12/28/2004

Do Artur Costa

Bem, se a moda pega! Telefonou-me agora o Artur, que viu o Júlio Neves transcrito no blog, a pedir-me por sua vez que incentive "os jovens a fazerem mais sexo para não terem que praticar tanto desporto!"

Como poderia deixar de corresponder ao seu apelo?

Do Júlio Neves

De Tavarede, entre Coimbra e a Figueira, envia-me por e-mail o meu amigo Júlio Neves três brevíssimos apontamentos, com pedido de inclusão no nosso blog. Como neste período nada se pode negar...

1.O elevado número de acidentes nas novas vias rodoviárias portuguesas mostra uma vez mais que o progresso não se faz apenas à custa da construção de auto-estradas mas sim, prioritariamente, através da formação de uma mentalidade renovada e uma atitude cívica diferente.

2.O Natal está a transformar-se cada vez mais numa época de excessiva generosidade expressa em "afectos" materiais, a compensar um ano inteiro de muita avareza e não menor egoísmo.

3.Muita da luz que os homens e mulheres "iluminados" deste país querem fazer irradiar sobre os outros acaba por cegá-los a eles próprios.

Desejo um bom ano de 2005 ao Júlio e que o seu pessimismo se atenue.

12/27/2004

Pedro é Pedra

A estultícia continua a campear por estas paragens. A vil ignorância que adora crucificar os que estão no poder veio mais uma vez ao de cima. Sondagens relativas às próximas (injustificadas) eleições chegam a dar 81 por cento das intenções de voto aos Sucialistas! (É propositado da minha parte escrever assim o nome daquela súcia.) Esquecem-se que não foi em vão que os pais do Senhor Primeiro-Ministro chamaram "Pedro" ao seu filho. "Pedro" é o masculino de "pedra" e, tal como Cristo terá feito assentar em S. Pedro a sua Igreja -- daí o nome da Basílica do Vaticano --, também neste caso o Doutor Pedro Santana Lopes faz jus ao seu nome. Acossado por figuras de topo portuguesas, à cabeça das quais está naturalmente o Presidente da República, ei-lo que se agiganta e proclama veementemente a sua verdade. A injustiça dá-lhe força. Quanto mais o fustigam, mais ele endurece na sua constituição de pedra. Verão como em 20 de Fevereiro o povo terá finalmente compreendido quem está -- quem sempre esteve -- do seu lado. Nessa altura irão pasmar perante os resultados, muito abaixo dos propalados 81 por cento!

Post scriptum (recuso-me a escrever a abreviatura, que constitui propaganda desnecessária à súcia) - Gostaria de agradecer à Dona Ariadne as suas palavras, mas creio vê-las repassadas de fina ironia, o que me cheira apenas a mais uma hipócrita mensagem de Natal. Permito-me dispensar o apoio de alguém que noutras ocasiões se tem publicamente manifestado contra o Doutor Pedro Santana Lopes. Se está convertida, tanto melhor. Felicito-a. Veremos como se porta daqui em diante!

12/21/2004

Retribuição

Ia eu limitar-me a retribuir ao Peter Pan os seus amáveis votos de Boas Festas com uma simples resposta sob a forma de comentário ao seu post, quando leio o post-scriptum sobre o Sr SKrok. Ora, Peter Pan, que falta de caridade é essa em plena época natalícia?! Abencerragem?! Coitado do senhor, tão correcto, tão fiel aos seus ídolos, tão coerente!Para quê a cartilha de João de Deus se ele escreve tão bem e nem sequer dá erros? Como é possível ver tantos defeitos onde eu só encontro virtude?!

Agora é para si, Senhor SKrok:

Não leve a mal tanta ingratidão junta. Quando o seu amigo ganhar em Fevereiro é que eles vão compreender o que é um verdadeiro líder! E já agora, que lhe ofereço a minha solidariedade natalícia, queria pedir-lhe uma coisinha. Será que o senhor podia falar com o seu amigo Senhor Doutor Santana Lopes (assim, tudo por extenso, para ver que não me poupo a esforços!)a ver se ele me arranja qualquer coisa assim que valha a pena? Não sou muito exigente, pode ser até secretária de estado, ou mesmo directora de um instituto qualquer.O ministério também pode ser o que der jeito. À laia de curriculum, posso adiantar que tive um trisavô cabo da Marinha(pelo que a Defesa me assentaria que nem uma luva), um primo direito que era pintor (na construção civil, mas tirando esta última parte pode ser que dê para a Cultura), e agora tenho um cunhado que é contínuo no Ministério das Finanças (acha que isto chegará ao menos para subsecretária de Estado?)

Enfim, qualquer coisa que os invejosos que vierem a seguir não cobicem, e não me venham depois deixar apeada dizendo que a minha nomeação foi competência exorbitante para um Primeiro em gestão corrente... Tem que ser é rápido, que agora com isto do natal até as publicações em Diário da República andam atrasadas!

Quando falar ao seu amigo e nosso primeiro, já agora pergunte-lhe que doces de natal ele prefere. Não me chame Ariadne se não lhe vou mandar para a ceia duas dúzias de rabanadas, uma caixa de sonhos, e um alguidar de filhoses! E para si também há-de ir qualquer coisinha...

Um santo Natal, Senhor Skrok!
p.s: acha que posso pedir factura destas despesas, que as contas do meu ministério suportam?

Boas Festas!

Desejo em primeiro lugar que o Menino Jesus leve muitos brinquedos ao nosso bombo-da-festa de 2004, Sant'Anna Slotes, para que ele tenha algo com que se entreter todo o tempo, deixando assim em paz os assuntos da Nação, que têm sido brinquedos demasiado perigosos nas suas mãos.
Depois, queria endereçar aos animadores dos comentários ao blog, em especial ao António, à GiraLua e a M. Tulipa -- mas certamente também a todos os outros que nos visitam mais de fugida --, um muito obrigado pela vossa utilíssima e inteligente colaboração, e votos de Boas Festas.
Aos meus amigos bloguistas Ariadne, Capuchinho Vermelho, Sete-Luas e Ana (às duas últimas com um pequeno puxão de orelhas), João Ratão e, last but not least, Sete-Sóis, endereço votos de um Natal que permaneça na parte grata da sua memória. E um BOM ANO em 2005, i.e. doze meses em que os políticos deste país não nos criem muitas ganas de escrever verrinosas catilinárias.

P.S. Ao intruso abencerragem que dá pelo nome de S Krok gostaria que o Pai Natal oferecesse um exemplar da velha Cartilha de João de Deus para que ele pudesse reaprender tudo desde o início.


12/20/2004

Fernando Pessoa e Salazar

Os versos aqui colocados ontem são de Fernando Pessoa. Na maior parte dos livros sobre Pessoa não aparecem, talvez por serem versos menores...

Durante a sua vida, Salazar procurou claramente colar-se a uma figura histórica portuguesa: o Infante D. Henrique. À semelhança da imagem do Infante que historiadores nos legaram, Salazar era austero, solitário, devotado ao engrandecimento da nação, timoneiro de um país que precisava de alguém que lhe desse rumo. Preocupado com o que restava dos sonhados impérios do Infante, Salazar tinha homenageado D. Henrique no grande catecismo de pedra -- o Portugal dos Pequeninos -- que mandara construir em Coimbra, a cidade dos seus estudos universitários. Na grande Exposição do Mundo Português, realizada em Lisboa na mesma altura, aparecia em destaque a figura do Infante. Em 1960, quando a ameaça das grandes potências mundiais sobre o império português se avolumou, o Infante foi esculpido como estátua de proa do Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa (Belém). O monumento foi mandado erigir por Salazar em colaboração com a República da África do Sul -- o grande bastião africano branco de então, juntamente com o nosso país.
Perante este cenário, não deixa de ser ironicamente curioso que o mesmo poeta que celebrou numerosas figuras da história de Portugal nos seus versos, como por exemplo D. João II, no famoso "Mostrengo", e o Infante D: Henrique no "Deus quer, o homem sonha, a obra nasce", não tenha poupado a personagem Salazar. Escrever

António de Oliveira Salazar
Três nomes em sequência regular...
António é António.
Oliveira é uma árvore.
Salazar é só apelido.
Até aí está tudo bem.
O que não faz sentido
É o sentido que isto tem.

não é exactamente enaltecer alguém. Ou terá sido porque Fernando Pessoa viveu no tempo real de Salazar, enquanto que as outras figuras por si exaltadas eram já produto de uma mitificada construção histórica?

12/19/2004

De quem são estes versos?

Admito que, ao contrário de alguns milhares de pessoas, desconhecia até há uns dias atrás estes versinhos sobre Salazar. Quem foi o seu autor? Os poemitas não são extraordinários, mas revestem-se de alguma curiosidade.

Coitadinho
Do tiraninho!
Não bebe vinho
Nem sequer sozinho.

Bebe a verdade
E a liberdade,
E com tal agrado
Que já começam
A escassear no mercado.

O meu vizinho
Está na Guiné,
E o meu padrinho
No Limoeiro
Aqui ao pé.
Mas ninguém sabe porquê.

Mas, enfim, é
Certo e certeiro
Que isto consola
E nos dá fé:
Que o coitadinho
Do tiraninho
Não bebe vinho,
Nem até
Café.


12/18/2004

O PRINCÍPIO DA AGRADABILIDADE - I

Faça um pequeno teste com alguém que já tenha estudado inglês. Peça-lhe para escrever "agradável" em inglês (sem ser "pleasant"). É natural que a pessoa escreva "agreable" em vez de "agreeable". Issso poderá derivar do facto de essa pessoa saber francês, língua em que se escreve "agréable", ou de achar estranho escrever três vogais seguidas (-eea-). O importante, porém, não é nenhum destes motivos mas sim o facto de a pessoa em questão não associar a noção de agradável ao verbo "to agree" (concordar). Ora esta noção é ultra-relevante, na medida em que nos leva a pensar que são as coisas com que concordamos aquelas que são "agradáveis" para nós.
Imagine um artigo num jornal assinado por uma pessoa com cujas ideias você não concorda. O mais provável é que você não use a mínima energia dos seus olhos a ler uma linha do artigo. Se já sabe de antemão que não vai concordar, para quê dar-se ao trabalho e maçada de ler uma coisa que o vai deixar mal disposto no final?
O director do jornal conhece este facto. Através de estudos do mercado e da análise das vendas do periódico, ele tem consciência daquilo que interessa/agrada ou não aos seus leitores. Portanto tenta construir o seu jornal de acordo com o princípio da agradabilidade ("agrada-nos aquilo com que concordamos"), incluindo também uma dose q.b. de artigos que poderão não agradar ao núcleo principal de leitores mas apanharão franjas que são também mercado, potencial e real.
Tanto a escolha das capas de revistas como a selecção que recai sobre os apresentadores de televisão representam, por assim dizer, uma forma de eugenia, também relacionada com a agradabilidade. Por razões de volume de vendas ou taxas de audiência e tendo por base o princípio acima mencionado, é seleccionado o mais atraente e belo. O contrário poderia ser repelente e afastaria muitos leitores e espectadores. Desta atitude selectiva resulta, porventura inadvertidamente, a exclusão de muitos, que são afinal a esmagadora maioria. Todos os patinhos feios caem nesta maioria. A escolha cada vez mais acentuada de pessoas bonitas ("fotogénicas", dizia-se antigamente, "mediáticas", diz-se hoje) para capas de revista representa uma inegável aposta forte no individualismo no campo do social e, em certa medida, do elitismo: uns são eleitos, os outros são excluídos.
É também em concordância com o princípio da agradabilidade que parte da censura actua nos países em que ela existe institucionalizada: só se mostra o que é agradável -- o que exalta o ego da nação, o que desperta animosidade contra adversários antigos, o que realça as boas qualidades e os valores éticos vigentes. Esconde-se o desagradável e o inoportuno.

12/12/2004

Uma viagem única ao seu alcance!

Habilite-se a um prémio sensacional, enviando para este blogue a resposta única que se ajusta ao conjunto das seis simples perguntas abaixo. Qual é o personagem que

1. Embora adorando a expressão latina "Fiat lux", nomeadamente o seu segundo termo, se aventurou a criar o primeiro túnel do mundo sem luz ao fundo?
2. Nas suas declarações à comunicação social é em tudo idêntico àqueles decretos-lei cujo preâmbulo é inexoravelmente contradito pelo articulado?
3. Sendo sportinguista, fez uma real coligação com o rival Benfica, clube ao qual concedeu generosas benesses?
4. Possui há quatro meses sobre a cómoda do seu quarto uma imagem de São Pelayo virada de cabeça para baixo?
5. Eterno sonhador de casinos, aspira a criar cascatas de moedas a entrarem em ranhuras de slot-machines, para enriquecimento da nação?
6. É amante de música, nomeadamente do Concerto para Violino que Chopin terá composto em expressa homenagem aos "cinco violinos" do Sporting?

