4/29/2008

Contrastes

Quando há dias o Presidente da República falou sobre o desencanto dos jovens pela política, produto em grande parte de promessas vãs e incumpríveis dos candidatos partidários, ele tinha naturalmente razão. Os jovens interessam-se por muitas outras coisas, entre as quais avulta a absoluta necessidade de um dia obterem auto-sustentação, o que, suspeitam, não lhes vai ser nada fácil alcançar.
Entretanto, contrastemos esse desencanto-com-a-política patenteado pela geração jovem com o denodado afã de vários adultos, alguns já de provecta idade, que se engalfinham - devidamente secundados por centenas de elementos do partido - para lograrem atingir o poder máximo no PSD. O Alberto João quer voar da Madeira para o Cont’nente para pôr tudo na ordem, o que o incontornável Santana começa por contrariar. Há um Passos Coelho que é apoiado por bases nortenhas, a peso-pesado Ferreira Leite que arrisca, o advogado Aguiar Branco que já avançou, o Menezes que disse que não e que desistia, mas... Haverá possivelmente ainda mais uns tantos concorrentes, mas de momento não me ocorrem outros nomes.
Ocorre-me, sim, o abismo geracional que se cava entre estes superagitados políticos mais os seus apoiantes basistas ávidos de poder e os jovens, com os ouvidos cheios de promessas mas muito carentes de actos e de verdade em vez de palavras encantatórias de ilusão.

4/25/2008

Evolução ou involução?


O 25 de Abril que hoje se comemora determinou que Portugal seria um país livre e, politicamente, uma república parlamentar. "Para lamentar" começou-se logo a ouvir, pouco tempo depois, por parte da reacção. Mas à reacção contrapôs-se a vontade real da nação de mudar as coisas. Assim, as primeiras assembleias da República estiveram cheias de homens-bons (o que inclui mulheres, relativamente às quais não quero, por óbvias razões, usar o mesmo qualificativo no feminino). Era, no geral, um conjunto de mentes activas e generosas aquele que encheu S. Bento nas primeiras vezadas. Homens e mulheres de carácter e de convicções, que por estas se batiam na liberdade que o 25 de Abril lhes concedera. Lembro-me de pessoas como Mário Soares, Álvaro Cunhal, Freitas do Amaral, Salgado Zenha, Manuel Alegre, o meu bom amigo Henrique Barrilaro Ruas, Natália Correia, Raúl Rego e Maria de Lurdes Pintasilgo. E muitos outros que sobressaíam no debate ideológico. Trinta e quatro anos passados, vemos que houve indubitavelmente significativas alterações na sociedade portuguesa, muito mais aberta ao estrangeiro do que outrora, com cérebros brilhantes a destacar-se em vários domínios.
No domínio político, porém, vejo antes uma involução. Gradualmente, as vozes isoladas, auto-responsáveis e perfeitamente identificáveis foram sendo substituídas pelos carreiristas políticos, que depressa criaram para si próprios regalias, benesses, privilégios, mordomias. Mencionando apenas uma, cada ano de deputado passaria a contar como dois para efeitos de reforma - à semelhança do que se passara com as tropas intervenientes nas campanhas da guerra colonial. Porém, enquanto só os elementos que tinham estado nas zonas de intervenção armada tinham tido direito a essa benesse, no caso dos deputados não havia distinção. Mesmo os que mal abrissem o bico aufeririam do mesmo privilégio.
Em breve os deputados passaram a ser, na sua maioria, membros dos órgãos dos partidos, fechando a porta a todo o movimento cívico que pretendesse intrometer-se com elementos seus. O domínio partidário calou vozes discordantes no seu seio, sob pena de estas terem que abandonar o parlamento para o qual tinham sido eleitas pelo voto popular. A liberdade parlamentar passou a ser fundamentalmente partidária e já não individual. A escola de formação dos partidos aumentou o seu número de alunos, abnegados, disciplinados, fiéis. Ansiosos por obterem os créditos que lhes permitissem receber não o tradicional canudo, mas sim o mais desejado lugar na Assembleia onde pudessem finalmente assentar o seu traseiro. Infelizmente para nós, civis amantes da liberdade individual, o funcionalismo partidário passou a ser a regra, com algumas naturais excepções.
O parlamentarismo perdeu há muito o seu cachet inicial. Continua com algumas benesses próprias, embora outras já tenham sido cerceadas. A Assembleia mantém-se como o único lugar que, em princípio, pode dar acesso à Champions, ao parlamento europeu, lá fora, com outros mundos, outros vencimentos e mordomias de viagens. De todo este conjunto resulta um cravo do 25 de Abril naturalmente algo mais murcho do que o original (foto). Regaram-no mal, foi o que foi. Tanto cimentaram os antigos jardins de canteiros floridos que hoje temos falta de bons jardineiros.

