12/30/2006

Da responsabilidade do Estado e dos cidadãos

Existem no mundo milhões de cidadãos que não pagam impostos, a não ser os que estão directamente incluídos no preço dos (poucos) produtos que adquirem. Não se trata aqui de evasão fiscal. O que sucede é que essas pessoas não auferem o suficiente para serem onerados com uma quantia imposta pelo Estado. Se não vivermos num Estado que se diga social, pode admitir-se que nesses casos o Estado não se sinta obrigado a cuidar muito dessas pessoas. Mesmo assim, educação e saúde fazem parte dos itens a respeitar. Até que ponto é já outra questão.
Se, por razões que lhe podem ser imputadas, um cidadão não contribui com o seu trabalho para a riqueza nacional, em que medida pode exigir que parte dessa riqueza, que é produto do trabalho de outros, seja gasta consigo? E sem limite? Será justo que numa família os pais gastem o dinheiro que têm e o que não têm para, por exemplo, libertarem da droga um membro da família? E os outros? Ficarão afectados para sempre, a arcar com dívidas até ao fim da sua vida?
Por outro lado, se o Estado cobra impostos, não é verdade que tem o dever de justificar por meio da prestação de serviços condignos essa cobrança do produto do trabalho dos cidadãos? Mas sem limites? E quem os estabelece? Onde traçar a linha divisória pode ser sempre um pomo de discórdia.
Este ponto não é de somenos importância, porque parece lógico que quem se vê desprovido de dinheiro que é produto do seu esforço ao longo de um ano peça contas a quem o administra. Daí que uma boa administração dos dinheiros do Estado seja algo fulcral. Uma sociedade culta e bem informada é por natureza mais vigilante.
Há comportamentos que, grosso modo, se consideram correctos em sociedade. Assim, quem suja, limpa. Quem desarruma, arruma. Quem parte, paga. Há prémios para quem cumpre com excelência, penalizações para quem peca. Tudo aqui implica a importante noção de responsabilização pessoal e do estabelecimento de direitos e deveres. É, no fundo, também o estabelecimento de limites.
Posto isto, colocam-se múltiplas questões, de que aqui se dão alguns breves exemplos, nas áreas da educação e da saúde.
Deverá o Estado custear o ensino até ao seu nível mais elevado? Se o básico e o secundário estão presentemente fora de discussão no caso português, deverão as licenciaturas estar também incluídas nesse pacote? Têm estado. E os mestrados? Têm até ao momento ficado de fora. Ainda dentro deste âmbito que, mais ou menos consensualmente, deve incluir direitos e deveres, se um estudante do ensino superior reprova mais do que duas vezes no seu curso não deverá sofrer penalizações? Não é isso, aliás, o que acontece em muitas famílias em que os pais se recusam a "alimentar vícios"? Aqui, para além da contribuição das famílias, existe o facto de os referidos estudantes estarem a frequentar cursos pagos pelos contribuintes.
Consideremos agora o caso de doentes que não cumprem as instruções dos médicos no capítulo alimentar, recusam submeter-se a um determinado tratamento considerado necessário pelo clínico, ou rejeitam uma operação reputada de essencial. Será que o Estado tem só deveres e os cidadãos apenas possuem direitos? Não deverá ser lícito incluir penalizações nos casos apontados? É que, mais uma vez, é o dinheiro dos contribuintes que está em causa. Neste sentido também se têm manifestado alguns defensores do "não" relativamente à IVG, afirmando que os seus impostos seriam usados para pagar serviços clínicos estatais quanto aos quais estão contra. (Porém, terão que admitimo-lo, caso o "sim" vença.) A imposição de taxas moderadoras mais elevadas para os infractores pode ser uma medida disciplinadora de uma sociedade que, no entender de muitos, se apegou demasiado aos seus direitos e negligenciou significativamente os seus deveres.

12/27/2006

E se os mandássemos dar uma volta?

