2/25/2005

Cães-galinha

Na prática, a maioria absoluta obtida pelo PS recria a situação que existia na última coligação parlamentar. Todos os deputados que não fazem parte da maioria funcionam -- sem ofensa -- apenas como "cães-galinha". Podem ladrar à vontade, como os cães, mas estão impedidos de morder -- por falta de dentes --, como as galinhas.

2/24/2005

Filha, por que me abandonaste?

Fui ver Million Dollar Baby.

Um treinador assombrado pela (i)responsabilidade de ser pai, atolado na condição menor de protector das suas crias: preservá-las do desastre impedindo-as de crescer.
Uma «filha» que lutou para nascer e lutará para morrer. Um (anti)Cristo feminino que pede ao «pai» que se comporte como Deus -- que seja dono da sua vida ... de cão (dog's God).
Um «pai» que (se) encontra na «filha» o Deus que em vão procurou numa igreja.

Confusos? Vejam o filme e serão iluminados. Por K O.

2/23/2005

O Colectivo e o Individual

Todo o professor com alguma experiência já chegou a duas conclusões: a primeira é a de que o seu ensino é colectivo, perante turmas; a segunda é a de que a aprendizagem pelos seus alunos é estritamente individual.
Em termos de política, também toda a propaganda é dirigida a um colectivo. Mas o voto -- em certa medida comparável à assimilação da propaganda, i.e. à aprendizagem -- é estritamente individual. E secreto.
Nas escolas, é frequente encontrar-se professores que estão convictos de que o seu ensino agrada totalmente aos alunos que têm à sua frente. Por vezes, no entanto, um inquérito conduzido em condições de perfeito sigilo entre os alunos pode provar fortes desvios a essa visão optimista. Neste sentido, não é muito diferente a situação dos políticos que exercem o poder. Inabalavelmente crentes de que estão a governar bem, sofrem revezes significativos ao notar que "o inquérito conduzido entre os governados em condições de rigoroso sigilo", i.e. a realização de eleições, não corresponde ao seu convencimento inicial.
Acabámos de ter este caso em Portugal. As surpresas que aconteceram foram de monta. Poder-se-á falar, no entanto, de mudanças da direita para a esquerda? Ou, pelo contrário, será mais correcto falar nas reacções dos indivíduos enquanto unidades humanas, e não tanto no colectivo?
Seja o governo de Durão Barroso seja o de Santana Lopes provocaram ondas de mudança no que fizeram e no que anunciaram. Poder-se-ia considerar natural que as pessoas entrassem numa situação masoquista do tipo "quanto mais sofrimento eu tiver, tanto melhor"? Repare-se que estes dois governos falaram em assuntos que são possivelmente necessários e até urgentes, mas impopulares. Alguns exemplos? A idade da reforma iria ser aumentada. Os cálculos para as pensões tenderiam a ser revistos (em baixa). Os subsídios de doença diminuídos. Os subsídios para despesas de saúde (medicamentos, taxas moderadoras) igualmente revistos em baixa. Ou então à la carte: "a cada um segundo os seus rendimentos". As propinas do ensino superior revistas em alta. As SCUT a passarem a ter pagamento de portagens -- nalguns casos com um período de diferimento. Os passes sociais a serem condicionados. As rendas de casa aumentadas em mercado livre, causando despejos inevitáveis em numerosas situações. Entretanto, o desemprego sem parar de aumentar (as pessoas sem posto de trabalho efectivo excedem a marca dos 400 mil). Os juros dos empréstimos contraídos para compra de habitação a tornarem-se particularmente pesados para todos aqueles que perderam o rendimento do seu trabalho regular. Alguma discriminação notada no internamento hospitalar em unidades S.A. O espectáculo de ver o governo da Nação a ter de lançar mão de processos expeditos para não exceder o défice máximo consentido pelo PEC.
Pergunte-se: quantas pessoas sem emprego actualmente terão votado CDS ou PSD? Quantos comerciantes com lojas arrendadas terão continuado a acreditar no PSD que lhes ia tramando a vida? (Tive ocasião de presenciar ao vivo a manifestação de muitos comerciantes nortenhos em frente ao Parlamento, e fiquei impressionado com os seus gritos irados de que tinham votado PSD e sido traídos.) Quantos algarvios se sentiram com vontade de votar no PSD que, mais tarde ou mais cedo, os faria pagar por circularem na estrada mais importante da sua região?
Individualmente, tal como o aluno faz na aprendizagem na escola, o eleitor reage. Se tem bens importantes a defender, para si o que mais conta é a segurança. Daí os cartazes de Paulo Portas garantindo segurança. Daí também que nas freguesias de S. Francisco Xavier e da Lapa, ambas em Lisboa, o CDS tenha registado aumentos na sua votação de, respectivamente, 95 e 84 por cento. Em contrapartida, em Marvila, onde o estrato social é mais baixo, o mesmo partido perdeu 54 por cento dos votos de 2002. Como o dinheiro existe mais nas cidades do que no campo, os eleitores que votaram CDS aumentaram no concelho do Porto (12,8%) e no de Coimbra (4,2%).
Quem, pelo contrário, se preocupa mais com a ideia da liberdade de expressão e vê com o máximo prazer o desmascaramento de arranjinhos ilegais, terá em muitos casos votado Bloco de Esquerda. Mas alguns citadinos que ultimamente têm votado Bloco terão transferido o seu voto para o PS -- o seu interesse primordial era derrubar "o governo mais perigoso que Portugal teve desde o 25 de Abril". Isto terá, conjuntamente com a mensagem cautelosa mas optimista dos socialistas, engrossado não só o número de eleitores tradicionais como aumentado a lista dos transferidos de outros partidos mais representativos, nomeadamente do PSD.
As lições a colher não são exactamente novas. Dizem-nos que a população eleitora não gosta de mudanças súbitas. Grande parte dela muda igualmente de voto, e também de súbito. A outra grande lição a não esquecer é a de que, cada vez mais, as decisões são tomadas por cada um, individualmente, segundo as suas conveniências do momento. Nesta linha, o resultado das últimas eleições mostrou um enorme descontentamento com a prática governamental. Mostrou que, apesar de toda a propaganda mediática, o povo já está a reagir à TV como aos filmes: "é tudo fita!". Mostrou também que Portugal continua a ser predominantemente pobre ou inseguro na sua riqueza. Por último, mostrou que Portugal se acomodou de certo modo à situação de ser um país constantemente adiado.

