6/25/2007

O biolino

Em termos puramente metafóricos, gosto de pensar num instrumento musical da vida. Dou-lhe o nome de biolino por "bio" ser "vida". Ao contrário do violino, com cujo nome se assemelha e que não tem mais do que quatro cordas, este tem seis. Uma é a corda da verdade. Ao seu lado fica a corda da mentira, que com ela faz contraponto. Seguem-se a corda da beleza e a da ironia-e-do-humor. A corda do combate vem a seguir e, por último, a corda da esperança (presente em todos os grandes finais).
Se gosto de imaginar este instrumento, é porque com ele é possível tocar muitas das melodias que se pretenda compor. Além disso, ele resume razoavelmente a vida. Quando olho para trás, vejo que, sem margem para dúvidas, a corda que mais busquei e também a que mais vezes dedilhei foi a da verdade. Cheguei a intitular-me truth-seeker e a escrever textos a esse respeito. Só que, e penso que já o contei aqui, tive uma vez alguns alunos a quem, a propósito de umas tantas estórias da História que eu acabava de contar, coloquei a pergunta: "Esta é uma verdade diferente da que costumam ouvir. O que eu vos disse é baseado em factos reais, mas admito que saia algo cruel para nós, portugueses. Preferem a verdade ou o mito?" Nem todos responderam – a maioria eram alunas, com idades compreendidas entre os 20 e os 25 anos - mas as que o fizeram não hesitaram: "O mito!". Foi, em certa medida, uma lição para mim. A verdade total, pura e dura, não agradava. Nem agrada.
E se a música fosse tocada conjuntamente com outras cordas? Para mim, a da mentira não servia, mas era excelente para contraponto. Pensei na necessidade de outras. Aí surgiu a terceira, a da beleza. Soa bem e dá prazer tocar. O que é belo e poético é admirado pela sua perfeição e pela sua originalidade. Porém, como a vida é feita de perspectivas diferentes segundo o ângulo em que a encaremos, o momento que vivemos e as pessoas com quem a partilhamos, senti que a corda da ironia e do humor se tornava igualmente essencial. Afinal, o humor e a ironia estão entre as grandes características que distinguem o homem dos animais.
Faltavam ainda duas cordas, uma delas assaz importante: a do combate e da luta. Estamos no mundo não só para o compreender e a ele nos adaptarmos mas, principalmente, também para o transformarmos. Não somos apenas seres receptivos, passivos, somos agentes de mudança e inovação. Para isso é necessário que combatamos e nos esforcemos por ganhar a batalha, dando o nosso melhor contributo possível e sendo suficientemente sensatos para não pretender alterar aquilo que consideramos válido.
A última corda é também a primeira, a da esperança. Sem esperança, nada se almeja, os braços falecem e morremos em vida. Pior: contaminamos os outros ao desesperarmos. E, disse-o o filósofo alemão Godamer, falecido salvo erro em 2004 já com mais de 100 anos, "a única ideia que quero defender sem restrições é que os seres humanos não podem viver sem esperança." É crucial que a esperança nunca seja perdida e, pelo contrário, seja alimentada.
Daqui resulta o meu biolino, que muitas vezes me domina, mais do que eu o domino a ele. Tento puxar para um lado e ele leva-me para outro. Isso sucede principalmente, devo admiti-lo, no conflito entre a exposição nua e crua da verdade - pelo menos como eu a vejo - e a inclusão ou exclusão da mensagem de esperança. A denúncia da mentira, corda falsa mas muito toante (por vezes mesmo troante quando tocada por alguns outros), é em si uma tentativa de contribuição para um mundo melhor. E essa é uma parte importante da luta em que a quinta corda se empenha. Mas continua a ser uma verdade que o tocar demasiado forte na denúncia da mentira é, per se, cruel.
O leitor poderá questionar-se: onde está a corda do sonho, da poesia e da utopia? Bem, essa é um resultado da melodia que se toca com as cordas do instrumento. Por exemplo, a corda da verdade, juntamente com a corda da beleza - ambas bem temperadas com a da esperança - podem produzir um sonho maravilhoso. Ao qual há que dar empowerment, como agora se diz.
Este é um instrumento tão fácil de tocar como outros. A música que dele se pode tirar é praticamente infinita. O agrado da melodia por parte dos que a ouvem é que pode ser literalmente diferente. Tudo, afinal, depende muito dos ouvidos de quem escuta. Por outro lado, tocar só para nós não faz sentido. "O meu amigo, o outro, não é senão a outra metade de mim próprio." Fazer de nós apenas uma metade e partilhar a outra com a audição do mundo é um conceito importante. Tal como pensar, como há dias ouvi numa conferência, que existe uma enorme diferença entre o cartesiano "Sou, logo existo" e o "Sou, porque tu és".
Eis umas meras reflexões biolínicas de um sentipensante, como nós humanos por natureza somos.

