12/29/2008

Fim-de-Ano

As mensagens de fim-de-ano são sempre, justificadamente, as mesmas. Deseja-se prosperidade, paz, amor e felicidade. Tudo certo.
Depois, deparamos com uma realidade diametralmente oposta, a qual acaba por constituir a prova cabal da justificação dos nossos votos. O que as notícias nos trazem, afinal, são cenários de uma grave crise global, com números de desemprego a elevarem-se significativamente, fraudes financeiras a fazerem estragos por todo o mundo e agora, para coroar o bolo de desumanidades, ataques aéreos devastadores de Israel, um país useiro e vezeiro em conduzir tal actividade sobre a faixa de Gaza. O número de palestinianos mortos já ultrapassou em muito os 300, os feridos são cerca de 1500. Há também notícia de quatro israelitas mortos por foguetões lançados de Gaza. Sobre os israelitas soube-se quem tinha sido a primeira vítima e agora, relativamente à segunda, sabe-se que era um operário da construção civil que estava a trabalhar num prédio na cidade de Ashkelon. Dos palestinianos não consta nas notícias qualquer ficha individual. Para quê? Os "nossos" contam, os outros…
Aos amigos do azweblog endereço com amizade os votos de que o ano que vai entrar corresponda às suas expectativas.

12/27/2008

Accionista à força

Se houve acções do mercado bolsista português que nunca me interessaram foram as de bancos. Não digo que, indirectamente, através de fundos de investimento eu não tenha estado minimamente ligado ao bom ou mau desempenho de uma ou outra instituição bancária de que nunca soube o nome. Mas agora é diferente. Agora, o Estado fez-me estar de olhos bem abertos para a maneira como a banca portuguesa está a ser gerida. Empresta ou não empresta dinheiro, engorda ou não engorda, resolve as suas dívidas ao estrangeiro ou não? O que paga aos seus administradores é consentâneo com o trabalho destes e com a situação financeira da instituição? Todas estas coisas me vão interessar imenso no ano que agora vai entrar. 2009 vai ser o ano em que todos os contribuintes portugueses, comigo incluído, vão estar bem atentos!
Se tudo correr bem, embora seja accionista à força como contribuinte líquido do Estado com os meus impostos indirectos e directos, não irei receber nada mas posso dormir mais sossegadamente. Se a coisa andar para o torto, porém, é sinal de que o dinheiro que os meus compatriotas e eu fomos obrigados a dar não foi suficiente. Então teremos a situação bem preta, porque não são só os bancos que ficam na mó de baixo mas também o próprio Estado.
À custa de tanto ouvir dizer que "o Estado somos nós" começo a perceber que há algo de verdade nisso, principalmente quando me vejo forçado a subsidiar a banca, a correr riscos e, ainda por cima, a não ter eventualmente outros benefícios do que o retorno à situação que vivemos no passado. Ora, como confessei acima, nunca coloquei o meu dinheiro voluntariamente para comprar acções da banca portuguesa. Esta cena, inimaginável há uns tempos, faz-me lembrar uma história que se contava no tempo de Salazar, em que este chegava à janela, fazia o seu discurso e, no final, dizia para a multidão que o ouvira mais ou menos atentamente cá em baixo: “Obrigado, meu povo!”. E o bom povo respondia: “Obrigados somos nós!”

12/26/2008

Os virtuosos

Portugal pode não possuir poços de petróleo mas, a julgar pelo que imensas pessoas dizem de si próprias, é possuidor de inúmeros outros poços: de virtude. Quantos de nós não ouvimos já alguém a falar exaltadamente de outrem e a mencionar as manias, as manhas, a má-formação, o egoísmo desse outrem. E ainda: a sua inveja, a sua incompetência, a sua secura.
O interessante é que quem fala assim de um outro ser humano está implicitamente a autoconsiderar-se juiz. Juiz a sério, com qualidades opostas aos defeitos que aponta: é um ser perfeito, impoluto, objectivo, profissionalmente competente, honesto, altruísta, solidário. Um verdadeiro modelo de virtude. Todos conhecemos pessoas assim, do Minho aos Açores e da Madeira ao Algarve. Por vezes, aliás, somos nós próprios que ocupamos essa mesma cátedra de juiz. Somos, também nós, poços de virtude. Enriquecemos o país. Virtualmente.

