4/27/2011

Dois casos de imolação pelo fogo

No passado mês de Janeiro, na Tunísia, um pobre vendedor ambulante que procurava vender os seus produtos na rua foi de tal maneira molestado pelas autoridades que, desesperado, não resistiu. À vista de outras pessoas, imolou-se pelo fogo. A terrível cena teve o condão de ser propagada por todo a Tunísia e fez acordar o país para a prepotência das autoridades, para a injustiça social e as enormes desigualdades existentes, nomeadamente entre a família governante mais os seus corruptos amigos e a esmagadora maioria da população. Por assim dizer, o fogo que imolou o vendedor ambulante incendiou os ânimos em todo o país. Formaram-se espontaneamente grandes grupos de jovens protestando contra as poucas saídas que viam para o seu futuro, apesar de muitos deles serem a camada mais instruída do país. Daí até ao derrube do governo foi um passo. Depois, como todos sabemos, a "primavera norte-africana" estendeu-se ao Egipto, onde Mubarak teve o mesmo destino do tunisino Ben Ali. Do Egipto passou à Líbia, e a insurreição já reina no Iémen e na Síria. Tudo teve como origem a imolação do vendedor ambulante, que naturalmente não viveu para testemunhar o reboliço e as enormes transformações que o seu acto acabou por causar.
Anteontem, em França, perto de Bordéus, um trabalhador da France Telecom casado, com quatro filhos, 57 anos de idade e mais de metade da sua vida dedicada à empresa – mais de 30 anos -, não resistiu às sucessivas mudanças de posto que, inclusivamente, o forçaram a vender a sua própria casa. Ao chegar de manhã ao trabalho, imolou-se pelo fogo junto ao parque de estacionamento da France Telecom.
Não é a primeira vez que esta empresa é badalada por casos semelhantes. Entre 2008 e 2009, números oficiais acordados entre a Administração e os dirigentes sindicais referem um total de 35 trabalhadores que se suicidaram. Como a France Telecom tem um total de 100 mil trabalhadores, um comentário da Administração salientou que o número de suicídios não lhes parecia excessivo. A pressão da opinião pública fez, porém, com que, em 2009, o vice-Presidente da companhia apresentasse a sua demissão.
Este é mais um caso típico da mobilidade que é imposta aos trabalhadores e das consequências que essa mobilidade pode causar. No caso em questão, este empregado terá escrito várias vezes à Administração a expor o seu caso, mas nunca obteve qualquer resposta.
Cada vez mais, sente-se, os empregados contam não como pessoas mas como mais uma mera forma de capital: são "capital humano", alternativamente designados como "recursos humanos". O que conta basicamente para empresas deste quilate – e há muitas por esse mundo fora, como a globalização não se cansa de nos revelar – é a definição de objectivos e, posteriormente, o cumprimento desses mesmos objectivos por parte dos trabalhadores. Com que finalidade? A de garantir que a distribuição dos dividendos pelos accionistas será generosa, ou então que o valor de cada acção sofrerá um aumento substancial. Conceitos aparentemente abstractos como mobilidade e flexibilidade têm muito que se lhes diga em termos de prejuízo físico e mental para muitos trabalhadores.
Entretanto, o que ocorreu no parque de estacionamento de Merignac, nos arredores de Bordéus, não ocupou mais do que meia coluna de uma discreta página interior do jornal que regularmente leio. O caso da Tunísia foi, naturalmente, trazido para a primeira página.
Que conclusões podemos colher?