6/23/2007

Confiança e Desconfiança

A confiança, tanto em nós próprios como nos outros, é um bom sintoma. É sintoma de uma sociedade predominantemente sã, na qual prevalece o respeito mútuo. Quem confia nas suas próprias capacidades produz mais e entra menos em quezílias com os outros.
Quem é desconfiado esconde, por baixo da sua desconfiança e aparente humildade, um desejo de ser maior do que aquilo que na realidade é. A desconfiança espelha, neste sentido, alguma frustração pessoal, que se pode estender à escala nacional. A desconfiança constante produz, em vez de obras, uma crítica permanente que se alimenta de si mesma para manifestar uma aparente superioridade moral dos críticos relativamente aos criticados. É uma forma de os críticos se elevarem aos seus próprios olhos, camuflando afinal a sua inerente mediocridade, e de igualmente se desresponsabilizarem dos assuntos que criticam.
O desconfiado é mais supersticioso do que a pessoa confiante em si mesma. A superstição, a crença numa sorte que o há-de bafejar e que ele pretende atrair para si através de rituais vários, como o jogo, acaba por representar o descontentamento com a sua própria pessoa. O elemento externo da superstição entra como suplemento natural.
A desconfiança, ao pôr tudo em causa, torna-se obviamente negativa, pelo que cria uma atmosfera de pessimismo, a qual leva a sociedade a ser menos feliz e a realizar menos do que poderia para o seu bem-estar e o dos outros. Na realidade, ao desconfiar dos elementos à sua volta, a pessoa sente pouca vontade de trabalhar em grupo, sempre receosa de que os outros a estejam a defraudar de uma forma ou de outra. Daqui resulta frequentemente um esforço individual maior que, por ser algo desgarrado, é inglório e não produz tanto quanto o daqueles outros que colaboram sadiamente uns com os outros.
O facto de as pessoas desconfiadas suspeitarem constantemente das restantes leva-as a equacionar a sua existência com grande regularidade. Têm aqui origem os debates sobre identidade, mesmo à escala nacional, em que as pessoas se esforçam por encontrar elementos positivos que dêem à sociedade em que estão integradas um valor do qual suspeitam mas que gostariam ardentemente de ver confirmado, na medida em que esse declarado valor colectivo lhes vai conferir mérito a si próprias.
O indivíduo desconfiado esconde uma vaidade que transborda com os sucessos de compatriotas seus, nomeadamente quando esses compatriotas são postos em confronto com pessoas de outros países. Aqui, uma visão bairrista, regionalista ou nacionalista, tende a obnubilar essas pessoas de outras vistas mais alargadas, à escala global.
A desconfiança conduz, ainda, a uma desvalorização da realidade actual, preterida pela mitificação de um passado glorioso. Crê-se pouco no presente. Ora, esta descrença é altamente perniciosa para a condução de projectos de equipa e a longo prazo, o que em termos económicos e financeiros se traduz mais no negócio, na oportunidade ocasional, do que no longo projecto empresarial unificador de múltiplas vontades.
Como consequência natural, o secretismo impõe-se à transparência. Este secretismo provoca a tendência para a formação de empreendimentos familiares - estes são os membros da sociedade nos quais em princípio mais se confia - e origina a apetência por parte das elites de formação de famílias não-consaguíneas mas classistas: as agremiações secretas, baseadas em votos de confiança e interajuda mútua. Estas associações, que naturalmente não gostam de ser vistas como secretas embora em grande parte o sejam, criam laços de confiança confessional de que sentem necessitar, dentro das suas vistas mais alargadas. Nelas, v.g. Maçonaria, Opus Dei, só os privilegiados são admitidos. Os votos expressos pelos seus membros são verdadeiros rituais de confiança na instituição e nos seus pares, além de demonstração de confiança em si mesmos.
Por seu turno, o desconfiado teme ser alvo de críticas como aquelas com que costuma mimosear os outros. Daí que tenda a falar pouco sobre os seus próprios trabalhos e acabe, inevitavelmente, por contribuir igualmente pouco para a sociedade em que se insere. O espectro do eventual ridículo apodera-se dele e manieta-o. O fracasso tolhe-o. A existência deste receio da exposição ao ridículo e ao fracasso contribui decisivamente para a falta de sentido empreendedor e para o estabelecimento de um limiar exageradamente baixo da sua noção de risco. Por esse motivo, não arrisca. Para ele, com a sua superstição, jogar não é arriscar. É apenas tentar um conluio com os deuses. Se a constelação lhe for favorável, a sorte sorrir-lhe-á.
Agora, em face do efeito deste panorama à escala nacional, imagine-se como a sua conversão para o lado da confiança mútua, do trabalho em grupo, da partilha de conhecimentos e da solidariedade social poderia ser um factor benéfico e um poderoso motor de desenvolvimento!

