12/02/2007

O síndroma do -s




Pergunte-se a um professor de inglês se os seus alunos têm grandes dificuldades em aprender a língua. O mais natural é que ele (ou ela) diga que não. Mas acrescentará que existem alguns berbicachos. Talvez o mais importante destes seja a interferência do nosso –s. Poder-se-ia mesmo chamar-lhe o síndroma do –s. Porquê?
A resposta cabal seria longa, mas vou tentar sucintamente dar uma ideia. Calcula-se que um terço das dificuldades que os alunos denotam na aprendizagem de uma língua estrangeira derive de interferências da sua própria língua. É lógico que essas interferências existam. No que respeita à aprendizagem do inglês, o caso do –s é característico. Para um português, pensar em termos de –s final é pensar em plurais. Esqueçamos palavras de excepção como lápis e pires que, apesar de serem singulares, já contêm um –s. Pensemos antes em praticamente todas as outras, como livros, computadores, homens, mulheres, crianças, etc. É a ideia enraizada de que "um –s no fim da palavra é igual a plural" que nos leva a pensar que é assim em todas as línguas.
Porque haveria de ser? Na foto que acompanha este post, vemos o anúncio de quartos em vários idiomas. Tudo termina em –s, uma vez que falamos de quartos e não apenas de um quarto. Foi certamente isso que levou o bem-intencionado autor do letreiro a escrever erradamente Zimmers. De facto, quartos são, na língua alemã, Zimmer. Perguntar-se-á: então como se distingue um quarto de vários quartos? É fácil. Nos exemplos dados de lápis e pires, se falarmos em os lápis e os pires, sabemos que estamos a tratar de um plural. Em alemão, basta igualmente a mudança da palavra que antecede Zimmer para se compreender se é singular ou plural.
Ora, o inglês é uma língua originariamente germânica, se bem que a esmagadora maioria do seu vocabulário seja, felizmente para nós, de raiz latina. Daqui sucede que quando surgem palavras como man, woman, child, foot, mouse, etc., todas de origem germânica, haja uma enorme tendência para fazer erradamente o plural em mens, womens, childrens, feets e mouses. Difícil de corrigir? Não. Qualquer explicação simples como esta, conjugada com exercícios para a criação de rotinas, resultará.
Pior, muito pior, é o caso dos verbos. Quando se diz a um aluno que a terceira pessoa do singular do Indicativo Presente dos verbos termina em –s, ele aceita - que remédio! - mas a coisa custa-lhe um bocado a engolir, principalmente quando tem de aplicar. Para quem aprende, aquele –s é perfeitamente contra naturam. Ora, facilitará muito a missão do professor explicar que afinal aquele –s nada tem a ver com plural e que essa é a razão porque não tem significado de maior aplicá-lo num singular. De facto, quando o aluno tem que aprender que é he likes it em vez de he like it, ele olha algo de esguelha para a língua. Mas se se lhe disser que aquele –s até está lá, por assim dizer, para lhe facilitar a vida, ele fica mais receptivo. Na realidade, o actual –s que encontramos em praticamente todos os verbos (she loves it, he writes books, it looks fine) não passa de uma simplificação do antigo -th, que tem uma pronúncia aproximada do –s e, afortunadamente, evoluiu para este. Imagine-se a frase: What God giveth, He can take. Não será muito mais simples dizer What God gives, He can take? Se o inglês continuasse sempre com aquele –th, contaminar-nos-ia com a forma de falar tipo "sopinha de massa". Tenho por experiência própria que, perante esta explicação simples, o aluno apreende a ideia facilmente e, depois da prática que lhe vai naturalmente ser necessária, horrorizar-se-á até com aqueles colegas que dizem he speak, he read em vez de he speaks, he reads.
Esta arreliadora interferência do –s surge ainda noutros casos, de que mencionarei apenas mais dois ou três. Experimente-se pedir a alunos médios para dizer ou escrever em inglês algo como "as fábricas e os seus produtos". Garantidamente, alguns dirão the factories and its products. Quando se lhes chama a atenção para o uso não correcto de its, dirão "as fábricas não são pessoas, logo..." Logo, o quê? É verdade que its se emprega como possessivo de coisas. O problema é que estamos em presença de um plural (factories). Pois é, mas o problema reside exactamente no facto de que its também termina em –s, o tal que é característico do plural em português. É daqui que vem a interferenciazinha. Quando se pede aos alunos para usarem their, alguns a princípio até duvidam: afinal their é uma palavra que não termina em -s.
Então, e o que dizer da palavrinha inglesa this? É muito frequente que mesmo alunos razoáveis escrevam this things ou algo do género. Mas se pensarmos no "síndroma do -s", que coisa pode haver de mais natural? Embora this seja um singular (isto; este, esta), o facto de terminar em -s torna-o numa atracção quase fatal, que consiste em fazer coincidir o -s de things com o -s de this. De facto, a palavra correcta a usar - these - parece em princípio à nossa formatação cerebral pouco ajustada a um plural por não terminar em -s.
Precisamente pelo mesmo motivo, people é tratado por muitos estudantes de inglês como singular (falta-lhe o essezinho!) e news, apesar de singular, é uma palavra vista como plural. É claro que quanto mais cedo se alertar para esta tendência, explicando a sua etiologia, e praticar, tanto melhor. Caso contrário, teremos durante muito tempo estudantes a dizerem people is like this e what are the news? - em vez de people are like this e what's the news?
É assim, através das raízes lógicas que a língua materna forma no nosso cérebro que se dão muitas colisões na aprendizagem de línguas estrangeiras. Nada que não se resolva, mas convém alertar para estes factos e fazer incidência neles através de exercícios interessantes para que o problema tenha uma solução mais rápida.


P.S. Este é um modestíssimo contributo linguístico - elementar mas original - que dou aqui no blog. Se for do agrado de alguns leitores, prosseguirei de vez em quando com outros. Se ninguém se manifestar, este terá sido o último. Por razões óbvias.

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