3/29/2011

O gastador optimista



A esmagadora maioria dos políticos executivos sente dentro de si uma necessidade de realizar obras que fiquem a marcar o seu período de governação. Há aqueles que são comparativamente comedidos e os outros que esbanjam verbas muito acima do limite para deixarem para a posteridade obras de grande vulto. Grosso modo, os gastadores compulsivos mostram muito mais desejo de apresentar "fazedoria" do que propriamente denotar sabedoria. Cada um tem o seu estilo.
Recordo-me bem, até porque o escrevi neste blogue quando Sócrates iniciou o seu primeiro mandato em 2005, que a sua primeira grande prova de fogo seria a maneira como ele iria tratar o caso Alberto João Jardim. Se conseguisse refrear o governante madeirense nos seus anseios despesistas, teríamos primeiro-ministro que se visse. Caso contrário, seria apenas mais um da mesma cepa. Creio que não deixei de ter razão neste ponto. Depois de uma série de reformas altamente prometedoras que davam toda a indicação de que finalmente aparecia alguém para pôr o país nos eixos, foi o próprio Sócrates que enfileirou pelo despesismo, com projectos megalómanos como o do novo aeroporto de Lisboa e do TGV, além de, entre várias outras medidas, se ter decidido mais tarde por um aumento de 2,9 por cento a toda a função pública, em vésperas de eleições. E, como o exemplo é sempre mais importante do que as palavras, ele deixou de ter quaisquer possibilidades de conter o Presidente Jardim.
Hoje estamos em 2011. Houve muitos políticos eleitos pelo país fora que fizeram obras de relevo. Na maioria dos casos – que não na totalidade – endividaram os municípios ou as regiões que lideravam. Apenas dois exemplos: tanto Isaltino de Morais, que se mantém à frente do seu concelho de Oeiras, como Alberto João Jardim, que é há décadas o líder da ilha da Madeira, se mantêm nos seus postos. Apesar de terem excedido os plafonds financeiros de que dispunham, realizaram várias obras louváveis. São gastadores.
Porém, entre eles e o primeiro-ministro demissionário José Sócrates existe uma diferença de relevo. Esta diferença reside no facto de que, descontando alguma eventual subida nos preços de receitas camarárias ou regionais, como os da água, electricidade ou IMI, nem Isaltino nem Jardim são vistos como responsáveis pelo aumento dos impostos a nível nacional, embora contribuam para isso. Todo o ónus acaba por recair sobre o primeiro-ministro e sobre o ministro das finanças, que não controlaram devidamente o despesismo. As escolas novas que são inauguradas, os milhares de computadores Magalhães que foram distribuídos a alunos do ensino básico, os novos troços de estrada abertos, as SCUTs, etc. podem ser alvo de grande propaganda, mas depois vem o reverso da medalha. Quando os contribuintes à escala nacional vêem aumentado o IVA e notam que os seus salários ou as suas pensões de reforma sofreram uma diminuição ou um congelamento, além de constatarem que diversas medidas de austeridade entretanto decretadas diminuem a sua qualidade económica, é absolutamente natural que não perdoem ao chefe do executivo. Mais: sentem-se ofendidos quando reparam que, apesar da nítida diminuição do poder de compra da esmagadora maioria dos cidadãos, as instituições bancárias, protegidas fiscalmente pelo Estado ou indevidamente nacionalizadas, lograram obter volumosos lucros ou carecem de elevados subsídios estatais.