6/20/2007

Poesia sempre!

Arredada a poesia deste blogue há algum tempo, deixo-vos uma pitada da belíssima poesia de Ruy Belo:

E tudo era possível


Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido

Chegava o mês de Maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido

E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer

Só sei que tinha o poder duma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível e era só querer

Breves, mas com muito pano para mangas

1. A produtividade não se consegue apenas com o apoio de acréscimos de tecnologia. A organização é vital. Ainda hoje me ocorre um exemplo a que tive ocasião de assistir em matéria de produtividade discursiva quando trabalhei pela primeira vez na Alemanha. Em festas, os discursos eram sempre feitos entre o consommé e o primeiro prato. A razão era simples: o consommé abria o apetite aos presentes, que não iriam perdoar a qualquer orador que demorasse mais de cinco minutos a expressar-se. É algo muito diferente do costume de reservar os discursos para o final da refeição, quando toda a gente, já bem atestada de sólidos e líquidos, se está, portanto, mais ou menos marimbando para o tempo que o discursante leva na sua oração.
2. A questão do novo aeroporto continua a fazer manchetes. Uma vez aberta a caixa de Pandora, olha-se com olhos de ver para a hipótese de manutenção da Portela + outro aeroporto de suporte. O problema reside, obviamente, nas promessas já feitas a financiadores imobiliários. Ressalta que, em quaisquer eleições há, para além de eleitores anónimos, financiadores registados. Estes últimos investem o seu dinheiro na natural expectativa de retorno com lucros do dinheiro investido. Se aos eleitores, a propósito de quebras de promessas eleitorais, o partido eleito pode acenar com "circunstâncias imprevisíveis a que somos inteiramente alheios", "Bruxelas dixit" ou mesmo "O P.R. sugeriu, mas com força institucional", os financiadores não perdoam explicações deste tipo. Na próxima vez, quem não cumpriu agora, nada leva.
3. Quem possui uma empresa privada e faz contrato com um novo gestor assina com este um contrato que lhe dá algumas garantias. O novo gestor submeter-se-á às condições, desde que estas não sejam demasiado leoninas para a parte empregadora. Contrariamente, quem aceita lugares de topo na administração pública, muitas vezes de cariz político, sabe que pode contar com cláusulas que lhe são altamente favoráveis e lhe renderão grossas maquias em caso de despedimento ou substituição. Será que este aspecto tem a ver com compadrio político, ou revelará apenas que gerir empresa privada (com rosto) e empresa pública (estatal, sem rosto) são coisas bem diferentes?
4. As eleições para a autarquia lisboeta, a realizar no próximo mês, fizeram surgir cerca de uma dúzia de candidaturas. Residirá uma das razões para tão elevado número de candidaturas, ainda por cima a uma câmara municipal que está em péssima situação financeira, no facto de que, hoje em dia, é apenas durante o período eleitoral que partidos menores têm possibilidade de fazerem ouvir a sua voz?
5. O caso da professora sexagenária, atingida por leucemia, que foi obrigada a dar aulas durante um mês para que pudesse ser-lhe conferida a aposentação, e que veio a falecer pouco depois, mereceu do Ministério das Finanças, através da Caixa Geral de Aposentações, o sucinto comentário de que foi cumprida integralmente a lei. É um comentário que mostra que, apesar das transformações já há muito efectuadas em domínios como o contabilístico, Portugal continua indubitavelmente a preferir a forma à substância.