4/23/2008

A kari-ka-tura


Há cerca de três semanas, um grupinho deste blogue deslocou-se a Vila Franca de Xira para uma conferência de José-Augusto França sobre a sua vivência do neo-realismo. A conferência em questão realizou-se no novo Museu, um notável edifício com a assinatura de Alcino Soutinho.
Antes disso, o grupo do azweblog foi deliciar-se com uma exposição de cartoons no velho Celeiro da Patriarcal, a poucos passos do museu. A mostra que vimos era notável - já fechou - e contava com um recanto especialmente dedicado à grande arte de Abel Manta. Na restante parte, repleta de dezenas de cartoons recentemente publicados, parámos durante algum tempo em frente do que considerámos ser uma esplêndida peça: o Dalai Lama retratado como panda e devidamente enjaulado pela China. Tirámos foto, como não poderia de ser.
Sabemos agora que a inspirada caricatura de António Jorge Gonçalves foi contemplada com o 2º prémio num concurso internacional do World Press Cartoon, a que concorreram 766 trabalhos de 367 jornais e revistas de 67 países. Só pedimos desculpa de a foto não estar à altura, mas não conseguimos melhor e queremos partilhá-la convosco.

4/21/2008

Uma questão de contas

Como, admittedly, não sou especialista em coisa nenhuma, hesito muitas vezes abordar neste blogue determinadas questões que são nebulosas para mim. Penso, no entanto, que no etéreo espaço em que os textos vogam poderá eventualmente surgir, por um altamente improvável acaso - os acasos nunca são prováveis, ou então não seriam acasos - , um especialista ou alguém com mais conhecimentos do que eu, que me esclareça. Aí decido-me a avançar. É algo que já tem sucedido múltiplas vezes.
Esta "questão de contas" está em stock há talvez uns dez dias. Foi, de facto, há pouco mais de uma semana que fiquei surpreendido ao ouvir falar de fundos públicos em regime off-shore. Dada a natureza de fuga ao fisco da maioria das organizações financeiras que actuam off-shore, não pude deixar de estranhar que dinheiros do Estado português andassem por essas vias. Esperei ler mais sobre o assunto, mas parece que alguém decidiu colocar um penedo sobre o tema. Sabemos agora pelo Ministério das Finanças que (possivelmente entre várias outras aplicações financeiras do Estado) o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social possui aplicações off-shore da ordem dos 42 milhões de euros (cerca de oito milhões e meio de contos). Seria difícil haver ironia maior neste caso. Logo o Fundo de Estabilização (!) Financeira da Segurança (!) Social!
Quando a polícia judiciária de um país procura saber informações sobre determinadas contas colocadas off-shore, depara com um tal emaranhado labiríntico de linhas, produto de uma bem urdida engenharia financeira, que não raramente sai com as mãos a abanar. O cruzamento de depósitos e investimentos serve exactamente para baralhar os eventuais investigadores e criar uma firewall na qual o fisco não logre entrar. Assim se consegue o "mais absoluto sigilo".
Curiosamente, esta história do mais absoluto sigilo lembra as inúmeras vivendas que se encontram protegidas dos olhares exteriores por uma vedação metálica, geralmente verde natureza, que lhes dá um certo ar de bunker. As vivendas em questão ficam, de facto, protegidas dos mirones exteriores; porém, se alguém consegue passar a vedação pela calada da noite - ou mesmo durante o dia -, esse alguém pode passar a actuar com segurança, porque ele também está protegido dos olhares de quem passa no exterior (câmaras de vigilância eliminam-se com relativa facilidade). Por analogia, se voltarmos aos depósitos ou investimentos feitos off-shore, isto significa que a firewall que protege do fisco também protege os gestores do dinheiro alheio.
Na presente crise do subprime, que contagiosamente passou a vários fundos de risco e tem causado a enorme mossa no sistema financeiro que se conhece (?), "estabilização" e "segurança" são palavras que fazem pelo menos sorrir. Como é mesmo no caso português? Colocar a estabilização da segurança num sistema volátil é algo de uma enorme incongruência! Recordemos os hedge funds! A certa altura, pode naturalmente suceder ao Estado o mesmo que tem acontecido aos bancos: ter vultosos activos contabilísticos que só valem no papel. Seria bom que este caso fosse esclarecido – e de forma transparente. Será pedir muito? Pelo andar da carruagem, é.