2/22/2005

Whether you like this weather or not

Santana Lopes tinha razão. Estava a ser objecto de uma cabala. Não se esperava, no entanto, que essa cabala pudesse incluir o divino serviço meteorológico. Mal o Sr. Lopes -- versão jardiniana -- foi apeado, o tempo começou a mudar. Ao fim de alguns meses, vêem-se pela primeira vez chapéus de chuva abertos. O Sr. Lopes lembra, com tristeza e ressentimento, a frase que mais ouvia e que tanto o magoava: "Ca ganda seca!"

P.S. Se continuar a seca, o Sócrates que se cuide!

2/20/2005

Punição da direita dá vitória à esquerda

Sabia-se que Sant'Anna Slotes tinha governado mal. Sabia-se que o seu governo de coligação tinha sido perigoso. Não se esperaria, porém, que o povo português lhe desse uma nota tão baixa que permitisse ao PS obter maioria absoluta.

Com algumas semelhanças com a situação de há anos, em que o PRD entregou o governo do país à direita, a actuação de Sant'Anna como Primeiro-Ministro mostrou ser, sem margem para dúvidas, o maior trunfo da esquerda em Portugal.

Democracia

É em dias como o de hoje que se entende melhor o poder e valor da democracia. Seja qual for o resultado das eleições, aos portugueses é dada a possibilidade de livremente escolherem uma Assembleia da República -- e um Governo -- de acordo com a sua expressa vontade.
Nâo foi sempre assim neste país.

Bush (de novo)

Para os interessados no George W., o conteúdo do http://www.bushflash.com/14.html é recomendável. Convém ligar o som, embora a voz pudesse ser mais agradável.