4/25/2011

Um serão televisivo

Não me considero grande fã de televisão. Há muito que não vejo telejornais, embora possa de vez em quando ser alertado para uma determinada reportagem que está a ser transmitida. Não acompanho nem telenovelas nem concursos. Por outro lado, a terrível sensação de déjà vu ao fim destes anos todos de debates políticos afasta-me desse tipo de programas, embora naturalmente não possa por vezes evitar ver passagens que estão a ser visionadas por alguém da família cá em casa. Já tenho ouvido boa música na TV e visto bom cinema. Utilizo com alguma frequência o televisor para ver DVDs que me interessam. Ciente da velha máxima que distingue a televisão do cinema apodando este último de motion, enquanto a televisão será emotion, aprecio directos e sempre que posso acompanho alguns bons jogos de futebol, desporto que pratiquei durante várias décadas.
Dentro deste quadro, o serão televisivo de ontem à noite foi uma excepção, mas uma excepção muito agradável. Pus de lado eventuais leituras e não liguei o computador. Dispus-me a ver o que estava anunciado na RTP1 e que o meu bom amigo João Miguel tinha criteriosamente incluído nas suas Sugestões publicadas neste blog. Valeu a pena. Mesmo muito.
A passagem de uma sucessão de eventos que ocorreram no período da minha vida, a minha idade actual e as recordações de momentos vividos atraíam-me para a primeira parte de um programa evocativo da figura de Zeca Afonso. A assinatura de Joaquim Vieira era uma garantia de qualidade, aliás tal como a autoria de outro Joaquim – o Furtado – costuma ser em programas sobre o período da guerra colonial.
Evocar o José Afonso, como voz possuidora de um timbre muito especial e com a criatividade consciente de um compositor que se opunha ao regime salazarista então vigente, fica sempre bem num dia que precede a data de 25 de Abril. Como tantas outras pessoas neste país, tenho praticamente toda a obra de José Afonso em CDs e facilmente me comovo ao ouvir determinadas baladas. O facto de eu ter estado na guerra colonial entre 1961 e 1963 não é certamente alheio a esse estado de espírito.
De momentos com a presença do Zeca recordo particularmente um serão que foi para mim inesquecível. Com um punhado de amigos e outros desconhecidos, integrei um grupo de pessoas que, em segredo, combinaram reunir-se para homenagear o Zeca Afonso e apoiá-lo materialmente na medida do possível (perseguido pelo regime e impedido de leccionar, ele debatia-se com dificuldades para sustentar a sua família). Pelo menos para mim, foi emocionante a sessão, com o Zeca a cantar várias das suas baladas da forma que só ele sabia, embora não se recordasse da letra de algumas canções, que o Assis Pacheco, sabedor do facto, tinha trazido e lhe colocava em frente. O Zeca cantava de pé, uma perna sobre uma cadeira e acompanhava-se a si próprio com a sua guitarra de seis cordas. O Tóssan, o do extraordinário Cãopêndio, preenchia as pausas com anedotas contadas com o humor que ele instintivamente lhes imprimia. A reunião teve lugar na sala maior de uma casa pertencente a um arquitecto mas parcialmente abandonada em S. João do Estoril, junto à Praia da Azarujinha.
Agora, no filme sobre a vida de José Afonso, o Joaquim Vieira soube escolher as pessoas certas, de familiares a amigos e a admiradores responsáveis. Todos deram através dos seus testemunhos consistência a uma biografia que é rica e emprestaram-lhe vivacidade. Foi uma reconstrução muito interessante, que simultaneamente reviveu o passado português desde os anos 30 até à década de 60. Hoje à noite haverá a continuação, a não perder.
Curiosamente, e decerto não por mera coincidência, a RTP apresentou a seguir o penúltimo episódio de uma série (Conta-me como foi) que decorre entre os anos 60 e 70. Bem interpretado por Rita Blanco e Miguel Guilherme, entre outros, o episódio retratou os tempos de Marcelo Caetano. Marcelo surgiu em duas ocasiões: primeiro a fazer uma alocução transmitida pela TV sobre o Ultramar português e, depois, na sua ida, como presidente do conselho de ministros sucessor de Salazar, a um estádio de futebol para assistir a um clássico Benfica-Sporting e receber, poucos dias antes do 25 de Abril de 1974, os aplausos de uma multidão semelhante à que o iria vaiar quando a revolução foi bem sucedida.
O meu serão televisivo na RTP1 – o mais longo de que me lembro – não terminou aqui. Dispus-me a ver o filme sobre a captura do navio Santa Maria em 1961. Embora não possa ser considerada uma obra-prima, o filme vê-se muito bem e constituiu uma estreia, o que sempre se saúda. Recria, com alguma natural ficção à mistura, um caso que deu brado e trouxe para a ribalta a situação do Ultramar português, através da visão romântica mas persistente e combativa de um homem como Henrique Galvão – que viveu durante largos anos em Angola - e de um punhado de portugueses e espanhóis opositores dos regimes ditatoriais ibéricos de Salazar e de Franco. Tudo isto ligado a mais uma safardice feita pelo governo de Salazar aquando das eleições presidenciais em que Humberto Delgado concorreu, o que levou o general a exilar-se no Brasil.
Pessoalmente, este assalto ao Santa Maria trouxe-me à memória os tempos em que trabalhei, como alferes miliciano, na Secção de Informações do Estado-Maior do Exército. Por estar nessa secção, tinha acesso a informação reservada, o que me permitiu acompanhar mais de perto a evolução dos acontecimentos. Recordo-me mesmo da vez em que, logo que soou o alarme relativo ao Santa Maria, eu ter ido a um armário de metal existente na secção onde eram guardadas fichas informativas de serviços secretos e ter retirado de lá uma informação com origem num informador da PIDE a reportar movimentos estranhos a bordo do paquete antes de o assalto se consumar. Quando mostrei o documento ao coronel chefe da repartição, ele olhou para mim e disse-me em voz baixa, em tom amigo, firme mas não autoritário: "Você nunca viu este papel!" Era assim que as coisas se passavam.
Por todo este conjunto de coisas, o serão ontem passado frente ao televisor a verem desbobinar-se estes factos e, simultaneamente, as minhas memórias, pode ter sido longo mas pareceu-me algo muito curto.