De entre todas as respostas correctas será sorteada uma viagem ao Céu, com breves paragens para visitas panorâmicas ao Purgatório e ao Inferno, patrocinada e pessoalmente acompanhada por São Pedro. A viagem de regresso não está de momento ainda garantida.

Xeque-mate?

A presente situação é altamente perigosa para a democracia. Arriscamo-nos a concluir em Fevereiro próximo que estamos melhor sem Governo do que com os políticos do costume.

12/11/2004

Presentes de Natal

Foi inesperado, mas aconteceu. Há cerca de quatro anos, ofereci à minha amiga Isabel Teixeira uma pequena compoteira de vidro que achei interessante como prenda de aniversário. É sempre difícil comprar presentes para os amigos. Flores, todo o mundo leva. Uma écharpe, não se sabe se já têm uma parecida. Um livro, talvez já tenham lido. É claro que oferecer uma compoteira nada tem de original. É mais uma coisinha que se põe em cima de um móvel, de uma mesa. Aquela era suficientemente grande para servir de bonbonnière. Era de vidro verde, com uma tampa em metal branco reluzente. Por seu lado, a tampa tinha ao centro um pequeno pináculo a servir de pega, também em metal, adornado com duas pedras talhadas, verdes, que jogavam bem com a parte de vidro de baixo. Achei a peça interessante e comprei-a.
À primeira vista a Isabel gostou. Ou talvez só assim-assim. Agradeceu com um beijinho. Sugeri-lhe um local onde poderia colocar o seu novo objecto e aventei o uso que lhe poderia dar. Mostrou-se bem mais efusiva. "Fica bem na nossa outra casa", disse-me. "Já sei onde a vou pôr." Mais um beijinho. A festinha passou-se alegre e bem disposta.
Nunca mais me lembrei da peça em questão. Os amigos são para recordar, não os presentes que lhes damos.
Ontem, contudo, alguém me trouxe à memória a verde compoteira, e com grande fidelidade. Quatro anos passados, a nossa comum amiga Anabela -- bem mais familiar comigo do que com a Isabel, aliás -- acaba de me oferecer como prenda simpática para o meu Natal a mesmíssima compoteira que há tempos me atraíu a atenção. Quatro anos depois, a peça poderia estar manchada, ter algum pedacinho de vidro lascado. Nada disso. Está aqui na minha frente absolutamente impecável. Suponho, com fortíssimas probabilidades de acertar, que se terá mantido sempre dentro do seu embrulho original. Toda a história me faz abrir um grande sorriso. As coisas são o que são. Que me resta fazer? Primeiro que tudo, evitar que a Isabel a veja, para não se sentir minimamente embaraçada. Depois, a única solução que encontro para a viajada compoteira verde é guardá-la bem embrulhada, ainda dentro dos papéis originais e da caixinha de cartão que lhe servia e serve de embalagem. Tal como a Isabel, vou levá-la para a minha "outra casa". Ficará à espera que numa primeira oportunidade eu a despache para uma outra pessoa, certificando-me porém que não se trata de alguém conhecido nem da Isabel nem da Anabela. O diabo pode tecê-las. Se qualquer uma delas recebesse a peça de volta, ficaria com os olhos bem abertos, como eu fiquei. Mas com um sorriso de gozo, também.

12/10/2004

POR FALAR EM PRÁTICA DA ESCRITA ...

... 3 histórias rigorosamente verdadeiras:

1. É conhecida a mania que os miúdos têm de «promover» senhoras doutoras a stôras. Todavia conheci um que, vá lá saber-se porquê, preferia e praticava a variante sedutora.

2. Uma professora de Português pediu aos pupilos, num teste, uma análise morfológica do vocábulo mulher. Um deles disparou: artigo indefinido feminino do plural.
Menino precoce...

3. Num teste de Biologia havia uma questão a que era suposto responder espermatozóide.
Um dos pupilos escrevinhou: espera-me tezóide. E a mestra, magnânima, redigiu o seguinte comentário na folha de prova: O tezóide espera-te!

12/08/2004

Aplauso para Ministro

O Ministro do Ambiente, Luís Nobre Guedes, acaba de chumbar a proposta de transferir a tutela tanto da reserva ecológica como da reserva agrícola para as autarquias. Felizmente, o documento elaborado por um conhecido pardalão, também envolvido na lei do arrendamento urbano, não passou. Se agora já há regabofe por parte da esmagadora maioria das câmaras, com a tutela daquelas reservas nacionais o regabofe seria completo. Imperou o bom senso. Aplausos para o ministro!

12/07/2004

A prática da escrita na disciplina de Português

No recente colóquio sobre a língua portuguesa realizado na Gulbenkian, foi salientado por um dos conferencistas que a grande insistência que se faz sobre a leitura na disciplina de Português do ensino básico e secundário não tem, infelizmente, a sua contrapartida com o mesmo peso na componente da escrita. Embora referindo a indubitável importância da leitura, não deixou de realçar a sua função predominantemente passiva quando comparada com a da escrita. Enfatizou o facto de a escrita emancipar e contribuir para formatar o espírito, tornando-se uma capacidade essencial para uma cidadania alerta, crítica e participativa. Sublinhou que quem não sabe escrever bem não pode almejar a ter lugares importantes no futuro. Afirmou ainda que a negligência da componente escrita é tanto mais grave quanto é certo que as passagens de ano se fazem através de pontos escritos nas várias disciplinas.
Na parte reservada ao debate, estranhei que nenhum dos muitos professores de Português presentes na sala tivesse reagido a esta comunicação. Entretanto, no livro intitulado A Literacia em Portugal, que foi generosamente distribuído a todos os participantes pela Fundação, encontrei casualmente na página 247 o seguinte diálogo entre um entrevistador e alunos:

P - Os professores costumam ver o que os alunos escrevem?
R - Só o de Português. E é nos testes...
P - E os professores verificavam se vocês escreviam correctamente ou liam correctamente as palavras? Se percebiam aquilo que estavam a ler?
R - Alguns. Alguns dão importância a isso.
P - Mas a maioria dá ou não dá?
R - A maioria não dá, mas há professores que até assinalam. Quando uma palavra está mal escrita sublinham e tudo. Agora, há outros que dizem que, pronto, que não são professores de Português, dizem "não estamos na disciplina de Português, por isso... isso não me importa."

Parece poder inferir-se daqui, confirmando as palavras do conferencista, que, na realidade, não é incentivado o uso regular da escrita (composições, resumos, comentários, etc.). Será isto verdade? Se sim, dever-se-á este facto sobretudo ao tempo que ao professor inevitavelmente leva corrigir textos escritos? Ou haverá outras causas? Dado que é inegável que mesmo no ensino superior se encontram inúmeros casos de escrita verdadeiramente medíocre, gostaria de ter algumas opiniões sobre o assunto.

12/06/2004

Joões há muitos!

Joões há muitos!
(Por ocasião da conferência «A Língua Portuguesa: Presente e Futuro» a decorrer na Gulbenkian)

No auto-planeamento turístico de Manhattan aquela noite era para o jazz. Estando na área de Times Square fui andando atento à abundante e diversificada oferta até chegar ao Birdland ( 315 West 44th Street, between 8th and 9th Avenues).
Havia uma fila (bom sinal pois nos sítios anteriores não havia, mas francamente menor que as dos locais com música para a «juventude») onde me integrei até ser abordado pela menina que geria a sua evolução.
- Hello!
- Hello!
- Fez marcação?
- Não! É preciso? - esboço de finta de corpo (!) indiciadora de que não vou suplicar para entrar e de que estou pronto a ir-me embora. Já!
- Não. Não deve haver problema. Your name? - smile, size S.
- João - smile, size M, como pretendia passar despercebido omiti o «Ratão».
- Spell it, please - smile, size L.
Lá (ins)escreveu JOAO na lista e passado um bocadinho estava a chegar à porta.
- Welcome Joao! - smile, size XL.
Aí, peço-lhe a esferográfica e ponho um til no A.
- Ah! João - smile, size XXL.
- Sim. Porquê? Que João conhece?
- É o meu músico preferido.
- ??? - meninges a fazerem browses infrutíferos nas referências "João" e "músico" e o olhar a expressar esse vazio de soluções.
- João Gilberto!
- !!!.

Isto é difícil. Nasci português do tempo do «orgulhosamente sós». Agora sou europeu, mas não dessa subespécie «ibérico»... Contudo a comunidade que consegue a melhor agregação é a dos falantes de português, não obstante as ligeiras (espero não terem escapado grandes erros...) traições que este texto contém.


12/05/2004

Entrevista a um GEP (Gestor de Espaços Públicos)

- Sonha-se sempre. Em menino sonhaste ser ...
- Corredor de automóveis. Era o speed, o andar à frente dos outros naquela guita toda! E as máquinas!
- No teu ofício continuas ligado a automóveis ...
- Mas arrumar carros nas ruas não é a mesma coisa que conduzi-los. E há para aí cada bomba!
- Achas que ser arrumador de carros é uma profissão como outra qualquer?
- Não há duas coisas iguais, de modo que não é como outra qualquer. Esta é especial.
- Especial em quê ?
- Sempre detestei trabalhar em escritórios. Quem me tira o ar livre, tira-me tudo. Assim, pelo menos ar livre não me falta!
- Mas tens montes de poluição. Os escapes, vrum mete o carro, vrum tira o carro, acelera. Isto não te complica?
- Esse é o fumo que eu não quero. É por isso que ando sempre de paivante na boca. Já que tenho que engolir, ao menos que engula aquele fumo que me dá prazer.
- Em qualquer actividade, a gente gosta de ser útil. Tu achas que és útil?
- Como não! O desespero de alguém que quer arrumar o carro porque não o pode levar às costas para o sítio onde vai, é uma coisa que a gente nem consegue imaginar. Os cem ou duzentos pauzitos que nos dão compensam o alívio que eles sentem. É um grande bem contra o stress. Vale mais deixar-nos o dinheirinho na mão do que gastá-lo na farmácia em comprimidos.
- Não tens medo da polícia?
- Não estou a fazer nada de mal. Estou só a ajudar, a minha missão é profundamente social.
- Tens estudos?
- Estudei até ao 9º Ano, depois larguei. Ainda gosto de ler. Há clientes muito simpáticos que me deixam o jornal.
- Tu não tens uma profissão legal. Isso não te incomoda?
- Faz o bem e não olhes a quem, esse é o meu lema. Tudo o resto são cantigas. Arrumo os carros dos ricos e dos pobres, faço bem a distribuição dos espaços. Tanto faz ser um velho Fiat 127 como um BMW último modelo. Fossem os governos como eu e tudo estaria melhor!
- Queres dar lições ao Governo, tu que não pagas impostos?
- Não ia passar recibos de cinquenta cêntimos ou de um euro! Se oficialmente não recebo nada, porque é que havia de pagar? Também ninguém desconta para mim. A minha missão social é o meu IRS! E o frio e a chuva, ou então o calor e o sol ?! A gente sofre um bocado aqui. E, aliás, o mercado já não é o que era. Com os parquímetros já há muito desemprego nesta profissão. A gente chega a ter de trabalhar aos fins de semana. São sete dias a fio!
- Mas há tantas ruas em Lisboa e noutras terras!
- Isso é uma ilusão. Para muita gente o carro não é um auto-móvel, é um auto-parado. Arrumam-no ao sábado ou ao domingo e nunca mais lhe tocam. Estão a roubar o espaço para o nosso servicinho. Estou a pensar em vender uns cartõezinhos auto-colantes a garantir que os carros parados estão debaixo da nossa vigilância. E é que a gente vigia-os mesmo! Quem é que vinha roubar um carro nas nossas barbas?
- Vocês ainda são mais importantes do que a polícia!
- E somos! Onde é que já se viu bófia em todos as ruas? Nós às vezes estamos três e quatro na mesma rua. É isso também que faz a crise.
- Posso tirar-te uma fotografia para ilustrar a entrevista?
- À vontade, mas que seja ali ao pé daquele Ferrari. Não estava a mangar quando disse que sempre gostei de carros de corrida. Talvez um dia!
- Talvez um dia. Boa sorte!