2/18/2005

O Combate dos Chefes

Na revista de uma instituição, escrevi há pouco tempo que é vulgar em cursos de formação sobre liderança formular uma pergunta aos formandos: "Quem descobriu o caminho marítimo para a Índia?" A resposta virá de pronto, porventura acompanhada de ligeiros sorrisos: "Vasco da Gama!" "E quem foi o imediato?" Aí, ninguém sabe. "Pois é," conclui o formador, "o que interessa é o líder, os outros praticamente não contam."
A moda deste tipo de formação tem umas três décadas, no máximo, e é parte da influência que a mentalidade americana tem exercido sobre a europeia. Contudo, os que estão a secundar o líder contam, e muito. Embora uma liderança forte seja decisiva -- recordemos o sábio aforismo camoniano "Fraco rei faz fraca a forte gente" -- é um facto que, sem um conjunto coeso de pessoas de bom nível junto a si, o líder pouco pode fazer.
Vem isto a propósito da presente campanha eleitoral. Conquanto o que esteja em jogo seja a escolha de mais de duas centenas de deputados para a Assembleia da República e de um novo governo para o país, tudo se tem resumido fundamentalmente a uma disputa entre líderes. Lembra-nos as capas de revistas americanas, continuamente ilustradas com figuras como O Homem do Ano, A Personalidade da Década, O novo rosto da Palestina. Quando, como no último exemplo, esperamos ingenuamente uma reportagem sobre o rosto da nova Palestina, o que encontramos é um desenvolvido relato sobre a vida do novo líder.
Caminhar por esta via provoca o alheamento, pela sua falta de importância, da população na generalidade. Se apenas se fala dos chefes! O povo entende que conta apenas para legitimar, através do voto que deposita na urna, a colocação do líder no seu poleiro.
É uma sociedade inquinada a que assim procede. Mais do que nunca, estas eleições têm remetido para o quase total oblívio os deputados a eleger. Compreende-se porquê. Era a táctica que mais convinha a Sant'Anna Slotes e à sua mentalidade de jogador de casino. Tendo perdido em toda a linha na sua prática governamental, tendo sofrido a desonra de, como Primeiro-Ministro, ser "despedido" pelo Presidente da República, só lhe restava uma última aposta: o combate dos chefes. Como também é isso que agrada à comunicação social e à cultura populista, foi nisso que o país embarcou. Nos casinos, é frequente que o jogador que está a perder tente a sua última vez, apostando tudo. Para ele, perdido por cem, perdido por mil. Para os outros, que estavam de ganho, é que a aposta pode eventualmente representar um prejuízo. É uma táctica de jogador. Neste caso, porém, será de um jogador que o país precisa ou de um bom governante? E será ele sozinho o "salvador da pátria", ou toda a equipa que com ele é eleita?

À consideração do (e)leitor. E, como sempre, vote antes que esgote!