4/20/2011

Confuso

Confesso que me sinto desorientado relativamente ao meu país. Em certo sentido, envergonhado e desorgulhoso. Estarei possivelmente em boa companhia, mas isso não é algo que me traga qualquer consolo. Paira no ar uma terrível sensação de desconforto. E de desconfiança. Na generalidade, os portugueses nunca confiaram suficientemente uns nos outros para trabalharem em equipa. Com algumas excepções, só o fazem quando se encontram em sérios embaraços ou quando concluem que o esforço de um só não chega e é preciso unir a classe. O problema é que a sua "classe" não é o país, mas sim as corporações, v.g. médicos, advogados, economistas, contabilistas, engenheiros, professores, enfermeiros, etc. e as respectivas ordens ou sindicatos. Com que objectivos? Os de garantirem maiores benesses para si próprios.
Daqui resulta uma enorme fragmentação de interesses, que raramente coincidem. Por outro lado, o facto de os portugueses gostarem de se autoflagelar – um pouco como as letras de muitos dos nossos fados expressam – acaba por não ser positivo. Torna-se mesmo negativo. Quem se lastima, olha mais para si do que para os outros, tem horizontes pouco abrangentes e dificilmente nota que isso diminui a sua produtividade. Fernando Pessoa foi perspicaz quando notou que um povo ou um indivíduo que pensa sistematicamente mal de si próprio acaba por tornar-se naquilo que pensa. Inteligente como sempre, este Pessoa.
De passagem na Polónia, tive uma vez ocasião de falar com vários residentes de Varsóvia. De entre alguns pontos de interesse, colhi uma ideia que me pareceu muito correcta e que se poderia aplicar também a Portugal, talvez por ambos os países terem uma forte cultura católica ou por outro motivo qualquer: "onde há dois polacos, há três opiniões". Achei certeiro o pensamento. Ora, deste incessante opinar resulta alguma discórdia demasiado prolongada, um uso e abuso de palavras e, principalmente, uma prática de não-acção.
Com o 25 de Abril de 1974, a democracia abriu as goelas aos portugueses, que até então tinham sido a nação do não-conflito: o longo regime salazarista tinha feito o possível por abafar as discussões e as zangas, e banir ou sanar à nascença eventuais conflitos; permitia, isso sim, opiniões diferentes sobre futebol. Não admira que, de tão refreado que esteve durante várias décadas, o país se tenha conflitualizado terrivelmente após o 25 de Abril. Sem a censura, embora com um certo controlo económico, e com uma overdose de informação que jornais, revistas, rádio, televisão e computadores lhe proporcionam, o português passou a opinar sobre quase tudo (como eu próprio reconhecidamente faço neste blog). Daqui resulta um país dividido e pouco unido, sabendo mais o que não quer do que tendo ideias próprias sobre projectos com pernas para andar. E por projectos viáveis entendo eu – outros terão opinião diversa - não uma maior liberdade mas sim uma disciplina mais rigorosa; uma união no trabalho, mais do que uma facilitista união no descanso; uma justiça eficaz, essencial num estado de direito e não corrompível pelos interesses das classes a que acima aludo; um reconhecimento efectivo das desigualdades claramente excessivas existentes entre ricos e pobres que leve a uma melhor distribuição da riqueza e a um índice de felicidade mais elevado.
A conservadora inglesa Margaret Thatcher terá dito que o socialismo dura até se acabar o dinheiro dos outros. A frase, que conterá algo de verdadeiro, traz-me à memória o que um velho amigo meu, já falecido, costumava dizer: " a direita sabe fazer dinheiro, mas não sabe distribuí-lo; a esquerda sabe distribuí-lo, mas não o sabe fazer." O deslumbramento com dinheiro aparentemente fácil vindo do exterior – os fundos de Bruxelas e outras coisas tão bruxeliantes como juros a taxas inusitadamente baixas – levaram o país, como todos nós bem sabemos, a gastar muito acima das suas posses. Não foram somente os socialistas, com certeza, pois todos acabaram por ir na mesma onda. Cometeram-se muitos erros. Foi infelizmente um bom exemplo do muito badalado "país pobre com mentalidade de rico".
Presentemente, as ajudas que nos irão chegar são basicamente para garantir que o dinheiro que nos foi emprestado ao país e à banca vai ser devolvido aos nossos credores. E o pior é que deverá ser feito num período de tempo que é exíguo relativamente ao largo número de anos nos quais o regabofe de contas deficitárias já dura.
Por esta razão, não custa prever uma de duas coisas: ou um regime policial muito duro, com sérias restrições à liberdade de manifestação de grupos, ou tumultos de natureza dificilmente controlável. Resta a religiosa esperança de que "oxalá" isto não aconteça.