4/19/2008

Língua inglesa - Uso e tradução de verbos com preposição

Como todos sabemos por experiência própria, as línguas estrangeiras possuem pontos de vista diversos relativamente às coisas - o que se traduz no vocabulário, especialmente nos substantivos -, maneiras que nos são estranhas de considerar o tempo ou o espaço - algo que as preposições expressam -, e formas que não são iguais às nossas para falar do tempo passado, presente e futuro, aquilo que os verbos com os seus diferentes "tempos" fazem melhor.
A língua inglesa apresenta-se aos olhos e ouvidos de um português com uma característica especial, sobre a qual nos vamos debruçar um pouco: verbos seguidos de preposições. Nesta designação cabem verbos do tipo bring up, bring about, put off - que são às centenas mas que por ora vamos deixar de fora - e outros ainda, que iremos abordar a seguir. Estes são verbos que, se ouvidos ou lidos, são relativamente fáceis de entender mas, e este é o ponto principal, mais difíceis de traduzir (e às vezes é necessário traduzi-los).
Imagine-se pedindo a um português seu conhecido, com conhecimentos razoáveis de inglês, para dizer in English algo como "atravessámos a rua a correr". Previsivelmente, o indivíduo em questão dirá we crossed the street running. Na realidade, ele estará a traduzir a frase bloco por bloco em vez de traduzir a ideia da forma que ela se apresenta normalmente na língua inglesa: we ran across the street. Da mesma forma, "ela saiu da sala a correr" será she ran out of the room. Há claramente uma maneira diferente da nossa de expressar a ideia. O que se nota é que a forma adverbial "a correr" não é expressa em inglês por um advérbio mas sim pelo verbo. Notamos ainda que tanto a ideia de "atravessar" como a de "sair" são expressas em inglês por uma preposição (across e out). Temos a chave. Dado que este processo estrutural é muito comum em inglês, é fundamental que quem esteja a aprender a língua o domine. Com isso, resolverá muitos problemas de tradução para português - frases que parecem evidentes mas depois não se sabe bem como traduzir e anda-se para ali às voltas sem saber bem onde lhe pegar. Como o tempo é dinheiro...
Pensemos então na chave básica: o verbo inglês expressa aquilo que em português é normalmente um advérbio; a preposição inglesa dá-nos a ideia do verbo português.
Vejamos alguns outros exemplos para compreendermos melhor e notemos simultaneamente que a frase portuguesa só excepcionalmente será mais curta que a inglesa; tende mesmo a ser mais longa (a já aludida diferença noutros posts entre línguas sintéticas e analíticas):

1. He was bailed out. – (sabemos que bail é fiança e que to bail é afiançar; tomamos a preposição out como o verbo português, enquanto o verbo inglês será a nossa "maneira como", i.e. o advérbio). Assim, teremos: Ele foi libertado mediante o pagamento de uma fiança.
2. Dogs sniff out the foxes. – Os cães, graças ao seu faro, fazem as raposas sair das tocas.
3. Compare-se com the dogs dig the foxes out – Os cães põem-se a escavar junto às tocas e fazem as raposas sair cá para fora.
4. The game was rained off. – O jogo foi adiado devido à chuva. (a preposição off que conhecemos de to put off - "adiar", funciona como verbo português, enquanto o verbo inglês to rain nos diz porquê - a noção adverbial).
5. Lisbon trams are being phased out. - Os eléctricos de Lisboa estão a desaparecer gradualmente (por fases).
6. During the Spanish war, many tons of coffee were smuggled out of Portugal. (sabendo que smuggle é contrabando, é fácil começar pela preposição e depois pegar no verbo inglês como advérbio) – Durante a guerra de Espanha, houve muitas toneladas de café que saíram de Portugal por meio de contrabando.

É claro que ao aplicarmos esta técnica na tradução de inglês para português, por exemplo num artigo de jornal ou num livro, estamos simultaneamente a alimentar o nosso cérebro com a forma inglesa, pelo que depois, ao falarmos ou escrevermos esta língua, teremos a saudável tendência para estruturarmos as frases à correcta maneira inglesa.

Alguns exemplos mais, só para prática:

1. In China, at least 86 casinos have been forced out of business.
2. The police clubbed the insurgents down.
3. The former Prime Minister was gunned down.
4. Most analysts rule out an abrupt about-face in Brasília.
5. Stock-market investors dip in and dip out.