2/15/2005

CULTURAS

Enrique Rojas é um psiquiatra espanhol que tem o bom hábito de escrever. Diz-nos ele que a cultura, como estética da inteligência, representa a nossa curiosidade de irmos crescendo por dentro, alargando os horizontes da nossa paisagem interior. Isto significa que cada um deve tentar nutrir-se de arte, literatura, pintura, poesia, fotografia, ciência, etc. Esse "alimento" muda o ser humano e, nesse sentido, cultura é libertação. Tanto a liberdade como a cultura são chaves essenciais para a felicidade do homem. No mundo actual existe relativamente pouca cultura, porque o homem precisa de tempo (e dinheiro) para se cultivar.
A um outro tipo de cultura chama Rojas "cultura da mediocridade". Considera-a muito associada à linguagem da televisão. O grande desejo de conhecer a vida das celebridades, especialmente quando essa vida lhes corre menos bem, é um sintoma claro de cultura da mediocridade. Espreitar pelo buraco da fechadura a vida dos ricos ou dos famosos para perceber que eles também choram e também sofrem é não só negativo como medíocre. E é medíocre porque essas celebridades são frequentemente pessoas sem ideias e sem obra. A sua fama deriva de aparecerem na TV. Pelo contrário, uma pessoa de prestígio é alguém que leva uma vida harmoniosa, que se torna atractiva porque revela coerência, porque ensinou alguma coisa aos outros ou deu um exemplo notável. Esta é uma diferença essencial. (Adaptado da revista Xis de 12/02)
Concordemos com Rojas e dividamos, neste sentido, a cultura em tipo A e tipo B. Um pouco como o colesterol numa visão ultra-simplificada -- com o seu HDL, necessário e bom, e o seu LDL, igualmente necessário mas mau se excessivo -- assim também os dois tipos de cultura coexistem. E podem coexistir, embora em doses muito diferentes, em qualquer pessoa. Ambos são necessários e servem para alimentar o homem. Relativamente à cultura do tipo A, a que faz espraiar o nosso eu por aventuras actuais ou de outros tempos nos vários domínios acima explicitados, quanto mais ampliamos esses domínios, tanto mais vastos se tornam os nossos horizontes; mais interiorizada fica a nossa noção de efemeridade; mais concretamente se forma em nós a ideia de que o belo é a reunião de um largo conjunto de factores harmoniosamente combinados. Este aspecto cultural, que é estético mesmo no domínio da ciência, contribui decisivamente para a nossa formação e ajuda-nos a ponderar mais correctamente aquilo que é importante, separando-o do que é meramente acessório. É uma cultura que produz prazer, e felicidade de grau elevado, por momentânea que ela possa ser. É quando se diz, com Fernando Pessoa, que o binómio de Newton pode ser tão belo como a Vénus de Milo.
Em contrapartida, a cultura do tipo B compraz-se mais em saber o imediato, em conhecer as notícias que foram transmitidas na televisão ou publicadas na imprensa, estas últimas preferencialmente ilustradas e a cores. É uma cultura mediática que se alimenta de imediatismos. Voyeurista. O escândalo da princesa que foi vista na companhia de alguém pouco conveniente, o ministro que tem um filho de outra mulher que não a sua, o autarca que meteu imenso dinheiro ao bolso no desempenho do seu cargo, a apresentadora da estação de televisão X que está grávida de um apresentador do canal Y -- esses sim, são os grandes temas.
Em período eleitoral, os políticos têm plena consciência de um facto: tanto valem os votos dos indivíduos de cultura-predominantemente-A como os de cultura-tipicamente-B. Só que o número destes últimos é flagrantemente superior! Daqui resulta um populismo consciente dos candidatos políticos, numa tentativa de desequilibrar os indecisos para o seu lado. Por motivos tão simples como estes, não se deverá esperar que numa campanha eleitoral no nosso país exista um debate sério sobre temas característicos da cultura A, como o papel do Estado na sociedade, as vantagens e desvantagens do neo-liberalismo, ou a procura de um justo equilíbrio entre justiça fiscal e desenvolvimento económico. São necessariamente as promessas superficiais típicas da cultura B que são as privilegiadas.

De qualquer maneira, caro leitor, VOTE ANTES QUE ESGOTE!

2/09/2005

A nossa campanha eleitoral...

Desde que começou a (pré-)campanha eleitoral que me tenho feito estas perguntas: onde é que está o confronto de ideias, de projectos, de planos? Onde é que está a identificação honesta dos problemas do país, o estabelecimento de prioridades? Onde é que está o uso da razão, o pensamento coerente? Em lado nenhum...a política é um produto, uma mercadoria a promover e a vender segundo as técnicas de marketing. Defender determinado papel para o Estado na economia ou defender determinado papel higiénico é hoje a mesma coisa. A abordagem pelo menos é igual. Para se defender que é preferível votar no PSD e não no PS, por exemplo, utiliza-se o mesmo discurso para defender que a Coca-Cola é preferível à Pepsi.O que é importante é a marca, a imagem, o slogan vazio mas sonante, o jingle eficaz, a visibilidade. Tomar posição sobre a construção europeia, o aborto, a maior regulação da comunicação social, a co-incineração, os hospitais S.A., o terrorismo internacional, etc., está sempre dependente de um prévio estudo de mercado e de um critério de eficiência eleitoral. E nós o que somos? Somos vistos como consumidores de partidos, seres incapazes e básicos, agressivamente manipulados pela mais obscena publicidade. Isto é deprimente! Mais umas eleições em que se acentua a ausência de programas, de debates sérios sobre que caminho seguir. Dá-se lugar aos boatos, aos ataques pessoais, às insinuações sobre as opções sexuais dos candidatos, à mentira descarada e às promessas que se sabe não serão cumpridas. É a mais feroz ausência de ética. Tudo isto se resume a uma luta sem princípios pelo domínio do poder. Deprimente!