4/15/2011

Os donos do mundo


O título da notícia da BBC, de onde retirei a foto aqui inserida, não deixa margem para dúvidas: Gaddafi must go! É a troika que o decide. A propósito, talvez seja bom lembrar que, originalmente, a palavra troika se aplicava a um meio de transporte russo que era puxado por três cavalos postados lado a lado. Hoje, troika é um vocábulo muito usado noutros contextos, podendo ser sinónimo de tríade, de trio e de trindade. E que trindade, neste caso! Obama, dos Estados Unidos, Cameron, por parte do Reino Unido, e Sarkozy, pela França, decidiram atacar com mais poderio militar.
Em larga medida, este reforço dos ataques para derrubar Khadafi vai contra a resolução das Nações Unidas, a qual permitia apenas uma intervenção com a finalidade expressa de poupar a vida a civis. Infelizmente, cedo se viu que a resolução da ONU não passava de mais uma jogada hipócrita por parte de alguns países. Recordando Talleyrand, foram utilizadas palavras como democracia, liberdade e ética, essencialmente para dissimularem o pensamento dos países-membros em questão.
Khadafi tem de ser despachado! Entretanto, não é impossível, pressente-se, que se houvesse agora eleições na Líbia, Khadafi viesse a ganhá-las. Afinal, os bravos rebeldes não são assim tão poderosos nem influentes na sociedade líbia.
Aquele que é o desejo fulcral das grandes potências ávidas de petróleo e de tudo o mais que a Líbia possa produzir e que renda bom dinheiro é a possibilidade de gozarem de total liberdade de movimentos. Tal como noutros casos, tanto lhes faz que o líder local seja comunista ou capitalista, honesto ou desonesto para com o seu povo. O que fundamentalmente lhes interessa é que ele "colabore" e consiga manter a lei e a ordem no seu território. Khadafi terá servido para estes propósitos até agora, mau grado os seus muito defeitos. Presentemente, porém, tem de fazer as malas.
É triste e humilhante para pessoas com réstias de ética ver esta prática por parte de países do Ocidente que se consideram civilizados. É o poder militar que conta, mais nada. A palavra "coerência" faz parte da langue de bois dos políticos. Todavia, a incoerência que eles revelam na aplicação dos seus princípios é total. Irónico e satírico, o óptimo comediante que foi Groucho Marx costumava dizer: "Estes são os meus princípios; mas, se quiserem, tenho outros."
Que Khadafi não é grande peça sabemo-lo todos. Mas que direito têm os Estados Unidos, a França e o Reino Unido de bombardear e invadir um país soberano que não os atacou? E por que razão adoptam uma atitude tão diferente relativamente ao Bahrein, por exemplo, onde aliás os Estados Unidos possuem uma base militar? Ou perante a Síria?
Só se espera que da acção da troika não surja o início de mais uma katastroika. É hipótese que não pode nem deve ser arredada.

4/14/2011

Poesia de A a Z

Para a letra C, Mário Sá Carneiro:

QUASE

Um pouco mais de sol — eu era brasa.
Um pouco mais de azul — eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador d'espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho — ó dor! — quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim — quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
— Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... —
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

...........................................
...........................................

Um pouco mais de sol — e fora brasa,
Um pouco mais de azul — e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

(Paris, 13 de maio de 1913)




7

4/10/2011

Com a faca e o queijo na mão

O verdadeiro choque causado pelo abaixamento de salários e pensões com que os portugueses se irão defrontar, com cortes nos serviços sociais, aumento de impostos, maiores facilidades nos despedimentos e sabe-se mais lá o quê, ainda não chegou propriamente – pelo menos em toda a linha. Porém, pressente-se que o povo já se sente revoltado e humilhado. Uma vez que, aparentemente, não somos capazes de nos governar através dos políticos que elegemos, os donos da moeda em cujo barco entrámos há uns anos ditam-nos agora as suas leis.
Bem ou mal, a situação traz-me à memória a táctica usada por uma conhecida cadeia de supermercados (é possível que outras utilizem o mesmo processo). Ao que uma pessoa ligada ao meio me contou já há tempos, quando essa cadeia necessita de um produto novo para o qual existem vários fornecedores, convoca esses fornecedores para uma reunião. Sentados à volta de uma mesa, os fornecedores ou os seus representantes são convidados a discutir entre si, à porta fechada e sem mais ninguém presente, as suas condições. O objectivo é o de apurar quem oferece as melhores condições de preço. Assim que chegam a uma conclusão, chamam o representante da cadeia, que ouvirá essa proposta e levantará depois algumas questões sobre as garantias de abastecimento e eventualmente outros pormenores. Se ficar satisfeito com as condições apresentadas, o representante da cadeia de supermercados convidará posteriormente o fornecedor escolhido para que ambas as partes firmem o respectivo contrato.
Quando ouvi contar esta história por alguém que tinha tido um representante seu presente numa dessas reuniões, pensei para comigo que, entre outras coisas, era degradante para os fornecedores terem de abrir o seu jogo perante a concorrência. Contudo, era assim. Dado que os contratos com cadeias de distribuição podem assegurar volumes de vendas que de outra forma são praticamente inatingíveis, os supermercados ditam as leis. Quem não estiver interessado sai da corrida. As regras são impostas por eles.
É evidente que o caso existente entre Portugal e a União Europeia é muito mais complexo, mas inclui alguns laivos da negociação acima apresentada. Com o cinto não exactamente colocado à volta do seu lugar habitual, que é a cintura, mas sim bastante mais acima - à volta do pescoço -, o país recebe a informação de que o vultoso empréstimo de que carece só será efectivamente concretizado se os vários partidos políticos se reunirem e chegarem a uma plataforma de entendimento quanto à aceitação dos requisitos que enformam o empréstimo.
Parece haver ocasiões em que o famoso TINA norte-americano (formado com as iniciais de there is no alternative) soa como real. Seja como for, a situação resulta pela sua faceta ditatorial na humilhação de todo um regime democrático. Fazer igualar em aspectos cruciais partidos ideologicamente diferentes – hão-de sobejar depois para cada um deles palavras de diferença e pormenores com relativamente pouca relevância – representa em grande parte o desaparecimento da única arma que o povo ainda possui: o voto consciente e diferenciado. É a capitulação, como sucede no final de uma guerra perdida. Dificilmente poderíamos ter de enfrentar uma situação mais real e mais triste.

