em Madrid, ninguém falou de ataque de uma potência estrangeira a Espanha. Em Londres, aquando do ataque terrorista no Metro, ninguém se lembrou de pedir o auxílio de países da NATO, como é óbvio.
Ora, o facto de Obama usar os mesmos argumentos é decepcionante. Para muitos americanos, também, que estão fartos de guerra e vêem agora que 30 mil militares irão reforçar as forças que se encontram no Afeganistão a desilusão é grande. É que tudo isso acarreta despesas brutais, num país que está a braços com uma grave crise de desemprego e tem seriíssimos problemas de défice público. É evidente que uma medida como esta nunca poderia ser bem recebida. "Fazer a guerra para alcançar a paz" é o argumento favorito dos falcões. Não foi como tal que Obama foi eleito. E então como Prémio Nobel da Paz...