O povo sente agora, mais do que nunca, que o optimismo do primeiro-ministro, que incessantemente alardeou o seu caminho de vitória em vitória que acabou por conduzir à sua derrota final, não tinha razão de ser. E, consequentemente, não lhe dá o seu perdão. A população ou se queixa ou teme vir a ter que se queixar no futuro que se aproxima com cores de cinza mais ou menos escura segundo a perspectiva de cada um. Nervosa, a sociedade torna-se um poço de conflitos e, com a lógica que caracteriza os humanos, arranja um culpado sobre o qual lança todos os seus dardos: é a história do bode expiatório. Sócrates poderá naturalmente estar a pagar por mais coisas do que as que lhe são efectivamente atribuíveis, mas isso, como Guterres gosta de dizer, "é a vida". A isto acresce o facto de o primeiro-ministro se ter envolvido em casos no mínimo dúbios, que o deixaram suspeito aos olhos de muitos e colocaram mal a justiça portuguesa.
Ora, este é um país no qual ainda há poucos anos um antigo ditador foi eleito num concurso televisivo como a figura mais proeminente da história de Portugal. Suplantou todos os outros concorrentes e, note-se, havia figuras de muito peso histórico. Descontando o facto de um concurso de televisão não possuir uma base científica – mas mesmo assim conter um iniludível impacto quando é efectuado pela estação televisiva estatal - , como foi possível que Oliveira Salazar tivesse sido preferido aos demais? Só por descontentamento com a situação do pós-25 de Abril, por um lado, e por um pacote de razões diversas, por outro. Que razões podem ter sido essas? Não foi certamente pela criação da PIDE, nem pelo clima de medo que se instalou no país, nem por Salazar ter decidido lutar pela manutenção dos territórios ultramarinos. Foi basicamente, suponho, por ter conseguido manter Portugal fora da Segunda Grande Guerra, por ter logrado habilmente manter o povo entretido com gestas patrióticas e com a exaltação da nação em vários domínios e, crucialmente, por ter deixado o país com reservas substanciais de ouro, que lhe garantiam uma moeda relativamente estável após períodos muito conturbados. A disciplina férrea, ditatorial, de Salazar relativamente às finanças nacionais, sem que o próprio fosse acusado de acumular riqueza,foi um factor que agradou a muitos portugueses. Foi em certa medida o oposto do que agora se verifica. Os ecos das contas das duas primeiras décadas da República portuguesa ressoam neste momento e, paradoxalmente do ponto de vista político, elevam a figura já desaparecida e mitificada de Salazar ao mesmo tempo que condenam severamente todos aqueles líderes que embarcaram na febre do despesismo sem pensarem na conta que um dia lhes vai ser apresentada.
Que o último da longa série de dirigentes executivos da política nacional, José Sócrates, se mantenha com um sorriso nos lábios e optimista representa para muitos portugueses um desaforo. Já agora: que o seu partido o tenha reeleito com mais de 90 por cento dos votos parece um suicídio. Pode ser um personagem atraente do ponto de vista físico, pode ser eloquente no seu verbo, possuir características de líder e ser persuasivo nas suas palavras, mas os factos são os factos e, contra eles, poucos argumentos podem ser apresentados. Res non verba é um velho princípio romano. A realidade financeira que se nos depara, sem ser obviamente toda da responsabilidade do actual governo e antes constituir uma longa jornada de descontrolo financeiro a nível nacional que indubitavelmente inclui o actual Presidente da República durante o seu consulado de dez anos como primeiro-ministro, é uma verdade indesmentível. Mas será também o resultado da crise que avassala tantos outros países? Claro que sim. É injusto fazer o ainda primeiro-ministro expiar por todos os desmandos em termos de finanças públicas, corrupção, justiça não aplicada, negócios público-privados lesivos para o Estado e tantos outros factos graves que têm ocorrido nas últimas décadas. Mas José Sócrates, por tudo o que acima foi dito e não obstante o que também foi abonado a seu favor, comete, em meu entender, um sério erro ao candidatar-se de novo nas próximas eleições. Favorece os seus adversários, prejudica o seu partido, faz aumentar a abstenção e não resolve nada para bem do país que nele já não confia.

