12/31/2003

GRATEFUL UNDER PRESSURE

Votos de saúde e CORAGEM - «grace under pressure» segundo Hemingway - num 2004 que tantas privações (e condenações...) promete!
Grata ao Peter Pan pelas simpáticas palavras de estímulo, decerto induzidas pela aura generosa de alguma fada Sininho...

12/27/2003

PortugalSA (2)

Foi o biógrafo contratado para o lançar na campanha presidencial que mo revelou: aquela mania dos casinos que ele tem não é de agora. Já lhe vem desde a infância. Um dia, quando fez cinco anos, uma bem intencionada tia ofereceu-lhe um porquinho-mealheiro. “Para as tuas economias. Dinheiro a dinheiro enche o porco o celeiro!” O sobrinho entendeu a mensagem mais do que bem. Rapidamente pensou: “Se eu tiver também um porquinho destes tanto em casa da minha tia como dos meus outros tios, então sim, a coisa vale a pena!” E passou do pensamento à acção. Os pais acharam graça à ideia, a titi adorou a sugestão do sobrinhito e lá lhe compraram mais uns tantos porquinhos que se iam enchendo nas casas de familiares à medida que uma moeda hoje, outra amanhã, por vezes uma nota, iam sendo introduzidas na ranhura.

Já crescido e sem idade para ter mealheiros em forma de porquinhos, licenciado em Direito e político consagrado, alargou naturalmente as suas ambições e candidatou-se à presidência da Câmara de uma estância de veraneio possuidora de um casino bastante popular. Teve, logicamente, sucesso. A queda vinha-lhe da infância. Anos depois, sonhou mais alto e, de novo com a ideia do casino em mente, candidatou-se à capital, cidade onde coincidentemente o capital mais abunda. E ganhou. Apoiando-se em personalidades mediáticas, prometeu mundos e fundos. Das suas promessas destacava-se a construção de um casino. Gerou-se alguma polémica. Calou as pessoas através da contratação de um arquitecto estrangeiro de renome. O preço pedido calou-o a ele. Foi aí que lhe ocorreu que, melhor do que o conceito de “casino-na cidade” seria o de “cidade-casino”. Se uma parte significativa da população, ao jeito do jogo do monopólio e das slot-machines, tivesse que deitar uma moeda para parcar em qualquer rua ou passar em zonas históricas da cidade, o tlim-tlim das moedas seria muito mais contínuo e rentável do que os velhos porquinhos das abençoadas tias.

“Moeda-no-slot é algo que me dá sorte” transformou-se na sua inconfessada divisa. Sempre para engrandecimento da cidade, claro. E é assim que vamos ter a revisão do sistema de parqueamento nas ruas, que “está longe de atingir os proveitos possíveis”. Vamos ver aumentadas as taxas nos locais mais críticos. E, como ele diz, “para descongestionar a zona vamos fazer com que toda e qualquer latinha que passe pela Baixa lisboeta tilinte.”

Não é impunemente que se obtém o nome de Sant’Anna Slotes.

12/23/2003

Bom Natal!

Porque no Natal reavivamos recordações da infância, aqui deixo os meus desejos de que todos tenham um bom natal, partilhando convosco esta Carta ao Menino Jesus, e esperando, do fundo do coração, que o 2004 seja, como pede o autor do poema, um ano de mais compaixão e bom-senso para todos os Homens, e sobretudo para os quem têm responsabilidades na marcha deste conflituoso mundo.



Meu Querido Menino Jesus:

Creio não me levarás a mal
se durante todo o ano eu Te esqueço
e só escrevo p’lo Natal
para Te pedir umas prendas
que se calhar não mereço.
Mas não quero que Te ofendas.

Hoje, Jesus, tenho a pedir-Te muito mais
do que fazia noutros remotos natais.
Ainda que possa parecer futilidade,
peço-Te que dês muito bom-senso
e um pouco de compaixão também
a esta desvairada humanidade.

Se foste Tu mesmo quem,
num supremo acto de amor,
sofreu ignominiosa paixão
para seres o nosso redentor,
será assim tão difícil, então,
fazeres o que Te peço, Senhor?!


BOM NATAL!