12/21/2008

Hemodiálise urbana

A escalada da idade faz muitas vezes as pessoas alterarem o seu modo de olhar as coisas. Não necessariamente para melhor, diga-se, até porque os olhos ficam geralmente mais fracos e o número de circuitos cerebrais tende a diminuir.
Desde miúdo que adoro andar a pé por várias partes da cidade onde vivi a esmagadora maioria dos anos da minha vida. A pé vê-se muito mais do que de qualquer outra forma. Deparamos com figuras e falas de pessoas que nos fazem cogitar e nos desviam a atenção de um eventual cansaço das pernas. A pé, vê-se a cidade viva, vizinhas a tagarelarem à janela ou à porta de casa, a mulher que protesta contra os malvados pombos que lhe sujaram a roupa estendida, o homem que lava o seu carrito para entreter o tempo, o outro que se mete na viatura sem sair do local habitual de estacionamento apenas para pôr o motor a trabalhar não vá a bateria ir-se abaixo, um terceiro que fica, igualmente com o carro parado, sentado ao volante lendo um jornal gratuito que apanhou algures. E, depois, há as vielas estreitinhas que são as grandes amigas dos ébrios pelo apoio que lhes dão com as suas paredes, a cãzoada que às vezes arma uma zaragata tremenda, o eléctrico que nos passa a rasar o corpo, os pingos do aparelhos de ar condicionado ou as gotas de água das floreiras recentemente regadas que nos caem na cabeça ou na roupa. Há de tudo, uma cidade viva, com pedintes e casacos de pele, viaturas topo de gama a circular e chaços que já deviam há muito estar na sucata e continuam a ocupar espaço nas ruas.
Esta tem sido a minha cidade desde sempre. Mas, entretanto, algo mudou muito para mim. A Baixa costumava ser noutros tempos o meu ponto de encontro com amigos, com quem dava dois dedos de conversa ou estabelecia uma bela cavaqueira que poderia durar até às tantas. Ríamos, discutíamos, voltávamos a rir, terminávamos com óptima disposição. Jogar uma bilharada era perfeitamente normal para desopilar. Aparecia entretanto mais um amigo que se juntava ao grupo. Era completamente impossível ir até à Baixa sem encontrar alguém conhecido, até porque sabíamos o local de pouso habitual de muitos de nós.
Posteriormente, com o correr do tempo e as horas de trabalho a ocuparem-nos muito do nosso antigo lazer, com a constituição da família e a atenção que é necessário e um prazer dar-lhe, a separação começou a ocorrer. De forma gradual, mas contínua. Ocupações variadas dos membros do nosso vasto grupo, deslocações de alguns para fora de Lisboa, de outros para fora do país e ainda, com o andar dos anos, do falecimento de outros fizeram com que a cidade surgisse completamente diferente a meus olhos, apesar de ter as mesmas colinas e o seu amigo e esplendoroso Tejo a embelezá-la.
Hoje em dia, o que mais me surpreende e impressiona é o facto de, logo depois de sair do bairro onde moro, no qual naturalmente conheço muita gente, poder ir de metro ou outro transporte público até qualquer ponto da cidade na quase-certeza de que não verei nem serei visto por ninguém que eu verdadeiramente conheça. Só ocasionalmente depararei com um antigo colega num centro comercial, um antigo aluno que me vem cumprimentar, um amigo de sempre que calhou estar naquele sítio àquela hora. São centenas ou milhares as pessoas por quem passo. Sinto-me, desse ponto de vista, como se estivesse no estrangeiro, em Londres, Berlim ou Viena. É verdade que os amigos ainda vivos-e-em-boa-forma estão apenas a um toque de telefone, são encontráveis numa reunião, numa festa e, hélas!, num funeral. Mas já não andam por aí. No seu todo, parece-me que a cidade sofreu uma mudança quase total do sangue que circula nas suas artérias. Apetece-me dizer que se trata de uma hemodiálise urbana.
Ora, esta ocorreu de certo, como aliás sempre ocorre em todo o lado. É o renovar das gerações. Em Lisboa, com a entrada de muitos imigrantes que antigamente não eram habituais, a mudança da população é possivelmente ainda mais nítida do que nalgumas outras cidades. Porém, não é essa a diferença que me impressiona mas sim o vazio que acima mencionei.
Dir-me-ão, e eu não deixo de parcialmente concordar, que isto nada tem de especial. Qualquer pessoa com algumas luzes de estatística dirá que a teoria das probabilidades explica isso tudo muito bem. Assim como me dirá que, no meu caso pessoal, encontrar pessoas conhecidas em livrarias ou em determinados espectáculos é bem mais provável do que na rua. Do que não restam dúvidas é de que a diferença é muito notória. A sensação acaba por não ser necessariamente desagradável, mas é certamente estranha.
Entretanto, nunca recebi tanta correspondência de amigos e simples conhecidos pelos meios tecnológicos habituais como agora. Sinal dos tempos.