6/18/2007

Que a hortografia vá plantar batatas!

Discute-se frequentemente na sociedade portuguesa a questão dos erros cometidos na escrita do português por pessoas com estudos. Admitindo-se embora que a perfeição cabe apenas a Deus e que ninguém é dono da língua, existem mesmo assim umas tantas regras convencionadas para a escrita que contribuem para melhorar a comunicação. Ocorre-me agora a frase "Queremos licenciatura univercitária!", que um bem intencionado aluno de um instituto politécnico proclamava nos anos 80 nos lavatórios da sua escola. Terá decerto incentivado vários dos seus colegas a lutar pelo mesmo desígnio.
A recente decisão ministerial de não considerar parte dos erros ortográficos nas provas de Português dos 4º e 6º anos enfileira naquilo que tem havido: facilitismo grave, que depois conduz a casos de bradar aos céus. Também nas provas de outras disciplinas foi considerado que os eventuais erros de português não contariam para a nota final. Assim, um aluno que responda bem a uma questão, em bom português, não terá melhor nota do que outro que também responda de maneira acertada mas com um "à" em vez de "há", um "á" no lugar de "à", "se quizésse-mos" onde deveria estar "se quiséssemos", "para que a reunião se realiza-se" em vez de "... realizasse", etc. Pragmáticas, houve pessoas que sugeriram que os testes fossem de resposta múltipla, com a marcação da resposta correcta através de um símbolo convencionado.
Lançar a culpa toda do actual desatino linguístico para cima da parafernália de multimédia que nos rodeia é desculpa de mau pagador. Embora seja um factor importante, ignora o preocupante facto de que, por exemplo, alguns docentes também sofrem de problemas desse tipo.
Educar, como tem sido dito vezes sem conto, não é manter as crianças e os adolescentes numa semi-ignorância. É prepará-los para a vida. Não se pode, por um lado, afirmar que os estudantes têm que estar aptos a enfrentar a competição, e depois não tentar afincadamente apetrechá-los com os meios adequados para fazerem face à concorrência que de facto irão sentir.
"Agora os computadores corrigem os erros!" é outro argumento largamente usado. Diz-se isto um pouco como se afirma que "não é preciso saber fazer mentalmente operações aritméticas porque hoje em dia existem os calculadores". A verdade é que, embora essa faceta correctora dos computadores seja muito útil, as máquinas não vão distinguir, por exemplo, entre "consertar" e "concertar", ou entre "coser" e "cozer", porque todas estas formas existem, embora com significados diferentes.
Pessoalmente, não posso deixar de considerar grave a atitude de complacência do Ministério da Educação. A não ser que as ministeriais cabeças achem que a tirada do Eça sobre o dever de se falar "patrioticamente mal línguas estrangeiras" se aplica, afinal, também à própria língua portuguesa na sua forma escrita!