3/23/2011

Democracia sui generis

Quando a perestroika ainda não tinha ocorrido na União Soviética, havia perto do centro de Moscovo duas ruas relativamente pequenas onde se comerciava um pouco à socapa um género de artigos que não eram comuns na Rússia, nomeadamente CDs de música americana e britânica que estavam então em moda noutros países. A polícia fazia vista grossa do facto. Porquê? Basicamente porque os CDs não prejudicavam o governo da União Soviética e constituíam até uma saudável válvula de escape para os jovens mais avant-garde que apreciavam aquele tipo de música e que, assim, se sentiam menos reprimidos. A atitude das autoridades russas era, no fundo, tão inteligente como o princípio da panela de pressão, a qual, sem a válvula na tampa a emitir vapor com o correspondente silvo quando a comida está pronta, rebentaria.
Todas as ditaduras precisam de válvulas de escape. A ditadura salazarista, que deixava que os grandes empresários e industriais explorassem os trabalhadores através de salários baixos, organizava, na era pré-televisão, os então famosos "Serões para Trabalhadores", que eram transmitidos para todo o país pela Emissora Nacional (também designada pelos jovens de "Maçadora Nacional") para dar uma ideia de contentamento e alegria e fornecer boa disposição suficiente para cantarolar canções. Os espectáculos de revista do Parque Mayer em Lisboa consentiam piadas ao Santo Antoninho (Oliveira Salazar) e a membros do governo, exactamente pelo mesmo motivo que os russos fechavam os olhos àquele comércio de discos e parafernália semelhante.
Na ditadura portuguesa havia ocasiões particulares: os períodos eleitorais. Durante as semanas que durava a campanha com os vários candidatos da oposição, a liberdade de expressão era ampliada, se bem que mesmo assim dentro de certos limites. Só que, naquele caso, havia uma artimanha por trás dessa maior liberdade: os mais contestatários membros da oposição ficavam desde logo "marcados" pela polícia política e alguns eram mesmo presos durante algum tempo. Quanto às eleições propriamente ditas, eram falseadas em muitos locais.
Mesmo a Assembleia Nacional (as Côrtes, como ainda às vezes se dizia) era protegida nos seus dias de temas de discussão mais quentes de eventuais protestos vindos das galerias. Como? Nesses dias, coincidentemente, apareciam um ou dois autocarros com alunos das escolas que tinham expressamente escolhido aquele dia para visitar o Parlamento e que ocupavam a maior parte dos lugares, restringindo portanto grandemente o acesso à população interessada.
Isto vem a propósito de quê? De uma frase usada há dias por um articulista no jornal Público. Ele expressava a ideia de que a nossa democracia era, afinal, uma "ditadura com liberdades". Não posso concordar mais. Eufemisticamente, chama-se-lhe "democracia iliberal". É um facto que hoje em dia existe, para muitos efeitos, uma real liberdade de expressão. Porém, onde é que essa liberdade pode ser expressa? Nas empresas? Nas instituições públicas? Praticamente toda a gente concordará que é melhor não. Um comentário mais "livre" pode levar um funcionário a ser processado disciplinarmente. Uma expressão fora da box do politicamente aceitável pode dar maus resultados para o seu autor. No próprio parlamento, quem fala pela sua cabeça e ousa discutir qualquer ponto de vista do chefe do partido ou de outros membros "superiores" pode ter a certeza de que fica tomado de ponta e que dificilmente entrará nas próximas listas eleitorais. O mesmo se aplica às autarquias. Não podemos, nesses casos, pensar pela nossa cabeça. Os chefes pensam por nós.
Mas quanto à liberdade de expressão na Internet, às caricaturas e imitações que são trocadas entre fãs e oposicionistas de um determinado chefe político, essa existe de facto. É a tal válvula de escape da panela de pressão. Que importa que haja numerosíssimos portugueses contra o acordo ortográfico que o Brasil engendrou connosco? Podem manifestar-se na Net, podem fazer reuniões, organizar listas enormes e petições com muitas assinaturas. Quem toma as decisões é quem as dita. Quanto ao povo, pode manifestar-se e ter a sua opinião durante o processo eleitoral. Além disso, a contagem dos votos não é sujeita a aldrabices do tipo salazarento. Todavia, a partir daí os ditames não são os do povo mas sim os das pessoas importantes, bigwigs, que estão por detrás dos sucessivos governos. Daí que, em minha opinião, a expressão "ditadura com liberdades" seja especialmente feliz.
Há dias, quando escrevi o post "O Caso da Líbia", mal sabia eu que os Estados Unidos, na versão "aliados", iriam atacar a Líbia passadas umas horas. Mas tinha que ser assim: havia urgência. As forças rebeldes, que estão com elevada dose de probabilidade a ser armadas e financiadas pelos "aliados", estavam a perder terreno em toda a linha.
No meio de tudo isto, esta situação dá-nos uma tremenda sensação de déjà vu. Ela irá matar muitos mais civis do que as tropas leais ao actual governo alguma vez fariam. No papel, porém, segundo a Resolução aprovada pelo restrito Conselho de Segurança da ONU, a intervenção destina-se a impedir mortes de civis.
Isto é, no seu melhor, a ditadura do capital. E também das armas, que são o bulldozer que abre o caminho ao capital. É uma ditadura sui generis, a que se chama democracia essencialmente por causa do voto colocado nas urnas. Presentemente, "democracia" é um conceito que tem as costas imensamente largas. Consente liberdades como esta de as pessoas se expressarem. Contudo, essa possibilidade de expressão redunda em favor de quem detém o poder. Deixar as pessoas expressar-se é um acto manhosamente inteligente. A faca e o queijo estão noutras mãos que não nas nossas. Curiosamente, no dia em que os "aliados" lançaram, nos primeiros ataques aéreos sobre a Líbia, mísseis sobre pontos nevrálgicos de Tripoli, tal como sucedeu em Bagdad há uns anos, a bolsa de valores passou, em todo o mundo, do vermelho em que se encontrava a verde. Comentários para quê?

