11/25/2004

O artigo do Peter Pan fez-me lembrar um episódio passado há uns tempos, porque também mete santos. Só que neste caso, e ao contrário do que sucede no dito artigo, por pouco a hagiologia não ficava desfalcada de uns quantos membros, não fora o prestimoso empenho profissional de um desconhecido mestre de obras bracarense?
Há dois ou três anos, chegou à minha caixa de correio electrónico um estranho pedido de um colega de trabalho. O estranho não era o envio de uma factura para que sobre ela eu emitisse um parecer com vista ao seu pagamento, já que isso fazia parte das minhas atribuições profissionais. O estranho era a factura propriamente dita. Dizia respeito a trabalhos efectuados numa capela do Bom Jesus de Braga, e rezava assim, ipsis verbis:

FACTURA
1º. - Por corrigir os dez mandamentos, embelezar o Sumo Sacerdote e mudar-lhe as fitas ... 170 rs.
2º. - Um galo novo para S. Pedro e pintar-lhe a crista ... 80 rs.
3º. - Dourar e pôr penas novas na aza esquerda do Anjo da Guarda ...120rs.
4º. - Lavar o creado do Sumo Sacerdote e pôr-lhe suíssas ... 160 rs.
5º. - Tirar as nódoas ao filho do Tobias ... 95 rs.
6º. - Uns brincos novos para a filha de Abraão ... 245 rs.
7º. - Avivar as chamas do inferno, pôr um rabo novo a um diabo, fazer vários consertos, limpar as unhas e pôr uns córnos ao diabo mais velho 370 rs.
8º. - Fazer um menino ao colo de Nossa Senhora ... 210 rs.
9º.- Renovar o Céu, arranjar as estrelas e lavar a Lua ... 130 rs.
10º.- Retocar o purgatório e pôr-lhe almas novas ... 335 rs.
11º.- Compor o fato e a cabeleira de Herodes ... 30 rs.
12º.- Meter uma pedra na funda de David, engrossar a cabeleira de Tobias e alargar as pernas de Saúl ... 93 rs.
13º.- Adornar a Arca de Noé, compôr a burrica do Filho Pródigo e limpar a orelha esquerda de S. Tinoco ... 23 rs.
14º.- Pregar uma estrela que caiu aos pés do côro ... 23 rs.
15º.- Umas botas novas para S.Miguel e limpar-lhe a espada ... 255 rs.
Soma tudo ... 2.474 rs

Devo confessar que me vi em enormes dificuldades para satisfazer o pedido do meu colega, já que em quase trinta anos de carreira nunca se me tinham deparado problemas como alguns dos que aqui se levantavam! Não tive, no entanto, outro remédio senão analisar detalhadamente o conteúdo da factura, após o que enviei ao meu colega a seguinte resposta:

Caro Colega:
Acuso a recepção da factura que me enviou, a qual visarei com todo o gosto tão cedo obtenha dados relativos a naturezas de trabalho que, em vinte e muitos anos de profissão, confesso nunca ter posto em obra. Para que fique com a ideia de que não será um pagamento a preços correntes de mercado, mas sim por valores que, à partida, podem parecer elevados, gostaria de lhe referir desde já as inúmeras dificuldades que surgiram no decurso da obra, as quais terão forçosamente que ser tidas em conta aquando do pagamento. Assim:

1. Corrigir os dez mandamentos, embelezar o Sumo Sacerdote e mudar-lhe as fitas:
Terei que confirmar nas folhas diárias de registo dos trabalhos o tempo que levou corrigir os dez mandamentos. Lembro-me que deram um trabalho imenso, não só por serem dez, mas também porque, a julgar pelo conteúdo, o Criador devia estar distraído quando os ditou a Moisés... Então no que diz respeito ao tal da mulher do próximo, nem imagina como foi difícil arranjar mão-de-obra para o executar!

2. Um galo novo para S. Pedro e pintar-lhe a crista:
O galo novo para o S. Pedro foi outro problema. Para azar, a Rosa Ramalho não constava do nosso Manual de Qualificação e Avaliação de Fornecedores. De outra forma ter-lhe-íamos adjudicado o seu galo de crista tão bem colorida, e com pintura de fábrica, sempre de melhor qualidade do que as pinturas feitas em obra. Sem falar na grande vantagem que teríamos no preço, dada a baixa incidência do custo de transporte ( Braga e Barcelos são relativamente próximos, como sabe).