12/04/2004

ÍCONE

O mediático homem da televisão e das revistas coloridas acaba de nos prestar um enorme serviço através da sua desastrada governação: tornou-se o ícone dos políticos impreparados para governarem algo tão importante como um país. A partir de agora, ele passou a constituir uma gritante bitola de referência. Esperemos que a lição seja bem aprendida pelos numerosos candidatos ao poleiro.

Injustiça Nacional

Custa-me ver crucificar na praça pública o Doutor Pedro Santana Lopes. Ainda antes de ser empossado Primeiro-Ministro já era alvo das maiores críticas. Contra uma opinião pré-formada é muito difícil governar! Dêem-lhe uma segunda oportunidade, agora expressa pelo voto dos eleitores portugueses, e verão como tudo será diferente! Com tantas pedras que lhe atiraram, algumas acertaram inevitavelmente no alvo e, como seria de esperar, não deixaram de fazer mossa. Impediram que o injustamente atingido fizesse o seu melhor. A clara falta de valores éticos de um grande número de portugueses, a começar por muitos que ocupam lugares na comunicação social, veio infelizmente ao de cima. Precisamos de educar o povo, abrir-lhe os olhos para a verdade! Também Cristo foi alvo de impropérios, cuspidelas e pedradas, e a sua verdade acabou por se impor até aos nossos dias.
Faz pena ver o nosso querido Portugal neste estado!

11/25/2004

O artigo do Peter Pan fez-me lembrar um episódio passado há uns tempos, porque também mete santos. Só que neste caso, e ao contrário do que sucede no dito artigo, por pouco a hagiologia não ficava desfalcada de uns quantos membros, não fora o prestimoso empenho profissional de um desconhecido mestre de obras bracarense?
Há dois ou três anos, chegou à minha caixa de correio electrónico um estranho pedido de um colega de trabalho. O estranho não era o envio de uma factura para que sobre ela eu emitisse um parecer com vista ao seu pagamento, já que isso fazia parte das minhas atribuições profissionais. O estranho era a factura propriamente dita. Dizia respeito a trabalhos efectuados numa capela do Bom Jesus de Braga, e rezava assim, ipsis verbis:

FACTURA
1º. - Por corrigir os dez mandamentos, embelezar o Sumo Sacerdote e mudar-lhe as fitas ... 170 rs.
2º. - Um galo novo para S. Pedro e pintar-lhe a crista ... 80 rs.
3º. - Dourar e pôr penas novas na aza esquerda do Anjo da Guarda ...120rs.
4º. - Lavar o creado do Sumo Sacerdote e pôr-lhe suíssas ... 160 rs.
5º. - Tirar as nódoas ao filho do Tobias ... 95 rs.
6º. - Uns brincos novos para a filha de Abraão ... 245 rs.
7º. - Avivar as chamas do inferno, pôr um rabo novo a um diabo, fazer vários consertos, limpar as unhas e pôr uns córnos ao diabo mais velho 370 rs.
8º. - Fazer um menino ao colo de Nossa Senhora ... 210 rs.
9º.- Renovar o Céu, arranjar as estrelas e lavar a Lua ... 130 rs.
10º.- Retocar o purgatório e pôr-lhe almas novas ... 335 rs.
11º.- Compor o fato e a cabeleira de Herodes ... 30 rs.
12º.- Meter uma pedra na funda de David, engrossar a cabeleira de Tobias e alargar as pernas de Saúl ... 93 rs.
13º.- Adornar a Arca de Noé, compôr a burrica do Filho Pródigo e limpar a orelha esquerda de S. Tinoco ... 23 rs.
14º.- Pregar uma estrela que caiu aos pés do côro ... 23 rs.
15º.- Umas botas novas para S.Miguel e limpar-lhe a espada ... 255 rs.
Soma tudo ... 2.474 rs

Devo confessar que me vi em enormes dificuldades para satisfazer o pedido do meu colega, já que em quase trinta anos de carreira nunca se me tinham deparado problemas como alguns dos que aqui se levantavam! Não tive, no entanto, outro remédio senão analisar detalhadamente o conteúdo da factura, após o que enviei ao meu colega a seguinte resposta:

Caro Colega:
Acuso a recepção da factura que me enviou, a qual visarei com todo o gosto tão cedo obtenha dados relativos a naturezas de trabalho que, em vinte e muitos anos de profissão, confesso nunca ter posto em obra. Para que fique com a ideia de que não será um pagamento a preços correntes de mercado, mas sim por valores que, à partida, podem parecer elevados, gostaria de lhe referir desde já as inúmeras dificuldades que surgiram no decurso da obra, as quais terão forçosamente que ser tidas em conta aquando do pagamento. Assim:

1. Corrigir os dez mandamentos, embelezar o Sumo Sacerdote e mudar-lhe as fitas:
Terei que confirmar nas folhas diárias de registo dos trabalhos o tempo que levou corrigir os dez mandamentos. Lembro-me que deram um trabalho imenso, não só por serem dez, mas também porque, a julgar pelo conteúdo, o Criador devia estar distraído quando os ditou a Moisés... Então no que diz respeito ao tal da mulher do próximo, nem imagina como foi difícil arranjar mão-de-obra para o executar!

2. Um galo novo para S. Pedro e pintar-lhe a crista:
O galo novo para o S. Pedro foi outro problema. Para azar, a Rosa Ramalho não constava do nosso Manual de Qualificação e Avaliação de Fornecedores. De outra forma ter-lhe-íamos adjudicado o seu galo de crista tão bem colorida, e com pintura de fábrica, sempre de melhor qualidade do que as pinturas feitas em obra. Sem falar na grande vantagem que teríamos no preço, dada a baixa incidência do custo de transporte ( Braga e Barcelos são relativamente próximos, como sabe).

3. Dourar e pôr penas novas na aza esquerda do Anjo da Guarda:
As penas novas para a asa esquerda do Anjo da Guarda foram muito fáceis de obter, mas iam originando um conflito laboral: aproveitei uma distracção do meu, e saquei-lhe algumas. Acontece que ele se sentiu tão lesado que ameaçou rescindir o contrato de vigilância que assinou comigo, e ainda por cima pedir-me indemnização por perdas e danos... Sabe como é, Colega, se ele tem mesmo ido para a rescisão do contrato, como convenceria eu a Administração a arranjar substituto? Enfim, consegui dar-lhe a volta lembrando-o de que ainda há relativamente pouco tempo pisei numa obra um prego enferrujado e ia apanhando um tétano por incúria dele, que está contratado para me guardar e andava desenfiado. Além de que nem tinha previsto essa situação de risco no Plano de Segurança e Saúde da obra!
Só por esta razão o empreiteiro apresenta apenas um custo de 120 reis: não fora eu a fornecer o material, e a conta ia por aí acima.

4. Lavar o creado do Sumo Sacerdote e pôr-lhe suíssas ...
Quanto a lavar o criado do Sumo Pontífice e tirar as nódoas ao filho de Tobias, no problem: qualquer franchizada «cinq -à- sec» resolve a questão com eficácia. Difícil mesmo foi embelezar o Sumo Sacerdote! Entre colegas, lhe direi que receio bem não haver solução técnica para o caso. Que o divino Dono de Obra me perdoe, mas com aquela idade, a rodagem a que tem estado sujeito, e ainda por cima uma Halzeimer, não há empreiteiro nem novas tecnologias que lhe valham! De resto, o seu custo está completamente amortizado.
160 reis e mais 93 reis para pôr suíças ao Sumo Sacerdote e dar um jeito à cabeleira de Herodes parece-me um pouco exagerado. Mesmo sabendo, como sei, que o trabalho esteve interrompido durante uns dias, com a equipa toda parada, à espera que o assessor de imagem do Sumo Pontífice desse parecer sobre as suíças especificadas no Caderno de Encargos e confirmasse estarem as mesmas em conformidade com a norma ISO 9001. Ainda que nestas verbas estejam também incluídas a funda nova para o David e, sobretudo, que se trate de suíças para o Sumo Pontífice, e não de umas quaisquer suíças não homologadas, acho o preço um pouco exagerado. Talvez seja de solicitar esclarecimentos, exigindo o envio da tabela horária da equipa do barbeiro, incluindo ajudas de custo e IVA. (Refiro as ajudas de custo, não vá tratar-se do de Sevilha, caso em que a deslocação e as diferenças cambiais podem ter significado).

5. Não referirei coisas como os brincos novos da filha do Abraão, avivar as chamas do inferno, adornar a arca de Noé, almas novas para o purgatório, etc, etc,. Executaram-se sem dificuldades de maior, se bem que teria sido muito mais fácil encontrar almas novas para o inferno do que para o purgatório, mas enfim...

6. Fazer um menino ao colo de Nossa Senhora
Para fazer um menino ao colo de Nossa Senhora aconselhei o Empreiteiro ao recurso a outsourcing. Sabe, é que o Empreiteiro tem um bom quadro de pessoal, mas nem todos se adaptam a certos trabalhos... O meu conselho revelou-se oportuno, já que o objectivo não podia ter sido mais conseguido: o menino saiu com tão bons acabamentos que o Empreiteiro acabou por contratar para a empresa o mocetão espadaúdo responsável pelo trabalho, o qual tinha, até aí, um emprego sazonal lá para o Algarve.

7. A verba de 23 reis referente ao trabalho de pregar a estrela caída ao pé do coro diz respeito apenas à deslocação da equipa do montador de andaime. Pensou-se fazer este trabalho com andaime autoportante, mas o IDICT não autorizou. Mesmo sendo no coro, não foi em cantigas: achou preferível o dono de obra contentar-se em ficar com uma estrela cadente.

8. Avivar as chamas do inferno, pôr um rabo novo a um diabo, fazer vários consertos, limpar as unhas e pôr uns córnos ao diabo mais velho:
Como se constata, esta é a verba mais significativa de toda a factura. E, efectivamente, há razões para tal. Para começar, foi um enorme problema arranjar um rabo em bom estado para o diabo. Todos os que se encontraram no mercado eram já chamuscados. Sabe como é, quem o tem novo, chama-lhe seu?
Pôr uns cornos ao diabo mais velho foi outro trabalho complicadíssimo, que requereu reforço da estrutura de suporte e equipamentos especiais de transporte e elevação, dado o peso dos mesmos. Mas também, houve aqui uma certa azelhice do empreiteiro, que preferiu, em nome da transparência e lisura do processo de selecção, não consultar para esta subempreitada a mais eficiente empresa da especialidade, atendendo a que a proprietária é mulher do dito diabo.

Após todas estas explicações estou certa, meu caro colega, compreenderá melhor as dificuldades surgidas na realização dos trabalhos, e verá por que razão darei o meu parecer favorável ao pagamento da factura, que lhe será devolvida tão depressa eu receba do Banco de Portugal a tabela de conversão de reis em euros.
Os meus cordiais cumprimentos.

11/23/2004

Dois Novos Santos

No seu normal aggiornamento, a hagiologia acaba de receber dois novos santos: S. Mercado e S. Precário. Respigo de uma publicação que me chegou às mãos as duas primeiras orações:

S. Mercado todo global
Governador do Céu e da Terra
Com a tua mão invisível
Abençoa as nossas vidas.
Por ti tudo fazemos
Os velhos princípios renegamos.
Confiamos na tua eterna sabedoria.
Ámen.


S. Precário, auxiliai-nos
No emprego
Na carteira
No empréstimo
Nesta vida de canseira.
Tende piedade de nós.
Ámen.

A ambas as orações foram atribuídos 10 anos de indulgências.

11/18/2004

O Tempo, esse terrível «escultor»

Fui há tempos confrontada (salvo erro, lendo uma entrevista feita a uma «ninfomaníaca» lúcida) com a tese singular de que a mulher ocidental sofre constrangimentos comparáveis, se bem que mais subtis, aos impostos às congéneres árabes. Estas estariam por assim dizer espacialmente confinadas (burka, shador e similares; excisão; exclusão da esfera pública, a menos que «protegidas» pelo macho), ao passo que, no Ocidente, a jaula seria o tempo.
Não posso deixar de concordar. O prazo de validade feminina, por natureza mais estreito que o da masculina, é actualmente susceptível de dilatação artificial, mas essa fáustica conquista encontra-se rigidamente «formatada» por esteriotipos claramente ditados pelo «olhar» masculino (beleza é fundamental... não é, meus senhores?), «olhar» esse que encerra violentamente a mulher ocidental numa beleza tipificada pelo tempo juvenil. Se ela tiver o azar ou a audácia de transgredir essa órbita do look apropriado, torna-se transparente, ou seja, incapaz de impressionar a retina do macho.
O que nos vale e compensa é que o «nariz», obedecendo claramente a outras regras (por sinal bem mais democráticas), fala por vezes mais alto...