12/16/2008

Resultados algo inesperados

É curioso verificar que dois estabelecimentos do mesmo ramo num grande centro comercial podem conduzir a mais vendas do que um apenas. O facto a seguir, verídico, ilustra bem a natureza da mentalidade dos clientes, que afinal somos nós todos. Quando o Cascaishopping abriu, o centro contava, entre a sua vasta panóplia de estabelecimentos comerciais, apenas com uma loja de óptica. As vendas desta loja eram baixas. Um tanto contra a opinião do proprietário da loja existente, a gerência do shopping decidiu arrendar uma segunda loja de óptica a uma firma interessada. Resultado: as vendas da primeira loja subiram e as da segunda iniciaram-se muito bem. O que se passou? A maioria das pessoas que visitavam aquela que até determinada altura era a primeira e única loja de artigos ópticos gostava dos produtos mas, literalmente, não sabia se gostava dos preços. "Possivelmente lá fora estes óculos são mais baratos!" Com esta hesitação, a compra não era feita ou, quando muito, ficava adiada. Com o aparecimento da segunda loja, os clientes passaram a poder estabelecer uma comparação dentro do centro comercial. O resultado foi o aumento da sua capacidade de decisão e, para ambas as lojas, o consequente êxito de vendas.
Esta história já tem alguns anos, mas neste preciso momento está a suceder também algo inesperado devido à crise económico-financeira que se vive. Será de crer que, em tempo de crise, um fabricante não veja com bons olhos a queda de um rival seu? Parecerá impossível à primeira vista. Mas está a acontecer. Como sabemos, há nos Estados Unidos um plano para salvar financeira e economicamente duas importantíssimas fábricas de veículos: a General Motors e a Chrysler. Para já, o Senado não aprovou o primeiro plano apresentado. Quem está a rezar para que as fábricas não fechem? Outros gigantes da indústria, rivais, como a Toyota e outras marcas japonesas, que vendem mais nos Estados Unidos do que no Japão. E por que razão não esfregam as mãos de contentes as construtoras japonesas? É que os fabricantes de uma larga gama de componentes-auto são os mesmos para os americanos e para os japoneses. O encerramento, seja da General Motors, seja da Chrysler, pode conduzir ao encerramento das fábricas de componentes, o que por sua vez obrigará os japoneses a terem de parar a produção por falta de material.
A economia e o mercado têm destas coisas.

12/15/2008

Sapatos de usar no pé atirados à cara

Se mostrar a alguém a sola de um sapato é, no mundo árabe, já em si uma ofensa, atirar com um sapato à cara desse alguém é um acto de raiva. Lançar um segundo sapato dirigido ao mesmo alvo só pode mostrar extrema raiva, incontida. O jornalista Muntadar al-Zaidi da TV iraquiana e correspondente de uma estação sediada na cidade do Cairo, não aguentou a náusea que a conferência de imprensa dada pelo Presidente Bush e o Primeiro-Ministro iraquiano, Maliki, lhe estava a causar. Ao atirar o seu primeiro sapato, que Bush conseguiu in extremis evitar, gritou: "Este é um beijo de despedida do povo iraquiano, cão!" Ao lançar o segundo, que também falhou o alvo por pouco, voltou a gritar, antes de ser detido pelos seguranças: "E este é pelas viúvas, órfãos e todos aqueles que foram mortos no Iraque."
É altamente provável que Al-Zaidi fique preso; é mais do que provável que, para já, perca o seu lugar na TV iraquiana. Mas ele é um homem que decerto muitos dos que participaram em todo o mundo nas enormes manifestações contra a guerra do Iraque antes de esta se iniciar compreendem perfeitamente e admiram. Quanto a Bush, se já estava a sair pela porta baixa, agora sai de gatas.
Pessoalmente, alinharia de bom grado numa campanha internacional para a libertação do jornalista em questão. Como Brecht disse: "Quando o rio leva águas que são bravas e alterosas, é importante que se olhe para as margens que o apertam."