3. Dourar e pôr penas novas na aza esquerda do Anjo da Guarda:
As penas novas para a asa esquerda do Anjo da Guarda foram muito fáceis de obter, mas iam originando um conflito laboral: aproveitei uma distracção do meu, e saquei-lhe algumas. Acontece que ele se sentiu tão lesado que ameaçou rescindir o contrato de vigilância que assinou comigo, e ainda por cima pedir-me indemnização por perdas e danos... Sabe como é, Colega, se ele tem mesmo ido para a rescisão do contrato, como convenceria eu a Administração a arranjar substituto? Enfim, consegui dar-lhe a volta lembrando-o de que ainda há relativamente pouco tempo pisei numa obra um prego enferrujado e ia apanhando um tétano por incúria dele, que está contratado para me guardar e andava desenfiado. Além de que nem tinha previsto essa situação de risco no Plano de Segurança e Saúde da obra!
Só por esta razão o empreiteiro apresenta apenas um custo de 120 reis: não fora eu a fornecer o material, e a conta ia por aí acima.

4. Lavar o creado do Sumo Sacerdote e pôr-lhe suíssas ...
Quanto a lavar o criado do Sumo Pontífice e tirar as nódoas ao filho de Tobias, no problem: qualquer franchizada «cinq -à- sec» resolve a questão com eficácia. Difícil mesmo foi embelezar o Sumo Sacerdote! Entre colegas, lhe direi que receio bem não haver solução técnica para o caso. Que o divino Dono de Obra me perdoe, mas com aquela idade, a rodagem a que tem estado sujeito, e ainda por cima uma Halzeimer, não há empreiteiro nem novas tecnologias que lhe valham! De resto, o seu custo está completamente amortizado.
160 reis e mais 93 reis para pôr suíças ao Sumo Sacerdote e dar um jeito à cabeleira de Herodes parece-me um pouco exagerado. Mesmo sabendo, como sei, que o trabalho esteve interrompido durante uns dias, com a equipa toda parada, à espera que o assessor de imagem do Sumo Pontífice desse parecer sobre as suíças especificadas no Caderno de Encargos e confirmasse estarem as mesmas em conformidade com a norma ISO 9001. Ainda que nestas verbas estejam também incluídas a funda nova para o David e, sobretudo, que se trate de suíças para o Sumo Pontífice, e não de umas quaisquer suíças não homologadas, acho o preço um pouco exagerado. Talvez seja de solicitar esclarecimentos, exigindo o envio da tabela horária da equipa do barbeiro, incluindo ajudas de custo e IVA. (Refiro as ajudas de custo, não vá tratar-se do de Sevilha, caso em que a deslocação e as diferenças cambiais podem ter significado).

5. Não referirei coisas como os brincos novos da filha do Abraão, avivar as chamas do inferno, adornar a arca de Noé, almas novas para o purgatório, etc, etc,. Executaram-se sem dificuldades de maior, se bem que teria sido muito mais fácil encontrar almas novas para o inferno do que para o purgatório, mas enfim...

6. Fazer um menino ao colo de Nossa Senhora
Para fazer um menino ao colo de Nossa Senhora aconselhei o Empreiteiro ao recurso a outsourcing. Sabe, é que o Empreiteiro tem um bom quadro de pessoal, mas nem todos se adaptam a certos trabalhos... O meu conselho revelou-se oportuno, já que o objectivo não podia ter sido mais conseguido: o menino saiu com tão bons acabamentos que o Empreiteiro acabou por contratar para a empresa o mocetão espadaúdo responsável pelo trabalho, o qual tinha, até aí, um emprego sazonal lá para o Algarve.

7. A verba de 23 reis referente ao trabalho de pregar a estrela caída ao pé do coro diz respeito apenas à deslocação da equipa do montador de andaime. Pensou-se fazer este trabalho com andaime autoportante, mas o IDICT não autorizou. Mesmo sendo no coro, não foi em cantigas: achou preferível o dono de obra contentar-se em ficar com uma estrela cadente.

8. Avivar as chamas do inferno, pôr um rabo novo a um diabo, fazer vários consertos, limpar as unhas e pôr uns córnos ao diabo mais velho:
Como se constata, esta é a verba mais significativa de toda a factura. E, efectivamente, há razões para tal. Para começar, foi um enorme problema arranjar um rabo em bom estado para o diabo. Todos os que se encontraram no mercado eram já chamuscados. Sabe como é, quem o tem novo, chama-lhe seu?
Pôr uns cornos ao diabo mais velho foi outro trabalho complicadíssimo, que requereu reforço da estrutura de suporte e equipamentos especiais de transporte e elevação, dado o peso dos mesmos. Mas também, houve aqui uma certa azelhice do empreiteiro, que preferiu, em nome da transparência e lisura do processo de selecção, não consultar para esta subempreitada a mais eficiente empresa da especialidade, atendendo a que a proprietária é mulher do dito diabo.

Após todas estas explicações estou certa, meu caro colega, compreenderá melhor as dificuldades surgidas na realização dos trabalhos, e verá por que razão darei o meu parecer favorável ao pagamento da factura, que lhe será devolvida tão depressa eu receba do Banco de Portugal a tabela de conversão de reis em euros.
Os meus cordiais cumprimentos.

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