4/07/2011

Poesia de A a Z

B, de Bocage:

Por terra jaz o empório do Oriente,

Que do rígido Afonso o ferro, o raio

Ao grão filho ganhou do grão Sabaio,

Envergonhando o deus armipotente;


Caiu Goa, terror antigamente

Do naire vão, do pérfido Malaio,

De bárbaras nações!...Ah! Que desmaio

Apaga o márcio ardor da lusa gente?


Oh séculos de heróis! Dias de glória!

Varões excelsos que, apesar da morte,

Viveis na tradição, viveis na História!



Albuquerque terrível, Castro forte,

Menezes e outros mil, vossa memória

Vinga as injúrias que nos faz a Sorte.


Manuel Maria Barbosa du Bocage (1766-1805)

4/05/2011

O país mais rico do mundo


Embora a Organização das Nações Unidas conte com 191 países membros, o número total de nações mundiais excede os 200 e atinge um número sobre o qual não existe real consenso. Verdade seja, no entanto, que determinar com exactidão esse número é mais uma curiosidade do que algo com grande relevância. O que pretendo sublinhar é, fundamentalmente, que o país mais rico do mundo não se encontra, em minha opinião, entre aqueles que todos bem conhecemos. Façamos uma pequena-grande viagem para tentar descobri-lo.
Comecemos por falar de dinheiro. Este, como Françoise Sagan gostava de dizer, não faz a felicidade, mas é sempre preferível chorar num Mercedes a chorar num autocarro. Sacha Guitry completava ironicamente a ideia: “Quando alguém diz que o dinheiro não faz a felicidade, está com certeza a referir-se ao dinheiro dos outros.” Na realidade, seja com o objectivo de atingir a felicidade que o poder confere, seja por outros motivos, o dinheiro sempre atraiu as pessoas. Aqueles que são ricos prezam-no muito. O seu pensamento número um é o de conseguirem aumentar a sua riqueza. O seu desgosto maior é o de terem de pagar impostos ao Estado. Seja onde for. Não lhes interessa muito que os impostos sejam, como realmente são, o preço da cidadania. Se for possível comprar essa cidadania mais barato, tanto melhor. Por conseguinte, pagar o menor montante de impostos possível é um desígnio primacial de quem possui vultosas fortunas e está à frente de grandes negócios. Em abono da verdade diga-se que as tentativas de evasão fiscal sempre existiram. Presentemente, porém, elas são muito mais ousadas, envolvem montantes maiores e estão, digo eu, na origem de grandes males sociais. Mas continuemos a ir por partes.
A partir de Setembro de 2008, quando se deu uma situação de ruptura na banca e nos seguros internacionais e bolhas de imobiliário rebentaram em vários países, verificou-se, preto no branco, que muito do que estava a suceder era o resultado de uma profunda falta de ética no actual sistema capitalista, que falseara a verdade ao vender gato por lebre. De pronto foram acusadas as doutrinas neo-liberais de estarem por detrás do que vinha sucedendo há anos, com um grande incremento de várias fortunas e, principalmente, com a criação de um enorme abismo entre o capital financeiro e o capital de natureza económica, sendo o primeiro pelo menos três vezes superior ao segundo. A desregulação, também denominada liberalização, estaria na raiz de tudo. Os maiores fundos não regulados – os hedge funds – teriam, juntamente com produtos financeiros derivados, sido os causadores da crise. Receita: regular a circulação de capitais no mundo. De outra forma, instalar-se-ia o caos.
Hoje, quase três anos depois da data acima mencionada, os hedge funds continuam porém sem regulação e os casos de medidas de austeridade sucedem-se em vários países, causando um custoso sofrimento à maioria dos seus habitantes. Islândia, Grécia, Irlanda, mas também o Reino Unido, agora Portugal e a Espanha atravessam períodos particularmente difíceis. Porquê?