12/12/2008

Dúvidas que naturalmente se levantam

Como quase todos sabemos, a sigla inglesa SWOT é a expressão de um conjunto de quatro elementos considerados essenciais numa análise de boa gestão. Os quatro componentes referem-se a Pontos Fortes (Strengths), Pontos Fracos (Weaknesses), Oportunidades (Opportunities) e Ameaças (Threats).
A actual crise financeira não é mais do que do que a tradução prática da crise de valores de que há muito se fala. Quando a mentira prevalece sobre a verdade, o embuste sobre a transparência, a vigarice sobre a honestidade, o que se poderia esperar? Quando os fluxos financeiros entram (profundamente) no reino do virtual e circulam em quantidades muito superiores aos gerados pela economia real, poderia mais tarde ou mais cedo deixar de ocorrer o que ocorreu?
Pois sim, dir-se-á: "aqui está mais um profeta do passado". Até concordo que se diga isto no que respeita ao parágrafo atrás. Só que não foi ele que me levou a escrever estas linhas. O que me preocupa é o ponto 3 do SWOT: estará a aproveitar-se realmente a "oportunidade" para corrigir o sistema? Pelo que vejo, até ao momento não há diferenças substanciais. Nem a verdade prevalece sobre a mentira, nem a honestidade sobre a vigarice. As bolsas continuam com a sua mais do que inquietante volatilidade, que permite aos grandes investidores lucros consideráveis. Os hedge funds mantém-se a funcionar praticamente com a mesma falta de controlo de anteriormente. Os paraísos off-shore não abrandam a sua actividade, embora o valor dos fundos neles geridos tenha baixado muito consideravelmente. Porque se tarda tanto a tomar medidas neste campo?
Veja-se que os diversos Estados se colocaram inegavelmente do lado da banca, i.e. dos grandes investidores institucionais, que por acaso são também, muitos deles, os grandes especuladores internacionais. Aliás, como é que se consegue ganhar tanto dinheiro tão rapidamente? Só fazendo-o fluir dos bolsos dos que têm menos para os daqueles que possuem bolsos tão grandes que até se vêem forçados a escondê-los nos “paraísos fiscais” para dar menos nas vistas e por outras razões consabidas. Às palavras dos governantes sobre a (justificada) razão das garantias estatais que oferecem – fazer movimentar a economia, permitir empréstimos a firmas em dificuldades – muitos banqueiros têm feito ouvidos de mercador. Querem primeiro ver os seus prejuízos reduzidos, depois pensarão no resto. Primum vivere, deinde philosophari, como aprendi a dizer nos meus tempos de liceu.
Entretanto, gostaria de chamar a atenção para um vídeo, já não totalmente recente, sobre a crise financeira, que está no YouTube com legendas em português. Dêem uma vista de olhos, se fazem favor. Além do mais, é bem-humorado. http://www.youtube.com/watch?v=CmGTnveyG7E . (Se por acaso não se vir ou ouvir bem aqui devido à hiperligação, vale a pena copiar o website e ouvir fora do blog.)

