4/27/2009

Falando de serviços médicos

Se é certo que o país deu um enorme passo em matéria de humanização dos serviços de saúde, há, no entanto, um aspecto que me parece perfeitamente anacrónico. Refiro-me ao facto de estar enraizado entre os médicos o triste hábito de fazerem esperar os seus doentes tempo exagerado, sem razão plausível e sequer um pedido de desculpas. E isto tanto sucede em serviços públicos como em clínicas de medicina privada, onde o doente paga o que lhe é pedido e espera o que lhe é mandado, sem qualquer hipótese de reclamação: se quer assim, muito bem, se não quer, é ir à procura de outro médico!

Longe vão os tempos em que ao senhor doutor era permitido tratar o seu doente por tu e escusado desperdiçar o seu saber em explicações. Subsiste, no entanto, na classe médica um misto de paternalismo e “pré-potência” própria de quem tem nas suas mãos algum poder de vida ou de morte sobre o seu semelhante, que consubstancia e “justifica” essas falta de consideração.

Pergunto-me muitas vezes que outra profissão liberal poderia tratar de igual modo os seus clientes.

Além de ser um desgaste e um desperdício de tempo para quem espera, é pena. Porque a grande maioria dos médicos são acessíveis, simpáticos e sobretudo eficientes. Não poderiam ser um pouco mais organizados a programar as suas agendas naquilo que as mesmas têm de previsível e rotineiro?

4/20/2009

O baptismo

Mouriz é uma terra que conheço desde a minha infância. Era lá que morava um tio meu, hoje já falecido, de quem sempre gostei. A casa dele ficava mesmo à beira da estrada, do lado esquerdo quando eu passava na camioneta da carreira para ir visitar os meus pais, que moravam uns quinze quilómetros mais à frente. Era um casarão grande, com rés-do-chão e primeiro andar, uma adega bem ampla e, na parte de trás, um pátio relativamente largo e fundo. A adega era a parte onde mais convivíamos, a comer uns petiscos bem regados com o bom vinho que o meu tio fazia das uvas das suas fazendas. Ele era um grande contador de histórias e um homem bem disposto. Ilustrava as suas aventuras com as mãos em gestos perfeitamente entendíveis e bastante cómicos. Tinha dois filhos, um rapaz e uma rapariga. O "rapaz", o Nando, é uns cinco anos mais novo que eu. Acidentalmente, em conversa de ora vê lá tu, contou-me há tempos a história do seu baptismo. Cedo-lhe a palavra, porque ele é que sabe o que se passou. Eu fui um mero ouvinte.
Conheces o café, claro. Qual café? perguntei-lhe. Aquele mesmo em frente da minha casa em Mouriz. Em frente da tua casa fica a rua que é também estrada, que desaparece lá para baixo até ao fundo da terra e depois ainda continua. Sim, mas em frente da porta da adega fica uma casa que tem um café. Nunca lá entrei, disse-lhe. Também não interessa para o caso. A porta do café é do lado da povoação, não dá para a estrada principal. Era esse o café que o meu pai frequentava. A partir de certa altura eu comecei a acompanhá-lo de vez em quando. A minha irmã não, não só porque era mais nova mas também porque naquele tempo os cafés eram só para homens. Juntavam-se lá pessoas que tu não conheces. Mas o teu pai com certeza que conhecia alguns deles. O António da Vila, o Serafim, o ferrador, o Malaquias filho do ourives, o ti Manel da Burra, o Zé Valente e outros. A maior parte já morreu. Gostava de lá ir porque era gente sã, que falava alto mas raramente se zangava. Estavam muitas vezes a jogar, e sabes como eu sempre fui perdido por jogos de cartas e de damas e, mais tarde, pelo xadrez. Depois de fazer os meus