A adoptar a cartilha do inimigo ou apenas um caso de Ao serviço de Sua
Majestade, o Capital?
Há cerca de trinta anos foi criada uma
notável rábula interpretada pela falecida artista portuguesa Ivone Silva. A
rábula, intitulada Olívia Patroa, Olívia Costureira
ainda hoje pode ser vista no YouTube.
O tema é sobre o comportamento humano, o qual chega a ser diametralmente oposto
quando somos patrões e quando não passamos de simples empregados. O mesmo se
aplica a senhorios e inquilinos e a tantas outras situações. Na realidade, os
pontos que são a favor de um desagradam invariavelmente ao outro. Se
imaginarmos uma pessoa que seja simultaneamente senhoria num prédio e inquilina
num outro, ela tem reacções que são sinceras mas naturalmente contrárias consoante
a sua posição seja uma ou outra. Digamos que o livro que os senhorios lêem é
um, e que aquele que serve de orientação aos inquilinos é outro completamente
diferente.
Ora, quem tem
pouca experiência da vida ou do desempenho de determinada profissão tem
frequentemente de recorrer a um livro para ver como deverá proceder. Daqui
resulta a conhecida expressão inglesa by
the book, também usada entre nós.
Governantes
que o são pela primeira vez vêem-se na contingência de consultar o livrinho
para ver quais são, num determinado momento e perante uma situação específica,
os procedimentos adequados. E se em vez do livro certo, usarem o livro do
adversário?
Num ensaio
notável sobre a Questão Social, publicado pela primeira vez em 1997 na revista
americana Foreign Affairs, o
historiador Tony Judt considera que na Europa continental o Estado continuará a
desempenhar o papel principal na vida pública por três razões de ordem geral.
A primeira é
de ordem cultural. Por exemplo, quando os franceses exigem que o seu governo
decrete menos horas de trabalho, salários mais elevados, segurança laboral,
idade mínima de reforma mais baixa, e mais empregos, podem ser irrealistas mas
não são irracionais. As pessoas esperam que o Estado – o governo, a
administração, os ministérios – tomem a iniciativa. Em contraste com a obsessão
política que existe nos EUA por cortes nos impostos, os franceses geralmente
não fazem pressão por impostos mais baixos. Porquê? Porque reconhecem que os
impostos elevados são os meios pelos quais o Estado pode satisfazer essas
expectativas, e pagam de facto impostos altos, razão por que se irritam se o
Estado não consegue cumprir os benefícios sociais que eles esperam. Em
sociedades pouco estabilizadas ou mesmo fragmentadas, o Estado é muitas vezes o
único meio de garantir um certo grau de coerência e estabilidade. A alternativa
histórica para esses casos costuma ser militar, e tem sido sorte da Europa que
esse caminho tenha sido pouco tomado nos tempos recentes.
O
segundo argumento para hoje preservar o Estado é pragmático. Não conseguimos
ainda compreender que, no limiar do século XXI, o próprio Estado é uma
instituição intermédia. Quando a economia e as forças e padrões de
comportamento que a acompanham são verdadeiramente internacionais, a única instituição
que pode efectivamente interpor-se entre essas forças e o indivíduo
desprotegido é o Estado nacional.
Por
fim, a necessidade de democracia representativa – que torna possível a um
grande número de pessoas viver juntas em certa harmonia, mantendo um mínimo de
controlo sobre o seu destino colectivo – é também o melhor argumento para o
Estado tradicional. É porque o livre fluxo de capitais ameaça a autoridade
soberana dos Estados democráticos que precisamos de reforçá-los, e não de os
entregar ao canto de sereia dos mercados internacionais, da sociedade global,
ou das comunidades transnacionais. Tal como a democracia política é tudo o que
se ergue entre os indivíduos e um governo todo-poderoso, assim também o Estado
regulador e providencial é tudo o que separa os seus cidadãos das forças
imprevisíveis da mudança económica. Na medida em que a estabilidade social e a
estabilidade política são igualmente variáveis económicas importantes, e em
culturas populares onde o Estado-providência é a condição para a paz social,
ele é por isso uma vantagem económica local
decisiva.
Estas
longas citações do ensaio de Judt, que me parecem avisadas, tornam-se tanto
mais necessárias quanto é certo que a cartilha do inimigo – a dos mercados
ditos globais, as multinacionais e os vastíssimos montantes de disponibilidades
financeiras que circulam diariamente pelo mundo – pretendem notoriamente
encontrar Estados débeis que possam facilmente manejar e manipular.