12/21/2003

Mensagens natalícias em jeito de balanço

À Ariadne, votos de Natal feliz! Aprecio a erudição, ponderação e sensibilidade que ressaltam dos seus escritos. O seu gosto pelo mundo antigo, pela história e o seu espírito crítico de alerta para com o presente vão decerto merecer-lhe atenção nos seus novos contributos em 2004.

O João Ratão é o grande esteio do blog, com sugestões semanais que o Sete-Sóis tem vindo a melhorar substancialmente do ponto de vista gráfico. A sua ratice leva-o a comentários curtos e incisivos. Boas Festas e um 2004 verdadeiramente electrizante!

Ao Capuchinho cabe a escrita mais irreverente e impetuosa. Gosto. A sua alusão a Wittgenstein fez-me finalmente ler algo do filósofo, de quem tinha apenas numerosas referências. A viagem wittgensteiniana ao interior da mente, com as suas noções de linguagem expressiva e descritiva, ajudou-me a teorizar melhor o desassossego de Pessoa (o “Fernando Pessoas”, na imagem feliz de Saramago), o expressionismo na pintura, e, inter alia, o “Eu não sou eu/nem sou o outro/Sou qualquer coisa de intermédio/Pilar da ponte de tédio/que vai de mim para o outro”, do Mário de Sá-Carneiro, retomado pelo O’Neill. Muitos presentes no seu Natal, Capuchinho.

Ao Sete-Sóis, alma generosa a quem me liga uma amizade especial, um viva pelas suas contribuições linguísticas e um agradecimento pela disponibilização dos seus conhecimentos informáticos a todos nós, utilizadores do blog. Para o Sete-Sóis e a Sete-Luas um Natal muito feliz, com a sua bela Carolina.

Para o velho camarada Rui um abração, na esperança de que os muitos afazeres diários ainda lhe dêem para arquitectar os textos acutilantes que tão bem sabe escrever.

O blog está de boa saúde, a rampa de lançamento funcionou, a viagem continua. Um óptimo 2004 para todos!

12/18/2003

SUGESTÔES: Matriz de Acontecimentos (18 Dez.)


Download do ficheiro das Sugestôes (18 Dez.)

12/12/2003

PortugalSA (1)

Até que enfim chegaram algumas boas notícias a este recatado cantinho ibérico! Até que enfim que a esperança reina em muitos lares!. Não haverá certezas ainda, mas a esperança começa a aquecer-nos a alma. Todos os que sempre acreditaram e mantêm a sua fé no Durinho Aldraboso adoram ler as suas proféticas congeminações sobre o futuro radioso que a todos aguarda, aquele sol resplendente que tanto teimou em se esconder atrás de nuvens escuras. Em 2010 teremos tudo. Em 2015 muito mais. Utilizando uma técnica testada desde os áureos tempos do apostolado do cristianismo, promete-se o futuro, embora se saiba de antemão que as promessas de hoje são os impostos de amanhã. Temos boas razões para sossegar. O Ministro dos Negócios Estranhos cedeu o lugar a uma colega mais simpática e menos conspícua. O da Educação dita superior seguiu-o em solidariedade perfeita: de cabeça erguida e sem qualquer pecado na consciência. Terá sido para ambos apenas um acidente de percurso. Uma caçada mal sucedida causada por uma Diana que de deusa nada tem.

Há, como seria de esperar, algo que se mantém ainda mal, mas que não é de correcção difícil: as estatísticas. Como sabemos, elas são como o biquini --. revelam o acessório e escondem o essencial. Continuam a não ajudar. Contudo, politicamente as estatísticas existem para ajudar pessoas como o Durinho Aldraboso, portanto não há nada que enganar. Mudada já que foi a direcção do Instituto Nacional, os resultados começarão dentro em breve a surgir. Que é isso de nos compararem só com os países que estão acima de nós? Essa é uma visão masoquista e mesmo suicida. Basta que nos comparemos com o passado de há quarenta ou cinquenta anos para que o nosso ânimo se levante de novo. É que as melhorias são evidentes em toda a linha: há mais estradas, mais veículos, mais estudantes, mais pessoas com casa própria, mais lojas com tudo o que de bom existe para comprar, mais televisão com canais privados, mais revistas de encher o olho, mais pessoas a gozarem férias. É mesmo masoquista a atitude de se querer mais, sempre mais. O problema reside na atitude. Revejamos o nosso passado e constatemos a flagrante melhoria. É verdade que temos cerca de meio milhão de desempregados, mas isso é questão que se resolve também com uma grande alegria para todos: basta oferecer um bilhete grátis para um desafio de futebol em cada um dos dez estádios recentemente construídos. Imagine-se o privilégio: enchiam-se os novos estádios só com desempregados, felizes a baterem palmas e a vibrarem com as peripécias dos jogos. Inesquecível!