trabalhos da escola ia às vezes até lá, sempre com o devido cuidado de olhar para a direita e para a esquerda ao atravessar – estou a ouvir a minha mãe a fazer-me as recomendações da praxe - por causa da estrada principal que tinha muito movimento. Fui crescendo. Um dia, tinha os meus catorze anos – era um domingo, lembro-me bem – dei uma saltada até ao café depois de almoço. De manhã tinha ido com a minha mãe e também com a minha irmã à missa lá em baixo à igreja matriz. No café, pus-me, como habitualmente, de pé, neste caso a ver o velho Silva de barbas brancas a jogar às damas com o Serafim. Gostava de imaginar o que ia na cabeça de cada um deles e para onde é que a seguir iam mover as pedras. Estava eu nisso, quando o filho do ourives, homem de trinta e tal anos, me pôs a mão no ombro e me perguntou se eu era baptizado. Respondi-lhe que sim. Toda a gente era baptizada. Mas um baptismo que tu quisesses, sem ser de água benta. Não percebi logo onde ele queria chegar. O Malaquias voltou-se para os outros: vocês acham que o Vítor se vai chatear? O Vítor era o meu pai, como sabes. Por que razão haveria ele de se chatear? Até vai ficar contente! E orgulhoso! O Malaquias passou então a zona do balcão e levou-me lá ao fundo, abrindo uma porta por onde eu nunca tinha entrado. Tinha uma escada que vinha do sótão. Coisa nova para mim. Admiti que fosse recolhida depois de ser usada.
Nesse domingo a temperatura não estava nada meiga. Fazia aquele calor de Maio que às vezes sufoca. Subir ao sótão? Notei que os jogadores pararam um bocado as cartas e o seu jogo de damas a olharem para nós dois. Subida a escada, lá em cima vi um espaço grande, com grades de cervejas e de refrigerantes empilhadas num dos lados. Havia também outras coisas, mas o que me chamou a atenção foi uma parte que tinha só palha no chão. Em cima dessa palha estava uma mulher que eu já tinha visto duas ou três vezes apear-se da camioneta. À nossa chegada, ela levantou-se. Estava vestida só com uma saia e um soutien. O Malaquias deu-lhe umas palavras ao ouvido. Se eu já tinha calor, com mais fiquei. Ela foi muito simpática, tratou-me por filho, mas depois de me dizer o nome, Lena, e de saber o meu, passou a alternar o "filho" com Fernando. O Malaquias desceu entretanto. Fiquei mais à vontade. Com um sorriso um tanto maternal mas maroto também, ela despiu-me, o que até soube bem naquele calor todo. Despiu-se ela própria depois. Era a minha primeira vez, mas já tínhamos falado tanto disso na escola entre os colegas que o meu desejo era maior que a surpresa e o acanhamento. Acho ainda hoje que nunca terei suado tanto na vida como dentro daquele sótão e em cima daquela palha que já de si era quente. Mas ao mesmo tempo era toda uma sensação nova. Inigualável. A certa altura sucedeu aquilo que não devia acontecer: o Malaquias veio com mais dois cá acima ver como as coisas estavam a andar. Primeiro ainda olhei para trás, mas depois esqueci-os. O meu mundo era outro. Quando terminei e me deixei cair de braços abertos sobre a Helena, os malandros disseram "muito bem!" e desceram, devagarinho. Já podiam assinar o diploma para o meu pai saber. Até hoje não sei se alguma vez o fizeram. Depois de me vestir e de regressar, afogueado, cá abaixo ao café, o Malaquias subiu de novo e voltou uns minutos depois. Falou para os homens, mas é claro que eu o ouvi. Sabem, a Lena recusou-se a receber dinheiro. Eu ainda insisti, mas ela foi mais teimosa do que eu. Que há muito não tinha tido um prazer como aquele de poder estrear um borrachinho assim.