12/09/2008

Desafiando a lógica




Em Lisboa, ou em qualquer outra cidade do mundo, só podemos arrumar o carro na rua se não prejudicarmos o trânsito normal da via. É lógico. Seguindo o princípio de que não devemos fazer aos outros o que não gostaríamos que nos fizessem a nós, arrumar o nosso automóvel atrás de um outro implica que devemos estar de ouvidos atentos a uma buzinadela mais forte, que é de certeza para que nós tiremos dali a viatura e deixemos o outro carro sair.
Tudo se passa assim, de facto. O meu espanto foi grande, admito, quando ontem dei uma volta aqui pela zona da Alameda D. Afonso Henriques e deparei, na rua José Acúrcio das Neves, com a cena que fotografei. A rua em questão nasce na Avenida Almirante Reis e termina junto a umas escadas, ou seja, a parte terminal da rua é mesmo ali. Não tem continuidade. Pois bem: ter três filas de carros estacionados nesse pequeno troço brada aos céus. Sempre que o proprietário de um deles quer sair, v.g. o 76-02-EJ ou o 04-AQ-46, como é que faz?
Foi esta pergunta que fiz a um rapaz que passava por ali a carregar uma bilha de gás. “Não é fácil. Alguns dos carros pertencem a pessoas que trabalham no restaurante ali em baixo,” disse-me ele a meio da escada pública. “Quando alguém quer sair, vai lá e eles tiram um carro ou dois.” Então e se o carro for de um dos residentes daqui, perguntei. “Não sei bem. Isto às vezes complica-se. É possível que já tenha havido problemas.”
Espero que não, mas tenho que admitir que estamos perante um caso de necessidade premente de boa vizinhança. Se assim não for, alguns dos automóveis vão aparecer pelo menos com alguns riscos. Este é o que se pode chamar um estacionamento de alto risco.

12/07/2008

Atoardas

Nota prévia - S.Krok, que já tem várias vezes colaborado com este blogue, acaba de me enviar este texto por mail, dizendo que não consegue entrar por qualquer razão técnica. A assinatura será minha, portanto, mas não o conteúdo da mensagem.

Estou cansado de ouvir dizer mal dos políticos. É verdade que há alguns que não são flor que se cheire, mas outros não merecem a imolação a que os querem sujeitar. Agora chegou a vez de um homem que se afastou já há uns anos de práticas políticas propriamente ditas - é apenas membro do Conselho de Estado. A propósito da sua participação num banco que foi recentemente nacionalizado, vê-se apontado como alegado autor das coisas mais diversas, sendo além disso o alvo preferido dos media por ser membro do referido Conselho de Estado. O interessante é que nada se provou contra ele. Nem sequer foi a tribunal! Tudo decorre na praça pública, onde impera o IVA, aquela combinação explosiva bem portuguesa que produziu o bem conhecido acrónimo: Inveja + Vingança + Astúcia. Os portugueses são assim: por um lado, detestam a polícia e tudo o que cheire a invasão por esta da sua esfera privada. Por outro, adoram ser eles os polícias, e não fazem outra coisa do que aquilo que dizem detestar. Têm inveja de quem dispõe de mais posses do que eles, regozijam-se com a vingança que possam ter sobre esses indivíduos e, astuciosamente, proclamam as suas próprias virtudes como se nenhum pecado ou pecadilho os manchasse.
Há algo que tem de ser dito: todos os grandes políticos possuem grandes ambições. São estas que os arrastam para a acção. Um político sem ambições, que também os há, não passará nunca de um membro do Parlamento que estará pontualmente no seu posto para votar uma determinada proposta do seu partido. Não se lhe peça muito mais, a não ser eventualmente colaborar em comissões de estudos parlamentares. Porém, o grande político quer muito mais do que isso.
Tomemos o caso de Isaltino Morais. Já foi ministro. É um autarca muito admirado pelos seus munícipes. Conseguiu ser reeleito mesmo à revelia do seu partido. O que ele tem logrado fazer pelo município de Oeiras é notável. É um homem de vistas largas. Sem ele, Oeiras estaria a larga distância do que presentemente oferece aos seus residentes. Será de admirar que um homem assim também possua ambições pessoais? Será caso de algum espanto que ele se tenha excedido aqui e ali, a ponto de ser julgado em tribunal, do qual não terá recebido ainda qualquer pena? Será de preferir um indivíduo quadrado, muito bem comportadinho, a um outro que tem uma larga visão e mostra uma actividade que só pode causar inveja a quem a não possui?
Com o caso de Dias Loureiro, outro ilustre PSD, passa-se algo semelhante. Tem sido homem bem sucedido em vários dos seus negócios. E então? Querem com estes ataques ferir o Presidente da República, outro PSD? Se é ele o alvo por intermédio de Dias Loureiro, aqui temos mais um caso de astúcia vingativa movida pela inveja: a tal sigla IVA a funcionar em pleno. A Dias Loureiro não perdoam que ele tenha conhecido um rico libanês naturalizado espanhol, com quem se dá bem e que é apontado como traficante de armas. Sucede que esse mesmo indivíduo é bem conhecido dos Clinton e do rei de Espanha, o que fez com que Dias Loureiro também tivesse travado conhecimento com eles. A medíocre inveja portuguesa impera de novo. Com que então Clinton? Com que então Juan Carlos! Pois vais pagá-las!
E desaba a vingança. Mas a mediocridade acaba por recair sobre quem a pratica. Isto é como pretender que um político seja um homem cem por cento virtuoso. Já se pensou que se um governante não fosse um homem experiente, conhecedor da vida, ele seria enganado na primeira reunião que tivesse? Com estrangeiros transformar-se-ia no bobo da festa. Seria isso o que a Nação verdadeiramente quer?
É por estas e por outras que, como digo no início, estou cansado de ouvir dizer mal da classe política. Está na altura de dizer "Basta!"