Mantêm-se alguns escândalos na sociedade, é verdade, mas na Judiciária já não temos a Morgadinha dos Tribunais que tanto nos complicava a vida. Agora escreve livros e possui uma prateleira dourada onde pouco pode incomodar aqueles que precisam de calma e sossego para tomar as rédeas do país. E não é um país qualquer. É um país que está a transformar-se gradualmente, desde os cuidados de saúde hospitalar até à gestão de múltiplos empreendimentos em parceria entre privados e Estado, numa imensa sociedade anónima. Daí o seu novo nome “PortugalSA”, algo camuflado pois, como se sabe, os portugueses são o povo mais desconfiado da Europa.

Em breve teremos mais notícias de PortugalSA.

DOIS ELEFANTES INCOMODAM MUITO MAIS!

Quem terá sido o copperfieldezinho que «deletou» o meu inofensivo elefante? O lobo mau não foi certamente, que o lobo não bate assim! Quiçá algum caçador subitamente interessado no «marfim» da minha pele...
Seja como for, aqui deixo uma 2ª edição - «ne varietur», espero - do espaçoso animal.


UM ELEFANTE INCOMODA MUITA GENTE

Fui ver «Elephant». Fiquei surpreendida com a superlativa coerência estética da leitura que fornece sobre o caso Columbine - totalmente expurgada de filtros sociológicos (aliás legítimos, quase imperativamente previsíveis). Neste sentido, está-se nos antípodas da militância exacerbada de «Bowling for Columbine». Se bem entendi, o título do filme é uma espécie de metáfora da ENORMIDADE do acontecimento recriado, sendo a sua narrativa uma planificação por assim dizer «cubista» do somatório das múltiplas e convergentes perspectivas dos participantes. Estes, quando nos «emprestam» o seu ângulo de visão, caminham para o vórtice fatal de costas voltadas para a câmara - um expediente cénico que, facultando embora o périplo do massacre, elide por completo o seu sentido, cega o espectador. Por outras palavras, o ponto de vista ALHEIO, ao virar-me as costas para me guiar, torna-se MEU e paradoxal: «colada» às costas dos adolescentes de Columbine, caminho na total IGNORÂNCIA do que me/lhes VAI ACONTECER... apesar de já saber que ACONTECEU. Note-se que a sensação que isto produz nada tem a ver com o vulgar «suspense», pois este, «colando» embora o espectador às vicissitudes do actor, alimenta-se da tensão entre a omnisciência do primeiro e a ignorância do segundo. Neste filme, pelo contrário, a identificação forjada é de tal modo radical que o único conhecimento que me guia é um pressentimento, o único medo que me assalta não passa de difusa inquietação.
Há ainda a registar uma Bagatela de Beethoven tocada ao piano «para Elisa» por um dos assassinos... A propósito: dois dos meus alunos são pianistas - devo talvez pedir ao lobo mau a gentileza de me vir guardar as costas (e o ponto de vista).

12/09/2003

Continuando na onda dos textos do Fanha e do Peter Pan, sobre a língua portuguesa …

… Também eu , apesar de tentar defender esta nossa língua mátria o melhor que sei e posso, entendo que a língua não pode ser estática, e há novos termos, portugueses ou não, que têm forçosamente que conquistar espaço dentro dela. Até aí, nada a obstar.

Embora entenda a existência de razões como impacte comercial, interesse político, necessidade de “embrulhar em pano novo” ideias velhas, etc, não posso deixar de me surpreender que certas palavras, pura e simplesmente, deixem de ser utilizadas. Por exemplo, faz-me imensa confusão que uma estrada seja, modernamente, uma “acessibilidade” em vez de ser um “acesso”. Não estou contra a palavra “acessibilidade”, que no meu léxico tem razão de existir, embora com um outro significado. Mas já não há lugar a acessos, só a acessibilidades, no espaço português?! Alguém que me explique, se o souber.