Em minha opinião, devido de facto às doutrinas e práticas neo-liberais, a que se juntaram vários erros gravosos de governação em diversos países. Atentemos nas opiniões expressas por alguns opinion-makers sobre o neoliberalismo:
João Ferreira do Amaral, conhecido economista, foi claro: “A partir da década de 70, o furacão neoliberal varreu tudo e todos. Destruiu mais do que construiu e afectou gravemente um dos elementos essenciais de uma sociedade, que é o sentido de comunidade. Não resolveu nenhum dos problemas fundamentais, veio agravar outros e criou enormes incertezas em relação ao futuro.”
Por seu lado, o colunista do New York Herald Tribune, William Pfaff, escreveu há catorze anos: “O neoliberalismo está a destruir a prosperidade ou os meios de existência de centenas de milhares de pessoas em nome do bem-estar das gerações futuras. Tornou-se uma máquina de empobrecimento de vastos grupos sociais e de destruição do emprego, e tudo isto apenas em benefício duma exígua classe de gestores e de uma mais ampla classe de accionistas. Esta situação não é o resultado apenas de novas tecnologias, mas também de novos dogmas. O único critério de decisão deve ser a procura do lucro máximo para o capital investido. Qualquer outra consideração, seja a dos interesses dos empregados, ou da comunidade em que a empresa funciona, perverterá a racionalidade económica e comprometerá o êxito global da economia. Os custos sociais do encerramento de empresas, dos despedimentos e da flexibilização do mercado laboral são inevitáveis, mas serão compensados pelos benefícios futuros. Quais? Afinal, o neoliberalismo justifica os seus custos humanos pela sua própria visão do futuro radioso outrora prometido pelo comunismo. Por que razão deveremos dar mais crédito a esta promessa que às promessas do comunismo?”
Vejamos ainda mais três opiniões, neste caso de dois portugueses, Fernando Dacosta primeiro (há dez anos) e, depois, de Manuel Alegre (em 2004), com o professor americano Ethan B. Kapstein (em 1997), de permeio:
"Detentor de um pensamento único (a rendibilidade), de uma ideologia democrática (a massificação), de uma estratégia sedutora (o consumismo), de uma cultura colorida (o soporífero), o liberalismo selvagem desaloja e arruína, descaracteriza e esvazia as populações onde desembarca. Ao totalitarismo ideológico da ditadura sucedeu-se o totalitarismo do lucro dos mercados; ao silêncio das censuras, o chinfrim das manipulações; ao isolamento dos cárceres, o isolamento das prateleiras; ao exílio dos inconvenientes, a excedentarização dos convenientes.
Sob mantos diáfanos de chiquismo, o sistema julga-se, e comporta-se, como se fosse dono dos seres humanos, das riquezas naturais, do equilíbrio ambiental que caem sob as suas asas. Arregimenta intelectuais e políticos, criadores e comunicadores, tal como fizeram no passado o fascismo, o nazismo, o comunismo, o fundamentalismo." (F. D.)
"Talvez o mundo se encaminhe inexoravelmente para um desses momentos trágicos que levam os historiadores do futuro a perguntar por que razão nada foi feito quando ainda era tempo. Será que as elites políticas e económicas não tinham consciência das profundas implicações provocadas pela mudança técnica e económica nos trabalhadores? O que as impediu de tomar a tempo as medidas necessárias para prevenir uma crise social à escala do globo?" (E.B.K.)
"A lógica neo-liberal subverte os fundamentos humanistas da nossa civilização e mina o Estado-Providência. A ditadura dos mercados financeiros e a colonização da Europa por um modelo incompatível com os valores da sua cultura e civilização levam ao desemprego estrutural, à exclusão social e à desregulação das nossas sociedades. Passou-se do totalitarismo burocrático do comunismo de leste para o totalitarismo de mercado do ocidente. Esta é a questão de fundo." (M.A.)