12/03/2008

Ao contrário de Jesus Cristo, o Vaticano sabe de finanças

A primeira parte do título roubo-a, como todos sabem, ao Fernando Pessoa poeta. A segunda deduz-se de um documento do Conselho Pontifício Justiça e Paz, aprovado pela Secretaria de Estado do Vaticano. Conforme o jornal Público informa e aqui se transcreve quase literalmente, o Vaticano aponta a existência dos chamados paraísos fiscais - centros financeiros offshore -, como uma das causas principais da presente crise financeira internacional. Porquê? Porque através deles se forja e implementa uma complexa trama de práticas económicas e financeiras, de que são exemplos "fugas de capitais de proporções gigantescas" motivadas por objectivos de evasão fiscal, facturação fraudulenta e reciclagem de actividades ilegais.
Segundo o Vaticano, a utilização dos paraísos fiscais produz um efeito negativo duplo, beneficiando os rendimentos mais elevados, que assim conseguem escapar ao controlo fiscal nos seus respectivos países, e simultaneamente penalizando os mais baixos rendimentos dos trabalhadores e das pequenas empresas. Com isso, logram desviar a tributação do capital para o trabalho. A fuga fiscal é calculada em 255 mil milhões de dólares, i.e. mais do triplo do montante da ajuda pública ao desenvolvimento por parte dos países da OCDE.
"A crise financeira expôs uma profunda crise espiritual e um conjunto de valores mal orientados. Na luta generalizada pelo lucro, o sentido e o valor do trabalho humano foram relegados para segundo plano”, afirmam os bispos.
E afirmam muito bem. Como se sabe, as grandes fortunas têm privilegiado os centros offshore. O que isso significa de sonegação de pagamento de impostos devidos ao Estado está expresso no documento. No seu todo, esta prática espelha uma ética virada do avesso, que depois tenta lavar a face através da formação de associações de ética empresarial, onde se mostra o contrário do que se pratica. Portugal conhece bem o sistema.