Humilde adenda às sugestões do Ratão

Assinalando o lançamento do seu último romance, bem como 25 anos de suculenta vida literária, António Lobo Antunes vai estar presente no próximo Sábado, dia 20, pelas 17h 30m, na Livraria GALILEU (Cascais, Av. Valbom), para uma sessão de autógrafos.
Haverá espumante (branco e róseo) à discrição e, para fazer lastro, gulodices de boa qualidade.

11/17/2004

NEGÓCIOS

A imprensa publicou há alguns meses uma interessante entrevista com um empresário espanhol. De entre várias observações muito lúcidas, retive uma, certeira: "Portugal devia pensar menos em negócios e mais em fazer empresas." Isto significa, antes de mais, que a noção de continuidade não é a predominante, o que implica um espírito de estratégias de curta duração mais dirigidas para oportunidades do que para a criação de sólidas bases, prontas a resistir a crises quando estas eventualmente ocorram.
Para o espectador da cena portuguesa, a vida política surge virada para o negócio do momento: os períodos eleitorais. A política está transformada em negociatas periódicas, em vez de ter como linha directriz uma estratégia de longo prazo para o Estado.
Foi extremamente sintomático o facto de as nossas principais associações empresariais -- a Associação Empresarial de Portugal e a Associação Industrial Portuguesa -- , se terem manifestado contra as expectativas exageradas patentes no Orçamento de Estado. Segundo as referidas associações, a proposta de Orçamento de Estado para 2005 põe "em risco a credibilidade interna e externa da política orçamental". Quem pensa a longo prazo sabe que mudanças de agulha podem ser boas para o momento (das eleições autárquicas, por exemplo), mas acabam por comprometer o futuro do país.

11/16/2004

América III - A questão religiosa nas eleições

Sabemos que as primeiras vagas de famílias europeias que rumaram para o Novo Mundo se ficaram a dever em grande parte a motivos religiosos, aos quais um espírito indiscutivelmente empreendedor acrescentou aspirações de uma vida económica e socialmente melhor. Cedo, homens de cepa puritana falavam da sua nova terra como "cidade no alto de um monte", "farol que tudo ilumina". Ora, a visão mitificada deste conceito, despido de mácula e prenhe de missão a desempenhar -- a missão do homem no mundo, continuando a obra de Deus -- foi algo que o núcleo duro da sociedade americana enraizou. Consoante o tipo de governo ("Administração") e a envolvente mundial, aquela visão tem tido os seus pontos altos e baixos. Presentemente, está a atravessar um período de alta.
Ser católico nos Estados Unidos é muito diferente de ser católico em Portugal. Num país monobloco sob o ponto de vista religioso como o nosso, o catolicismo é relativamente pouco pensado e debatido. Há falta de adversários reais. Nos Estados Unidos, onde as diferentes religiões e os credos são numerosos, a diferença é vincada. Os católicos sabem porque o são; os metodistas conhecem as razões por que não são baptistas (por exemplo), os judeus mantêm os seus ritos distintos. Como oficialmente o Estado americano é laico, o dia mais significativamente comemorado pelas famílias não é o Natal, mas sim o Thanksgiving Day, celebrado no presente mês de Novembro. Neste Dia de Acção de Graças o povo agradece a um ente que é necessariamente diferente entre os membros da heterogénea população americana mas que, oficiosamente, é simbolizado pelo núcleo social dominante através da conhecida invocação "God bless America!".
Há muito que a condução dos negócios políticos americanos faz uso da religião. Quem não se lembra dos requisitos impostos por antigas Administrações dos Estados Unidos, que recusavam determinado tipo de auxílio a países que tivessem liberalizado o aborto? Em contrapartida, esses governantes americanos ignoravam verdadeiras ditaduras que cometiam crimes ignominiosos (desembaraçarmo-nos dos nossos inimigos pode ser justificado pela obtenção de um bem final, i.e. os fins justificam os meios).
Poderia pensar-se que os Dez Mandamentos da Lei de Deus fossem suficientes para o núcleo governante, que é cristão. Os mandamentos são importantes, sem dúvida, mas a grande clivagem entre protestantes e católicos reside no entendimento do mandamento número dois: "Amarás o próximo como a ti mesmo." O pensamento puritano tende, mentalmente, a acrescentar: "desde que esse próximo mereça a tua solidariedade." E quem decide desse merecimento?
É aqui que entra a luz do farol dos "missionários". Ser rico e virtuoso transformou-se no ideal americano. Numa visão calvinista que está na base do capitalismo, como Max Weber não se cansou de referir, é o próprio Deus que "aprova" a riqueza das pessoas e das nações. Deste princípio passa-se facilmente ao das pessoas e nações que mais se encontram nas boas graças de Deus. E entramos num ranking, se assim lhe quisermos chamar. É o darwinismo social. Num país como os Estados Unidos, onde a diferença entre ricos e pobres é gritante, a riqueza é venerada. E "os pobres não estão contra os ricos, querem apenas ser tão ricos como eles."
Tudo o que contribua para a riqueza da "grande nação eleita" é bem-vindo e "sancionado" por Deus. Ora, o mesmo Deus reprova tudo o que é contra natura: assim, o casamento entre homossexuais, o aborto, estudos sobre clonagem nos humanos, etc.
Enquanto que para uma parte significativa da sociedade americana, progressista, é mais importante a liberdade de as pessoas decidirem per se do que a imposição deste tipo de leis proibitivas, a parte conservadora, que se reclama de maior sentido missionário, mostrou nas últimas eleições ter algum peso mais.
"E a guerra?" "Guerra?", responderão os actuais governantes. "Estamos basicamente a erradicar as forças do mal. Protegemo-nos, preventivamente, de forças malignas que querem destruir a grande nação americana." Nas eleições, foi este o lado que venceu. É este o lado que lança causas e bandeiras como a luta anti-tabagista, mas que por outro lado se recusa a assinar o protocolo de Quioto. É este o lado darwínico que, ao desejo de maior solidariedade social dos democratas, responde concretamente com a ideia da des-solidariedade activa e consciente. Há quem lhe chame fundamentalismo. A luz do facho que é suposta iluminar o mundo cega frequentemente quem a empunha. Daqui resulta um clima de intolerância e de guerra latente contra todos aqueles que não comungam das mesmas ideias. Tanto a tentativa de imposição da democracia a outros países como a actual clivagem existente entre os americanos têm a sua raiz em aspectos como estes.

11/15/2004

POR FALAR EM FEMINISMO?

A propósito do tema ?feminismo linguístico? e dos comentários que se lhe seguiram, ocorreu-me abordar outras formas de desigualdade, que não linguísticas.

A mitologia grega descreve um temível malfeitor, Procrusto de seu nome, que interceptava as suas vítimas à entrada de Atenas, oferecendo-lhes cama para que, cansadas da jornada, pudessem passar a noite. Os incautos que aceitavam os seus préstimos pagavam caro o desejo de uma noite repousada, pois Procrusto matava-os a todos, de forma assaz curiosa: aos mais pequenos do que a cama estirava-lhes as pernas, aos maiores cortava-lhes os pés, até que todos ficassem rigorosamente do tamanho da cama. Assim Procrusto se foi apropriando dos haveres das suas vítimas, até que, finalmente, Teseu, o grande herói que já havia vencido o minotauro de Creta, o bandido Círon, o touro de Posídon e outros tantos malfeitores, acabou por lhe fazer o mesmo que ele fazia aos viandantes.

Esta história de Procrusto parece-me uma boa metáfora do que se passa com a inserção das mulheres no mundo laboral. As mulheres que têm profissões tradicionalmente masculinas e aspirações a uma carreira, quero dizer.

É consabido (e aceite como indiscutível) que os homens são racionais, as mulheres emocionais. Nada que possa ser mais falsamente generalizável! Obviamente, homens e mulheres têm as duas facetas, desigualmente ponderadas, mas essa diferença não se manifesta necessariamente e apenas em função do sexo: não é difícil pensarmos em homens incontestavelmente viris e mais sensíveis do que algumas mulheres, e não é difícil justamente porque é frequente.

Reservando, assim, a emotividade para as mulheres, o mundo empresarial ? mundo de homens, como se sabe - veda-lhes, profissionalmente, o uso das emoções.

Que se passa, então? Submetem-se as candidatas à cama de Procrusto: bane-se a emotividade porque excede a dimensão da cama, e puxa-se a frieza, a falta de compaixão, até que fiquem à medida pré-estabelecida. Qual das mulheres empenhadas numa carreira profissional (e também os homens mais emotivos, sejamos justos?) não ouviram já de algum colega ou superior hierárquico frases como estas?:
- seja dura!; não chore com as dores dos outros; a moral não é para aqui chamada; quero lá saber que isso não seja verdade: é preciso que seja!; páre de ser boazinha; as emoções ficam em casa; o problema não é nosso (quando, de facto, é!)

Pior do que isso, há muito bom gestor de recursos humanos e director de serviços que, ?na sua grande experiência de lidar com pessoas? vê mesmo indícios de sensibilidade como desequilíbrio emocional, fraqueza de espírito e incapacidade para tomar decisões.

É assim, com a balança a pender fortemente para os valores masculinos, que as mulheres são avaliadas e estão sujeitas à progressão nas carreiras: mesmo pondo de parte eventuais situações de injustiça, essa avaliação é necessariamente desfavorável, porque feita por quem à partida não entende (nem pratica) parte do seu mundo. Resulta daqui que muitas mulheres, por feitio, por ambição, por necessidade, seja pelo que for, acabam por se masculinizar. Essas são, em regra, as mulheres de sucesso do nosso mundo empresarial: o seu modelo de chefia é o masculino, os seus valores os dos homens. Repito: em regra, porque há verdadeiras líderes. E essas são as que renunciam à cama de Procrusto, as que são capazes de se afirmar sem amputar a sua feminilidade.

Há tempos foi publicado um inquérito realizado nos EUA sobre os estilos de liderança imprimidos por homens e mulheres. E o inquérito concluía, com espanto (oh, santa ingenuidade!) que o tipo de liderança que conduzia a melhores níveis de desempenho era o estilo feminino, por ser mais maleável, mais adaptável às diferenças existentes entre as pessoas. Segunda conclusão importante do mesmo inquérito: que as mulheres que tinham um tipo de liderança baseado nos valores masculinos, convencidas que num mundo de homens teriam que usar as armas dos homens, obtinham os piores resultados da avaliação (abaixo, portanto, da liderança feita por homens).

O que tento deixar como tema de dabate é que, entre a inqualificável prática da excisão feminina e a ingénua e politicamente incorrecta terminologia linguística que adopta o género masculino para referir as duas metades da humanidade, há todo um mundo de discriminações exercidas sobre as mulheres, e que, mesmo em países ocidentais e em classes sociais mais favorecidas, a tão propalada ?igualdade? está longe de ser um dado adquirido. Não é, pois, suficiente -embora seja forçoso admitir como benefício que não está ao alcance de todas- achar que não estamos mal pelo facto de não sermos obrigadas a usar burka.

11/12/2004

Feminismo linguístico precisa-se!