3/21/2011

Para não deixar passar em claro o Dia Mundial da Poesia ... e porque, apesar de tudo, a Primavera está aí!

PORTUGAL
Alexandre O' Neill

Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho, moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede,
o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!

***

Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para ó meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.

Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...

3/19/2011

O caso da Líbia



Entre nós costuma dizer-se, proverbialmente, que não há duas sem três. Quando assistimos, há algumas semanas, à saída de Ben Ali da Tunísia e de Mubarak do Egipto, pensámos, com a lógica que o ditado nos ensina, que a Líbia, onde estalara uma rebelião armada, iria redundar na saída de Khadafi. Quem visse as capas da revista americana Time ou da Newsweek da semana passada, que acima reproduzo, entenderia imediatamente que estava ali um novo Saddam Hussein: condenado. Sem qualquer chance de escapar.
Porém, quinze dias após essas capas estarem nas bancas, não só Khadafi se mantém no poder, como conseguiu rechaçar grande parte dos guerrilheiros adversários e reconquistar cidades que tinham sido perdidas. Perguntei-me, ingenuamente, se estaríamos apenas em presença de um caso semelhante ao da Tunísia, ou mesmo do Egipto, com jovens a protestar nas ruas e a exigir a queda do governo. O youthquake, como os americanos lhe chamaram. Admito que o caso me intrigou. As capas das citadas revistas, ao apresentarem não um simples chefe de governo mas um verdadeiro facínora – principalmente a capa da mais conservadora Time -, deram-me a entender que os Estados Unidos estavam muito interessados no assunto.
Ora, a Líbia não é um país qualquer. Na realidade, é o quarto maior país de África em termos de superfície territorial. Divide-se tradicionalmente em três partes, com a região de Tripoli, a capital, a ser denominada de Tripolitânia (das "três cidades"). Depois há ainda o Fezão, a sul, e a Cirenaica, na parte oriental. É interessante saber que a Líbia tem presentemente o índice de desenvolvimento humano (IDH) mais elevado de toda a África e possui também um dos PIB per capita mais altos do continente africano - com toda a irrelevância que este último indicador possa representar, devido às diferenças entre ricos e pobres.
Dadas estas condições, que dizem respeito a uma população muito inferior em número à de Portugal (6,5 milhões de pessoas apenas, o que contrasta enormemente com os 85 milhões de habitantes do vizinho Egipto), é normal que se pergunte: porquê a rebelião? O que é que verdadeiramente se passa? E porquê esta reacção por parte dos Estados Unidos?
A história não é simples. Para tentar documentar-me melhor, socorri-me de um artigo recente publicado pelo jornalista italiano Manlio Dinucci e de informações que recolhi noutras fontes. Para começar, há que lembrar um "pormenor" que não referi ainda: a Líbia integra o grupo dos dez mais ricos produtores mundiais de petróleo. Devido a esse facto, a Líbia tem uma balança comercial positiva de 27 mil milhões de dólares/ano. Cerca de 85 por cento das exportações líbias de energia são encaminhadas para a Europa. A Itália colhe a parte de leão com 37 por cento, seguida pela Alemanha, França e China. No quadro das importações feitas pela Líbia, a Itália de Berlusconi ocupa também o primeiro lugar, logo seguida pela China, Turquia e Alemanha.
Não sei se o leitor entretanto reparou que os Estados Unidos não figuram entre os principais países atrás mencionados. Mas a China, sim. Começamos a entender um pouco mais sobre a razão das capas da Time e da Newsweek, que apesar de serem rivais defendem a estratégia dos Estados Unidos.
Existem numerosas companhias petrolíferas estrangeiras na Líbia. De todas, a mais importante é a italiana ENI. No entanto, a britânica BP, a anglo-holandesa Shell, a francesa Total, a norueguesa Statoil, a sino-espanhola Repsol e a russa Gazprom operam também em território líbio.
A Itália é o país que mais se pode ressentir dos acontecimentos na Líbia. É que, para quem não se recorde, entre 1911 e 1951 a Líbia foi uma colónia italiana. O número de italianos a residirem na Líbia chegou a atingir quase vinte por cento da população. Uma vez declarada a independência do país em 1951, oito anos mais tarde foram descobertas importantes reservas petrolíferas no território líbio. Foi em 1969, portanto há mais de 40 anos, que Khadafi, então um oficial do exército com apenas 27 anos, liderou uma revolta contra o líder de então e tomou o comando do do país. Durante este seu longo período de governação, Khadafi tem sido implacável para com os seus adversários políticos, o que naturalmente causou alguma tensão no país. Em 1977, Khadafi tornou o país oficialmente uma república popular árabe e sonhou com a possibilidade de liderar vários países de uma união africana. Embora tenha mantido relações amistosas com a maioria dos países europeus e com a China, o governo líbio tem defendido poderosamente a causa árabe, sendo acusado de financiar movimentos ilegais.
