4/16/2010

Portugal e o complexo do Espírito Santo

Regra geral, quando uma criança se magoa, dizemos-lhe, para a animar, "Isso já passa!" A verdade é que às vezes passa mesmo – a palavra e o consequente voto de esperança distraíram a criança e a dor passou. Noutras vezes, não passa: existe um problema mais fundo, que tem de ser tratado de forma mais séria. O uso da palavra ajuda quase sempre, mas quando uma situação é mesmo grave, as soluções são, também elas, necessariamente gravosas. Não é só com palavras que se vai lá!
A questão, porém, é que há muita gente que julga que sim. No nosso país e na nossa cultura há muitos a saberem que não se pode tocar o sino e ir na procissão, ter sol na eira e chuva no nabal, ou não ter dinheiro e mesmo assim ter vícios, mas depois esquecem voluntariamente essas realidades. Ao ignorá-las – o José Gil diria que não as inscrevem – escamoteiam-nas para assim passarem a vida mais amenamente.
Os provérbios, como os acima citados e tantos outros, contêm chamadas de atenção que a experiência de séculos nos diz serem necessárias. A sua longa continuidade através dos tempos denota que as pessoas precisam desses avisos. De facto, eles não apenas para memorizar mas também, e principalmente, para interiorizar.
Como sabemos, a vida não são só palavras. A realidade acaba por impôr-se. Com óbvias excepções, pode dizer-se que o povo português nunca foi muito trabalhador no seu próprio país. Isto não quer dizer que muitos não se esfalfem a trabalhar, por vezes até em mais do que um posto de trabalho. Mas se se puder não trabalhar, há um elevado número de portugueses que prefere essa situação. Veja-se a popularidade da situação de reforma. Acresce que, em matéria de direitos e deveres, a população aprendeu nas últimas décadas a reclamar mais direitos do que a ganhar consciência dos seus deveres. Entre outras coisas, um povo que costumava ser poupado passou a endividar-se, isto é, a gastar mais do que aquilo que verdadeiramente estava ao seu alcance.
Com gastos excessivos, tanto do Estado, como das empresas e ainda dos particulares, não admira que o país esteja numa situação económica e financeira pouco confortável. Tal como algumas outras nações, aliás. E como se remedeia este facto, que é iniludível? Com palavras, como "Isto já passa!", sabemos de fonte segura que não.
Creio que a grande questão que presentemente nos aflige é a falta de hábito de encarar a realidade frontalmente. Para os políticos, aparentemente o que mais interessa nesta altura não é a necessidade de um tratamento profundo. Continuam a falar, a guerrear-se e a ter confrontos verbais que ajudam a tudo menos à unidade. Uma unidade consciente, entenda-se, que ajude a levantar o país e não o deixe afundar-se ainda mais. Estamos em meados de Abril e as medidas necessárias continuam a ser discutidas. Não se vê uma vontade firme de as pôr a actuar o mais cedo possível. 2010 mais parece ser um ano de intermezzo do que de início concreto de reformas. Escreveram-se princípios, delineou-se um programa de reequilíbrio – algo que é indiscutivelmente essencial – mas não se vê por enquanto uma vontade firme de agir. O Plano de Estabilidade e Crescimento propõe uma melhoria reduzida do défice, tipo "para o ano que vem é que é!". Essencial parece ser colocar a nação unida e consciente para que a situação melhore. O clima de mentiras e guerrilhas em que se tem vivido em nada ajuda, mas urge que seja ultrapassado. O fundamental é que o Estado, os políticos, os empresários, trabalhadores e estudantes se compenetrem de que existe uma necessidade urgente de um tratamento a sério.
Se insisto neste ponto, é porque Portugal é um país indisciplinado. Mas poderá melhorar, se interiorizar o que há a fazer. Aqui não se trata de ser apenas o Estado a puxar a carroça; trata-se de todos entenderem que há que puxar a carroça, e fazê-lo de facto. Se vivemos acima das nossas posses, teremos agora de pagar por isso. Todos, como é evidente. As medidas não podem ser apenas suaves, algumas terão que ser duras, embora tão equilibradas quanto possível. Se criámos uma bolha elevada no nosso modo de viver, essa bolha tem que rebentar para que a situação se normalize a médio prazo. Haverá naturais sacrifícios a fazer. Porém, se nos inteirarmos da necessidade desses sacrifícios, eles transformar-se-ão numa pena que entenderemos como justificada.
As vozes discordantes dirão desde já, como de costume, que a culpa é dos outros. É sempre dos outros. Quem fala, diz geralmente mal de A e de B para soar, ele próprio, como o virtuoso. Dentro da sua virtude, pretende convencer tudo e todos que agiu imaculadamente e que portanto deve ficar de fora no que respeita aos sacrifícios.