Ingleses e americanos concordam, dentro da era do politicamente correcto, que a sua língua possui alguma orientação excessiva para o masculino. Assim, palavras como "mankind" e "Mrs" têm vindo a ser substituídas respectivamente por "humanity" e "Ms". Humaniza-se "mankind", cujo elemento "man" não pode representar homem e mulher. Quanto a "Ms", substitui tanto "Mrs" como "Miss", pois se um homem não vê a sua condição de casado expressa por uma designação prévia -- "Mr" mantém-se para homem solteiro ou casado -- , por que razão não deverá o mesmo acontecer com uma mulher?
Dentro da mesma linha, também "chairman" tem vindo a perder popularidade, sendo frequentemente substituído por "chairperson", termo que acomoda com maior facilidade masculino e feminino.
Basta considerarmos alguns pares de palavras como master/mistress, bachelor/spinster, courtier/courtesan, para vermos que existe uma conotação depreciativa clara nos termos femininos. (Aliás, mesmo em português o último dos pares -- "cortesão/cortesã" -- introduz uma conotação negativa no feminino que o masculino não possui.) Expressões como "to each his own" ("a César o que é de César") ao incluírem "his" trazem toda a conotação para o masculino. E o que se poderá dizer de chamar aos antepassados "forefathers", relegando as "mothers" para um injusto oblívio? Uma expressão como "man-made changes" esquece igualmente o papel, quantas vezes decisivo, das mulheres.
Se os americanos e britânicos pensam isto da sua língua, o que diriam se estudassem o português? No nosso idioma, o elemento feminino é claramente ignorado num vastíssimo número de casos. Notem-se expressões que empregamos todos os dias, como "os meus pais", "os meus irmãos" ("my brothers and sisters", em inglês), "os meus tios" ("my uncle and aunt"), "os meus sobrinhos". Deixar as mães, as irmãs, as tias e as sobrinhas de fora parece ser uma questão de somenos para os portugueses. Na realidade, este facto mostra apenas que o homem, como elemento pretensamente dominante da sociedade, coloca a mulher num injusto segundo plano. Dizer "os reis de Portugal" inclui obviamente (?!) as rainhas, mas elas não se vêem na expressão, só eles. Frases em que o termo "homem" engloba conceptualmente as mulheres mas despreza-as nominalmente são inúmeras. Dois exemplos apenas: "O homem põe, Deus dispõe", "O Natal é sempre que um homem quiser".
Só para concluir: não é aviltante que a enunciação das pessoas verbais se faça sempre pela ordem "eu", "tu", "ele", "ela", "nós", ... colocando a mulher invariavelmente depois do homem? Talvez a língua portuguesa esteja a precisar de um abanão!

11/08/2004

América II - O Outro

No seu último livro, Who Are We?, Samuel Huntington, o autor de Choque de Civilizações, defende que os Estados Unidos correm sérios riscos e alerta para esses perigos. O perigo número um, escreve, é o facto de presentemente os Estados Unidos não terem um outro país com o qual se vejam na necessidade de competir. De facto, desmembrada a União Soviética -- a grande rival e concorrente do período denominado de Guerra Fria --, os EUA vêem-se isolados na frente, muito na frente em matéria de poderio militar e hegemónicos em diversas outras áreas. A necessidade de "um outro", de um émulo verdadeiro, sempre foi o que encontrámos na grandeza do Superhomem, a ter de combater contra inúmeras e aparentemente imbatíveis forças do mal. O émulo possuidor de uma super-inteligência maligna foi também o que invariavelmente encontrámos nas aventuras de Batman. Superando-se sempre, fazendo uso de todas as suas energias visíveis e ocultas, tanto o Superhomem como o Batman acabavam naturalmente por vencer. Outros perigos estariam entretanto prontos para surgir no horizonte...
Ao identificarem-se com estes heróis e tantos outros, os americanos fortaleciam-se e auto-educavam-se: era preciso lutar continuamente, o mal espreita a cada esquina e baixar os braços é o maior de todos os pecados. A velha máxima latina "altius, fortius" -- mais alto, mais forte -- era posta em execução prática. A banda desenhada, os livros, os filmes tornaram-se livros de autêntica doutrinação, deixando porventura indelevelmente gravada no cérebro de muitos cidadãos americanos a necessidade de lutar e mostrar a sua excelência.
Tão importante como este aspecto era a necessidade de união. Dificilmente haverá países que careçam mais de espírito de união nacionalista do que a América, criada na base de emigrantes provindos de todas as partes do globo. Essa união cimentou-se na diversidade assumida e no objectivo comum de emulação contra os concorrentes, entre os quais estão os agentes do mal.
Presentemente, a própria hegemonia mundial dos Estados Unidos vira-se contra a nação. Erros de apreciação e decisões demasiado egoístas e materialistas tornaram o país na nação mais odiada do planeta. Marcas comerciais americanas, como a Nike, Reebok, McDonald's e outras têm-se ressentido nas suas vendas da má imagem do país. Internamente surgem dissenções. A recente vitória de Bush não esconde que opiniões encarniçadamente contrárias dentro do país são defendidas por cerca de 48 por cento do universo dos votantes. E falta algo crucial: um "inimigo" que estimule o desenvolvimento da nação, que a leve a lutar para se tornar sempre "mais alta e mais forte". O Iraque, ou mesmo numa visão mais lata, todo o "eixo do mal", não são competidores reais. São elementos desgastantes, dispendiosos, mas não concorrentes. Há um número demasiado grande de gente pobre a ser sacrificada. No caso do Iraque já cerca de cem milhares de pessoas morreram. Para que tenhamos uma ideia comparativa, tomemos dois dos nossos recentes estádios, o do Porto e o do Sporting, cheios a abarrotar de homens, mulheres e crianças iraquianas. Depois, fechemos os olhos e imaginemos todas essas pessoas mortas. É algo que incomoda o próprio vencedor. Mesmo para a conquista de petróleo é um preço demasiado alto.
É a rivalidade que produz a união de esforços na medida em que define objectivos que todos entendem. Qual será à la longue o rival de que os Estados Unidos precisam? A União Europeia? A China? Dos dois o mais provável é sem dúvida a União Europeia. A guerra entre o dólar e o euro já começou há muito. Sob o ponto de vista militar, as diferenças entre os dois blocos são abissais. Mas sob o ponto de vista económico e educacional, os desníveis tendem a esbater-se.
Esta é uma história que está a fazer-se. Somos espectadores e intervenientes. Foi por esta razão e por outras que as eleições da passada semana nos interessaram tanto.

11/07/2004

América - Pontos de Vista

Duas religiões, duas formas de olhar a vida. Meados dos anos 80, Boston, Massachusetts. Casa da Cláudia e do Bill. O Bill é um democrata americano, moderadamente de esquerda. A Cláudia é nicaraguense, de família enraizadamente católica. Quando estive em casa deles, encantou-me um pormenor no seu pequeno jardim: uma caixinha rectangular de madeira, posta num pequeno pedestal, com um vidro na parte da frente. A caixa tinha uma finalidade específica: era nela que punham alpista para os pássaros que voavam por aqueles lados. Pousando no pequeno rebordo junto ao vidro por debaixo do qual deslizavam grãos de alpista, os passaritos iam ali alimentar-se com gosto. Alegravam também o jardim com os seus chilreios. Achei uma delícia e fiquei encantado com a ideia que, mal ou bem, considerei típica da sociedade americana. Admito que nunca tinha visto aquele sistema.
Tão encantado fiquei com aquela novidade que, de volta a Portugal, decidi pedir ao meu sogro, habilidoso em todos os trabalhos em madeira, para me fazer uma caixinha mais ou menos igual. Pintei-a depois, pus-lhe alpista dentro e pendurei-a no exterior da minha casa de Lisboa. Foi um prazer ver os passarinhos virem lá debicar a alpista que lhes era oferecida.
Anos mais tarde, em conversa com a Cláudia mencionei-lhe a caixa e contei-lhe que fora um dos encantos da minha estada nos Estados Unidos, terra onde aliás aprendera variadíssimas coisas. "Ah, a caixa ..." fez ela. Não mostrava o mínimo entusiasmo. "Já não a tenho!" Perante o meu espanto, explicou-me cordatamente que havia uma corrente muito forte na sociedade americana que era contra esse género de facilitismos. Por outras palavras: ao usar a generosa caixa no seu jardim ela estaria a facilitar demasiado a vida aos pássaros. Se um dia ela faltasse, se um dia mudasse para outro local, era possível que os passarinhos não soubessem ir procurar comida e ficassem confundidos, acabando por morrer à fome! As caixas eram, afinal, absolutamente contraproducentes. A fim de não ferir susceptibilidades e ouvir remoques eventualmente pouco simpáticos de amigos que fossem lá a casa, a Cláudia desfez-se da caixa e passou assim a contribuir conscientemente para que os pássaros aprendessem a lutar pela vida e a ganhar o seu pão.
Esta foi, para mim, mais uma lição da América. Os WASP (White Anglo-Saxon Protestants) mostram constantemente quem manda no país, quem diz o que é correcto e o que não é. Os católicos e os outros devem obedecer. A versão dos pássaros é, como se torna evidente, apenas o outro lado da educação a dar aos filhos; o incutir neles a noção do dever, da responsabilidade, da necessidade de procurarem ser independentes; é algo muito mais imperioso do que a bem intencionada e amparante caridade católica. O Puritanismo e o Catolicismo encontram-se em terras americanas, como se têm encontrado nesta imensa globalização que nos atinge em muitos lugares do planeta. Encontram-se e entram em confronto. Se os confrontos fossem apenas a propósito de pardalitos ...

11/03/2004

Jovens pacifistas

Apesar do conhecido slogan europeu "Bosch é bom, Bush é mau", os eleitores americanos votaram no "mau" com uma margem que lhe foi favorável por mais de 3,5 milhões.
Não consegui entender a posição dos analistas políticos que entreviram uma vantagem para Kerry no grande número de jovens que participaram nesta eleição. Ou eu estou enganado nas minhas premissas -- o que é possível, evidentemente --, ou os jovens adolescentes teriam toda a razão em votar Bush e não Kerry. É verdade que Bush defende a guerra, mas não é menos verdade que recusa o serviço militar obrigatório, contrariamente a Kerry. Consequentemente, com Bush só vai para o Iraque quem quer um emprego de risco mas relativamente bem pago. Com Kerry, nada garantiria aos jovens que não seriam eventualmente recrutados para servir a pátria num teatro de guerra estrangeiro. Entre as duas hipóteses, é fácil de imaginar que os jovens preferiram jogar pelo seguro. "A guerra do Bush pode ser má, mas desde que não seja para nós, tudo bem!"

11/01/2004

Conteúdos

Às feministas deste país -- que são, geralmente, mulheres inteligentes e batalhadoras -- gostaria de chamar a atenção para algo que possivelmente nunca notaram e que atesta, sem margem para dúvidas, a superioridade envolvente da mulher sobre o homem. Na língua mais falada do mundo, o inglês, o "he" está, de facto e naturalmente, dentro de "she". O mesmo "he" está, aliás, dentro de "her". E, como corolário, é indesmentível que "man" está dentro de "woman".

É aí que o homem se sente melhor: primeiro como bébé, mais tarde como adulto.

10/28/2004

Em silêncio

"Calado que nem um rato." Nestes últimos dias, Sant'Anna Slotes tem estado calado, como grande rato que é. Não deve demorar a zucrinar-nos os ouvidos, porém, com a sua verborreia que tem tanto de fácil como de contra-producente.

Culturgest

Alguns dos filmes-documentário apresentados na Culturgest têm sido uma maravilha. Creio que ainda continuam até ao final do mês.

Durinho

Não sei se foi de propósito. O certo é que os parlamentares europeus decidiram retirar "Durão" da forma como tratam o indigitado Presidente da Comissão Europeia. Deixaram-lhe ficar o "Barroso". Ora, a diferença entre os dois apelidos é enorme. Algo feito com barro não apresenta no geral grande consistência; embora possa ser duro, é facilmente quebrável e frágil. "Barroso" soa a qualidade de chão em que nos podemos espalhar, tal como "esbarramos" no barro molhado.
Julgando ir encontrar moleza nos que se opunham às retrógradas opiniões de um indigitado comissário "amigo do Papa" que consegue ser mais papista do que o próprio, Durão estendeu-se. Foi o Parlamento que afinal foi duro para com ele. Coisas que acontecem a quem anda à chuva...

10/24/2004

E depois

E depois, somos arrastados para escrever sobre política, como se esta política fosse todo o mundo. Que estreita mentalidade a nossa, que influência obsessiva dos media que nos circundam e encurralam! Sem o pressentirmos talvez, somos cada vez mais existência e menos essência.