6/13/2007

Objecção de consciência

Segundo o Público de hoje, os seis médicos obstetras do Hospital de Angra do Heroísmo já manifestaram por escrito a sua objecção de consciência quanto à realização de interrupções voluntárias de gravidez segundo a lei publicada no D.R. de 17 de Abril último. Dos 17 enfermeiros da especialidade de Obstetrícia, todos manifestaram objecção de consciência, tendo 11 assinado uma declaração nesse sentido. Também na ilha de S. Miguel, a directora clínica do Hospital de Ponta Delgada revelou que a maioria dos 12 obstetras da unidade de saúde tem intenção de alegar objecção de consciência. Números não idênticos, mas sempre com percentagens muito consideráveis - da ordem dos 80 por cento - registaram-se em outras unidades hospitalares do país.
Como tem sido largamente propalado, a saúde é um dos domínios em que existe uma acentuada promistuidade entre serviços públicos e privados. Entretanto, tendo havido um referendo em Portugal realizado em 11 de Fevereiro deste ano, porque não está ainda regulamentado todo o processo?
É evidente que nada tenho contra a legitimidade da objecção de consciência. Cada um sabe o que em consciência deve fazer. Mas o Estado tem o dever de defender a vontade expressa pelo povo, ou então mais valia não ter efectuado o referendo. Pessoalmente, aprovaria a existência de um ponto da regulamentação a publicar que determinasse que qualquer objector de consciência do serviço público que efectuasse uma IVG nas condições da lei numa instituição privada seria objecto de cessação automática do seu vínculo à função pública, com perda total dos benefícios até então adquiridos. A perca do vínculo seria uma reacção normal por parte do empregador, sendo a perda dos benefícios adquiridos a punição também normal pelo acto de o médico ou enfermeiro objectar conscientemente à realização de um acto em unidades de saúde do Estado e praticá-lo voluntariamente numa unidade de saúde privada.
Como é óbvio, todos aqueles médicos e enfermeiros que se mantivessem íntegros relativamente à sua objecção de consciência não seriam minimamente afectados pela sua legítima tomada de posição.

6/11/2007

Cavaco escavaca

Não é com o intuito de fazer trocadilhos, que são fáceis, que se diz que o Presidente, que durante meses e meses não deu cavaco, resolveu ultimamente lançar os primeiros cavacos para a fogueira do governo. "Trata-se de manobra de distanciamento de um político que não quer ficar associado a maus resultados governamentais e, principalmente, a medidas impopulares", dirão alguns. "É a concordância com a base de apoio que o elegeu", dirão outros. "Um certo populismo para poder sorrir para dentro quando membros do governo a seu lado são assobiados e ele é aplaudido", dirão uns terceiros.
Seja o que for, Cavaco mudou a sua táctica nas últimas semanas. Continua vago e indefinido, professor de professores como gosta de se ver, e formulando desejos que todos gostariam de ver concretizados mas que a realidade não permite. Ora, é essa realidade que o presidente não quer admitir.
Longe de mim fazer a apologia de Sócrates, que no entanto tem mostrado mais aspectos positivos do que negativos. Temos que nos lembrar que foram dois primeiro-ministros re-eleitos, Cavaco e Guterres, que acabaram por ser responsáveis por grande parte do descalabro das contas públicas nacionais. Sócrates propôs-se endireitá-las e, pela primeira vez, houve alguém que conseguiu bater o pé ao obreiro, mas despesista, Jardim. A reforma da Segurança Social está em marcha, o défice tem baixado, têm sido introduzidas reformas controversas na educação destinadas a aumentar a produtividade e a combater um facilitismo que raiava o escandaloso. É também verdade que têm sido cometidas algumas injustiças graves e que, como um amigo meu refere, Sócrates lembra um Putin à la portugaise. Mas este é, afinal, o problema de ir ao talho comprar carne e termos de pagar pelo osso quando só estamos verdadeiramente interessados na vianda.
Cavaco tem falado, sempre em meias-palavras e tom doutoral, sobre a Segurança Social, o desemprego, a demografia, a pobreza, o novo aeroporto, o emprego dos jovens, a educação, a saúde, e agora sobre os sinais de retoma económica que, nas suas palavras, são fracos. Ora, o Presidente sabe muito bem que Portugal, apesar dos fartos proventos de Bruxelas, foi um dos países da União mais afectados pela globalização, a qual levou à entrada nos nossos mercados externos de produtos a preços baixíssimos, com os quais é impossível competir devido a condições que são à partida bem diversas. Cavaco sabe também que o preço do petróleo praticamente triplicou desde que ele foi primeiro-ministro, pelo que a nossa balança comercial fica naturalmente afectada. Cavaco sabe que agora não é com um estalido de dedos que se aumentam as exportações portuguesas através de preços mais baixos - Portugal já não tem a sua moeda nacional própria que lhe permita baixar os preços artificialmente através de desvalorizações. Cavaco sabe que o endividamento das famílias portuguesas está em estreita correlação com os lucros bancários, que são fabulosos. Sabe, ainda, que Roma e Pavia não se fizeram num dia e, se fosse totalmente honesto nas suas palavras, não esqueceria de referir que os problemas da educação, que são de facto cruciais, não foram melhorados nos seus dois mandatos. Muito pelo contrário, agravaram-se: aumentou a quantidade, não melhorou a qualidade.
Por tudo isto, deve entender-se que o Governo não pode contar mais com o apoio e até os elogios de Cavaco. Porém, se virmos bem, existe congruência na atitude presidencial e respeito pela base que o elegeu. Esperemos, atentos, o desenrolar dos próximos episódios.