O Natal é a época ideal para o aparecimento de livros sobre dietas alimentares. Para grandes males, grandes remédios. Um indivíduo americano de nome Platkin publicou recentemente um livro onde calcula as calorias contidas em 7500 pratos diferentes e quanto tempo temos de fazer vários géneros de exercício para queimar essas calorias. Quem comer uma fatiazinha de bolo-rei prepare-se para fazer uma caminhada de 84 minutos. Quem ingerir uns 90 amendoins deverá andar 131 minutos para eliminar o que comeu. Como beber uma cerveja representa 153 calorias, é exigido um passeio compensatório de 39 minutos. É a penitência pelo bem que soube.
Os ditames de leis deste tipo chateiam cada vez mais. E essas leis existem para as crianças, os jovens, os adultos, os idosos. Por vezes, passado algum tempo essas "autoridades" chegam a uma conclusão contrária à prescrita anteriormente, mas isso pouco interessa. Antigamente, o colesterol era algo de que pouco se falava. Hoje, a partir de certa altura da nossa vida ficamos a saber que estamos em risco. Pudera! Se o limite de 250 que dantes era considerado aceitável passou para 190! É evidente que com esta baixa é apanhada na rede muita gente mais... e mais medicamentos se vendem, mais livros se publicam, mais preocupações se criam. Instala-se o medo. Um medo excessivo, para que surja o recurso ao remédio.
Causa-me pena ver montes de pais angustiadíssimos porque o seu rebento tem uma constipação. Claro que é preciso tratá-lo, mas não necessariamente com antibióticos. Hoje temos montes de crianças assépticas, que se constipam com simples correntes de ar. O super-proteccionismo conduz a um apaparicar impróprio de uma rijeza que o ser humano tem de ganhar por si. É claro que é melhor lavar as mãos antes de comer, mas quantas vezes os meus amigos e eu não íamos à uva que sobejava nas vinhas depois das vindimas e comíamos aqueles apetitosos cachinhos, possivelmente ainda com algum sulfato. Nenhum morreu por isso. É até natural que tenhamos ganho algumas resistências. É evidente que secar a roupa no corpo depois de uma molha valente não dará grande saúde a ninguém, mas quando se teve que aguentar algo do género porque não havia alternativa, é também porque o mal não foi de morte. Hábitos clássicos como dizer para uma criança que chora perante uma pequena queda "Incha, desincha e passa!" parecem em absoluto fora de uso. São quase heresia. No entanto, era isso que me diziam e aos meus amigos antigamente. Relançando um olhar pelo meu antigo grupo de amigos, constato que estamos felizmente cá todos, cerca de sete décadas depois. Razoavelmente desempenados, andando depressa, dando uns chutos na bola se preciso for e mandando às malvas os tais exageros de cuidados.
Inteligentemente, há, por assim dizer, um certo respeito pelo corpo, o qual naturalmente com a idade pede mais peixe onde dantes exigia carne, mais legumes e fruta onde dantes os legumes costumavam ficar de fora. Mas isso é algo tão natural como as pessoas à medida que a idade avança se deitarem mais cedo e se levantarem mais cedo também. Estão mais próximas da natureza.
Aos Platkins que pululam por esse mundo fora, mandemos dar uma curva. Se formos (com prazer) regrados, se variarmos a nossa alimentação, se fizermos algum exercício que o corpo nos peça, não teremos no geral os tais problemas terríveis que as cassandras tanto gosto têm em apregoar aos sete ventos. No fundo, é verdade que o seguro morreu de velho, mas o importante é que morreu. Como alguém jocosamente colocou a questão: "Está provado que por cada minuto de exercício que fazemos o nosso tempo de vida aumenta um minuto. Isso permite que nós, aos 85 anos, fiquemos cinco meses mais num lar de terceira idade a pagar 200 ou 300 contos por mês."

12/25/2006

HISTÓRIA ANTIGA

Tinha prometido não voltar tão cedo com poesia a este blogue, mas o Capuchinho Vermelho puxou-me pelo gosto. O Miguel Torga fez o resto?

Um velho amigo meu, de 70 e muitos anos, agora desinteressado da vida mas ainda há pouco tempo bom declamador desta História Antiga, ficaria certamente muito contente se soubesse que partilho convosco este belo poema que me deu a conhecer há muito anos.

Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava, e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.

E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação.

Mas,
Por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.

Miguel Torga

Natal, e não Dezembro

Entremos, apressados, friorentos,
Numa gruta, no bojo de um navio,
Num presépio, num prédio, num presídio,
No prédio que amanhã for demolido...

Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos, e depressa, em qualquer sítio,
Porque esta noite chama-se Dezembro,
Porque sofremos, porque temos frio.

Entremos, dois a dois: somos duzentos,
Duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
A cave, a gruta, o sulco de uma nave...

Entremos, despojados, mas entremos.
De mãos dadas talvez o fogo nasça,
Talvez seja Natal e não Dezembro,
Talvez universal a consoada.

David Mourão-Ferreira

12/21/2006

Grandes mulheres

Embora certamente menos que no passado, o futebol continua a ser um jogo que a maioria das mulheres abomina. As discussões entre esposas e maridos sobre "os anormaizinhos colados à televisão a ver jogadores ao chuto a uma bola" têm sido mais do que muitas. Tudo isto torna mais curioso o facto de, num mundo futebolístico dominado por homens, serem presentemente duas mulheres a agitar as águas desse mesmo mundo. Se tanto o bem como o mal são palavras masculinas, a justiça surge como feminina. Dum lado temos a Carolina (do Norte), do outro a Morgadinha (dos Tribunais). A Carolina alterna entre o pecado e a vingança. A Morgadinha aparece como a justiceira que corta a direito. Ambas têm sede de justiça. Era bom que as mulheres ganhassem este jogo!

12/19/2006

Petroeuros

A notícia não agrada decerto aos americanos, mas para a União Europeia, que há muito tentava cativar o Médio Oriente para a sua moeda, torna-se euro sobre azul.
O euro passou a ser oficialmente usado nas contas do Irão com o exterior, destronando o todo-poderoso dólar. Registe-se que havia pressões norte-americanas sobre a banca internacional para não tratarem com clientes iranianos, dificultando assim a conclusão de contratos com o estrangeiro. Mais uma vez se prova que a situação de monopólio é nefasta. Felizmente, neste caso os iranianos puderam dispor de uma sólida alternativa.