Faço notar que nunca vi este tema abordado em nenhum livro ou artigo. Contudo, ele é de grande utilidade, facilita o trabalho do tradutor e, ao mesmo tempo, abre outras portas.

4/17/2008

Chove

A chuva que cai lembrou-me aquela outra a que o José Gomes Ferreira se refere quando canta

Chove…

Mas isso que importa!
se estou aqui abrigado nesta porta
a ouvir a chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?

Chove…

Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama.

4/16/2008

Acordo ortográfico: uma falsa necessidade e uma aberração

Já chegaram às livrarias dois dicionários que cumprem o anunciado acordo ortográfico. Foram produzidos pela Texto Editora e terão levado à modificação da grafia de cerca de dois por cento das palavras portuguesas. Segundo a coordenadora editorial, estes volumes são o produto do trabalho de uma grande equipa durante cerca de ano e meio. Imagine-se esta equipa a trabalhar durante tanto tempo antes de ser tomada uma decisão que está muito longe de reunir consenso entre os portugueses. É preciso ter lata! Política (ditatorial) do facto consumado!
Neste blogue já expressei a minha opinião sobre o "acordo" pelo menos duas vezes. Vou, portanto, apenas resumir o ponto principal da minha argumentação. A língua é um fenómeno social. Como tal, está directamente relacionada com a sociedade que a utiliza. Dado que as sociedades lusófonas - tanto em África como no Brasil e em outras partes do mundo - têm evoluído de forma diferente da portuguesa, é natural que várias facetas do idioma, incluindo a ortografia, se tenham adaptado às respectivas sociedades. Não constitui hoje qualquer problema para um lisboeta ou um paulista ler textos redigidos em língua portuguesa produzidos em Angola, Moçambique, Cabo Verde ou São Tomé e Príncipe. Pretender unificar artificialmente aquilo que é naturalmente diferente constitui um forcing atroz promovido por políticos e pessoas com interesses vários, divorciados da maioria do povo português, a quem não ocorreria semelhante coisa. Este eventual acordo, que rejeito totalmente, não faz qualquer sentido, é contra natura e soa mais como um eventual capricho de meia-dúzia de linguistas e de alguns políticos do que como vontade popular da Nação. Urge pôr cobro a esta inútil tentativa de alteração da ortografia do português, que não resolve problema nenhum! Muito pelo contrário, cria problemas! A ortografia, sendo embora importante, está longe de representar o todo de uma língua. Então esquece-se o vocabulário e a sintaxe?
Parece que agora a moda é dizer que um documento a assinar em português nas Nações Unidas teria que ser uniforme. Porquê, se o não tem sido até aqui? Porquê se não sucede assim com outros países? Se for em português do Brasil, não tem qualquer importância para nós. Desde que o representante do Estado português concorde, qual é o problema? O problema, esse sim, reside na forma prepotente como se pretende que os portugueses passem a grafar as suas palavras de maneira assaz diferente daquela que sempre aprenderam, apenas para falsamente unificar algo que é naturalmente diferente e que assim se deve manter!
Como já tenho dito, não sou contra alterações dentro da própria língua sempre que isso se deva à natural evolução do idioma. Mas serão sempre alterações dentro do contexto da sociedade nacional. Se essas mudanças vão ser influenciadas por sociedades estranhas à nossa, que sentido faz? A língua não é moeda de troca, está profundamente enraizada nas pessoas. É bom que os políticos não se esqueçam disso!