12/02/2008

Mulheres imigrantes fazem pela vida

Algures numa gaveta, juntamente com um monte de agendas antigas, ainda mantenho um cartão de visita a que achei bastante graça quando mo deram nos meus anos de liceu. O cartão tem um nome - Madame Inocência -, uma indicação-tipo-slogan (Best girls in town) e uma morada junto à Rua do Alecrim (Cais do Sodré, Lisboa). A prostituição era então ainda uma actividade legal nesta cidade, as prostitutas possuíam um cartão de identidade e eram obrigadas a consultar regularmente o médico, o qual verificava e atestava o seu estado de saúde.
Quando visitei pela primeira vez as ruínas de Pompeia e pude ver com algum detalhe os eróticos frescos nas paredes dum edifício circular que outrora albergara um lupanar, confirmei – como se isso fosse necessário - a milenaridade daquela actividade das "lobas".
Em Portugal não se pode dizer que tenha havido propriamente proibição, mas entre os anos 60 e a revolução de Abril de 74, já sem as inspecções médicas obrigatórias de antigamente, a situação mudou substancialmente para a prostituição. Após 1974, dentro da onda de liberdade que se criou, os governos deixaram de se interessar concretamente pelo assunto. A prostituição propriamente não é crime. Crime é o lenocínio, isto é, a exploração de prostiputas.
Há pouco tempo foi noticiado que na Indonésia as massagistas eram agora obrigadas a andar com um cadeado nas calças para impedir a prostituição nas casas em que davam as massagens. Foi uma medida forte. As autoridades da Indonésia deviam dar uma saltada ao nosso país nos tempos que correm. Com a imigração e consequente entrada de muitas mulheres sem ocupação definida em Portugal, abriram, como todos sabemos, numerosas casas ditas de alterne. O caso das mães de Bragança tornou-se famoso, há anos, devido a uma reportagem feita por uma revista americana. As mães de Bragança acusavam essas mulheres de desviarem os maridos das suas legítimas camas.
Presentemente, pelo menos na cidade de Lisboa tornou-se relativamente frequente o aluguer de andares em prédios residenciais para efeitos de prostituição. Esses andares são preferencialmente os do rés-do-chão, a fim de incomodarem o mínimo possível os restantes inquilinos do prédio. As marcações são feitas por telemóvel e, à chegada ao edifício, os clientes devem telefonar de novo para verificarem se há luz verde para entrarem. Está absolutamente fora de hipótese que esperem no hall dos edifícios. Nesse caso, deverão aguardar nas redondezas o tempo necessário e sem dar nas vistas. Para não se enganarem na campainha do lado de fora, o botão respectivo está pintado de baton. Quanto a nacionalidades, há de tudo - ucranianas, brasileiras, africanas, moldavas, russas -, geralmente com alguma rotação entre diversas casas, trabalhando assim em rede como mandam as regras da boa gestão.
Existe, sem dúvida, uma diferenciação nítida relativamente ao passado, sinal dos novos tempos em que vivemos.