12/17/2006

Pânico globalizado

Quando, poucos anos antes da viragem do meio-milénio em 1500, o poderoso dominicano Savonarola falou na sua cidade de Florença sobre as perversidades dos homens, incluindo nos seus sermões muito especialmente os membros da Igreja, quase vaticinou que o mundo, vergado sob o peso de tanto pecado, iria acabar. Acabou ele primeiro, morto na fogueira dos que desafiavam a autoridade papal.
Quinhentos anos depois, uns meses antes da passagem do ano 2000, sucedeu que, numa encoberta manhã de Agosto em que eu ia calmamente às amoras num silvado perto da estrada, tive que atravessar uma pequena propriedade para chegar às silvas que eram o meu objectivo. Entretanto, ouvi vozes. Olhando à volta, deparei com um homem e uma mulher que, sentados, descamisavam milho. Desejei-lhes bom dia. Corresponderam, mas ao mesmo tempo mostraram desejo de falar um pouco mais. Aproximei-me, ouvi rapidamente a história de ambos, casados e ex-emigrantes na Alemanha. Depois, surgiu a pergunta que tanto o homem como a mulher me queriam colocar: Será que o mundo vai acabar para o ano? Disse para mim próprio que aquela era uma questão que não estava no meu programa das amoras, mas felizmente encontrei uma resposta possível. Lembrei-lhes que o ano 2000 representava apenas um número redondo, sem dúvida um marco, mas não mais que isso. Por exemplo em Marrocos, país que acabava por ficar apenas a umas horas, de automóvel e barco, do sítio onde nos encontrávamos, as pessoas estavam ainda no século XIV. Para elas, aquele seria um ano como tantos outros. Perguntei ao casal se achavam possível que o mundo acabasse apenas naqueles países que estivessem a passar para o ano 2000. Meditaram um pouco, responderam que não, e pareceram mais calmos, satisfeitos com o esclarecimento.
No entanto, a verdade é que nessa altura os media estavam a fazer ressurgir todos os medos antigos, recordando presságios os mais diversos e, sobretudo, elegendo algo novo como seu elemento favorito para a catástrofe que se avizinhava: os problemas informáticos quase inultrapassáveis da mudança para um milénio começado pelo algarismo "2". Todos os computadores do mundo iam ser afectados pela extraordinária mudança, o sistema financeiro mundial já tinha preparado triliões de dólares para corrigir o software, perder-se-ia múltipla informação, etc. Era o caos.
Tal como no tempo de Savonarola com as infindas punições,tal como na passagem do milénio com o fim do mundo, as terríveis catástrofes informáticas que iriam desabar sobre nós não se confirmaram de todo.
No nosso ano de 2006, depois de uma paranóica onda das mais desencontradas e alarmantes informações sobre a gripe das aves, que iria ser uma catástrofe a nível mundial, eis que os patinhos continuam a vogar calmamente nos seus lagos, as galinhas cacarejam nas suas capoeiras, as migrações dos flamingos prosseguem como se nada tivesse acontecido. A paranóia caiu no ridículo. Salvou-se aquele conselho amigo de alguém que nos disse para vivermos a vida, gozando a noite: "Nunca, mas nunca se deitem com as galinhas!"
A paranóia à volta do terrorismo - que esquece o terror causado exactamente pelos que estão paranóicos e o velho aforismo que nos diz que "quem com ferro mata, com ferro morre" - conduziu há dias a uma história curiosa. À semelhança de tantos outros, um avião voava entre duas cidades dos Estados Unidos. A certa altura, um passageiro levantou-se agitadamente do seu lugar e dirigiu-se à cabine dos pilotos. Cheirava-lhe a queimado. Não estaria aquilo ligado a uma bomba? Uma rápida inspecção ao local confirmou o cheiro. Sem mais, o piloto pediu ao aeroporto mais próximo para aterrar de emergência. Autorização concedida, o aparelho pousou na pista sem quaisquer problemas e foi rapidamente evacuado. Interrogados os passageiros que estavam sentados à volta do local de onde tinha vindo o cheiro, uma senhora velhinha confessou, envergonhadamente,perante as autoridades que sofria de flatulência e que não queria de modo nenhum incomodar as pessoas ao pé de si com mau cheiro. Então, como método disfarçante, acendia fósforos sempre que não conseguia conter-se. Estava explicada a bomba! Todos voltaram ao aparelho, incluindo a velha senhora.
Esperemos pela próxima virose a nível global!