P.S. Vi na segunda-feira passada uma parte do programa "Prós e Contras" sobre esta questão e, confesso, para mim o mistério adensa-se. Que forças estão por detrás desta barbaridade? Alguns dos argumentos aduzidos são tão ridículos que não posso deixar de os achar estranhíssimos. Ouvi dizer, por exemplo, que os alunos estrangeiros que aprendem a língua portuguesa no seu país - umas centenas, quando muito pouquíssimos milhares - ficam confundidos, porque podem ter uma ortografia de manhã, por um docente português, e outra à tarde, por um docente brasileiro. Que fraquíssimo argumento para obrigar mais de dez milhões de portugueses a alterarem a sua maneira de escrever 2000 a 3000 palavras da sua própria língua! Por um lado, diferenças na ortografia não são nada de grave e, o que é mais, repito o que todos sabemos: que a ortografia é apenas uma parte da língua. Entre o português do Brasil e o português de Portugal existem diferenças muito mais significativas. E então seria esse reduzidíssimo número de aprendentes de português lá fora que iria fazer mudar todos os portugueses do país e das várias comunidades espalhadas pelo mundo?!!
Um outro argumento que ouvi é o de que para os muitos iletrados do Brasil e de Portugal aprender a escrever de maneira simplificada seria muito mais fácil. Então, em vez de dar boa educação a quem não sabe, resolvendo substancialmente o problema dos iletrados, pretende-se obrigar todos os que sabem a mudar! Daria para rir, se não fosse triste!
Ainda um outro argumento que ouvi, da parte de uma escritora que até aprecio, foi o de que estamos a sofrer uma enorme influência da língua inglesa, da qual importamos palavras - a pessoa em questão falou em bullying, mas depois não conseguiu encontrar uma palavra portuguesa que quisesse dizer o mesmo - e que essa influência só estancaria se tivéssemos a mesma ortografia do Brasil. Ora, as palavras estrangeiras entram no nosso país por uma influência cultural: quem inova em informática, em sociologia ou em ciência tende, de uma maneira geral, a exportar novos vocábulos; quem adopta tende a importá-los, pelo menos numa primeira fase. Querem agora dizer-nos que é por causa da nossa ortografia que isso sucede? Pois, mudando 2000 e tal palavras, toda a importação de vocábulos estrangeiros pararia também?!
Depois, falsamente, ouvi dizer que a língua inglesa tinha a mesma grafia em todo o lado! Qualquer aluno de inglês até acha curioso que o centre inglês seja center na América, que o programme britânico seja program nos Estados Unidos e que a colour europeia seja grafada como color do outro lado do Atlântico. Qual é o problema? Há, naturalmente, que explicar aos alunos que ambas as grafias são certas, cada uma no seu sítio. Como professor de inglês, eu nunca corrigiria um aluno que escrevesse program, a não ser que ele escrevesse algo como my favourite program, porque aí estaria a quebrar o princípio da consistência (favourite adopta a ortografia britânica, enquanto program adopta a americana). Quanto ao resto…
Pessoalmente, há algo que não perdoo nesta arengada de reforma ortográfica de um país à custa da evolução linguística em antigas colónias: que seja negligenciada a importantíssima distinção entre formas populares (usadas todos os dias) e formas eruditas (usadas com maior parcimónia) na eliminação de consoantes aparentemente mudas - mas funcionais. Eu posso não pronunciar o -p- em óptimo (forma popular), mas pronuncio-o em optimizar e em optimização (formas mais eruditas).
Por outro lado, a língua mantém traços do antigo, da mesma maneira que um velho mantém a memória da sua infância. Sucede em todos os idiomas. Repare-se, por exemplo, que em francês o acento circunflexo poderia desaparecer em hôpital, em âne, em fête e em tantas outras palavras. No entanto, ele está lá para mostrar que antigamente existia um -s-, na palavra, que aliás se manteve em português nos vocábulos correspondentes hospital, asno e festa. Em inglês, often é na generalidade pronunciado sem que se oiça o -t-, mas há pessoas que o pronunciam claramente. E o -t- mantém-se. Retirá-lo descaracterizaria bastante a língua, tal como retirar o -l- em should, would, talk, walk, etc. Portanto, nestes casos o -l- mantém-se.
De facto, para mim tudo isto é, para além de uma grande aberração, um enorme mistério.

4/11/2008

Inimaginável

Pelo menos para mim é impossível imaginar o caos que deve ir pelo país que Mugabe insiste em controlar apesar de ter perdido as eleições. O Zimbabwe, antiga colónia inglesa da Rodésia do Sul, emitiu notas novas de 10.000.000 de dólares, naturalmente com a chancela do Reserve Bank of Zimbabwe. Consta que há duas semanas uma nota dessas dava para comprar dois rolos de papel higiénico.
Presentemente, a Rodésia debate-se com um monstro intratável: uma taxa de inflação da ordem dos 100 mil por cento. O próprio governo compra no mercado negro divisas estrangeiras para poder fazer face a pagamentos.
Que belo campo de acção para abalizados economistas e homens de finanças de todo o mundo procurarem resolver um imbróglio infernal! Por que ponta pegar?

4/09/2008

Time is money!