O neo-liberalismo defende, como todo o liberalismo, uma máxima de Adam Smith do século XVIII: Quanto menos Estado, melhor Estado. Só que, como bem lembra J. Kenneth Galbraith, a guerra e o Estado moderno tecnologicamente competitivo, e armado, modificaram muito o mundo de Smith, pois os governos destes Estados não podem ser nem baratos nem pequenos.
Creio que daqui se infere, em resumo ultra-simplificado, que a política neoliberal privilegia acima de tudo o lucro e defende a existência de Estados reduzidos. Como conseguir lucros vultosos, reduzindo simultaneamente o poder dos Estados? A resposta a esta pergunta fornece-nos a chave.
Se alguém tiver a oportunidade de fabricar fora de portas produtos a um custo muito mais baixo do que aquele que consegue no seu país, para depois os vender sensivelmente ao mesmo preço ou um pouco menos, os seus lucros subirão. Se lograr vender em grande escala, os seus lucros crescerão ainda mais. Porque não explorar essa possibilidade? As empresas sempre exploraram a mão-de-obra barata existente em países como a Espanha, Portugal e Irlanda. Depois da queda do muro de Berlim, os países do leste europeu surgiram também como muito apelativos devido aos baixos salários dos seus trabalhadores e a incentivos oferecidos pelos governos locais para a construção e fixação de fábricas. E se fosse possível arranjar ainda mais barato do que nos países menos desenvolvidos da Europa ou da América Latina, mesmo que se tivesse de lidar com regimes ditatoriais e eventualmente comunistas? Ideologias desse tipo não contam. O que conta é o lucro. Se os lucros forem bons, que importa o resto?
Foi assim que o eixo mais populoso do mundo, o qual, grosso modo, vai de Bombaim a Xangai, englobando, entre outros países menores, a Índia (1,2 biliões de habitantes) e a China (1,3 biliões), passou a deter mais de 50 por cento da produção mundial. Novo colonialismo? Sem dúvida. Mas um colonialismo de trabalho, de servidão humana. Sem pesadas administrações, sem exércitos. E também, frise-se, sem qualquer tentativa de mudar o estado de coisas nesses gigantescos países. Os neo-liberais aprenderam bem a lição ministrada pelos ingleses quando estes dominaram a Índia sem procurarem, no entanto, alterar o sistema de castas, imiscuir-se nas diferentes religiões praticadas, melhorar a distribuição da riqueza, etc. Os britânicos foram suficientemente inteligentes para concluír que nunca seriam bem sucedidos nessas tarefas. Daí que tivessem naturalmente deixado que as grandes fortunas dos marajás indianos se mantivessem, enquanto a mais aguda das pobrezas grassava em diversas regiões. Ainda hoje, a Índia, com o seu Produto Interno Bruto muito aumentado relativamente ao que era – mas continuando com um baixo PIB per capita devido à sua enorme população – é dos países do mundo com maior número de bilionários. São os "descendentes" dos marajás, dos nababos de antigamente. Com uma população predominantemente jovem (70 por cento têm menos de 35 anos de idade), a Índia constitui um bom local para investimentos estrangeiros, a baixo custo. Tal como a China. Se a Índia possui um regime democrático algo sui generis, pode dizer-se que a China possui um regime comunista igualmente sui generis. É natural que na China surjam também grandes fortunas; tão natural, de facto, como que se mantenha um acentuado fosso entre os chineses mais ricos e os mais pobres.
Mas não é isso que importa aos empresários e investidores neo-liberais. Deficientes condições de trabalho, falta de segurança social, disciplina férrea, são coisas que não lhes desagradam. O fundamental é que os objectivos inicialmente traçados sejam cumpridos. E isso tem sucedido. Na óptica capitalista, o continente asiático é o melhor para a exploração de mão-de-obra, tal como o continente africano o é para a exploração de matérias-primas (basta lembrarmo-nos do que se está a passar na Líbia, país que, segundo o último número da revista Time, é the site of the largest proven oil reserves in Africa and remains largely underexplored).
E quanto ao desemprego no Ocidente causado pela deslocalização das empresas para outras paragens? Bem, esse é um problema que não diz exactamente respeito aos investidores, mas sim aos Estados. Estes que tratem do assunto e resolvam o problema à sua maneira. Se emagrecerem, tanto melhor. No fundo, porquê falar de Estados? Ou de pátria? O conceito de pátria está totalmente ultrapassado. O capital é, por natureza, apátrida. Serve para circular, para "ajudar os pobres a arranjar trabalho que de outra forma não teriam"; serve para "retirar da miséria milhões de pessoas que agradecem os investimentos realizados". É a famosa globalização, que globaliza mais a pobreza do que a riqueza, mas essa é a parte que não se deve mencionar.
Ora, depois de todo o trabalho, de todo o risco incorrido em investir num país como a China ou como a Índia, por que razão terá um investidor neo-liberal de entregar grande parte dos seus lucros ao Estado, seja ele A ou B? Uma vez que está a actuar fora do seu território, não será um excesso entregar os impostos que seriam devidos no seu país ao governo respectivo? Foi assim que os centros off-shore, já relativamente antigos mas usados principalmente pelas grandes fortunas da Europa e dos Estados Unidos, passaram a tornar-se mais populares e a receberem os proveitos da subfacturação ou sobrefacturação, consoante os casos mais convenientes, de clientes muito mais numerosos e ávidos de aumentar os seus lucros. O seu dinheiro passou agora a circular por várias bolsas de todo o mundo, geralmente sem grande controlo nos hedge funds e noutras engenharias financeiras. Quando o sol se põe no Ocidente já é manhã no Oriente. Tudo circula. É o tempo para obter maiores lucros.
E os Estados? Bem, os Estados ficarão obviamente descapitalizados. Como convém, aliás. O dinheiro que poderia e deveria ir para eles sob a forma de impostos pode chegar-lhes, ironicamente, sob a forma de empréstimos a juros bem elevados. São os mercados a funcionar. O Estado descapitalizado tem, logicamente, dificuldades muito maiores. Sem muito do capital das grandes empresas que lhe deveria chegar na forma de impostos, tem de sobrecarregar a classe média, já que com os pobres não pode contar, exactamente porque são pobres. E como há-de o governo suportar o seu Estado Social? Mal. Muito mal, mesmo. Deverá desfazer-se de muito do seu património, que particulares endinheirados adquirirão a preço de saldo. A educação estatal baixa de qualidade, os dinheiros para a saúde são reduzidos. Entretanto, aparecerão novas escolas particulares e novos hospitais privados.
Ao não alimentar o Estado com uma fatia substancial dos seus impostos devidos e convenientemente desviados para centros off-shore, o sistema neoliberal não só lucra, como obriga o Estado a definhar e a deixar para o sector privado negócios interessantes. Trata-se de um ganho valioso, uma estratégia bem sucedida.
Creio que agora a resposta à pergunta inicialmente colocada se torna simples. Presentemente, o país mais rico do mundo é aquele que resulta da ficcionada fusão de todos os off-shores localizados no mundo. É um país riquíssimo em activos financeiros. Não tem nome, mas em honra do sistema que o institui poder-se-á chamar Nova Libéria. A sua bandeira é a que aparece no início deste post: um grande cifrão. O seu hino é a conhecida canção interpretada por Liza Minelli no filme Cabaret:
Money, money, money
A mark, a yen, a buck or a pound
Is all that makes the world go round.