Outra coisa que não entendo é que também já se não contrata em português: contratualiza-se. Já ouvi um linguista defender que “contratualizar” poderá ser mais abrangente, poderá significar não só o acto de contratar, como todo processo que a ele conduz. Compreendo e aceito. Mas que no politiquês só se contratualize e nunca se contrate, que se construam tantas acessibilidades e nenhuns acessos, confesso que me faz muita confusão.

Para não falar em determinadas aplicações informáticas em pseudo-português (com capa de português do Brasil) que, de tão escandalosamente más, são verdadeiros atentados à nossa língua, não só pelo seu conteúdo, mas por constituírem ferramenta diária de trabalho para muita gente.

E a propósito de neologismos e de português do Brasil (que muitas vezes é doce e divertido), não resisto a transcrever um poema contido num artigo de Luís Fernando Veríssimo num dos últimos Expresso:

Amor na Internet
Meu nome não é
Romeu
e a foto que eu
escaniei não sou eu
- mas tudo o mais
é verdade!
(Fora, está certo, a idade).
Meu signo
é mesmo
Escorpião
e é sincera
minha paixão.
e como é que eu sei
que seu nome é Daisy May
e a foto nua
é mesmo sua?
Só o que importa
é nos amarmos
e talvez
nos encontrarmos.
Mas nesta incerteza
eu não vivo.
Download-me ou
delete-me,
não quero ser
apenas mais uma
pasta esquecida
no seu arquivo.

(da série “Poesia numa hora dessas?”)

12/04/2003

SUGESTÔES: Matriz de Acontecimentos (4 Dez.)



Basílica dos Mártires - Coro Santa M. De Belém - 21.30 - 5 Dez
Igreja São Nicolau - Sinfonietta de Lisboa - 21.30 - 6 Dez
Maxime - Irmãos Catita - 3.00 - 6 Dez
Igreja S.Tomás Aquino - Sinfonia Bomtempo - 17.00 - 7 Dez
Igreja da Pena - Ciclo Concertos de Natal - 18.00 - 7 Dez
Sé Patriarcal - Orquestra Sinfónica da Galiza - 20.00 - 7 Dez
Igreja São Nicolau - Coro da Imaculada - 15.30 - 8 Dez
Basílica dos Mártires - Orfão de Águeda - 16.00 - 8 Dez
Igreja S.Jorge Arroios - Coro Lisboa Cantat - 16.00 - 8 Dez
Igreja Conceição Velha - Corelis - 16.30 - 8 Dez
Igreja de Stª Luzia - Ciclo Concertos de Natal - 18.00 - 8 Dez
Igreja Santos Velho - Ciclo Concertos de Natal - 21.30 -10 Dez
CCB - Porgy and Bess - 10 a 21 Dez
Casino Estoril - Lena D'Água - 23.30 - 11 Dez
Igreja da Graça - Sinfonia Bomtempo - 21.30 - 12 Dez|
Basílica dos Mártires - Coro da Rádio Renascença - 15.00 - 13 Dez
Igreja São Domingos - Orquestra Filarmónica das Beiras - 21.30 - 13 Dez
Igreja de Marvila - Coro Regina Coelli - 16.00 - 14 Dez
Basílica dos Mártires - Chorus Echo - 16.00 - 14 Dez
Igreja da Madalena - Coro da Universidade Técnica - 16.30 - 14 Dez
Igreja Stº Estevão - Ciclo Concertos de Natal - 18.00 - 14 Dez
CCB - O melhor de Marcel Marceau - 27 Dez


Está anunciada uma agradável avalanche de Concertos de Natal nas Igrejas de Lisboa que não cabem na matriz anterior. Assim, optei por só referenciar os previstos para um horizonte de dez dias e, para equilibrar, incluir outros menos «religiosos».

Aviso: Amanhã e depois (dias 5 e 6) STOCKMARKET (feira de "liquidação" de stocks) na Cordoaria.
O Palácio Nacional da Pena promove, de 14 de Dezembro a 18 de Janeiro, visitas guiadas, com inscrição prévia pelo 219105340, com o título: A Viagem Iniciática da Pena, Uma Leitura Diferente do Palácio e do Parque.
A RTP2 transmite no «Por outro lado» (sábado 21.00) uma entrevista da Ana Sousa Dias a Tiago Rodrigues.