Uma das máximas que mais vezes se repetem, muitas vezes algo fora de contexto, é "Time is Money". Neste sentido, pareceu-me interessante dar um enquadramento maior à expressão, que foi usada pela primeira vez por Benjamin Franklin no seu Poor Richard’s Almanach, uma publicação que ele lançou e manteve activa durante 25 anos (de 1732 a 1757). "Time is money" enquadra-se num conjunto de conselhos práticos, como era timbre do almanaque, e neste caso sobre o tema do dinheiro.
"Não te esqueças que o tempo é dinheiro. Quem pode ganhar com o seu trabalho dez xelins por dia e se põe a passear ou fica a preguiçar no quarto metade do dia, não pode, mesmo que só despenda meio xelim com os seus prazeres, contar apenas esta despesa, pois acabou na realidade por gastar, ou melhor, por deitar fora cinco xelins mais.
Lembra-te que o crédito é dinheiro. Se alguém me deixar ficar com o seu dinheiro depois da data em que eu teria de lho pagar, está a oferecer-me os juros ou aquilo o que ele me render durante este tempo. Tudo ascenderá a um montante significativo quando alguém tem bom crédito e faz bom uso dele.
Lembra-te que um homem de boas contas é senhor da bolsa alheia. Quem for conhecido por pagar as suas contas pontualmente pode a todo o momento pedir emprestado o dinheiro que os amigos lhe possam dispensar.
Um homem não pode esquecer que as mais pequenas acções têm influência sobre o seu crédito. Se o teu credor ouvir as pancadas do teu martelo às cinco horas da manhã ou às oito da noite ficará descansado durante seis meses; mas se te vir à mesa do bilhar ou ouvir a tua voz no café quando devias estar a trabalhar, então irá reclamar-te o pagamento na manhã seguinte e exigir o seu dinheiro antes que o tenhas à tua disposição. Portanto, mostra também que pensas nas tuas dívidas, permitindo que te reveles um homem tão escrupuloso quanto honesto, o que aumentará o teu crédito."
Estes são conselhos pragmáticos, do género de um outro criado pelo mesmo Franklin: "Early to bed, early to rise, makes a man healthy, wealthy and wise."
Algo diferente, como Max Weber nota no seu livro A ética protestante e o espírito do capitalismo, é a resposta do famoso banqueiro Jakob Fugger a um associado que se havia retirado dos negócios e que o aconselhou a fazer outro tanto, dado já ter ganho o suficiente e querer deixar que outros ganhassem também. Fugger classificou essa atitude de "cobarde", retorquindo que ele, Fugger, tinha uma perspectiva completamente diferente: queria ganhar enquanto pudesse." Aqui, Fugger empresta um cunho ético à sua maneira de lidar com o capital e com a própria vida, diferente dos conselhos basicamente práticos de Franklin.
Com qual dos posicionamentos, se é que com algum deles, se identifica mais o leitor destas linhas?

4/07/2008

O cuspinho

Foi só aos doze anos, quando entrei no velho Passos Manuel, que soube o que era o cuspinho na cara. Até aí, fosse na instrução primária tirada na província ou nos dois primeiros anos do liceu numa escola particular, essa era uma prática que me era completamente desconhecida. No Passos Manuel, porém, era geralmente num dos intervalos das aulas que um indivíduo maior ou mais zaragateiro do que aquele que era provocado, se acercava da vítima e, usando a mesma desrazão do lobo para com o cordeiro, pespegava-lhe na face um pouco da sua saliva. Tirada ali, ostensivamente. Estava dado o mote. O que se seguia dependia muito das circunstâncias. Se o provocado esquecia a maior estatura do provocador era capaz de lhe responder com uma canelada bem forte e fugia logo de seguida, confiando entretanto na protecção que os seus amigos lhe dariam. À correspondente perseguição e apanha seguia-se um engalfinhamento, que às vezes terminava no gabinete do director. Se bem me lembro, porém, na maioria das vezes nada se passava. O rapaz provocado limpava a cara com o lenço - naquela altura toda a gente usava lenços de pano e não de papel -, baixava a cabeça e, vermelho misto de vergonha e raiva, afastava-se de mansinho, à espera do toque salvador da sineta para a aula seguinte.
Hoje, incidentes deste tipo seriam denominados de bullying e ganhariam possivelmente novos contornos. Mas não é de escolas que eu venho aqui falar. É de provocações sim, mas feitas por cristãos a muçulmanos. Pelo menos, é assim que as vejo. Na Holanda, há um político nada amigo do Islão, que está nesta altura a promover um filme que, como ele diz, irá provar que "a ideologia islâmica é atrasada e perigosa". Na vizinha Dinamarca, após a prisão de um homem que alegadamente se propunha matar o célebre caricaturista do Profeta Maomé, um jornal voltou a publicar uma das caricaturas que tanto brado deram. Contudo, possivelmente o caso mais badalado - em Portugal não li nada sobre o assunto - foi o facto de o próprio Papa ter decidido baptizar um jornalista egípcio, famoso pelos seus livros contra o islamismo, o qual ele acusa de ser um religião de terror. Bento XVI escolheu para dia da conversão desse jornalista ao catolicismo a véspera do Domingo de Páscoa. E onde? Nada mais, nada menos do que na Basílica de S. Pedro, no Vaticano.
Aqui não se trata de cuspinho, como nos casos que acima relato, mas da água benta sempre usada nos baptismos. Em cenário altamente conspícuo. Vamos a ver que efeitos terá. É que nem toda a gente se encolhe, baixa a cabeça e desaparece sorrateiramente...