O que terá causado a rebelião? Tudo indica que ela provenha de uma cisão que ocorreu no grupo dominante, que é o grupo do próprio Khadafi. Trata-se portanto de uma guerra civil. Presentemente, é um antigo ministro da justiça de Khadafi que lidera os revoltosos descontentes, os quais têm a sua base na segunda cidade mais importante do país, Bengasi, que constitui um porto vital para a economia líbia. Os revoltosos (Conselho Nacional) adoptaram para si próprios a bandeira líbia que vigorou entre 1951 (independência) e 1969 (entrada de Khadafi para o governo do país). As populações da Cirenaica, região que outrora foi o celeiro da Líbia, estão a empobrecer devido à política do petróleo. Ao contrário do Egipto e da Tunísia, o levantamento líbio foi planeado previamente e não surgiu, portanto, de improviso. Aproveitou, mesmo assim, o timing certo do que se estava a passar no norte de África, em países contíguos. A pergunta, de difícil resposta, mas de fácil suposição, é: quem financia e arma os rebeldes? Estaremos em presença de mais um caso em que os principais países financiadores avançam agora com o dinheiro e armamento e depois cobram tudo com juros em espécie, petróleo e gás? O cui bono? que é sempre formulado nestas questões tem toda a razão de ser.
Em 2008, Khadafi e Berlusconi assinaram um importante tratado de cooperação. De entre as diversas cláusulas do tratado salienta-se o comprometimento por parte da Itália de pagar 5 biliões de dólares como compensação pela sua ocupação colonial do território líbio. Por seu lado, a Líbia comprometeu-se a tomar medidas para combater a imigração ilegal de africanos para Itália - um dos problemas da Europa - e a aumentar os seus investimentos em empresas italianas.
Há dois dias, o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou uma resolução por 10 votos a favor, nenhum contra e cinco abstenções. A resolução autoriza o "uso de todos os meios necessários" para proteger a população civil dentro do território líbio. O argumento de defesa da população civil significa o que significa. Não temos todos ainda bem presente o elevadíssimo número de mortos civis que ocorreu no Iraque após a invasão feita por tropas americanas? Como é habitual, os Estados Unidos não querem actuar sozinhos – embora se necessário enviem depois o maior contingente de forças militares. Voltaram a procurar o Conselho de Segurança da ONU, como já fizeram por exemplo no caso do Iraque. O Presidente Obama – a pomba transformou-se em falcão, ou está ele forçado a demonstrar que o seu nome nada tem a ver com as suas palavras em defesa de muçulmanos e árabes? - declarou que os EUA estão a preparar um conjunto de opções para responder à crise na Líbia, incluindo "acções que possamos empreender por nós próprios e aquelas que possamos coordenar com os nossos aliados através de instituições multilaterais". O Reino Unido alinhou, como sempre com Blair ou sem Blair, com os EUA. Os franceses, sobre cujo presidente, Sarkozy, recai a suspeita de ter tido a sua campanha presidencial co-financiada pelos líbios, alinharam igualmente, como seria previsível.
As razões americanas parecem evidentes: se Khadafi for derrubado, os EUA, que até agora mantêm poucos interesses no território – muito menos do que os chineses, por exemplo - tentarão depois destruir a actual estrutura das relações económicas estrangeiras com a Líbia e abrir caminho para multinacionais que possuam a sua base nos EUA. Com isso, suplantariam a China localmente e poderiam controlar, com substanciais lucros, algumas importantes fontes de energia que são vitais para a Europa.
As duas potências mais importantes do mundo neste momento – EUA e China – lutam com os trunfos que possuem. Os chineses penetraram no continente africano, v.g. Angola e Líbia, construindo fundamentalmente infraestruturas, como estradas, caminhos-de-ferro e aeroportos, que empregam muito daquilo que a China possui em maior abundância e consequente menor preço: mão-de-obra. Recebem muito do correspondente pagamento em géneros, nomeadamente em petróleo. Por seu lado, os EUA, impossibilitados de utilizarem os mesmos processos por razões óbvias, lançam mão daquilo em que são hegemónicos: poderio militar.
Umas linhas finais só para lembrar algo que parece agora mais esquecido mas que convém não esquecer. No tempo de George W. Bush como presidente, quando os americanos, numa tentativa de influência da opinião pública, definiram determinados países – Irão, Iraque e Líbia, por exemplo – como o eixo do mal, eles não estavam a dizer senão que esses países não merecem ter nada de bom enquanto continuarem como tal (rebeldes perante os americanos). Por uma coincidência diabólica, os países do dito eixo do mal são grandes produtores das fontes energéticas de que o capitalismo precisa de forma vital para se alimentar - petróleo e gás natural – e que produzem enormes lucros. Consequentemente, esses países não merecem os imensos recursos que Deus colocou nos territórios que eles ocupam. Ao combater essa ocupação, que é de grande injustiça terrena e fonte do mal, toda e qualquer guerra se auto-justifica.
Vejamos o que o desenrolar da situação nos traz nos próximos dias.