Vem
de há cerca de duas décadas uma notória insistência nos meios de comunicação
social numa comparação entre os PIBs de determinados países e os movimentos de
capitais gerados por largas multinacionais. Não se trata de uma comparação
inocente. É mais uma demonstração da posição de força das multinacionais e uma
óbvia tentativa de menorização dos Estados, como se um país fosse constituído
apenas por factores de ordem económica.
Na
década de 60 do século passado, era costume considerar como elementos-base da
economia de um país três indústrias: a produção de electricidade, de cimento e
de aço. É verdade que os tempos mudam e, portanto, há alterações que surgem com
o desenvolvimento da sociedade. É um facto, por exemplo, que o carvão não é
hoje em dia tão importante como em tempos passados, parcialmente substituído
como foi por outras fontes de energia. Mesmo assim, é curioso verificar que na
segunda década do século XXI em que nos encontramos o Estado português já não
possui o sector eléctrico, a nossa siderurgia não é relevante e, quanto às nossas
grandes cimenteiras, elas foram vendidas a estrangeiros. Será que os
elementos-base de uma economia sofreram em relativamente poucos anos uma
transformação tão significativa que deixaram de ser importantes, ou estaremos a
tratar basicamente de um caso característico do enfraquecimento de um
Estado?
Cada
vez me convenço mais de que a globalização, tal como está a ocorrer, não passa
de uma forma moderna de colonização. E a colonização máxima é a feita pela
finança à economia. Por colonização sempre entendi trocas comerciais e culturais
injustas, por desiguais, entre o país colonizador e o colonizado. Desde os
costumes à religião, à língua, à definição da economia no território
colonizado, ao intercâmbio comercial, existe uma clara supremacia por parte do
colonizador a que o colonizado tem de se vergar. No seu livro Social Statics, de 1850, o filósofo
britânico Herbert Spencer escrevia: “O imperialismo pôs-se ao serviço da
civilização ao limpar as raças inferiores da face da Terra. As forças que
accionam o grande esquema da felicidade perfeita, sem tomarem em consideração o
sofrimento incidental, exterminam qualquer parcela da humanidade que se
atravesse no seu caminho. Quer seja humano ou besta, o obstáculo tem de ser
afastado.”
Hoje
em dia, as forças imperialistas modificaram consideravelmente a sua forma de
actuação. Uma tecnologia muito mais avançada do que a existente em meados do
século XIX permite dominar, colonizar, sem ter de ocupar territórios. Há outras
maneiras de o fazer, que vão desde a fixação de preços a nível mundial de
produtos alimentares básicos até ao controle da economia feito pela banca e, no
geral, da supremacia da finança sobre a referida economia. Quando se estima que
os activos existentes em paraísos fiscais em todo o mundo são, grosso modo, equivalentes ao Produto
Nacional Bruto (PNB) dos Estados Unidos somado ao do Japão, entende-se a ordem
de grandeza dessa força majestática que percorre o planeta, pronta a aumentar
os seus lucros.
A
sua táctica principal consiste em colocar no poder de países ditos soberanos
governos que possuam a sua ideologia neoliberal e contribuam para a sua
concretização no terreno. O que interessa a Sua Majestade, o Capital, não são
as populações, a não ser na medida em que são necessárias para a produção.
Quanto mais subjugadas e manietadas forem, quanto mais empobrecidas estiverem,
tanto mais se submeterão às ordens de Sua Majestade. Daí que para a
generalidade das populações de países que são há muito soberanos embora
naturalmente interdependentes relativamente a outros, pareça estranha a atitude
dos seus governos de alienarem as jóias da coroa que estavam na posse do Estado
e que para ele constituíam significativas fontes de receita. Daí também que as
populações não entendam a razão do seu empobrecimento se não contribuíram directamente
para tal. Daí que as promessas governamentais sejam tão díspares da sua
concretização, pois o povo nunca elegeria quem lhes prometesse o seu
empobrecimento para chegarem a um futuro melhor. A população, a classe média
nomeadamente porque é aquela que tem algum capital que pode ser mais facilmente
confiscado, vê-se esbulhada dos seus rendimentos próprios através de novos
impostos e eliminação de meses de salário e de privilégios especiais que
conquistara e de que usufruía.
Vários membros dos governos
que assim actuam tenderão a ser futuramente recompensados com lugares
materialmente muito interessantes em instituições ou nas empresas que ajudaram
a vender ao grande capital: sem este incentivo, Sua Majestade não conseguiria
aliciar muita gente para novos governos. Daí que nos pareça estranho que de
repente tudo comece a desabar. É a globalização, sim, mas a globalização da
pobreza, que outros já anunciaram há vários anos. Basta olhar para o governo
através de um espelho: veremos uma imagem naturalmente invertida. Porém, é essa
que conta. É contra ela que é urgente lutar.