6/08/2007

Leitura traz-nos boas notícias

Um estudo recente da OCDE chegou à conclusão de que, pelo puro prazer da leitura, as raparigas têm mais tendência para ler do que os rapazes: 78 por cento contra 65 por cento. Suponho que estas percentagens não são atingidas em Portugal, mas mesmo assim creio que estamos a enveredar por um bom caminho através do Plano Nacional de Leitura e de acções que incentivam os pais a oferecerem livros aos filhos, livros que eles verdadeiramente leiam e não sejam apenas bonecada para olhar e deitar fora.
A parte porventura mais interessante do trabalho da OCDE é a indicação de que o gosto pelos livros pode ter um impacto maior no sucesso escolar dos jovens do que o status económico das famílias. Este é um dado relevante. Todos sabemos que a condição económica dos pais tem uma enorme influência no desenvolvimento dos filhos. Pais educados e sem problemas financeiros possuem normalmente uma boa casa, uma biblioteca bem apetrechada, dispõem de computadores e de toda uma parafernália de elevada tecnologia, possibilitam aos filhos viagens no país e ao estrangeiro e têm conversas entre si e com os seus amigos a um nível linguístico que é naturalmente assimilado pelos filhos. Estas são vantagens indesmentíveis relativamente a outras crianças que não possuem as mesmas condições e chegam, não tão raramente como se possa pensar, a sofrer de carências alimentares.
Daí que não seja despicienda a notícia de que a leitura pode ser um factor compensatório de um baixo status económico. Quem lê, viaja. Viaja através de palavras, de poemas e de boa prosa nas asas da imaginação. Quem lê, tem a ortografia e a sintaxe da língua a passarem-lhe pela mente e, necessariamente, a deixarem um rasto positivo e crucial. Quem lê, acorda para outros mundos, fica com a curiosidade desperta, vê aguçado o seu sentido crítico.
Se é uma verdade que os membros da nossa sociedade-de-imagem estão a começar demasiado tarde a ler, vamos tentar inverter a situação. Conclusões como esta da OCDE são um bálsamo. Assim elas cheguem ao conhecimento das pessoas que têm filhos e gostariam de os ver bem-educados, ambiciosos q.b., ponderados nas suas decisões e, como corolário, a usar com desenvoltura a sua própria língua.