3/16/2011

Comprador compulsivo

Nesta era de consumismo, em que a crise desgasta aquilo que o comprador gostaria de despender em compras, o comprador compulsivo torna-se um perigo maior. Mesmo assim, ele não é comparável ao jogador de casino que se deixa arrastar pelo jogo e pode ir até à hipoteca do carro e da casa. O comprador compulsivo é diferente. Quanto ao seu sexo, tanto pode, obviamente, ser homem como mulher, embora a vida nos mostre que existe uma maior tendência aquisitiva de pequenas coisas por parte da mulher.
Como seria previsível, o comprador compulsivo não reconhece que o é. É um pouco como a história do passarinho hipnotizado pela cobra que voa direitinho à boca da bicha e repete para si próprio "não estou enfeitiçado, não estou enfeitiçado". O termo "compulsivo" que conota esse tipo de comprador vem exactamente daí. Existe um impulso quase irresistível que o leva a comprar uma pequena prendinha que seja para ficar mais satisfeito e apresentar aos outros, familiares e amigos. A prendinha tanto pode ser para si próprio como destinada a outrem. Por vezes, se a outra pessoa a quem a prendinha é destinada for adulta, o comprador acaba por ficar com o objecto comprado. Mudou de ideias. Noutras ocasiões, oferece-o, de facto.
Dentro da linguagem tipicamente usada pelo comprador compulsivo surge frequentemente a palavra "coisinha" para amenizar o custo da coisa. "Baratucho", "uma pechincha" e termos do género são também utilizados. E por que razão comprou? Se alguém pergunta, o comprador justifica-se: "estava a um preço absolutamente incrível", "há muito tempo que eu andava atrás de uma coisa destas", "acabei por comprar embora não precisasse muito neste momento, mas estas coisas desaparecem num instante e esta já era a última peça – aborrece-me não comprar na altura e depois quando volto à loja o artigo já não está lá".
E quando há crise? Bem, aí existe um argumento imbatível: "é também para ajudar a economia. Se ninguém comprar nada, nem mesmo aproveitar estes preços mais baixos, o que sucede à nossa economia?". De mero comprador o compulsivo passou a benemérito, ou mesmo a mecenas de uma economia que se encontra em estado de coma.
Verdade seja que quando as compras são de dimensão reduzida o orçamento familiar não sofre muito. Há compradores compulsivos que são suficientemente conscientes do facto de que as suas contas bancárias não comportam determinados devaneios e se abstêm de adquirir isto e aquilo que, no entanto, lhes ficou "debaixo de olho", como gostam de dizer. Numa primeira oportunidade, numa baixa de preços ou numa rebaixa, existe sempre o perigo de o impulso ser mais forte do que a consciência.