Quando agora passo em Mouriz, já não na carreira mas ainda utilizando a mesma estrada, mal olho para a casa do meu tio, que entretanto já foi vendida. Mas deito sempre uma mirada para a janela do sótão do café, que fica virada para a estrada e se mantém lá como há tantos anos. Teria piada se, passado este tempo todo, ainda houvesse uma cama de palha fofa lá em cima. Custa-me a acreditar. Mas, no fundo, quem sabe?

4/18/2009

O Pendão

Traz hoje o jornal Público uma notícia na sua primeira página - "Arquivo perdido de Salazar foi descoberto em Queluz" – que me chamou a atenção. Uma rápida leitura do texto transportou-me há quinze anos atrás, num dia completo que passei no Pendão, o local onde o referido arquivo foi descoberto. Devo dizer que passei lá apenas um dia, mas passaria muitos mais se tivesse tido tempo livre.
Estava eu então a escrever um livro juntamente com um colega. Tanto ele como eu estávamos interessados em descobrir alguma coisa de vulto sobre o passado do que constituía o nosso tema principal: os guias-intérpretes. Eu sabia por experiência própria que esses assuntos tinham em tempos sido tratados no antigo Secretariado Nacional de Informação (S.N.I.): fora lá que, durante o meu curso na Faculdade, tinha prestado provas para eventualmente trabalhar um dia como guia-intérprete. Ora, ninguém podia trabalhar oficialmente como guia-intérprete com turistas estrangeiros sem previamente possuir um diploma assinado pelo director do SNI. Como é óbvio, esse director - individualidade importante da máquina do regime - mandava previamente recolher toda a informação existente a fim de verificar se o candidato a guia-intérprete era um elemento referenciado como perigoso ou já possuía mesmo cadastro na PIDE. Seria agora interessante apanhar alguma dessa informação.
Foi o meu colega quem contactou o SNI, onde foi informado de que todos os arquivos desse tipo tinham sido transferidos para o Pendão, em Queluz. Após obtermos uma credencial para a visita ao Pendão, lá fomos numa primeira oportunidade. O que se nos deparou causou-nos estupefacção total. Tratava-se de um largo armazém, de tecto relativamente alto. Tudo era vigiado apenas por um funcionário. Franqueada a entrada mediante a apresentação da credencial, o funcionário deixou-nos à vontade. Havia duas cadeiras e uma pequena mesa. Ele não tinha uma ideia muito concreta de onde poderiam estar as pastas que pretendíamos, mas após uma breve busca chegou lá. Ou lá perto, pelo menos.
O material que se encontrava naquele armazém daria decerto notas importantes para variadíssimas consultas. As estantes que chegavam quase até ao tecto eram de pinho e tinham que suportar numerosíssimas pastas de arquivo, todas numeradas e com indicação do local de proveniência. Foi fácil entender que estava ali um repositório de múltiplos organismos do Estado, entre os quais aquele que nos interessava. Devo dizer que acabámos por não encontrar muito material que fosse aproveitável para o livro que estávamos a escrever, mas a riqueza daquele armazém era tal que decidimos ir almoçar rapidamente ali perto e voltar logo a seguir.
Quem tivesse dúvidas sobre a forma como funcionava a censura aos filmes a exibir em Portugal; quem quisesse ter em mão a cópia a papel químico dos originais enviados pelo SNI com recomendações, hoje interessantíssimas, aos proprietários de cinemas onde determinados documentários "deveriam" ser exibidos, tinha tudo ali à mão. Muitos documentos eram repetidos, porque se tratava de instruções tipo-circular que actualmente seriam possivelmente enviadas por e-mail, mas estava ali um espelho tremendamente apelativo do que se passara atrás das portas fechadas dos gabinetes onde se tomavam decisões importantes para a sanidade mental dos portugueses. Recordo-me bem da pena que senti ao ter que abandonar, ao fim da tarde, aquela caixa de surpresas mil.
Não me admiro muito que tenham lá encontrado há meses um arquivo directamente relacionado com Salazar. Nem que venham a encontrar outros. Só convém, ao chegar a casa tomar um bom duche: há muito pó por aqueles lados.

4/14/2009

Escândalo inédito?

Que a política raramente é limpa, já todos o sabemos. Aliás, é daí que advém o termo "poluítica". Entre o governo e os principais partidos da oposição desenvolvem-se frequentemente guerras sujas, das quais, na cena internacional, o famoso Watergate do Presidente americano Richard Nixon (o tricky Dickie) terá sido o mais badalado. De qualquer forma, em inúmeros países não é nada raro que governo ou oposicionistas lancem campanhas de descrédito dos seus adversários. Para que essas campanhas possuam material consistente, vasculham-se segredos inconfessáveis de elementos relevantes do partido que se procura deitar abaixo a fim de, na altura conveniente, se intoxicar a opinião pública por via dos media. O timing é essencial. Os snipers, "atiradores furtivos", estão munidos das balas convenientes mas só as disparam quando o inimigo está a uma determinada distância. Aqui não se trata de distância física, como sucede em batalhas reais, mas sim de distância temporal das eleições, pois é nessa altura que o impacto do escândalo pode ser maior.
Desta vez não estou a falar de Portugal, embora estes parâmetros tenham eventualmente também a sua aplicação no nosso país. De momento, estou apenas a abordar o que se passa na Grã-Bretanha. Não é brilhante a situação do partido trabalhista do Primeiro-Ministro Gordon Brown. Para todos os efeitos aparentes, a bomba que se destinava a ir gradualmente explodindo através dos media rebentou ainda no bolso dos seus mentores. De acordo com a imprensa, a campanha que estava a ser orquestrada para desacreditar os conservadores liderados por David Cameron foi descoberta ainda antes de ser verdadeiramente lançada. O jogo limpo que Gordon Brown prometera está a comprometê-lo seriamente, embora o partido trabalhista faça agora o possível para proteger o seu líder, para tanto exigindo a demissão dos autores do plano.
É muito curioso o que se está a passar na democrática Inglaterra, onde, segundo alguns (minoritários) historiadores modernos, teve lugar no início do século XVII (1605) um acto dos mais bem sucedidos de todos os que foram forjados para derrubar inimigos políticos ou religiosos. Um blogue que presentemente está muito em foco no Reino Unido tem o nome de Guido Fawkes. Sintomaticamente, o seu nome indica que está especialmente atento ao que se passa no Parlamento britânico, na medida em que se refere a alguém mais popularmente conhecido como Guy Fawkes, que terá pretendido fazer explodir o edifício do Parlamento a 5 de Novembro de 1605, se possível com o rei James I lá dentro. Este Guy Fawkes terá sido não o cérebro mas o executante da manobra que pretenderia restaurar o poderio dos católicos na Grã-Bretanha. A história é demasiado longa para ser contada aqui, mas tem o interesse de possuir também defensores da tese de que Guy Fawkes - que trabalhava para uma abastada família católica - teria, afinal, sido manipulado por protestantes para o lançamento de uma campanha de descrédito dos católicos e consequente maior poder para os protestantes, o que de facto veio a suceder. Conspiração real ou inventona? Tenha sido uma coisa ou outra, o certo é que a actual situação de manipulação da política inglesa está longe de ser novidade.