4/04/2008

De cavalo para burro

No passado, países como Portugal sempre se sentiram orgulhosos por poder dar lições ao mundo. A que mundo? Bem, ao mundo dos territórios coloniais que lhes pertenciam. Muitos portugueses europeus sentiam-se professores que ensinavam "boas práticas" aos seus alunos, na sua maioria nativos africanos. Quem fez isso durante séculos, sente-se naturalmente superior.
Com a Inglaterra sucedia o mesmo. Correspondência trocada entre ingleses que viveram nas Índias e nas Áfricas denota este facto sem margem para dúvidas. Ora, muitas pessoas da geração que viu os impérios coloniais desmoronarem-se ainda andam por este mundo. A sua cultura é marcadamente diferente da dos jovens de hoje, para quem o império será coisa de livros, de filmes e de histórias contadas pelos mais velhos.
Presentemente, a conversa é outra, porém: a da globalização. Talvez devido a essa globalização, de numerosos países descolonizados entre 1947 e 1975 irrompem agora casos interessantes: são os antigos alunos que vêm adquirir propriedades na terra dos seus ex-professores.
O orgulho ferido dos antigos colonizadores foi amenizado nos primeiros tempos pós-descolonização através da criação ou re-criação de anedotas que ridicularizavam os novos chefes de Estado ou o próprio povo. Os ingleses parodiaram a língua inglesa falada pelos seus ex-súbditos indianos agora independentes, puseram a ridículo através de frases colocadas na boca de chefes africanos a estupidez personificada desses chefes. Esta é sempre a expressão da dor-de-cotovelo que se sente por se ter já perdido o poder de outrora. O mesmo fizeram os portugueses com Samora Machel e com o povo das ruas. Actualmente o número dessas histórias é já muito mais reduzido, tanto na Inglaterra como em Portugal.
A música agora é diferente! Aos poucos, chega algo como o reverso da medalha. Os indianos do grupo Tata compraram há oito anos a mais famosa marca de chás do mundo, inglesa - a Tetley - e recentemente a Jaguar e a Land Rover. O espírito branco colonialista dos tempos de Tarzan, o branco que dominava toda a selva e tinha animais amigos por todo o lado, imagina logo mãos mais escuras a montarem carros-de-luva-branca como o Jaguar. É certo que a Jaguar e a Land Rover até já pertenciam à Ford, da também antiga colónia britânica hoje denominada Estados Unidos da América. Bem, mas aí eram brancos e poderosos. Agora, indianos! (Pois sim, mas não são os milhões de indianos pobres que adquiriram estas marcas. O grupo Tata, expoente dos antigos marajás e símbolo das diferenças abissais que existem na Índia entre ricos e pobres, exibe uma facturação que corresponde a 3,2 por cento do Produto Interno Bruto da Índia!)
Os portugueses, por seu lado, também não vêem com bons olhos os angolanos entrarem na GALP e no Millennium. Mas se não os deixarem entrar cá, verão as portas fechadas em Angola para os grandes negócios. Logo…
Se o cenário de antigas colónias a dominar ou mesmo a adquirir totalmente empresas da antiga mãe-pátria já custa, imagine-se a relutância que interiormente muitos nacionais de países como Portugal sentem quando é a ortografia de uma antiga-colónia - o Brasil - que se pretende venha a influenciar maioritariamente alterações ortográficas de fundo na língua portuguesa! Todas estas coisas estão relacionadas, quer queiramos, quer não!