12/11/2006

O sentido do tempo

Uma amiga a quem eu tinha em tempos emprestado dois volumes encadernados com numerosos exemplares da revista Courier da Unesco, todos eles datados do final dos anos 60 e início da década de 70, devolveu-mos há dias. Os seus comentários foram extremamente encomiásticos para a revista - considerando-a muito avançada para o seu tempo -, mas de pasmo também pelo facto de, apesar de tantos problemas que ainda são dos nossos dias terem então sido estudados profundamente, com argumentos altamente válidos, não terem tido grandes resultados concretos. Esta minha amiga é uma pessoa inteligente, arquitecta de profissão, com cerca de 50 anos. Trabalhou quase 20 no estrangeiro.
Foi com grande sinceridade que me disse estar impressionada com os longos artigos e os ponderados estudos que encontrara, sobre as causas e efeitos da fome e da pobreza, o impacto do turismo sobre os monumentos, as consequências dos abates indiscriminados de milhares e milhares de árvores de madeira exótica nas áfricas, ásias e américas. Para além de dezenas de outros temas. "Eu teria uns 10 anos" - disse - "quando aqueles estudos foram feitos e apresentados. Pois se fossem realizados agora, apareceriam como novidade e seriam interessantes para os leitores de hoje. Custa ter que perguntar por que razão não se evitaram tragédias previsíveis, por que motivo se insistiu em erros perfeitamente identificados, se continuou a deixar espalhar tantos rastos de infelicidade no mundo."
Uma das razões é certamente a questão dos valores. Os valores não são os mesmos para quem estudou e escreveu os artigos e para quem detém outro tipo de poder, mais material e pragmático. Nas suas grandes linhas, é evidente que a humanidade está com menos respeito pelo futuro e mais ávida de se realizar no presente. Construir para as gerações vindouras, o que poderá significar para as pessoas de hoje privar-se de algo que ambicionam, está definitivamente fora de moda. Aquele que é o comportamento individual de maior consumismo e menor poupança é ampliado à escala mundial. Larguíssimas manchas de floresta são abatidas para proporcionar riqueza imediata. Se depois vêm as cheias que tudo levam à sua frente, esse é um problema das populações locais. Os pinheiros de crescimento lento vão sendo violentamente destruídos por incêndios criminosos que pretendem abrir caminho para plantações de eucaliptos, de crescimento rápido mas destruidores da riqueza do solo. Nunca houve no passado Ministérios do Ambiente. Agora, pululam. Os seus resultados são ínfimos. O vento do já-e-agora sopra forte. Endivididamento em vez de poupança, vida vivida a grandes sorvos, consumo desbragado em vez de um razoável comedimento, excesso de direitos e míngua de deveres, tudo isso leva a que os bons preceitos do passado redigidos na revista da Unesco por cientistas e homens de visão alargada não tenham encontrado eco e concretização.
Somos assim.Até quando?

12/05/2006

Exploração e nacionalismo

O jornal Público apresentou uma oportuna reportagem sobre a exploração de que são alvo muitos portugueses aliciados por ofertas tentadoras para trabalharem no estrangeiro. A grande maioria dessas ofertas traduz-se em verdadeiros logros, na medida em que, através de engenhosas artimanhas, o angariador reserva para si parcelas absolutamente escandalosas dos pagamentos devidos. Seja em Espanha, seja na Holanda, Inglaterra ou Dinamarca, as autoridades parecem pouco empenhadas em intrometer-se nestes casos, acabando por considerar, com lógica aliás, que uma promessa não contratualizada não é de facto um contrato. Por outro lado, o desconhecimento da realidade revelado por parte de emigrantes portugueses contratados para ir para o estrangeiro é por vezes atroz, como já há anos uma reportagem num jornal narrou: quando colocado perante a hipótese de ir fazer queixa ao consulado português em Frankfurt, um dos entrevistados pelo jornal inquiriu: "Mas não é preciso ser sócio?"