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"A word to the wise ain't necessary -- it's the stupid ones that need the advice."

2/07/2005

Somos MODErados ou MEDOrados?

Quando penso na minha infância, não posso deixar de recordar aquilo que a Igreja Católica procurou inculcar em mim: a noção de pecado, o inferno de chamas alterosas que torturavam a carne, a repetida súplica a Deus para que não nos deixasse cair em tentação. Mais tarde, o Estado através do seu braço da polícia secreta -- a PIDE -- haveria de mostrar-nos a todos o que significava pecar contra o establishment. Tínhamos assim uma dupla poderosa a condicionar-nos a existência: a Igreja e o Estado. De ambos vinha um mesmo tipo de mensagem: se pecas, vais sofrer. De facto, fosse no inferno pictoricamente descrito em tantos quadros, fosse na cela de uma prisão, o nosso destino estava traçado se saíssemos daquilo a que hoje se chamaria "politicamente correcto". O que isso significa para toda uma geração é tremendo; é o corte de asas à imaginação, a proibição de pensar livremente, o ficar muito aquém das nossas reais possibilidades. O medo fazia tudo isso.
A consciência de que esse medo existia fazia-nos valorizar sobremaneira todos aqueles que não mostrassem temor. É típico de uma sociedade temerosa destacar todos os seus que se distinguiram por actos de coragem. É a compensação, tão humana! Quando Humberto Delgado encarou destemidamente Salazar, apodaram-no de "General Sem-Medo". O nome ficou e era significativo: ter medo era a característica principal de todo um povo. Mais tarde, Mário Soares foi saudado quando se rebelou contra a tirania do Partido Comunista Português exactamente pelos mesmos motivos. A coragem que revelou quando sofreu um ataque físico no baluarte comunista da Marinha Grande valeu-lhe a Presidência da República durante dez anos. Aliás, muito do que se sempre se elogiou nos portugueses de outrora foi a sua bravura. Não é só o audaz Geraldo Sem-Pavor que conquistou Évora aos muçulmanos e assim se tornou herói. É, principalmente, todo um povo que, através de pequenas embarcações, ousou desafiar o monstro que todos temiam: o Adamastor. A veneração que a passagem do Cabo da Boa Esperança merece na nossa história e as inflamadas palavras de Camões citando os portugueses acima de todos os outros povos no seu destemor mais não são do que formas de incentivar gentes adormecidas a prosseguirem a rota da aventura dos seus antecessores. A história de Portugal lembra-nos igualmente vultos femininos que se tornaram destacados pela sua coragem. A "padeira de Aljubarrota" e "Maria da Fonte" são dois exemplos paradigmáticos de personagens que, contrariamente à maioria dos portugueses, não mostraram qualquer medo perante o perigo. Surgem de uma forma compensatória.
O português detesta o risco. Em jeito de compensação, admira a bravura dos outros. "O seguro morreu de velho" é um ditado ainda hoje muitas vezes repetido neste país. E há quem lhe junte: "E a D. Prudência foi ao funeral!" Que mais será necessário dizer?
Hoje o medo mantém-se em larga medida. É o medo de desagradar ao chefe, o medo de perder o emprego, o medo de ser considerado politicamente desajustado. "Não vejas, não fales, não ouças, não te rales... para que não te entales." Por este motivo, os protestos públicos são pouco frequentes, contrastando com desabafos muito críticos que se têm com amigos ou conhecidos. Na sua vida profissional -- e muitas vezes não só -- os portugueses não são moderados, como habitualmente se diz. São "medorados", o que obviamente significa "moderados pelo medo".
O corporativismo, tão enraizado na sociedade portuguesa, resulta parcialmente da noção de que é necessária uma força grande para enfrentar o medo, sendo o colectivo da corporação o advogado forte que nos defende. A dissidência -- e não nos podemos esquecer que é através dos dissidentes que o mundo avança e nunca através dos "yes-men" -- paga-se com língua de palmo. Com cada vez maior insistência, os governantes procuram "pessoas de confiança". Ora, uma pessoa de confiança para alguém ou para um partido político significa muito simplesmente que não é uma pessoa em quem a nação no seu todo deverá confiar. Quanto ao Estado, ainda hoje é visto como a maior de todas as corporações. Daí que a ideia da não-segurança causada pelo desaparecimento do emprego-para-a-vida represente uma enorme machadada cultural e o despenhar numa era de incerteza total.