P.S. Já agora, aproveito a deixa para lembrar um facto linguístico relacionado com o referido Novembro de 1605. Por volta do 5 de Novembro ainda hoje se comemora em diversos lugares do Reino Unido a Bonfire Night (noite das fogueiras) ou Guy Fawkes Night. Relembram-se assim os explosivos que felizmente não chegaram a rebentar. A miudagem britânica ganhou como costume fazer bonecos de trapos, atafulhados de papéis, a representar o "mau" Guy Fawkes, que na altura só não foi enforcado porque se atirou das alturas da forca cá para baixo para o chão, onde se estatelou e morreu. Os bonecos de trapos são depois queimados nas fogueiras. Dessas mal-amanhadas figuras resultou que no século XIX um homem mal vestido ganhou a designação de guy. Depois, no século passado e com continuação até aos nossos dias, o termo guy passou a aplicar-se a qualquer indivíduo do sexo masculino. By the way, is Gordon Brown a good guy?

4/11/2009

Vai passando a procissão



A época pascal é, decerto, aquele período do ano em que se realiza o maior número de procissões. A quadra natalícia também as tem, assim como a data em que se celebra o Corpo de Deus, mas é na Páscoa, com o registo da morte de Cristo e sua ressurreição que se realizam mais manifestações religiosas desta ordem. Procurei nos meus álbuns fotográficos a foto de uma procissão. Encontrei várias. As duas acima foram tiradas na mesma altura. O padre da paróquia, debaixo do pálio, segue, com as mãos em jeito de oração. Vai acolitado por um grupo de homens-bons. Logo atrás segue a banda filarmónica da terra e, imediatamente a seguir, vem a multidão que enche literalmente as ruas relativamente estreitas.
Alguns dos rostos da multidão que vemos na segunda foto lembram-me as feições das personagens delineadas e pintadas por Nuno Gonçalves no seu célebre políptico. As fotos foram tiradas poucos anos antes do 25 de Abril de 1974. Muitos dos que aqui estão, cristalizados naquele instante pela máquina fotográfica, já abandonaram o mundo dos vivos. É algo que não pode deixar de impressionar e trazer-nos à mente, se preciso fosse, a nossa iniludível efemeridade. Por outro lado, crianças que seguem ao colo das mães são hoje homens feitos que às suas mães possivelmente deram vários netos. As pessoas que acompanham e participam numa procissão estão simultaneamente a prestar uma homenagem religiosa e a procurar uma bênção para si próprias e para aqueles que levam consigo – um pouco como as raparigas solteiras que, numa boda de casamento, se encafuam debaixo do véu da noiva para que também elas tenham a sorte de se casar.
Por seu lado, a imprescindível banda de música repleta de reluzentes metais, instrumentos de sopro e de percussão, empresta um calor e uma solenidade especiais ao cortejo. Para as pessoas que se amontoam nas varandas decoradas com colchas vermelhas ou à janela das casas, a vibração causada pelos metais da banda impressiona poderosamente. Trombones, saxofones, trompas e fagotes ecoam contra as paredes das ruas da povoação por onde a procissão passa e as abençoa. Com cruzes, sacrários e imagens que saem excepcionalmente da igreja nessa ocasião, o cortejo acaba por se transformar numa missa itinerante celebrada ao ar livre. Tem o seu quê de operático.

4/09/2009

Estatísticas

À atenção do J. Miguel: Foi, salvo erro, Andrew Lang quem disse uma coisa bem observada e, ainda por cima, com humor: "Há quem faça uso de estatísticas da mesma forma que os bêbados usam os postes de electricidade: para apoio e não para iluminação."