Há alguns anos, havia dois países que Portugal elegia como seus ídolos: a Finlândia e a Irlanda. Eram exaltadas as qualidades de ambos. O crescimento sustentado da Finlândia e a exemplaridade do seu sistema escolar eram tópicos frequentemente mencionados. Quanto à Irlanda, falava-se do "milagre irlandês". O seu PIB aumentou consideravelmente, o boom imobiliário foi notório, os investimentos estrangeiros ascenderam a um volume nunca anteriormente visto.
Presentemente, a sustentabilidade da Finlândia mantém-se. Já no que respeita ao "tigre celta", a crise instalou-se. Não há milagres na economia e nas finanças que não sejam produto de uma forte solidez. A crise do imobiliário veio para ficar. A Irlanda chegou a ser incluída como o segundo I da conhecida sigla depreciativa PIGS (Portugal, Italy, Greece, Spain). Já não neste momento. Porquê? Porque os irlandeses estão a fazer coisas que nos dão uma prova clara de que aprenderam a lição. Estão a ser muito mais pragmáticos e honestos do que nós. Não se ficam pelas palavras. Em vez de fazerem como os gregos e muitos portugueses – a apontarem o dedo ao capitalismo desenfreado, que é aliás uma realidade – os irlandeses instituíram um programa de grande austeridade. Os impostos foram aumentados, as despesas estatais foram cortadas. Este ano, a conta dos serviços sociais sofrerá o corte de um terço. No que respeita ao funcionalismo público, cujos salários aumentaram substancialmente durante os anos de maior desenvolvimento, haverá um corte médio de 7 por cento. Fica congelada a entrada de novos funcionários. Até agora não tem havido greves ou tumultos provocados por este apertar do cinto. Toca a todos. Na generalidade, os irlandeses reconhecem os seus próprios erros no processo e sabem que estão agora a pagar por eles. Entretanto, anseiam por vir a recuperar o nível de vida que tiveram, mas sabem que têm que trabalhar para isso. Muitos já emigraram para procurar trabalho noutros locais, algo que se justifica perante uma taxa de desemprego superior a 12 por cento.

Sei que este texto vai sofrer alguma contestação, verbalizada ou não. Para o que quero chamar a atenção é para a nossa necessidade de sermos mais realistas e deixarmos de ignorar determinados factos. Não advogo as mesmas medidas que acabei de citar, porque cada país é diferente, mas insisto numa política de honestidade e justiça.
Quando entrámos para a União Europeia, houve os calimeros habituais que lamentaram as perdas que iríamos sofrer em termos de soberania. Mas era claro que iríamos perder alguma coisa! Nós e cada um dos outros países. Não podemos continuar a sofrer do complexo do Espírito Santo que, como alguém disse, fazia com que nós portugueses pensássemos que Portugal era fecundado pela Europa mas lograva mesmo assim manter-se imaculado. Se queremos vantagens, não podemos pretender permanecer virgens. É puro contra-senso pensar-se assim. O mesmo sucede quando a polémica partidária anda à volta do "diz que não aumenta impostos, mas as deduções são impostos encapotados". Pois claro que são! Isso significa que os portugueses irão ter um rendimento pessoal menor neste ano e nos próximos. É evidente que sim. Importante é que a justiça funcione e puna implacável e celeremente aqueles que, em vez de colaborarem, procurem aproveitar-se da situação. Portugal precisa urgentemente de ser mais realista, mais honesto e verdadeiro.

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