4/04/2011

Gestores de quê?



Admito que tencionava colocar aqui um post sobre um tema diferente deste. Porém, uma reportagem inserida no Público de hoje sobre transportes fez-me adiar o outro assunto. Fiquei banzado!
Há vários anos que o comum cidadão dispõe de alguma informação através dos media sobre os défices que se acumulam no sector dos transportes públicos. Refiro-me a empresas como a Carris, o Metro, a CP, a TAP e a Transtejo. Quando se espera que sejam tomadas medidas drásticas por parte das respectivas administrações para eliminar ou pelo menos reduzir esses défices, eis que tudo fica praticamente na mesma. Assim parece, pelo menos.
Como habitante de Lisboa, costumo dizer que, para além do enorme bem da liberdade de que usufruímos, o passe social foi a grande conquista do 25 de Abril. De facto, o passe é algo utilíssimo na cidade para quem usa um ou vários tipos de transporte. Tenho um Cartão Lisboa Viva que uso quase diariamente e, por vezes, em mais do que duas viagens. Como muita gente, aliás. Há dois ou três meses, quando pedi para me carregarem o cartão por mais 30 dias, a funcionária que fez a operação comentou para mim: "Tem sorte! Ainda não apanha o aumento!" "De quanto vai ser o aumento?", perguntei, crente de que seria suficientemente elevado para me poderem considerar uma pessoa de sorte. Não me recordo já da resposta com exactidão, pelo que hesito entre duas hipóteses: quarenta ou sessenta cêntimos. Foi um destes números. Admitindo o mais elevado, creio que sessenta cêntimos de aumento por mês pode justificar-se em períodos normais, mas quando uma empresa está – ou devia estar – a procurar diminuir o seu défice, é muito pouco. Calculo que haverá leitores que neste momento pensarão: "Para certas pessoas já é muito!" Acredito que isso seja verdade, mas essas "certas pessoas" são claramente minoritárias e uma política de gestão não se pode fazer por baixo. Poder-se-á, quando muito, mediante rigorosa documentação comprovativa, atenuar o preço de alguns passes, mas para todas as outras pessoas o aumento terá de ser mais substancial. Assim, estamos a tratar a doença, que é grave, com meros paninhos quentes.
É óbvio que não advogo subidas tão elevadas que afastem as pessoas do Metro, por exemplo; além disso, também não encaro as receitas dos bilhetes e passes como única panaceia. Tem de necessariamente haver diminuição das despesas. No fundo, acredito que é por não terem sido tomadas medidas atempadamente e por se ter gasto demasiado dinheiro inicialmente sem fazer os necessários cálculos relativamente à sua amortização que se chegou à situação em que estamos.
E que situação é essa? Resumidamente: a dívida total das empresas públicas de transportes supera sete vezes (!!) as suas receitas. Só no curto prazo – entenda-se até ao terceiro trimestre deste ano no caso mais favorável – as empresas transportadoras públicas terão de arranjar forma de pagar dívidas que se vencem no valor de 935 milhões de euros. Cito do estudo feito pelo jornal Público: "Neste momento, as oito empresas públicas de transportes, nas quais também se inclui a TAP, têm uma dívida total de 17.607 milhões de euros – sete vezes mais do que as receitas globais (2.654 milhões).”
Como foi isto possível? Que gestores temos tido para consentirem passivos desta ordem? Que responsabilidade é que cada um deles tem? E, na cúpula, qual o papel dos sucessivos governos, que parece terem vindo a conformar-se com a situação?
Atingiu-se presentemente um ponto de ruptura. Mas até aqui chegarmos quanto de facilitismo não existiu? Quanto de irresponsabilidade? Quantos salários, nomeadamente os mais elevados, não estão acima de uma fasquia aceitável?
Qualquer défice deve necessariamente possuir algo de virtuoso para ser anulado ao fim um determinado período de tempo. É claro que empresas como o Metro e a CP têm um encargo inicial fortíssimo, na medida em que têm de preparar as suas próprias vias e fazer vultosos investimentos em material circulante, mas tudo isso deve ser convenientemente planeado de forma a possibilitar a amortização do investimento ao fim de alguns anos ou então a receber substanciais apoios do Estado. Grosso modo, parece-me ser este mais um caso de mãos largas, algum despesismo gratuito e falta de planeamento rigoroso com várias responsabilidades, incluindo as dos vários ministros das Finanças. Agora gasta-se, depois se verá. Sucede que esse não é princípio nenhum de gestão. Afinal, a experiência mostra que não é possível endireitar a sombra de uma vara torta.

4/03/2011

Poesia de A a Z

Dando início  ao repto lançado pelo António, aqui deixo um actualíssimo poema para a letra A, de Alegre:


Carta a Sophia, ou o Quinto Poema do Português Errante

Querida Sophia: como os índios do seu poema

também eu procurei o país sem mal.
Em dez anos de exílio o imagínei
como os índios utópicos também eu queria
um outro Portugal em Portugal.
Mas quando regressei eu não o vi
como eles me perdi e nunca achei
o país sem mal.


Talvez a própria vida seja isto
passar montanha e mar sem se dar conta
de que o único sentido é procurar.
Como os índios do seu poema eu não desisto
sou um português errante a caminhar
em busca do país que não se encontra.


Manuel Alegre, in "Livro do Português Errante"