4/06/2009

Matinée (quase) à la Cine Paradiso na Cinemateca

Em primeiro lugar, gostaria de dizer que considero a Cinemateca de Lisboa uma instituição pública notável. Para além de apresentar alguns óptimos filmes que já não estão acessíveis nos circuitos comerciais, possui boas salas e equipamento de projecção de qualidade apreciável. O facto de publicar a sua programação mensal com razoável antecedência permite aos interessados planear as suas idas ao cinema, com sessões diárias tanto à tarde como à noite, excepto aos domingos.
Se faço esta introdução é porque hoje sucedeu algo inusitado e que não deve de forma nenhuma ser tomado como norma. Para mim, que frequento a Cinemateca há anos, foi a primeira vez que tal aconteceu. Propus-me rever um velho filme de 1935 – Revolta na Bounty (Mutiny on the Bounty) – de Frank Lloyd. É sempre interessante ver actuações bem conseguidas de actores como Charles Laughton e Clark Gable, para além de reapreciar, em visão diacrónica, o modo como o desembarque dos marinheiros europeus era saudado pelos habitantes de Tahiti, ilha que no filme em muito se assemelhou à descrição idílica da camoneana Ilha dos Amores dos Lusíadas. A cópia do filme tinha boa qualidade de som e de imagem, mas a certa altura partiu-se. Uma quebra acontece. Uma segunda também. Mas uma terceira, uma quarta, uma quinta e uma sexta começam a ser de mais. A assistência, talvez umas cinquenta pessoas na sua maioria de idade, não fez grande barulho, mas ouviram-se algumas vozes de protesto. Perturbado, o técnico surgiu à porta da sala e pediu compreensão para as interrupções: o filme teria chegado há pouco tempo e não tinha sido visionado. Chegou a dizer que se os cortes se prolongassem iria arranjar forma de obter a devolução do dinheiro dos bilhetes.
Embora por razões que nada tinham a ver com censura a cenas mais libidinosas ou de outro tipo, pairava na sala a lembrança de um dos melhores filmes de sempre – Cine Paradiso, de Giuseppe Tornatore – que ficou célebre, entre outros motivos, pelos cortes efectuados pela censura a motivarem forte pateada na sala de província onde os filmes eram exibidos. Aqui, com gente mais paciente, os cortes mantiveram-se após a intervenção do técnico mas os protestantes não lograram vencer. Talvez com dez ou onze cortes ao todo, a sessão teve direito a cerca de 20 minutos de tempo extra e acabou por oferecer o óbvio contraste entre os marinheiros que se amotinaram a bordo da Bounty e a complacente assistência que só minoritariamente se revoltou na sala de cinema. Dois filmes num. Nada mau nos tempos que correm.

4/05/2009

paLAVras hà çolta

Fui em busca do cão e encontrei só a trela. Curioso. Cheirava a cão, mas não o meu. Seria a mesma trela? Era. Como podes provar se o cheiro é diferente? O meu instinto. Instinto têm os cães. Tu tens outra coisa qualquer, mas não é com instintos que consegues vencer os cães. OK, ganhaste. Então tenho o quê? Tens uma trela na mão. Queres que ta ponha à volta do pescoço? Fico a cheirar a cão. Tanto melhor, assim ele procura-te a ti e acha-te. Mas eu é que estou à procura dele. Óptimo, se estás à procura dele e ele à tua procura encontram-se de certeza. Agarra numa ponta da trela. Porquê numa ponta e não no meio? Para que o cão possa apanhar a outra ponta, parvo! Nunca ouviste dizer que os extremos se tocam? Já ouvi dizer que os extremos se trocam: o da direita passa para a esquerda e o da esquerda fica lá. Mas assim não se trocam. Trocam, sim. Trocam as voltas aos defesas, porque assim são dois contra um defesa. E do outro lado? Do outro lado não há ninguém. Está lá o defesa, desempregado. Como o teu cão. O meu cão desempregado? Ele está é possivelmente a empregar-se a fundo com uma cadela aqui próximo. Esta trela cheira a fêmea. Tens bom nariz. Até distingues a fêmea do macho. Olha quem vem ali! O meu cão, acompanhado! Que é que queres? Foi coup de foudre, atar e pôr ao fumeiro. Ela escolheu-o, estás arranjado. Qual foi o meu problema? Que mal fiz eu ao mundo? Só vejo uma coisa que fizeste mal: deste demasiada trela ao teu cão. Agora aguenta-te!

4/01/2009

Intermezzo

De todas as várias definições que conheço de saudade, a de que mais gosto é "A saudade é a presença da ausência." Sinto que não é mero jogo de palavras.