Download do ficheiro das exposições (4 Dez.)

12/03/2003

Eufemismos e estrangeirismos

O termo “eufemismo” sempre se empregou no sentido de palavra ou expressão simpática e educada que usamos quando nos referimos a algo que outras pessoas possam considerar desagradável ou constrangedor. Esta definição é um pouco redutora, porém. Ao pudor de designarmos roupas ou temas relacionados com determinadas partes do corpo, a uma certa vergonha da revelação de lucro que pode significar exploração de pessoas e alguma desonestidade, junta-se, mais acentuadamente nos últimos tempos, a necessidade de prover uma imagem de novidade ou de algo que acentue a diferença relativamente a outrem. Para expressar estas noções, que já são apanágio de uma sociedade mais aberta mas longe de ser transparente, recorre-se facilmente a palavras não nacionais, o que se costuma apodar de estrangeirismos. Com a sociedade global que os meios de comunicação social tanto apregoam, existe a preocupação de diluir o conceito de nação em espaços mais amplos, permitindo que a introdução de novos vocábulos provenientes de línguas dominantes passe a ser considerada natural e lógica. É nessa linha que procurarei fornecer exemplos provando que alguns estrangeirismos mais não são do que palavras englobáveis na categoria de eufemismos modernos..

Creio que muitas pessoas que fizeram os seus estudos secundários ouviram narrar o seu primeiro exemplo de eufemismo através da história dos nossos navegadores pioneiros que, estonteados pela fúria das águas na confluência Atlântico-Índico na ponta meridional de África, baptizaram primeiro o local de “Cabo das Tormentas” para, mais tarde, reconhecendo que ele lhes abria o caminho marítimo para a desejada Índia, o rebaptizarem de “Cabo da Boa Esperança”, nome que se manteve até aos dias de hoje. Das Tormentas à Esperança vai um caminho tão longo como o que separa a dor do prazer; não foi pelo facto de o cabo ser crismado de forma diferente que as águas alterosas se amansaram, mas pensar em termos de esperança é muito mais consolador do que encher o espírito de imagens de tempestades e momentos difíceis. O eufemismo serve para casos como este: não muda a substância, adoça a forma.

Hoje em dia, com a tentativa de homogeneização mundial e a concomitante superficialidade das coisas que são niveladas umas pelas outras, a forma ganha muito mais importância em numerosos casos do que o sentido que ela encerra. Da mesma maneira que, no domínio do marketing, se arranjam novos nomes para designar produtos sem substancial alteração relativamente a outros anteriores, a necessidade de “desinstalar” que a sociedade moderna baseada no capital possui leva a que palavras consagradas sejam desinstaladas para serem substituídas por outras significando o mesmo mas soando quiçá de forma mais agradável ao ouvido. Por seu lado, os políticos tendem igualmente a servir-se de conceitos alegadamente novos para, afinal, realizarem apenas coisas que já levaram outros a dizer que “nada há de novo debaixo do sol”.

Quando Benjamin Franklin diz, numa carta a um amigo, “a morte e os impostos são as únicas certezas que podemos ter neste mundo”, ele está precisamente a usar palavras incómodas – infelizmente inevitáveis – que são por esse motivo objecto de numerosos eufemismos. Deixando a morte de lado para olharmos apenas para os impostos, constatamos que os governantes preferem usar eufemismos à palavra exacta. Assim, o termo “contribuições” – de cunho positivo – substitui frequentemente os odiados “impostos”. A “contribuição autárquica” é um dos vários exemplos que possuímos, dando a ideia de que estamos a contribuir de livre vontade. Existe, porém, uma forma mais moderna de evitar o desagradável impacto da palavra “imposto”: o uso de abreviaturas. Assim se passou a dizer, mais alegre e despreocupadamente, IRS, IRC, IVA, IA e coisas quejandas. É o marketing linguístico a funcionar.