4/02/2008

A escola e a vida

É comum ouvir-se que a escola prepara para a vida. A julgar, porém, pelo que ouvimos e lemos sobre um número nada despiciendo de escolas portuguesas, isso nem sempre será assim. A escola não deve, obviamente, cortar as asas dos jovens - muito pelo contrário, deve dar forças a essas asas para voarem. A liberdade é um bem essencial. Mas uma das funções da escola não é certamente a de fazer com que as crianças continuem a ser crianças. Ela deve prepará-las para a vida. E a vida exige responsabilidade. A escola deve servir, se necessário for, para desmamar e desmimar crianças, torná-las mais conscientes de si próprias e independentes na sua maneira de agir. Não o oposto, desresponsabilizando-as, deixando-as impunes quando eventualmente cometem erros graves. Nada disto quer dizer que não haja tempo para os estudantes rirem, brincarem e terem verdadeiro prazer com isso. A componente lúdica é essencial na vida. Mas superproteger a criança é um enorme erro, que se paga caro na idade adulta.
Vi há tempos na Net alguns conselhos a jovens sobre educação. Dos onze que lá encontrei, retirei sete excertos, que me pareceram apropriados.
1. A vida não é fácil. Acostuma-te a isso.
2. Se achas que o teu professor é exigente e mal-educado, espera até teres um chefe.
3. Se fracassares, não é por culpa dos teus pais. Por isso não lamentes os teus erros e tenta retirar uma lição do que fizeste mal.
4. Antes de "salvares o planeta" para a próxima geração, procurando assim corrigir os erros da geração dos teus pais, tenta é limpar e arrumar o teu próprio quarto!
5. A tua escola pode ter eliminado a distinção entre vencedores e perdedores, mas a vida não é assim. Nalgumas escolas, dão-te todas as oportunidades que forem precisas para passares. Na vida real, se pisares o risco, estás despedido. Por isso, habitua-te a fazer tudo como deve ser logo à primeira.
6. A televisão não é a vida real. Nesta, as pessoas têm que deixar de ir ao bar ou à discoteca, e ir trabalhar.
7. Sê simpático para com aqueles estudantes que os outros julgam que são uns patetinhas. Existe alguma probabilidade de vires a trabalhar para um deles.
É neste quadro de realismo e de responsabilização das pessoas que vejo a escola. Vejo-a como uma comunidade de aprendizagem, onde professores e alunos procuram estudar, ensinar ou aprender com prazer e encontram uma razão forte para o fazer. Sinto que seria muito mau que alguém comentasse: "Qualquer coincidência entre estes princípios e o que se pratica nas escolas portuguesas é mais do que coincidência: é azar!".

Feitiço contra feiticeiro produz efeitos

Seria injusto afirmar que toda a desregulação que tem existido no mundo financeiro, cada vez em maiores doses, se deve aos Estados Unidos. Embora com maior prudência do que os seus parceiros do outro lado do Atlântico, a Europa dos ricos alinhou claramente no sistema e, depois, todos os potentados por esse mundo fora. Daí que o dinheiro que contabilisticamente circula pelo globo seja, segundo análises conservadoras, pelo menos o triplo do que o produto gerado pela economia. A actual situação de ninguém-se-entende já tem sido fartas vezes verberada na Europa. Pessoalmente, ouvi há cerca de dois anos tanto Trichet, Presidente do BCE, como o governador do nosso BdP, numa sessão muito interessante que se realizou na Gulbenkian, verberar a falta de controlo dos mercados financeiros.
Ora, essa tentativa de maior controlo está a chegar! As crises, como esta dos empréstimos de alto risco (subprime), trazem sempre consigo coisas boas. Segundo os media, são os próprios EUA que, pela voz do seu Secretário do Tesouro Henry Paulson, vieram anunciar uma reforma financeira do sistema de tal monta que só é comparável à que foi efectuada após a Grande Depressão, nos anos 30 do século passado. O que a reforma - sugestivamente intitulada "Programa para uma reforma regulatória" - propõe entre outras coisas é um alargamento dos poderes da Reserva Federal (Estado), que passaria a deter maior controle sobre a actividade de todo o sector financeiro, incluindo os bancos de investimento, as companhias de seguros e os fundos de investimento de risco (hedge funds), que até aqui têm estado isentos do controle bolsista. A Reserva Federal poderá estabelecer limites para os riscos assumidos pelas várias instituições sempre que isso constitua uma ameaça ao sistema financeiro.
É evidente que este Programa irá merecer alguma contestação, mas o facto de ele ter sido concebido e redigido constitui uma medida de bom senso evidente no país que se intitula de maior liberdade de mercados. Há crises que fazem rever os princípios e chamam as pessoas à razão. Afinal, se todos os homens fossem bons e soubessem agir dentro de sãos princípios, seria necessária a existência de governos?