3/07/2011

Querer sim ou querer não, that is the question

Um velho amigo lembrou-me uma vez que era mais fácil engordar do que emagrecer. Admito que nunca tinha pensado no assunto, possivelmente porque julgo ter mantido desde há muitos anos sensivelmente o mesmo peso. No entanto, entendo que emagrecer pode ser penoso: exige esforço e sacrifícios; por vezes mesmo uma indómita força de vontade. Pelo contrário, engordar resulta geralmente de actos de prazer, do uso de direitos mais do que do cumprimento de deveres.
Se redijo aqui este brevíssimo preâmbulo comparativo entre situações A e B, não é, desde já aviso, para falar de bulimia, de anorexia ou algo do género. Faço-o tão somente para referir a diferença que existe entre o sim e o não, entre o saber o que se quer e o saber aquilo que não se quer.
E aqui, tal como sucede com o engordar e o emagrecer, é muito mais fácil saber aquilo que não se quer do que aquilo que se quer. Em termos políticos, defendo geralmente a contabilização do voto em branco como voto expresso e com eventual influência no número de cadeiras a ocupar no Parlamento, no caso das eleições legislativas. Mas sou também o primeiro a reconhecer que um limite de 10 por cento na contabilização efectiva do número de votos em branco deve ser imposto. Por que razão o faço? Porque um voto em branco é um voto de "não", mas nada diz sobre o "sim". É um voto de protesto, que pode surgir por variadíssimos motivos de descontentamento, mas que ninguém pode pressupor que representa alguma unidade construtiva, na ordem do "sim", como as linhas programáticas de um partido e a natureza dos seus filiados ou simpatizantes deixam pressupor.
Na realidade, um "não" é algo como a imagem criada pela existência de um saco de gatos. Uma vez dito o "não", vem a pergunta essencial: que "sim" escolher? Desfaz-se o saco de gatos e a miadela que era uníssona começa a assobiar músicas diferentes. É uma partitura partida.
Vem isto a propósito – agora, sim – do que está a suceder nos países do Médio Oriente. A juventude já fez o seu papel na Tunísia e no Egipto. Continua a desgastar o establishment na Líbia. Por um lado, o Ocidente rejubila com o grito de liberdade, algo sempre bonito, tal como o foi no 25 de Abril de 1974 em Portugal. No nosso país, a unidade do "não à ditadura" desfez-se logo no Estádio da Avenida Rio de Janeiro, em Lisboa, aquando dos discursos de Mário Soares e de Álvaro Cunhal. Era o "sim" que começava a surgir e, com ele, a discussão e a dissenção. Com todas as suas virtudes, acentue-se, mas também com os seus defeitos. Naturais.
Hoje em dia, pretender o estabelecimento de democracias em países que estiveram durante dezenas de anos sob um regime diferente faz parte do habitual wishful thinking ocidental, que pode ser bonito e poético mas não suficientemente consistente. Qual foi o escritor, filósofo ou político que disse que nas campanhas se entra sempre com poesia, mas que quando se governa se tem de passar invariavelmente à prosa?
Os réditos, os impostos, o rule of law, a religião, a não unidade entre sunitas e shiitas e outros grupos, o petróleo, o gás, os interesses do Ocidente numa região de onde provém quase 50 por cento do petróleo do mundo – tanta coisa junta! A juventude terá servido para derrubar; agora vêm os sabichões experientes impor a sua vontade. Tal como no xadrez, os peões sacrificam-se para que as figuras maiores sobrevivam.

3/04/2011

Cromos


Os putos da minha infância faziam várias coisas idênticas àquelas que os miúdos de hoje fazem e outras que eram necessariamente diferentes. As brincadeiras como o jogo do pião, o eixo, as uvas, o berlinde, o avião, tenderam a desaparecer, embora eu acredite que algumas delas se mantenham em determinados pontos do país. É evidente que a playstation e diversíssimos outros jogos de computador eram em absoluto desconhecidos e, portanto, não existe qualquer paralelo que permita uma comparação.
Há, entretanto, algo que já assim era e que hoje ainda se mantém: a troca de cromos. Como é natural, os cromos – que, salvo erro, também se chamavam "bonecos" ("Tens bonecos p’á troca, pá?") – são hoje outros, mas a ideia do coleccionismo e de preencher cadernetas mantém-se.
O que considero mais curioso é que muitos reformados – e há milhentos por este país fora – voltaram no final da sua vida a coleccionar cromos. Desta vez não querem preencher cadernetas, nem pretendem ganhar uma bola de futebol. Mas querem ser os primeiros a apresentar cromos que espantem os outros, com quem eles os vão trocando. Estou, naturalmente, a referir-me às trocas de ficheiros por e-mail. Confortavelmente sentados numa cadeira à frente de um computador, portátil ou de secretária, há muitos reformados que se entretêm, de manhã cedo ou antes de irem para a cama, a enviar ficheiros e anexos de toda a ordem para os seus amigos, esperando que depois estes lhes enviem outros. Acaba por ser, com outra idade e outra tecnologia, a mesma troca de cromos que os miúdos faziam e fazem. Não trazem nenhum mal ao mundo, creio eu. É apenas mais um regresso às raízes da infância. Ou a entrada numa segunda infância. Grandes cromos é o que todos somos.