2/06/2005

O modelo americano continua a ser modelo? - I

Parece-me extremamente lúcido e bem informado um artigo publicado no número de 31 de Janeiro da revista americana Newsweek. O que o texto de Andrew Moravcsik basicamente pergunta é se existe razão para a persistência do "American Dream" e se o modelo americano continua a ter seguidores. Segundo uma recente sondagem de opinião da BBC, existe uma diferença abissal entre o que os americanos pensam de si próprios e a forma como os estrangeiros os vêem. Setenta e um por cento dos americanos encaram os Estados Unidos como fonte de bem para o mundo e cerca de 80 por cento (!) perfilham a opinião de que as ideias e os costumes americanos deveriam ser seguidos no mundo inteiro.
É bem diferente a opinião dos estrangeiros. Cerca de 60 por cento dos inquiridos vêem na reeleição de Bush uma ameaça para a paz mundial. É, afinal, entre os tradicionais aliados da América que os números são mais elevados: 77 por cento na Alemanha, 64 por cento no Reino Unido e 82 por cento na Turquia. O apoio público dado pelos 1,3 biliões de membros do mundo islâmico é praticamente nulo. Respostas positivas vêm apenas da Polónia, das Filipinas e da Índia. Como era previsível e este mesmo blog cedo predisse, de uma atitude anti-Bush o mundo está a passar para uma atitude anti-americana.
O problema é que a América não se apercebe que o mundo já não a está seguir. O anti-americanismo é principalmente patente na Europa e na América Latina. Os países têm seguido várias vias, sendo que nenhuma delas é baseada no modelo americano. Sob o ponto de vista da democracia, os europeus acorrem muito mais ao voto (as percentagens oscilam entre 60 e tal por cento e 80 por cento) do que os americanos (47 por cento). No que respeita à qualidade das instituições públicas, analisada segundo critérios objectivos e independentes, a Dinamarca, a Islândia, a Finlândia, a Nova Zelândia e a Noruega ocupam os cinco primeiros lugares. Os Estados Unidos são relegados para o 21º. No que toca à pobreza infantil, os cinco países que se encontram à frente, com menor quantidade e portanto melhores condições, são a Suécia, a Noruega e a Finlândia. Os EUA ocupam o 22º posto e a sua taxa de mortalidade infantil situa-se entre as mais elevadas dentro do grupo dos países desenvolvidos. Aliás, a Organização Mundial de Saúde coloca os Estados Unidos na 37ª posição! Analisando o equilíbrio dos rendimentos das famílias, a Dinamarca cota-se como o país mais equilibrado, seguida do Japão e da República Checa. Os EUA ocupam o 71º posto (Há vinte anos, o Presidente de uma grande companhia americana, ganhava 39 vezes o salário do trabalhador médio; presentemente, essa proporção aumentou para 1000 vezes!).
No campo dos tratados e instituições mundiais em que se esperaria encontrar a presença dos EUA, eles estão fora de pelo menos 10 (dez): acordos sobre a discriminação feminina, sobre os direitos da criança, sobre direitos económicos sociais e culturais, Protocolo de Quioto, tratados de proibição de testes nucleares, de mísseis anti-balísticos, de armas biológicas e tóxicas, de armas químicas, de minas terrestres, e Tribunal Penal Internacional. Todas estas auto-exclusões dos Estados Unidos mostram que o país não quer acertar o passo com o resto do mundo. Quando a União Soviética se desintegrou, houve constitucionalistas americanos que se apressaram a visitar o país para sugerir uma nova constituição, baseada no modelo dos Estados Unidos. Foram recambiados. Igualmente na República Checa, Vaclav Havel é claro ao afirmar que, do ponto de vista europeu, o dinheiro fala demasiado alto na democracia americana, há demasiada influência dos lobbies, e demasiada influência da televisão para determinar a fotogenia dos futuros governantes.