Seja como for, o que gostaria neste momento de frisar é algo aparentemente marginal mas com forte incidência no caso de exploração de mão-de-obra: o nacionalismo, misturado com uma indisfarçável, maior ou menor xenofobia. Há três dias encontrei uma velha amiga, professora. Ia acompanhada de uma cidadã da Letónia, que está em Portugal desde Julho. Desde essa data, a letã em questão já teve dois empregos aqui em Lisboa. Saiu do primeiro porque não lhe pagaram no final do mês. Saiu do segundo porque trabalhou durante dois meses e, mais uma vez, não recebeu qualquer pagamento. A minha amiga tinha ido com ela apresentar queixa às autoridades competentes. A cidadã da Letónia, rapariga de vinte e tal anos, está devidamente legalizada em Portugal.
Temos tendência para perguntar "Como é que situações deste género são permitidas?" A nossa surpresa não será, no entanto, assim tão grande porque todos temos ideia de que casos semelhantes com cidadãos estrangeiros são às centenas, se não aos milhares. Por que motivo não actuarão de pronto as autoridades portuguesas?
Creio que, entre outros aspectos, porque agir dá trabalho. Pessoalmente, a única experiência que tenho de levantamento de autos provém do serviço militar, há longuíssimos anos. Era preciso receber a queixa por escrito. Ouvir as partes interessadas, que podiam ser várias. Testemunhas, se as houvesse. Ocasionalmente, fazer acareações. Depois de o auto estar devidamente informado, havia que entregá-lo ao tribunal militar, a quem cabia a decisão final. Ora, isto nem sempre se faz em pouco tempo. E ocasiona problemas, chatices várias. Contudo, recordo-me que, sendo necessário por envolver militares que estavam sob a nossa responsabilidade, não podíamos deixar de seguir os trâmites processuais.
No caso das autoridades, acredito que seja algo semelhante, mas sobrevém-lhe uma outra questão: quem está em causa não são cidadãos nacionais. Se os nacionais já dão tanta chatice... "Porque é que esses indivíduos vieram para cá? Porque é que não ficaram nos seus próprios países?"
Eu diria que os espanhóis reagem tendencialmente assim com os portugueses e outros imigrantes. O mesmo farão as autoridades holandesas. Do Reino Unido, as notícias que de vez em quando nos chegam não são animadoras. Na Alemanha sucedeu há anos que os grandes defensores dos direitos dos trabalhadores estrangeiros eram... os trabalhadores alemães. Porquê? Porque estavam a defender a sua própria causa. Insistiam que não era justo que no mesmo país pudesse haver trabalhadores a ganhar menos do que o mínimo estabelecido pelos sindicatos. Tratava-se, naturalmente, mais de uma defesa daquilo que consideravam concorrência desleal do que de verdadeiro interesse na defesa dos trabalhadores estrangeiros, fossem eles turcos ou espanhóis. Foi um prelúdio à mais recente opereta do canalizador polaco.
Existe um outro factor muito importante: as autoridades não gostam de apresentar o seu próprio país como explorador. É que, como George Bernard Shaw um dia escreveu, "patriotismo é a convicção de que o nosso país é superior a todos os outros porque nós nascemos nele". É uma reflexão forte, mas possivelmente certeira. Se nós nascemos num país que pode envergonhar-nos perante estrangeiros, estamos a inferiorizar-nos. Daí que admitamos as nossas fraquezas perante nacionais - isso até nos evidencia! - mas prefiramos ocultá-las perante estrangeiros. E então se são estes a falar delas, nem se fala! Go home!
Estou convicto de que estes aspectos emocionais, difíceis de comprovar, desempenham um papel mais importante do que por vezes se julga. Acabam por estar ligados, por razões semelhantes, a polícias (homens) que tentam ignorar casos de violência sobre a mulher entre casais. E coisas do género.
A propósito: a amiga que encontrei, aquela que estava a tentar ajudar a letã a apresentar queixa nos locais próprios, é francesa. Reside há larguíssimos anos em Portugal. Ela sabe o que é ser imigrante.