A hora da verdade (cont.)

Tanto a expressão-aviso "não há almoços grátis" como aquilo que se costuma dizer em português-menos-traduzido-do-inglês - "ninguém dá nada a ninguém" - são velhos princípios de prudente desconfiança. Um outro princípio também muito comum diz-nos, a respeito de aplicações financeiras et al., que "não se deve colocar todos os ovos no mesmo cesto".
A publicidade (comercial, de empresas), as relações públicas / comunicação (do sector privado e do estatal) e a propaganda (de Estado) influenciam poderosamente as linhas orientadoras da sociedade, como todos sabemos. A era do consumismo tem muito da sua origem nestes três vectores.
A "sociedade de consumo-que-nos-consome" (digo eu) foi vista pela maioria das pessoas como uma linha de progresso contínuo, de bem-estar ascendente, sempre caminhando para um mundo melhor. A democracia, com governos legitimados pelo voto do povo, propôs-se melhorar a condição desse mesmo povo, ao mesmo tempo que reforçava o poder dos governantes. Uma aritmética simples mostra-nos, porém, que quem gasta mais do que aquilo que tem, mais cedo ou mais tarde irá ter de pagar esse excesso. Isto é do senso comum. Mas senso comum é o que parece que a química do poder destrói nalguns dos governantes. (Permito-me recordar aqui, como excepção, o Ministro das Finanças de 2005, Campos e Cunha, sobre cujo caso escrevi na altura para o Público, que ao contestar os gastos envolvidos na mudança do aeroporto e na construção do TGV, foi posto na rua.)
A publicidade comercial atraiu um número claramente excessivo de pessoas para adquirir casas, cujo custo, inflacionado, iria alimentar os bancos credores dos empréstimos concedidos aos compradores. Cálculos mal feitos, ou abandono do princípio da prudência? A banca contraiu empréstimos no estrangeiro a fim de poder satisfazer a enorme vaga de pedidos de dinheiro para adquirir habitação. E automóvel.
O Estado contraiu empréstimos para atender a um sistema de pensões de reforma da Segurança Social nitidamente inflacionado nos seus escalões mais elevados: um luxo que não estava ao seu alcance. O mesmo Estado vendeu direitos nas pescas para obter contrapartidas financeiras. Subiu-lhe à cabeça o poder e construiu vários estádios de raiz para o Euro 2004, que hoje são quebra-cabeças financeiros no Algarve, em Aveiro, Coimbra e Leiria. O luxo do TGV, com tecnologia importada, causou imensa disputa. Os submarinos são apenas mais uma peça da grande verdade que o embaixador americano em Lisboa comunicou para Washington (Wikileaks): o Estado português gosta de comprar equipamento dispendioso.
A falta de controlo da banca permitiu desmandos que agora todos estamos a pagar.
E não me venham dizer, como é costume ouvir-se, que "somos todos igualmente culpados". Isso é uma enorme patranha, que apenas serve para desculpabilizar aqueles que são os mais gravosamente responsáveis. Tal como se costuma dizer que "quem todos elogia não elogia ninguém", assim também quem todos culpabiliza a todos acaba por desculpar.
E se recordo aqui a importância e a justiça de não culpabilizar todos por igual é porque houve também muito boa gente que tomou precauções e não foi na onda consumista. Não gastou mais do que podia, não entrou na aventura de ficar a dever dinheiro à banca, protestou contra os "TGVícios", fez alguma poupança, e isto tudo com base na tal aritmética simples de que não se pode gastar mais do que aquilo que se tem. Afinal, uma das poucas excepções admissíveis é quando se investe em material produtivo, do qual se espera um retorno que permita uma rápida amortização do empréstimo, criando apenas temporariamente um défice virtuoso.
Mas tem sido tudo mal? Não, de maneira nenhuma. Pelo que tenho podido constatar, por exemplo a EXPO’98 ilustrou de maneira brilhante a arte de bem-fazer, conseguindo ainda hoje que o espaço lisboeta onde a Exposição Mundial esteve instalada há 13 anos seja muito agradável, com espaços arejados, limpos e bem cuidados, mantendo um Oceanário com numerosos visitantes e ostentando edifícios arquitectonicamente muito interessantes. E, é bom não esquecê-lo, aquela zona foi durante imensos anos uma das menos atraentes de Lisboa, degradante, poluída e lamacenta. Claro que nem tudo é mau!