6/05/2007

Patrocínios, mecenato e imagem

É normal que os membros mais ricos da sociedade sintam um dever moral de partilhar a sua riqueza com os mais desfavorecidos. Essa partilha pode traduzir-se em acções em determinadas épocas do ano (especialmente no Natal), em patrocínios de festas com presentes especiais para as crianças, na construção de uma creche, em contributos para a Igreja com donativos relevantes, na oferta de uma nova ambulância para a corporação dos bombeiros, etc. Após essas oferendas, os ricos passam a ser mais bem vistos e é frequente que o seu nome seja dado a uma instituição, a um campo de futebol ou mesmo a uma rua. Para além do facto de que o acto de dar alimenta o ego do dador, o benemérito possui plena consciência de que um bom nome abre numerosas portas para futuros negócios e provoca alguma facilitação por parte de poderes públicos sempre que lhes é pedido um favor.
Por seu lado, as empresas há muito que entenderam a enorme vantagem do patrocínio de determinadas actividades. O BES, por exemplo, comentou publicamente que os seus investimentos na selecção nacional de futebol lhe tinham granjeado uma enorme popularidade e criado um aumento significativo de notoriedade da marca, com o correspondente retorno rápido do dinheiro investido. Outras instituições apostam no mecenato, chamando a si as custas, totais ou parciais, de exposições de arte e espectáculos de vária ordem. Se o Ministério das Finanças concordar que se trata de acções compagináveis com a lei do Mecenato, haverá importantes vantagens fiscais para as empresas em questão.
Sou a favor de acções deste tipo, embora exista uma óbvia necessidade de distinguir entre campanhas puramente comerciais e acções de interesse público. Enquanto empresas como a Louis Vuitton e a Rolex tentam, através do respectivo patrocínio de regatas e de golfe, ganhar uma boa imagem junto das camadas da população com maior poder de compra, lojas de desconto como a Lidl aconselham, através de anúncios ao longo das estradas, os automobilistas a usarem o cinto de segurança. Na generalidade, são formas inteligentes de criar uma imagem favorável na mente de reais e potenciais clientes.
Ora, aqui creio que cabe uma palavra especial para a EDP. Para além da sua tentativa de fomentar uma imagem de interesse real no cliente através da organização de corridas populares de atletismo e de patrocínio de espectáculos diversos, a EDP aliou-se à Quercus na defesa do meio-ambiente e no aconselhamento à poupança de energia. E, aqui, eu paro um instante. Não sou capaz de imaginar empresas de comunicações telefónicas, móveis ou fixas, a incitar os seus clientes a falarem pouco. Isso seria um contra-senso em companhias que vivem do consumo das chamadas telefónicas. Da mesma forma, será difícil de imaginar um banco a aconselhar os seus clientes a retirarem o dinheiro dos seus depósitos para gozarem melhor a vida. Ora, a EDP não só incita as pessoas a pouparem nos seus gastos de energia, como lhes fornece avisados conselhos sobre as melhores maneiras de realizarem essa poupança. Embora tendo presente os vultosos lucros da empresa, admito que é uma forma diferente e muito saudável de relacionamento com o público.