Há décadas que alguns americanos começaram a notar que a comunidade hispânica estava a expandir-se excessivamente na costa ocidental dos Estados Unidos. A maior cidade da zona, Los Angeles, possuía não só um nome hispânico como estava inundada de mexicanos, porto-riquenhos e outros latino-americanos. A solução encontrada para algo que, do ponto de vista da dominante sociedade “WASP” (White Anglo-Saxon Protestant), começava a ser desconfortável foi designar a cidade apenas pelas suas iniciais, lidas à maneira anglófona: L.A. (Presentemente pensa-se mesmo em dividir a grande metrópole em duas cidades distintas, o que só confirma o objectivo da criação eufemística.)

Em roupas relacionadas com partes mais íntimas do corpo, os eufemismos, que são ocasionalmente estrangeirismos como acima se refere, substituem frequentemente as palavras mais tradicionais. “Roupa interior feminina” há muito que tem um sinónimo mais delicado em lingerie. Há todo uma conotação de moda francesa na palavra que a expressão portuguesa não contém; pragmaticamente, isso ajuda as vendas. Desde há muitos anos que a peça de vestuário usada para conter seios femininos se chama “soutien”, num encurtamento português de “soutien-gorge”. Quem imaginaria usar palavras como “colete de seios”, “pára-seios”, ou algo do género? Estou crente de que a Igreja viu com bom olhos a introdução de soutien, apesar de ser palavra estrangeira. Para homens, repare-se na crueza do vocábulo “cuecas”, a que as duas letras iniciais dão um toque de ingenuidade camponesa de que o marketing citadino não se compadece. “Cueiros” para crianças ainda escapa, mas é evidente que “cuecas” se tornou palavra demasiado saloia, pelo que foi substituída de forma p.c. (politicamente correcta) por slips ou por boxers. Dever-se-á classificar estas palavras como estrangeirismos ou apenas como exemplos pragmáticos de bom-gosto e bom-tom, a que se associa uma correcta técnica de vendas? Os collants femininos entram no mesmo grupo, tal como os tops e os bodies.

Pessoalmente, não creio que a entrada e adaptação ao português de novos vocábulos de origem estrangeira seja grave. Constituindo o país uma sociedade aberta, seria de estranhar até que esses vocábulos se quedassem pela porta e não a franqueassem. Por outro lado, numa sociedade que tende mais a homogeneizar-se do que a diferenciar-se, considero perfeitamente natural que o ser humano goste de se sentir um pouco diferente para não ficar esmagado pela multidão constituída por todos os outros. Este será um dos motivos que leva a juventude e alguns grupos tecnocratas a usarem uma linguagem própria, avançada e diferenciante. Pelo seu lado, os jornalistas da imprensa, rádio e televisão, como veiculadores de muitas das novas tendências, usam profusamente novos vocábulos para criarem inovação e efeito de choque. Na mesma linha estão os publicitários, que têm de ser suficientemente criativos para por vezes embrulhar apenas coisas velhas em novos panos.

No mundo empresarial, as firmas querem naturalmente aparecer na linha de vanguarda, pelo que é frequente que funções antigas e actividades novas sejam deixadas com nomes estrangeiros para lhes dar cunho de novidade ou apenas por uma questão de conveniência; há casos em que é melhor manter um certo secretismo, que a palavra estrangeira transmite melhor. É assim que “insider trading”, actividade ilegal de compra ou venda de títulos por acesso privilegiado a informação, se mantém em inglês; “spread” – basicamente a diferença entre a taxa de juro passiva e a activa, o lucro do banco nos empréstimos – idem; os “lobbies” continuam a ser preferidos aos “grupos de pressão”, que são demasiado explícitos. Como estes há dezenas de termos que os técnicos preferem não traduzir por razões de conveniência. (Esta questão lembra-me a controvérsia que se gerou no seio do Vaticano quando o serviço religioso perdeu muito da sua áurea de mistério ao passar do latim para a língua dos diversos países.)

A necessidade de pôr o dinheiro a circular para adquirir coisas novas faz com que tudo o que é velho perca interesse. E os velhos mesmos, os indivíduos? Bem, muitos deles são os que conseguiram acumular dinheiro ao longo das suas vidas. E continuam activos como votantes. Não podem, portanto, ser maltratados. Para começar, não existem como “velhos”. Há idosos, sexagenários, septuagenários, etc., mas não “velhos”. Formam a terceira idade ou, mais ao jeito do marketing, são os portadores de cartões sénior. A adaptação do “senior” anglo-americano foi muito fácil, pois confere um ar de respeitabilidade e baseia-se em étimo latino. Surgiram já há anos as “contas sénior”, o “turismo sénior” e outras senioridades convenientes.