10/23/2004

Os complexos do costume

Já cá faltava! O que me fere mais no texto sobre as SCUT que encontrei neste blogue é a frase"Quem diz que a direita não sabe fazer dinheiro?" Parece que se trata de uma atitude desconchavada fazer dinheiro! Como é que se vive? Das esmolas dos outros? Fazer dinheiro, criar riqueza é uma obrigação do homem. Melhorar o mundo. Foi para isso que Deus nos deu a capacidade de pensar e de agir. Não corresponder a esse desígnio é ir contra a vontade do Criador! Mas para quem é de esquerda o dinheiro surge como peçonha. Às vezes mais nas palavras do que nos actos, diga-se: as artimanhas e fraudes em que muitos elementos de esquerda são apanhados não confirmam a sua angelical inocência.
Enquanto os portugueses não entenderem a necessidade absoluta e a bondade da formação de riqueza, a nossa produtividade será baixa, os nossos objectivos quase nulos, e o país andará a passo de caracol, constantemente ultrapassado por outros que antes se quedavam bem atrás de nós e agora vivem bem melhor.
No caso das SCUT, mais uma vez a esquerda não estuda o assunto. Aliás, os negócios não lhe interessam. Só sabe ser invariavelmente do contra. Como se sabe, as SCUT foram construídas por sociedades privadas, com as quais o Estado contratou um pagamento que tem uma progressão em crescendo até 2011. Só a partir daí é que começa gradualmente a descer. Mas em 2031 -- imagine-se, daqui a 27 anos! -- ainda o Estado deve (ou deveria) estar a pagar a essas sociedades 171 mil milhares de euros/ano, o que é, mesmo assim, três vezes mais do que está a pagar neste ano de 2004. Pois bem. Em 2005, o custo das SCUT quintuplica (!) para o Estado. Em 2011 será (ou seria) cerca de 14 vezes superior ao de hoje!
A esquerda lança atoardas demagógicas, ataca a direita, mas sofre do grande problema de não saber fazer contas. Ainda bem que temos um Governo que não só sabe o que quer, como tem os pés bem assentes na terra e quer livrar os portugueses dos custos desmesurados que se aproximam, negociando primeiro com os privados e titularizando depois a dívida. Com quem circula nas SCUT aplica aquilo que é lógico: o princípio do utilizador-pagador. Assim este assunto das SCUT começa a fazer sentido.
Que diferença entre esta atitude e os soundbytes inconsistentes e de puro sloganismo atirados para o ar pelos auto-proclamados intelectuais de esquerda!

10/22/2004

Povo, eSCUTa, Sant'Anna está em luta!

Há tempos recordei aqui neste blog a infância de Sant'Anna Slotes e a sua incontornável tendência para os porquinhos-mealheiro (cf. azweblog Dezembro 2003). O certo é que estes jeitos de criança têm fortes probabilidades de se manter durante a idade adulta e, eventualmente, de se materializarem se a pessoa em questão detém o poder. É assim que o Casino de Lisboa vai para a frente, nos terrenos da EXPO. Quem lá mora vai gostar cada vez menos: escolheu o local pela sua beleza e recato, e apanha cada vez mais com visitantes e automóveis. O homem da Figueira-do-Casino vai assim conseguir para o seu sucessor na Câmara Municipal de Lisboa as moedas nos "slotes" que ele próprio sempre pretendeu.
Mas ser Primeiro-Ministro é mais, muito mais do que Presidente de Câmara. Daí que presentemente os voos sejam mais altos, embora o princípio seja basicamente o mesmo. Ei-lo agora a demonstrar a sua mentalidade de alguém que jogou muito Monopólio quando era rapaz e entendeu o real valor das empresas de serviços. Quem lá cai, paga. Nada melhor para isso do que as SCUT. Vão ser pagas pelos utentes. Que interessam as promessas passadas de outros governos às populações? Lança-se o anátema sobre os diabos socialistas e atira-se a promessa de Estado às malvas. O Governo assume o papel de detentor incontestável da verdade... e, já agora, de recebedor dos proveitos de portagens de norte a sul. Aos 1209 quilómetros de auto-estradas com portagem que hoje os portugueses já pagam, vão juntar-se 952 km. a partir de 2005. É o conceito do casino-sobre-rodas aplicado à escala nacional. Quem diz que a direita não sabe fazer dinheiro?
Entretanto, poucas pessoas estranharão que, em Janeiro próximo ou mesmo antes, se oiça o slogan de norte a sul: "Santana, eSCUTa, o povo está em luta!"

10/18/2004

O Princípio da (Im)prudência

Qualquer gestor sabe que existem princípios gerais de contabilidade aos quais é preciso atentar. De entre esses princípios -- todos importantes -- avulta um como possivelmente o de maior relevância: o da prudência. De facto, toda a gente entenderá que se um gestor decidir estimar, por valores irrealisticamente acima daquilo que o mercado pagará, um activo a alienar, a contabilidade da empresa fica claramente inflacionada nos seus activos, pelo que quebrará outro princípio importante: o da fiabilidade.
Esta questão vem a propósito do Orçamento de Estado para 2005. É um orçamento que contém algumas medidas correctas, que só pecam por não irem mais longe (v.g. cruzamento de dados, aumento da possibilidade de quebra do sigilo bancário, taxas mínimas de 15 por cento de imposto sobre a banca). Infelizmente, porém, baseia-se em premissas que provavelmente mostrarão não ser prudentes. Como 2005 é um ano de eleições autárquicas -- e este Governo acaba de demonstrar com o episódio dos Açores que gostaria de ganhar todas as eleições, a qualquer custo -- há que abrir os cordões à bolsa para contentar os eleitores. De há muito se sabe que a política é um dos grandes adversários da economia. Estamos perante mais um caso. E depois vêm as legislativas em 2006!
Enquanto o governador do Banco de Portugal prudentemente recomenda a continuação da contenção de despesas, este orçamento prevê baixa de impostos nalguns escalões do IRS e menor receita do IRC, além de aumentos na Função Pública. E como é que o Estado vai conseguir este brilharete se até agora tem andado a vender os seus bens para cumprir o Pacto de Estabilidade? Com pozinhos de demagogia?
Um dos grandes problemas das finanças do Estado é, como se sabe, o sector da Administração Pública, que engole a quase totalidade das receitas fiscais. Recordo a vez em que Marcelo Rebelo de Sousa admitiu ele próprio que isso resultava do número excessivo de funcionários que, ora como "boys" ora como "laranjas", eram injectados no sector pelos dois maiores partidos sempre que estão no governo.
Santana Lopes manda às urtigas o controlo do défice, que constituiu a grande prioridade de Barroso e Manuela Ferreira Leite. O Ministro das Finanças nega que isto seja verdade e parece que ele gostaria que não fosse assim, pois as consequências para o país são nefastas. Mas o conjunto do Governo, optimista e anti-tanga, considera que a retoma está aí apesar do elevadíssimo preço do petróleo, que afecta sobremaneira o desenvolvimento económico. E os senhores que presentemente gerem o país estimam que essa retoma se traduzirá num acréscimo de receitas provindas do IVA da ordem dos 7 por cento! Quem acredita que não se trata de um puro caso de "wishful thinking"? O ex-Presidente do BCE, Duisenberg, ocasionalmente em Lisboa, comentou que "quando o défice é um problema, cortar nos impostos nunca é uma medida sensata. Pode ser popular, mas derrota-se a si mesma."
Por outro lado, confirma-se oficialmente que Portugal ultrapassou o tecto de 60 por cento de dívida pública no PIB, contra o preconizado no Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC). Para onde vamos, se vamos por aqui? Ao que a democracia populista obriga! Quem paga a factura depois?

Spin doctors

Em 1776, após o fim da guerra contra os colonizadores ingleses e a consequente independência dos Estados Unidos, surgiu uma discussão importante entre os políticos: deveria manter-se o exército ou eliminá-lo, uma vez que a guerra tinha terminado? Os pacifistas que defendiam a eliminação do exército argumentavam que a existência de um corpo armado levaria, mais cedo ou mais tarde, a guerras. O exército manteve-se e alargou-se até. Como os profissionais dos conflitos armados gostam de se sentir úteis, as guerras surgiram de facto, dizimando índios e mexicanos e usurpando as suas terras.
Em Portugal, havia há uns anos atrás, se bem me lembro, dois ou três jornais desportivos, que se publicavam em dias não coincidentes. Por exemplo, o Record publicava-se à terça, o Mundo Desportivo à quarta, A Bola à quinta-feira. Desde que apareceram mais jornais desportivos e com periodicidade diária, a necessidade de eles justificarem a sua existência tem feito avolumar as desconversas e as intrigas, o "diz-se diz-se" que desaguisa tudo e todos em vez de fomentar a concordância.
Exagerando claramente em relação aos casos de muitos outros primeiros-ministros que este país tem tido, Santana Lopes fez-se rodear de um batalhão de assessores de imprensa, assessores de imagem e de marketing político. Spin doctors é o que não falta por aquelas bandas. Para justificarem a sua presença surgem coisas inauditas neste país, das quais valerá a pena salientar as duas mais recentes: 1. Uma campanha eleitoral sem precedentes do Governo da República nos Açores, que redundou num fracasso tão grande que apetece dizer --relativamente às 9 ilhas do arquipélago -- que "noves fora, zero". 2. Um comunicado que bate todos os recordes do ridículo, informando que, ao contrário do noticiado pelo "Expresso" de sábado, Sua Excelência não dormiu uma sesta após o debate parlamentar de 5ª feira passada!

10/17/2004

Amigo do coração

(Atrevo-me hoje a registar aqui dois textos, escritos há longos, longos anos, durante o período da guerra de África. Local: Angola.)

Quipedro, 25 de Março de 19..

"Cartas para namoradas levo-as aqui, no bolso da camisa. Bem junto ao coração!" Foi assim, jovialmente, que o alferes miliciano cuja companhia vim render a Quipedro aceitou a minha carta para pôr no correio em Luanda. E lá partiu, juntamente com o seu longo combóio de viaturas, ao lado do motorista num jipe que se embrenhou pela noite dentro e estrada fora rumo a uma Luanda que dista mais de 400 kms.
O mato tem destas coisas. Aqui em Quipedro, onde existem apenas as casas que são ocupadas pelos militares, não há posto de correio. Espera-se que venha uma avioneta trazer mantimentos, a qual depois levará a correspondência, ou então aproveita-se uma raríssima boleia por estrada de alguns dos poucos militares que por aqui se aventuram. É que a estrada é perigosa. Do alto das árvores que a flanqueiam ou de um morro próximo têm sido bastantes os ataques. Daí que nunca haja viaturas isoladas a fazer o caminho.
A vida continuou normalmente depois que as tropas rendidas por nós partiram. Os dias passaram. Chegou entretanto a notícia via rádio militar que a coluna dos nossos colegas tinha sido atacada. Havia um morto a registar. Foi notícia, mas tudo passou, a vida continuou a correr.
Hoje, porém, o choque foi terrível. Entregaram-me, juntamente com um embrulho de revistas alemãs como sempre enviado pelo meu bom amigo Klaus, um envelope de avião escrito pelo meu próprio punho. Vinha todo manchado de sangue. Era a carta para a namorada. O meu colega alferes oferecera-se de muito bom grado para me levar a carta, mas toda a sua simpatia e alegria naturais tinham sido cortadas cerce por um único tiro que uma nativo inimigo disparara. Os faróis acesos do jipe tinham denunciado claramente a posição do alferes. A bala acertara-lhe em cheio no coração e dera-lhe morte imediata. A visão da carta ensanguentada não me sai da cabeça. A linha da vida, tão ténue! Vou queimar o envelope, sem o abrir, e não vou mencionar o caso para Lisboa. Quanto ao meu colega, só sei que se chamava Luiz. Conhecemo-nos muito pouco tempo. Contudo, atendera o meu pedido como se fosse um amigo do coração!

Amor à terra

Quiçama, 15 de Novembro de 19..

Além, naquele plano, começou há dias a desmatação. Recordo-me dos mil arbustos que lá se erguiam, de todo o emaranhado de cipós, do capim alto que se vergava sobre a picada. Três mulheres trabalham sob os ardentes raios de sol que as nuvens, piedosamente, encobrem a intervalos irregulares. Catana na mão direita, vão desfechando golpes mecanizados sobre as lianas que o gume afiado da alfaia não poupa. Aparentemente não se cansam. O rosto aparenta o rítus iniludível da resignação total, da vida que é dor. Mas o suor escorre-lhes pela face e pelos braços. Moscas zumbem à volta delas, prontas a pousar e a picar. Cada uma das mulheres traz um filho às costas. Bem anichados entre o pano e as costas, os bébés, embalados pelo constante vai-vém, pelo ritmado dobra-endireita, dormem. De tempos a tempos, quase que inconscientemente, as mães aconchegam-nos melhor contra o dorso.
Demorará ainda vários dias a desmatação. Dará muito trabalho. Mas, ao fim, a terra ficará preparada para a nova plantação de algodão.
Foi o monitor que indicou aquele local. Não se preocupou com mais nada. Os tractores, que a Companhia algodoeira possui, bem poderiam num dia ou dois trabalhar toda aquela terra. Evitar-se-ia aquele cansaço incrível para o nativo que não geme, ajudar-se-ia a levantar o povo, que teria ânimo para outras tarefas. Ver-se-ia o negro sorrir! Assim, as poucas energias que a sua subalimentação lhe confere são ingloriamente esbanjadas ali no roça-mato.
Mas a algodoeira não desgastará o material dum tractor. Economizará combustível = dinheiro. Não terá de pagar a um assalariado tractorista. Não dará maus exemplos.
E, dirá o experiente monitor, o algodão vem ao mesmo preço o quilo. "Sabe, assim eles até ganham mais amor à terra!"

