11/16/2004

América III - A questão religiosa nas eleições

Sabemos que as primeiras vagas de famílias europeias que rumaram para o Novo Mundo se ficaram a dever em grande parte a motivos religiosos, aos quais um espírito indiscutivelmente empreendedor acrescentou aspirações de uma vida económica e socialmente melhor. Cedo, homens de cepa puritana falavam da sua nova terra como "cidade no alto de um monte", "farol que tudo ilumina". Ora, a visão mitificada deste conceito, despido de mácula e prenhe de missão a desempenhar -- a missão do homem no mundo, continuando a obra de Deus -- foi algo que o núcleo duro da sociedade americana enraizou. Consoante o tipo de governo ("Administração") e a envolvente mundial, aquela visão tem tido os seus pontos altos e baixos. Presentemente, está a atravessar um período de alta.
Ser católico nos Estados Unidos é muito diferente de ser católico em Portugal. Num país monobloco sob o ponto de vista religioso como o nosso, o catolicismo é relativamente pouco pensado e debatido. Há falta de adversários reais. Nos Estados Unidos, onde as diferentes religiões e os credos são numerosos, a diferença é vincada. Os católicos sabem porque o são; os metodistas conhecem as razões por que não são baptistas (por exemplo), os judeus mantêm os seus ritos distintos. Como oficialmente o Estado americano é laico, o dia mais significativamente comemorado pelas famílias não é o Natal, mas sim o Thanksgiving Day, celebrado no presente mês de Novembro. Neste Dia de Acção de Graças o povo agradece a um ente que é necessariamente diferente entre os membros da heterogénea população americana mas que, oficiosamente, é simbolizado pelo núcleo social dominante através da conhecida invocação "God bless America!".
Há muito que a condução dos negócios políticos americanos faz uso da religião. Quem não se lembra dos requisitos impostos por antigas Administrações dos Estados Unidos, que recusavam determinado tipo de auxílio a países que tivessem liberalizado o aborto? Em contrapartida, esses governantes americanos ignoravam verdadeiras ditaduras que cometiam crimes ignominiosos (desembaraçarmo-nos dos nossos inimigos pode ser justificado pela obtenção de um bem final, i.e. os fins justificam os meios).
Poderia pensar-se que os Dez Mandamentos da Lei de Deus fossem suficientes para o núcleo governante, que é cristão. Os mandamentos são importantes, sem dúvida, mas a grande clivagem entre protestantes e católicos reside no entendimento do mandamento número dois: "Amarás o próximo como a ti mesmo." O pensamento puritano tende, mentalmente, a acrescentar: "desde que esse próximo mereça a tua solidariedade." E quem decide desse merecimento?
É aqui que entra a luz do farol dos "missionários". Ser rico e virtuoso transformou-se no ideal americano. Numa visão calvinista que está na base do capitalismo, como Max Weber não se cansou de referir, é o próprio Deus que "aprova" a riqueza das pessoas e das nações. Deste princípio passa-se facilmente ao das pessoas e nações que mais se encontram nas boas graças de Deus. E entramos num ranking, se assim lhe quisermos chamar. É o darwinismo social. Num país como os Estados Unidos, onde a diferença entre ricos e pobres é gritante, a riqueza é venerada. E "os pobres não estão contra os ricos, querem apenas ser tão ricos como eles."
Tudo o que contribua para a riqueza da "grande nação eleita" é bem-vindo e "sancionado" por Deus. Ora, o mesmo Deus reprova tudo o que é contra natura: assim, o casamento entre homossexuais, o aborto, estudos sobre clonagem nos humanos, etc.
Enquanto que para uma parte significativa da sociedade americana, progressista, é mais importante a liberdade de as pessoas decidirem per se do que a imposição deste tipo de leis proibitivas, a parte conservadora, que se reclama de maior sentido missionário, mostrou nas últimas eleições ter algum peso mais.
"E a guerra?" "Guerra?", responderão os actuais governantes. "Estamos basicamente a erradicar as forças do mal. Protegemo-nos, preventivamente, de forças malignas que querem destruir a grande nação americana." Nas eleições, foi este o lado que venceu. É este o lado que lança causas e bandeiras como a luta anti-tabagista, mas que por outro lado se recusa a assinar o protocolo de Quioto. É este o lado darwínico que, ao desejo de maior solidariedade social dos democratas, responde concretamente com a ideia da des-solidariedade activa e consciente. Há quem lhe chame fundamentalismo. A luz do facho que é suposta iluminar o mundo cega frequentemente quem a empunha. Daqui resulta um clima de intolerância e de guerra latente contra todos aqueles que não comungam das mesmas ideias. Tanto a tentativa de imposição da democracia a outros países como a actual clivagem existente entre os americanos têm a sua raiz em aspectos como estes.

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