6/04/2007

Incógnito

Numa experiência inédita realizada em Janeiro deste ano, Joshua Bell, um dos mais famosos violinistas da actualidade, tocou incógnito durante 45 minutos na estação L’Enfant Plaza, do Metro de Washington. De manhã e em hora de ponta. Das 1097 pessoas que passaram por ele, só uma o reconheceu, e foram pouquíssimas as que foram atraídas pela sua música. Esta provocatória iniciativa foi da responsabilidade do jornal Washington Post, que pretendeu lançar um debate sobre arte, beleza e contextos. Ninguém notou que o violinista tocava num Stradivarius de 1713, que vale 3,5 milhões de dólares.
Três dias antes, Bell tinha actuado no Symphony Hall de Boston, onde os melhores lugares custam mais de 100 dólares. Na estação do Metro foi ostensivamente ignorado pela maioria. A excepção foram as crianças, que, inevitavelmente, e perante a oposição do pai ou da mãe, queriam parar para escutar Bell, algo que, diz o jornal, indicará que todos nascemos com poesia e esta é depois, lentamente, sufocada dentro de todos nós.
"Foi estranho ser ignorado", disse Bell, que é uma espécie de sex symbol da música clássica. Envergando jeans, uma t-shirt e boné de basebol, Joshua Bell, que tem presentemente 39 anos, interpretou Chaconne, de Bach, que é, na sua opinião, "não só uma das melhores peças musicais de sempre, mas também um inegável sucesso". Executou, ainda, Ave Maria, de Schubert, e Estrellita, de Manuel Ponce. Recebeu das pessoas que passavam um total de 32 dólares e 17 cêntimos, sem contar com os 20 dólares da pessoa que o reconheceu.
"Foi uma sensação muito estranha ver que as pessoas me ignoravam", disse Bell, habituado aos aplausos das salas de espectáculo. "Num concerto, irrita-me ouvir tosses ou um telemóvel a tocar. Mas no Metro as minhas expectativas diminuíram substancialmente. Fiquei agradecido pelo mínimo reconhecimento, mesmo um simples olhar", acrescentou.
Terá sido este um caso típico de "pérolas a porcos"? Será a beleza algo objectivo, que se pode medir, ou tão-somente uma opinião? Mark Leitahuse, director da Galeria Nacional de Arte, não se surpreende: "A arte tem de estar no seu contexto próprio. Se, por exemplo, retirarmos uma pintura famosa de um museu e a colocarmos num restaurante, ninguém lhe prestará atenção."
Para outros, como o escritor John Lane, o que aconteceu na estação do Metro não significa que "as pessoas não tenham a capacidade de compreender a beleza, mas sim que ela deixou de ser relevante".
E o que acham da experiência os meus amigos?

P.S. Este texto, que adaptei ligeiramente, foi-me enviado por um amigo. Achei interessante incluí-lo no blogue.

6/02/2007

Tudo menos um fait d'hiver!

Saí de casa ajoujado com dois grandes sacos de jornais velhos e revistas para colocar no Ecoponto a trinta metros da minha porta. A tarde está muito quente e cheia de sol, com um calor que, diga-se, tem tardado a aparecer. Hoje irrompeu em força. A minha atenção recai sobre uma dezena de indivíduos em T-shirt que, junto dos seus dois ou três carros parados ao lado dos que estão mesmo estacionados espreitam curiosos um carro da polícia, que parou à sua frente. As pessoas sentadas nas duas esplanadas da rua agitam-se também, ansiosas por saber o que se passa. Por que motivo viria ali a polícia? E eis que chega um segundo carro, com mais dois agentes. Pára perto do outro. Numa rua pacata como a minha, que farão estes dois carros da polícia, que aliás entraram sem fazer soar qualquer sirene? Dois polícias, um deles muito jovem ainda, saem da última viatura a chegar. Uma moça que está à minha frente no passeio encaminha-se exactamente para o mais novo e beija-o. "Demoraste tanto! O que é que andaste a fazer?" A resposta, bem-humorada, foi a de que tinham tido de ir a um lado. E de braço dado com a rapariga, ele e a moça entraram, juntamente com o colega, na única loja aqui da rua que está aberta aos sábados à tarde: a loja dos gelados! Os polícias da outra viatura não demoraram a fazer o mesmo.
Feliz a rua que atrai os agentes da autoridade só porque tem ainda nos dias de hoje um pequeno estabelecimento que faz óptimos gelados. Aliás, nos dias quentes como o de hoje a lojinha é procurada logo de manhã pelos carrinhos dos vendedores que depois vão fazer o seu negócio por essa cidade fora. São gelados de confecção caseira. Tão bons que fazem as delícias dos polícias e dos muitos miúdos da escola primária aqui da rua. Ah, é verdade, os tais indivíduos de T-shirt, desiludidos com o desenrolar da cena, meteram-se nos respectivos carros e desandaram, com os rádios em altos berros. Eu voltei aqui num instante para escrever estas linhas e, afinal, para me felicitar por morar numa rua que ainda vai tendo uma casa que fabrica gelados à moda antiga. Baunilha, caramelo ou chocolate?