Esquerda, volver!

Como era de prever, o meu texto provocou comentários de curiosidade e algumas reacções. Reacções naturais contra alguém que não comunga dos ideais da esquerda, mas nem por isso deixa de amar o seu semelhante e o seu país. É interessante verificar que, como julgadora do seu próprio estatuto, a esquerda se revê como possuidora da intelectualidade, inspiradora de numerosas virtudes, deixando para a direita a materialidade e mesmo a boçalidade. Contudo, apesar das suas imensas auto-proclamadas virtudes, sempre que está no governo a esquerda não demonstra infelizmente essas mesmas virtudes. Os eleitores não hesitam em puni-la e entregar o poder a quem sabe construir riqueza. É que sem riqueza é mais pesado o fardo da vida. Como dizia uma conhecida escritora francesa, "Podem dizer que o dinheiro não interessa, mas quanto a mim prefiro chorar num BMW a chorar num autocarro!"
Os blogs são predominantemente de esquerda. É uma constatação fácil. Neste, que inclui também alguns esquerdóides mas moderados e democráticos, existe alguma diversidade. Co-existimos bem.
O meu tema anterior era o da lamúria constante de protesto contra os governantes. Só se sabe dizer mal. Ora, quem só diz mal nem é construtivo nem é sincero. A oposição pretende basicamente que o Governo do Dr. Pedro Santana Lopes caia para que ela lá se instale. É tudo uma questão de poleiro, não de rumo para a nação. Veja-se o posicionamento de J. Sócrates na Assembleia da República 5ª feira passada. Em vez de apresentar as linhas-mestras de um contra-programa que fizesse sentido e fosse porventura coerente, J. Sócrates, certamente inspirado no "Combate dos Chefes" (cf. Asterix), pôs-se a questionar a legitimidade do Primeiro-Ministro. Com isso pôs em causa, inadvertida ou conscientemente, o Presidente da República.
Quererei eu dizer que o actual Governo tem feito tudo bem? Claro que não. "Errare humanum est" e, por exemplo, o episódio do início do ano lectivo nas escolas básicas e secundárias foi muito triste e sintomático da necessidade de renovação de técnicos no Ministério respectivo.
É sempre mais fácil falar do que fazer. Os portugueses, notou um dia um nosso escritor-político, "ou se gabam ou se queixam, sendo que os mais dotados combinam as duas formas, conseguindo gabar-se quando se queixam ou queixar-se quando se gabam". Quando vejo muita esquerda a escrever e a falar, não sei porquê lembro-me desta frase. E lembro-me também, por contraste, de uma clássica expressão latina: "Res non verba".

10/14/2004

BASTA!

Não consigo calar mais esta revolta que sinto no peito. Faça o Governo o que quer que seja, ouvem-se logo cães a ladrar, atirando invectivas de toda a ordem ao Dr. Pedro Santana Lopes e a vários ministros. Sempre admiti para mim que a inveja era o mal que mais roía os portugueses. Tenho a triste confirmação desse facto no dia-a-dia. Quer se trate de mexer nos impostos -- mesmo que seja para baixar os que recaem sobre os mais desfavorecidos -- quer seja a questão das rendas que necessitam de ser revistas condignamente, quer seja os hospitais que estão (muito melhor) com gestão privada, ou ainda o esforço denodado que todos os membros do Governo patenteiam para aumentar a estabilidade deste nosso país -- logo se ouvem os mabecos a uivar, a protestar que tudo está mal. Pois é verdade que muita coisa está mal; por isso o nosso Governo, que em boa hora o Senhor Presidente da República empossou -- não indo na balela dos socialistas e outros esquerdistas que queriam, sem qualquer razão, eleições antecipadas -- tenta corrigir pontos fracos deixados por governos anteriores a 2002. Se se admite que Portugal necessita de dinheiro para cumprir tratados que assinou, se toda a gente concorda que os mais desprotegidos devem pagar menos, por que motivo vem essa choradeira pegada logo que o Governo fala em taxas moderadoras progressivas nos cuidados de saúde e em pagamentos nas SCUT? Será que são os pobres que usam automóveis nas vias rápidas? Será que querem que as classes mais baixas não possam ser atendidas nos hospitais por falta de verba? Abafa-me o peito todo este ror de injustiças contra quem nos governa. Faz-me bem desabafar!!

10/12/2004

Epitáfio nietzscheano

O Super-Homem é o homem que se supera.
Christopher Reeve igualou, na tragédia da sua carne viva, a grandeza do boneco que incarnou.
Parabéns.

10/11/2004

EXCELENTE CONSELHO!

Ontem, num comício açoreano, o nosso charmoso P.M. perorava (mais ou menos) assim: «Quando forem votar, pensem nos líderes regionais, não nos líderes nacionais.»
É como se tivesse dito: Não pensem em mim!
E depois ainda acham que o homem é aldrabilhas e manipulador...
Cambada de tendenciosos!

10/07/2004

Estúpidos ou inteligentes?

Qual é a razão verdadeira por que tantos europeus estão contra Bush, enquanto os seus concidadãos se preparam para o re-eleger? Será que os europeus são mesmo mais inteligentes do que os americanos, ou apenas se crêem mais inteligentes? Para formular uma possível resposta a esta questão, vejamos algo que nos é mais próximo e bem conhecido.
Recordemos o caso de Alberto João Jardim. Os continentais adoptam perante o dinossáurico governante da Região Autónoma da Madeira uma posição semelhante à que os europeus tomam perante os americanos: total incredulidade ante o "desatino" dos madeirenses em colocar o seu voto -- ainda por cima secreto -- a favor do controverso Alberto João. Será que os continentais são mais inteligentes do que os madeirenses?
A resposta parece-me muito semelhante à que é válida para Bush: seja através da manipulação da informação, seja por factos concretos, a maioria da população local sente que os benefícios que resultam da actuação do seu Presidente superam em muito eventuais desvantagens. Contudo, para todos os outros que vêem, de longe e incrédulos, as sucessivas re-eleições, não existem praticamente nenhumas vantagens. Em contrapartida, as desvantagens são inúmeras. No caso específico de Jardim, o continente vê-se sugado de fundos a favor de um ditador insular que ainda por cima trata os continentais com enorme desprezo. No que respeita a Bush, a Europa vê com apreensão declarações bélicas, actos de terrorismo que a podem atingir, e afirmações que contêm conceitos venenosos como "velha e nova Europa". Como poderiam os europeus, no seu conjunto, apoiar Bush se dele não colhem quaisquer benefícios?
Esta não é, obviamente, a visão de muitos eleitores dos Estados Unidos. O super-homem é americano e a super-nação tem que se mostrar super perante o mundo, distinguindo-se das demais e iluminando-as com o seu facho civilizacional. Tendo em consideração que se prevê que fontes naturais de energia, nomeadamente de petróleo e gás, essenciais para a manutenção dos negócios e da economia americana, irão escassear por alturas dos meados deste século, torna-se estrategicamente mais do que justificado que o governante máximo dos Estados Unidos queira ter as reservas principais desses combustíveis sob seu controlo. Se estão em território de Alá, apenas há que encontrar a melhor maneira de subjugar as populações através da máquina militar mais poderosa do mundo. Bush está portanto a fazer algo que, à luz do futuro dos Estados Unidos, representa um claro benefício para os cidadãos que têm a vantagem de possuir um passaporte americano. Acredito que muitos portugueses há vários anos residentes nos EUA e hoje já cidadãos americanos votem Bush nas próximas eleições.
A maioria das pessoas rege-se pelos seus interesses, presentes e futuros. Talvez não devêssemos estranhar tanto as re-eleições quer de Jardim, quer de George W.

10/06/2004

P'ra melhor, está bem, está bem

O preocupado Presidente Sampaio quer que o país se auto-reforme. Não se lembra das velhas palavras de Miller Guerra na Assembleia sobre a universidade: "As faculdades tradicionais não se auto-reformam"? Pensando bem, com partidos destes no governo, talvez seja melhor não haver mesmo reformas. É que corremos o risco de nos transformarmos naquilo que Bush diz que o seu país é: uma democracia (ao seu estilo). Que horror!

Laranja à jardineira

Que ingenuidade a minha! Quando julgava que o Professor Marcelo ia dizer que a questão do que ele dizia ou não se resumia a si próprio e à estação privada de televisão que lhe tem proporcionado a tribuna, eis que temos a sua demissão. O boato do fim-de-semana acabou por se materializar e atingir o próprio professor. Quem diria que o controle da verdade por parte do maior partido do governo estava tão activo? Parafraseando Henry Ford, o PSD não tem dúvidas: "Pode dizer o que quiser, desde que diga bem de nós."
Assim, mesmo em cima do 5 de Outubro e das palavras do Presidente da República sobre a poderosa influência dos lobbies, ficamos perfeitamente convencidos de que, quando os lobbies uivam, a coisa fica mesmo preta. O programa político do PSD no que respeita ao controlo da informação continua em marcha. "Patos com laranja à jardineira" é a versão continental de um já conhecidíssimo menu madeirense. Os "patos" somos nós, bem entendido.

Censurado

Constou no passado fim de semana que qualquer filiado do PSD eventualmente apanhado a ouvir o Professor Marcelo na TVI incorreria em processo disciplinar movido pela direcção do partido. Cuidado! A laranja mecânica está actuante!

Imaginação de alto risco

A quem é que se aplica como uma luva o conhecido dito "Nada há de mais perigoso do que um incompetente criativo no poder"?

Brevíssimo balanço de um ano de actividade

Com a finalidade de recuperar dois textos que, em data incerta, inseri no blog, tive há dias o prazer de vasculhar os nossos arquivos, agrupados por meses desde Setembro de 2003. Foi um prazer fazê-lo, basicamente por duas razões: a primeira por ter re-encontrado textos vários de colegas bloguistas que não só têm interesse como são inteligentes e estão bem escritos; a segunda por constatar o apuro tecnológico do arquivo, que constitui uma verdadeira pérola e implica com toda a justiça uma palavra de apreço e agradecimento a Sete-Sóis.
No editorial introdutório do blog que, após reunião informal de vários dos membros à mesa de um café, fui encarregado de escrever, existe uma referência à variedade de assuntos (de A a Z), à ex-pressão de ideias e à comunicação entre pessoas. No que respeita à variedade temática, ela tem certamente sido apanágio do blog, que vem incluindo múltiplos comentários sobre a actualidade política, económica e social, tem apresentado pequenos contos originais, estórias da história, citações, aqui e ali um poemito, recomendações de livros, de filmes, concertos e espectáculos vários. Algo surpreendentemente talvez, sendo muitos dos membros do blog docentes, pouco se tem falado de ensino propriamente dito. O esteio das Sugestões do João Ratão tem constituído uma verdadeira coluna dorsal, decisiva sempre que a falta de tempo, a avaria técnica de um computador ou a falta de inspiração dos bloguistas faz com que não apareçam novos textos.
Onde, com alguma mágoa, notei menor concretização dos nossos propósitos iniciais foi na comunicação inter-pessoal, especialmente por parte dos nossos convidados -- que são todos os que navegam nestes ares. Não me agradou, ao olhar para vários textos apelativos e provocatórios redigidos por companheiros do blog, ver que, na caixa dos "Comentários", existiu frequentemente um desapontante vazio. É aí que julgo compreender bem a Ariadne e a sua preferência pela conversa tertúlica olhos-nos-olhos, em que temas daquela ordem não escapariam a que alguém lhes pegasse e ripostasse. Há bonitos adejares de borboleta que mereciam muito mais. Faço mea culpa na parte que me toca. Tal como possivelmente sucederá a cada um de nós, não reagi tempestivamente a isto ou aquilo pelo mesmo motivo que nos leva inexplicavelmente a responder com atraso à carta ou e-mail de um bom amigo. Mas é pena!
O cômputo geral é, como todos concordarão, positivo. O número de visitantes não tem sido tão pequeno como isso, embora não seja minimamente comparável ao dos monstros mediáticos que por aqui também circulam, felizmente. Admito que já me seria difícil em determinadas ocasiões passar sem o blog. Foi uma aposta que valeu a pena! (A propósito, vamos fazer um outro jantarito para podermos falar um pouco melhor?)