12/01/2006

Palaviagens

Este palavrão pretende ser uma das coisas que, admito, mais me distraem: viagens através de palavras. O mundo é tão grande e diverso, as gentes tão diferentes entre si - e ao mesmo tempo com necessidades básicas tão iguais -, o ambiente que nos rodeia tão dessemelhante por vezes, que nada há de mais natural que a comunicação seja feita babelicamente através de formas distintas e comparações divergentes. Seja como for, há muitas formas linguísticas que se inserem no mesmo tronco.
Pessoalmente, tenho conhecimento de poucas línguas. Nada sei de idiomas orientais, não entendo nem turco nem finlandês, a linguagem índia é-me totalmente desconhecida e de alguma africana só possuo uns ténues rudimentos. Daqui resulta que estou reduzido à minha língua materna, a algum conhecimento de latim e grego como línguas mortas, um pouco de espanhol e italiano como todo o português que se preza, francês, inglês e alemão q.b.
Mesmo assim, isto não impede que faça pequenas ou grandes viagens através de palavras. São viagens que tenho que interromper ao fim de cinco minutos de correria cerebral, ligações e hiperligações. A malha entretece-se de tal maneira que a certa altura é melhor largá-la, para a retomar noutra ocasião.
Ainda há pouco, encontrei num problemazito de palavras cruzadas "ausência de vontade de comer". A palavra-solução era fastio. Fastio acordou em mim o fast, inglês, que significa jejum. Passei naturalmente ao breakfast, que é a quebra do jejum geralmente designada entre nós por "pequeno-almoço". O desayuno espanhol, entretanto, dá-nos a mesma ideia. Lembrando-nos do francês, vemos que jeûner significa jejuar, donde déjeuner (almoço) é, no fundo, desjejuar. Por arrasto, o primeiro desdejum é chamado petit-déjeuner, construção que também permitiu que nós, portugueses, chegássemos ao pequeno-almoço ("mata-bicho" na versão popular. Este "bicho" continua a viver entre nós quando dizemos que "não tenho verdadeiramente fome, mas sinto aqui um bichinho..."). Já agora, o disjunare latino (quebrar o jejum) acabou por produzir também o dîner francês, que por sua vez deu o dinner inglês. Chegamos à conclusão de que o princípio que está na base dos nomes de uma boa série de refeições é o estado de sem comida. É uma lógica como qualquer outra ("o que está vazio precisa de ser enchido").
Estas palavras cruzadas trouxeram-me outra questão: um sinónimo de lagoa. Pensei em lago, mas a solução era algo que fiava mais fino. Através da combinação horizontais-verticais cheguei a palude. Fez-se-me luz. Transportei-me de regresso ao rio Cuanza na africana Angola e lembrei-me daquelas lagoas que se formavam na estação das chuvas e que posteriormente, com o calor e falta de contacto com o grande rio que as tinha formado, ficavam pejadas de infernais mosquitos. O paludismo! Desta vez, a descoberta da palavra - claro que palavra foi há muito descoberta e terá sido criada exactamente por causa disso, mas quando descobrimos algo por nós próprios trata-se pelo menos de uma descoberta pessoal - causou em mim satisfação, o que contrasta positivamente com as picadas dos anófeles que infestam aquelas paragens.
O alemão é das línguas que mais me ajudam neste entendimento das coisas. Ao não ser uma mera correia de transmissão do francês, ao contrário de milhentos vocábulos ingleses, a língua alemã analisou os conceitos e deu-lhes as formas correspondentes. Vou dar apenas dois exemplos para ilustrar o que quero dizer. Tomemos a palavra Presidente. Em alemão existe uma forma derivada do latim e outra germânica. A forma germânica é Vorsitzender, o que literalmente significa "aquele que se senta em frente". Só então verificamos que o nosso "presidente" também tem a ver com isso. O pre dá-nos a ideia de antes, ante ou perante. Juntemos-lhe o sidente, que tem naturalmente a ver com palavras como sítio, sede e sedentário, esta última a significar "que está no mesmo sítio". É a imobilidade de quem se senta em frente que lhe dá a posse da cadeira principal, um elemento que surge no inglês chairman. Esta imobilidade não indica inacção mas sim imparcialidade, o não se virar particularmente nem para uma parte nem para outra, ser imparcial. Admito que eu não teria chegado lá sem o Vorsitzender alemão.
Uma outra raiz vocabular germânica para mim de grande utilidade foi Druck, que basicamente significa "pressão". Como em francês e inglês temos préssion e pressure, semelhantes ao vocábulo português, não pensamos mais nisso. Mas quando o germânico Druck nos aparece é diferente, como em Eindruck e Ausdruck. No primeiro caso existe um prefixo que corresponde ao inglês in ou im (para dentro), no segundo um outro que corresponde a out ou a ex (para fora). De repente as palavras são re-aprendidas no seu significado mais profundo. Impressão passa a significar uma pressão, mais ou menos profunda, em qualquer coisa, e expressão uma pressão que sai. Daqui entendermos que a necessidade de nos livrarmos de uma pressão grande que nos avassala possa ser vital. Aliviamos a pressão através de algo que sai, i.e. através da expressão, que pode ser naturalmente feita por meio da comunicação oral, da escrita, da pintura e de mais mil e uma formas.
Da mesma maneira que aprendemos a ver o nosso país com olhos diferentes cada vez que vamos lá fora e tomamos contacto com outras realidades, também passamos a olhar diferentemente a língua que usamos depois de termos contacto com idiomas estrangeiros através das nossas viagens. Este horizonte alargado é a grande virtude das palaviagens.