O modelo americano continua a ser modelo? - II

O ponto forte do sonho americano tem sido sempre o ideal dinâmico da livre iniciativa, do mercado livre e da oportunidade individual baseada no mérito e na mobilidade. A despeito da sua incontestável produtividade, a América está presentemente longe de ser o país mais competitivo do mundo. Esse lugar está reservado à Finlândia, sendo os quatro seguintes ocupados por países nórdicos europeus. Há algo na América que desagrada profundamente aos europeus: a falta de protecção social. Os Estados Unidos são o único país desenvolvido e democrático onde não existe uma cobertura universal de cuidados de saúde. Daqui resulta que existem 45 milhões de americanos sem qualquer protecção deste tipo. Os europeus sabem que os seus sistemas proporcionam uma melhor educação primária, mais segurança nos empregos e uma rede de protecção social mais generosa. Curiosamente, quando se estabelece uma comparação entre o mito do "país das oportunidades" por excelência -- os EUA -- e a Suécia, verifica-se que os suecos têm três vezes mais probabilidades de saírem do estrato social em que nasceram do que os americanos.
Consequências das estruturas deficientes dos EUA são, depois, as grandes tensões raciais, as elevadíssimas taxas de encarceramento prisional e de pobreza infantil -- esta última só inferior à do México nos países da OCDE. Por outro lado, tem vindo a diminuir substancialmente o número de estudantes estrangeiros nos EUA, com vantagem actual para países asiáticos e europeus.
Quanto à política externa, os EUA, graças ao seu inigualável poderio militar, transformaram-se lamentavelmente num dos países mais agressivos do mundo, o que contrasta notoriamente com a União Europeia. A sua intervenção no Iraque manchou indelevelmente a conduta de país-modelo. Será interessante verificar neste contexto que, em termos comerciais, a EU já suplantou os EUA nas suas relações económicas com a China. Talvez pontualmente apenas, as encomendas de Airbus europeus já ultrapassaram as de Boeings americanos, que foram líderes incontestados durante anos. O sonho americano continua? Quousque tandem? Quem segue este modelo?

2/01/2005

«Tudo o que você sempre quis saber sobre Beethoven... e nunca teve a oportunidade de perguntar!»

Ciclo de conferências (no 1º sábado de cada mês às 15 horas) coordenado e dinamizado por Teresa Cascudo e com a participação regular do pianista Alexei Eremine (membro fundador do Moscow Piano Quartet, gravou Schubert a 4 mãos com Pedro Burmester).
A Teresa Cascudo, além de inquestionável competência musicológica, possui excelentes qualidades de comunicadora e apoia as suas conferências na audição de peças, ou extractos de peças, relevantes para o tema tratado. Professora assistente na licenciatura on line em História e Ciências da Música da Universidad de La Rioja, é também doutorada pelo Departamento de Ciências Musicais da Universidade Nova de Lisboa e faz crítica musical no Público. Pode ser visitada no seu recentíssimo blogue -- http://contemporaneas.blogspot.com .
A 1ª sessão é já no próximo sábado,dia 5.
Local do crime: Museu da Música Portuguesa, Rua de Olivença, nº 5, no Estoril (muito perto da estação de comboios, do lado do mar, numa bela e vetusta mansão debruçada sobre o paredão).
Apareçam!