10/05/2004

Imigração legal

Em 2003, o governo de Durão Barroso instituiu um sistema de quotas para imigrantes. Após aturados cálculos, definiu o número de 8500 novos imigrantes como a mão-de-obra necessária para 2004 e considerou o sistema "um instrumento decisivo para a regulação e estabilização das entradas em território nacional". Conforme a imprensa noticiou há dias, o total de imigrantes legalizados pelo sistema está muitíssimo aquém das expectativas governamentais (e também da oposição). Esse total é de... três imigrantes. Exactamente 1+1+1. Inicialmente, Van Zeller, presidente da CIP, considerou 8500 um número baixíssimo para a carência de mão-de-obra pouco qualificada. Presentemente, admite que muitas empresas tenham preferido usar imigrantes ilegais, sem contrato. E acrescenta que, em tempo de crise, os patrões "ligam pouco às leis".
Em que país estamos nós? Que Estado de Direito é este?
Eis que dias depois, no jornal "Público", o grande criador do sistema de quotas -- Barreiras Duarte, actual Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Presidência -- vem dizer-nos com a maior das canduras que "tanto o XV como XVI governos constitucionais são pioneiros na criação de uma verdadeira política global e coerente para a imigração". Pretendendo transformar o real fiasco das suas expectativas em vitória, afirma que é natural "que os empregadores prefiram contratar pessoas que já se encontram em Portugal e que têm reais e rápidas possibilidades de legalização em vez de recorrerem às chamadas "quotas", que implicam a vinda de mais imigrantes".
Que tremendos golpes de rins que estes governantes têm que dar! Julgam que estão a falar para papalvos que acreditam que os patrões até estão ansiosos por entregarem ao Estado os trinta e tal por cento de descontos legais, como contribuição sua e do trabalhador! Entretanto, quem fala em fiscalizar efectivamente os empregadores que usam mão-de-obra ilegal?
A hipocrisia não tem limites. A política está cada vez mais poluítica.

10/04/2004

Lei do Arrendamento Urbano - II

À primeira vista, o Hélder tem razão (ver comentário a "Lei do Arrendamento Urbano"). Só que justiça e injustiça são conceitos que contêm muito de subjectivo. Considerar injusta a discriminação de inquilinos é uma opinião perfeitamente defensável: um bem ou um serviço têm em princípio o mesmo custo para todos, independentemente de quem os adquire ou utiliza. Por esse motivo, o tarifário de reparação de um automóvel, por exemplo, assume o mesmo valor para um pobre, um rico, uma pessoa idosa ou um jovem.
Já há largas décadas, porém, que a habitação é vista entre nós como algo à parte. Se essa óptica está certa ou errada é um julgamento subjectivo. Uma coisa é certa, todavia: foi o Estado quem elaborou e aprovou as leis do arrendamento, não os inquilinos. Os construtores estão naturalmente há muito informados da legislação, embora muitos proprietários tenham sido apanhados de surpresa com algumas medidas pós-25 de Abril de 74.
Bem ou mal, a sociedade portuguesa tem considerado ser a idade de 65 anos o limiar da reforma (possível) de uma pessoa. (Poderia ser 70 ou mesmo 75 anos.) A reforma é vista como o período em que uma pessoa cessa a sua actividade laboral remunerada. Por este motivo, e devido à existência de cerca de 17 por cento de reformados que são votantes, existem descontos em vários tipos de transporte, entradas em museus, férias, remunerações especiais em certos tipos de contas bancárias, etc.
Como o Estado -- bem ou mal -- tem tutelado o mercado da habitação, o Governo determinou no presente projecto de lei que não poderia abandonar essa tutela, pois a liberalização total das rendas acarretaria uma forte probabilidade de criar condições para derrube do próprio Governo. Esta mesma mensagem foi, aliás, transmitida aos representantes dos senhorios que, embora pretendessem uma maior desregulamentação, compreenderam o cenário.
Embora tenha colocado as pessoas com mais de 65 anos num lugar à parte, o Governo não as considerou cegamente. Dividiu-as em dois grupos, consoante os seus rendimentos. Isto significa que o grupo com maiores rendimentos verá as suas rendas aumentadas substancialmente, embora não liberalizadas.
A habitação é referida na Constituição Portuguesa -- bem ou mal -- como um direito. Os automóveis não são nela expressamente referidos, nem os iates, os produtos alimentares, nem tão pouco as viagens. A habitação representa, de facto, algo particular. Por isso, o direito de propriedade dos senhorios é -- tem sido -- condicionado de várias formas. É óbvio que a situação das rendas é difícil de gerir e terá sempre duas perspectivas: a dos proprietários e a dos inquilinos. O caso apresentado -- um inquilino de 78 anos e outro de 60 a pagarem rendas bem distintas por um bem semelhante -- seria ainda mais chocante se as suas idades fossem respectivamente de 65 e de 63. Contudo, "a prazo estaremos todos mortos", como Keynes gostava de lembrar. O inquilino de 78 anos, que não continuará a pagar 25 contos mensais mas talvez 80 ou 90 se tiver rendimento superior a cinco salários mínimos, não terá decerto muitos anos de vida. A sua casa ficará devoluta e passará a ser regida pelas leis do mercado. O inquilino de 60 anos está possivelmente activo no seu emprego e vai ter de cortar nalgumas das suas despesas ou recorrer a economias que entretanto se espera tenha feito. Pessoalmente, discordo da liberalização total da renda e advogo a existência de um tecto (baseado num múltiplo da renda actual).
Infeliz ou felizmente, um dos grandes problemas de quem governa -- seja uma empresa, uma instituição, uma autarquia ou um país -- é a sua impossibilidade de fazer tabula rasa do que encontrou. Existe toda uma realidade que vem de trás, recheada por vezes de marcos culturais com os quais não se concorda. É a vida!

10/03/2004

Vim há pouco do teatro, e era suposto estar bem disposta. Mas não estou.

Tentei em vão fingir que o que presenciei não tinha importância de maior, era apenas uma cena infeliz, mas, na verdade, tem importância, e muita.

Refiro-me às manifestações do público durante o espectáculo. Se já achei de um tremendo mau gosto que, mesmo sem réstia de humor, se rissem desbragadamente a cada frase acabada com a palavra ?porra? ou similar, achei inqualificável o riso geral da assistência perante a violência física exercida pelo protagonista sobre a sua amante, numa cena de clímax emocional, que nada tinha de cómico: ele, um escroque, tentando à força de pontapés e palavrões fazê-la sua cúmplice no negócio criminoso e chorudo que preparava?

Veio-me de imediato ao espírito aquela outra cena televisiva de há anos, em que o público se riu alarvemente quando a deputada Odete Santos declamava, com grande sentimento, que à Luísa que sobe a Calçada de Carriche, ?saltam-lhe os seios na caminhada?? Na altura, tamanha demonstração de boçalidade envergonhou-me. Infelizmente, neste campo nada mudou desde então.

Não me espanta o riso do público, se pensar nas estatísticas da violência doméstica e na brandura com que são aceites, no voyeurismo obsceno que os telejornais diariamente alimentam, nos índices de audiência dos programas televisivos, para não ir mais longe. Não me espanta, mas choca-me.

Com alguma angústia me pergunto que espécie de país é este que deixarei aos meus filhos. E quem são estes seres, meus compatriotas, que amanhã vão votar decisões importantes para a vida de todos nós.

Baixámos três lugares no ranking de desenvolvimento humano do relatório da ONU. Sem que descortine sinais de mudança, temo que a vulgarização e massificação da boçalidade - parceiros privilegiados dos convencionais índices aferidores do subdesenvolvimento - ainda nos levem mais longe.

Vim há pouco do teatro, e era suposto estar bem disposta, Mas não estou.

10/02/2004

Relatório do Desenvolvimento Humano 2004


Estava eu à procura de mais informação sobre o Atlas da Globalização do Le Monde Diplomatique no infinito ciberespaço quando encontro o Relatório do Desenvolvimento Humano de 2004 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Aconselho a sua LEITURA (ficheiro PDF) pois tem informação muito interessante e com algumas novidades em relação ao ano anterior.

Portugal apresenta o mais baixo Índice de Desenvolvimento Humano entre os quinze países que constituíam a União Europeia antes do alargamento.
O nosso país caiu três lugares, para o 26º, no ranking mundial de desenvolvimento humano.
Segundo o relatório, o índice de desenvolvimento humano português aumentou mas foi insuficiente para se manter na 23ª posição que ocupava em 2003.
À frente de Portugal ficaram, este ano, a Grécia, Singapura e Hong-Kong.
No caso da Grécia, a evolução mais favorável que a portuguesa esteve relacionada com um maior crescimento do PIB per capita.
No primeiro lugar do ranking do Índice de Desenvolvimento Humano manteve-se, pelo quarto ano consecutivo, a Noruega.
A Suécia, outro país do Norte europeu com enormes tradições em termos de qualidade de vida, subiu da terceira para a segunda posição.
Países como os EUA, o Japão ou o Reino Unido situam-se, respectivamente, na oitava, nona e décima segunda posição.
O país mais rico do planeta, medido pelo PIB per capita, o Luxemburgo, ocupa apenas a décima quinta posição. Isto porque, apesar do elevado rendimento médio por habitante que possui, e que é mais do triplo do português, apresenta níveis de educação e de esperança de vida à nascença bastante inferior aos países de desenvolvimento humano mais elevado.
Neste relatório, são analisados, para um universo de 177 países (mais 2 que no ano anterior), um vasto conjunto de indicadores de desenvolvimento humano.
A classificação mundial surge assim ordenada (indicando, para efeitos comparativos, o índice do ano anterior e correspondente posição na tabela geral):

1. Noruega - 95,6 / 94,4 (1)
2. Suécia - 94,6 / 94,1 (3)
3. Austrália - 94,6 / 93,9 (4)
4. Canadá - 94,3 / 93,7 (8)
5. Holanda - 94,2 / 93,8 (5)
6. Bélgica - 94,2 / 93,7 (6)
7. Islândia - 94,1 / 94,2 (2)
8. EUA - 93,9 / 93,7 (7)
9. Japão - 93,8 / 93,2 (9)
10. Irlanda - 93,6 / 93,0 (12)
...
26. Portugal - 89,7 / 89,6 (23)
...
55. Antigua e Barbuda - 80,0 / 79,8 (56)
56. Bulgária - 79,6 / 79,5 (57)
...
141. Camarões - 50,1 / 49,9 (142)
142. Paquistão - 49,7 / 49,9 (144)
...
177. Serra Leoa - 27,3 / 27,5 (175)


10/01/2004

Lei do Arrendamento Urbano

Como a entendo, a lei do arrendamento urbano tem três objectivos principais: um, semi-oculto: aumentar as receitas do Estado. Outro, declarado: recuperar o parque habitacional. O terceiro é subentendido: servir a clientela política governamental.
Dito isto, admitir-se-ão com facilidade três questões: 1. Esta era uma reforma cuja necessidade se fazia sentir. 2. O Governo mostrou grande coragem ao enfrentar o problema. 3. O Governo tem sido hábil na passagem da informação. A protecção às famílias de recursos mais fracos e aos mais idosos constitui uma sábia almofada para o choque social que inevitavelmente se fará sentir.
Na impossibilidade de tratar com brevidade um assunto tão complexo, limito-me a dois reparos apenas:
1. Depois de o Estado ter servido durante tantos anos de anjo da guarda dos inquilinos, o facto de ele consentir que muitas rendas antigas se liberalizem totalmente é como escorraçar um animal do protegido jardim zoológico para a selva. Não seria aconselhável criar um plafond? À guisa de exemplo, acredito que haverá muitos senhorios a substituírem um casal de inquilinos por grupos de imigrantes, assim auferindo uma renda substancialmente mais elevada.
2. Os inquilinos com mais de 65 anos ficam, de forma socialmente correcta, com renda de base condicionada. Porém, em caso de morte dos inquilinos arrendatários, se as respectivas viúvas não tiverem atingido ainda os 65, a casa ficará sujeita a renda livre. Ou seja: quando os rendimentos dessas viúvas ficam diminuídos, as suas despesas aumentam e elas ficam mesmo sujeitas a uma acção de despejo. Que protecção familiar é esta? Trata-se de uma verdadeira situação de injustiça, a corrigir urgentemente.