Não foram só os velhos, como menos protegidos de uma maneira geral, que foram abrangidos por novos termos. Os cegos desapareceram para dar lugar aos “invisuais”. Os “aleijados” passaram a “deficientes físicos”. Dentro da mesma linha, os países pobres foram agrupados no “3º Mundo” ou no grupo dos “países em vias de desenvolvimento” (os americanos chamam-lhes “LDCs”, less developed countries). Um grupo frequentemente muito atacado era o dos maricas, que aliás recebia nomes mais populares como se vê na clássica definição de Braga, “a cidade dos três p’s: padres, putas e paneleiros”. Hoje não há disso. O termo “homossexual” é vulgar, mas o pudor maior surge através do uso de “gay”. A referência à “comunidade gay” transformou-se em lugar comum. Um “bar gay” ou uma agência de viagens especializadas em “turismo gay”, também.

Os políticos são peritos em mudar os nomes às coisas, introduzindo-lhes apenas um pequeno retoque de novidade, quantas vezes para pior. Mas têm que fazer isso, tal como qualquer Presidente que se preze tem de mudar pelo menos a cor das alcatifas do palácio que vai habitar. A juntar a muitos outros que seria ocioso mencionar aqui, citem-se dois dos exemplos mais célebres em Portugal: primeiro, as colónias portuguesas que atacadas em meados do século passado com uma chuva de impropérios invejosos de nações estrangeiras, passaram de um golpe a “províncias ultramarinas” (praticamente só se manteve com o mesmo nome a “Companhia Industrial de Portugal e Colónias”); segundo, o Ministério da Guerra, que na mesma altura para não parecer tão bélico passou a denominar-se “Ministério da Defesa” (anacronicamente, todos os veículos do Ministério mantiveram a sua matrícula MG, pois como abreviatura passava mais despercebida.)

Aqueles que consideram excessiva a introdução de palavras inglesas do glossário informático no nosso vocabulário – “software” “clicar”, “printar”, etc. – lembrar-se-ão que quando o futebol foi introduzido em Portugal aí há uns cem anos a maior parte dos termos também eram em inglês, porque o futebol era coisa nova tal como os computadores estão a ser hoje em dia. Alguns desses termos futebolísticos sobreviveram mas na sua maioria foram engolidos por palavras nacionais com o decorrer dos anos. Os “corners” de antigamente são hoje os “cantos”; os “penalties” ainda se mantêm mas com tendência crescente a passarem a “grandes penalidades”, os “backs” antigos desapareceram, “back centro” é coisa que já ninguém diz, “keeper” (como abreviatura de goalkeeper) tem a sua substituição por “guarda-redes” mais do que consolidada, os “offsides” deram lugar aos “foras de jogo”, etc. Com os termos do domínio da informática que para aí andam vai suceder o mesmo, mais tarde ou mais cedo.

Vocábulos mais obscuros e difíceis de erradicar serão termos como “offshore” ; esses só dificilmente mudarão de nome no mundo dos investimentos a não ser para receberem uma designação igualmente misteriosa mas imbuída de um carácter mais celestial: “paraísos fiscais.”

E por estes paraísos me fico. Deixo o resto para os meus colegas bloguistas completarem ou comentarem.

P. S. O que deve incomodar os defensores e cultivadores da língua portuguesa são, quero crer, outras coisas bem mais importantes, como a existência de um número excessivamente elevado de analfabetos neste país, o uso frequentemente inapropriado de termos e os múltiplos erros de concordância gramatical. Acima de tudo, deveria incomodar-nos que estes últimos possam ter por autores muitos estudantes universitários. Como a sociedade se rege pelo princípio da cascata, de cima para baixo, esse é um exemplo pernicioso.

Entretanto, “cliquemos” à vontade no rato do computador, deliciemo-nos na leitura de um “email” enviado por um amigo, recostemo-nos num confortável “maple”, leiamos um bom livro à luz quente de um “abat-jour”, “zapemos” para um programa de televisão melhor se for caso disso, riamo-nos perante mais um “flop” de um político, e mandemos todo o resto às urtigas.