11/28/2008

Um ligeiro intermezzo

Deixemos em paz os temas mais sérios da actualidade política e lancemos um rápido olhar a algumas palavras da língua que usamos diariamente (e que em grande medida nos baliza o pensamento).
Olho para o título de uma notícia do jornal que diz: "A noite será a grande amiga dos carros eléctricos." Páro. Leio de novo. Fico com curiosidade. Porque será que os carros eléctricos não são bem-vindos de dia? Porque empatam o trânsito? A notícia, remetida para a página 16, esclarece-me, entretanto. Mostra-me que estou a patinar num mal-entendido. Não se trata dos amarelos da Carris. O que está em questão são os automóveis movidos a electricidade. Eles devem ficar a carregar durante a noite para serem utilizados de dia. À noite, a energia é mais barata, o que também incentiva o uso de fontes de energia renováveis. São carros amigos da noite.
Cingindo-me apenas à terminologia, acho que, para evitar problemas e enquanto houver eléctricos em Lisboa, vou continuar a utilizar para estes novos automóveis o nome que sempre lhes dei: Voltswagen.
Quando falamos de substantivos femininos e masculinos, sabemos todos que existem diferenças interessantes, como por exemplo entre um rio e uma ria. Enquanto o primeiro nos dá uma ideia de caudal que flui continuamente e até, por vezes, de águas rápidas e alterosas, a ria é mais acolhedora e pacífica. Maternal. À semelhança do homem e da mulher?
Também entre o moral e a moral existe uma diferença notória. Enquanto o primeiro termo se refere basicamente a ânimo ("levantar o moral das tropas"), a segunda palavra transporta-nos mais a um conjunto de regras que se opõem ao conceito de pecado ou infracção e são parentes da ética.
Então e a vogal e o vogal? Sabemos que as vogais são o recheio das consoantes, as quais por sua vez constituem a ossatura das palavras. As vogais são a carne, a sonoridade – mais abertas ou mais soturnas, mais claras, mais escuras ou mais finas e sibilinas. Então, e o vogal? Bem, um vogal é um membro com direito a voto numa assembleia ou num júri. Vogal de exames, por exemplo. E porquê "vogal"? Exactamente porque tem voz, i.e. voto. O étimo é "vocal".
Há diferença entre uma secretária e um secretário? Certamente que sim. Como pessoas, uma é mulher, o outro é homem. Como peça de mobiliário, só se utiliza a primeira. E porquê "secretária" ou "secretário"? Porque se trata de alguém em quem se pode confiar, que guarda segredo das coisas que são confidenciais. Num verso que cito de cor, Camões dizia para a sua pena, à qual confiava o seu sentir: "Vinde cá, meu fiel secretário..." E Bocage tem um soneto cuja primeira quadra reza assim: "Oh retrato da morte, oh Noite amiga / Por cuja escuridão suspiro há tanto! / Calada testemunha do meu pranto,/ De meus desgostos secretária antiga!” Já agora: a secretária-móvel guarda também segredos nas suas gavetas e por vezes tem uma parte secreta - "o segredo" - que em princípio só o seu proprietário conhece.
É curioso que as palavras por vezes camuflem bem, tal como as secretárias, aquilo que são. Qual será o verbo que significa algo como "tirar até à última gota"? Todos o conhecemos. Esse verbo é "esgotar". No entanto não é fácil descobrir a "gota" que lá está. (No fundo, é o mesmo que descobrir "a cabeça" e "o rabo" em "capicua".)
Termino esta superficialíssima digressão com o "fado". Estava eu um dia a ler um livro interessante sobre Portugal, escrito por um americano que tinha comprado uma casa junto a Sintra e aqui vivia há cerca de um ano. O indivíduo tinha ficado encantado com os nossos moinhos e faz deles descrições soberbas. Quando chegou à "canção nacional", porém, escorregou um bocado. Decerto por conhecimento ainda imperfeito da língua portuguesa e da pronúncia de alguém que lhe disse que fado em inglês era faith (na realidade é fate) divagou sobre o dito como estando altamente ligado à fé dos portugueses. Foi um pequeno percalço, mas que linguisticamente é interessante por oferecer um par habitual, tal como o c-g de vocal e vogal que acima vimos. Neste caso é o d-t. Fado vem de fatu-, que significa "destino" e que nos faz dizer, entre muitas outras coisas, que algo "é fatal como o destino". Fatalmente assim, no nosso característico fatalismo. Então, e como se chama "a deusa do destino"? "A fada", claro.
E por aqui ficamos hoje.

11/26/2008

Gerações em foco

A Fundação Gulbenkian acaba de organizar mais um interessante colóquio, que teve, como é habitual, a participação de oradores de vários países do mundo. Tendo como base a revolução demográfica que se tem operado em múltiplos países da Europa e noutras partes do globo, as sessões abordaram várias questões relacionadas com essa revolução.
"Na Europa, o século XX foi o último em que os mais jovens foram maioritários" foi, provavelmente, a frase que mais me impressionou. Condensou em breves palavras aquilo que parece ser uma realidade de que nem sempre nos damos conta. Nomeadamente graças ao desenvolvimento da medicina e de cuidados relacionados com a segurança social, a esperança média de vida tem aumentado significativamente. Ultimamente, essa esperança de vida tem subido cerca de um ano em cada quatro a cinco anos que passam. Como é evidente, isso transporta-nos a um panorama de idosos que hoje já é bem visível mas que será ainda muito mais acentuado nas próximas décadas. Em muitos países europeus, por volta de 2060 os indivíduos com mais de 60 anos estarão em maioria. É por isso que o século XX terá sido o último século em que aqueles que têm menos de 60 anos predominaram.
Com o já tradicional eufemismo terminológico, a situação demográfica começou por ser designada como "um problema", passou depois a constituir "um desafio" e é hoje vista como "uma oportunidade". Basicamente a situação não se altera, mas dá-se-lhe pelo menos um cunho mais positivo, o que sempre é preferível a uma visão dramaticamente pessimista. Procura-se criar a ideia, optimista, de que "não é verdade que ao sermos velhos deixamos de ter sonhos e aspirações; quando deixamos de ter sonhos e ambições é que nos tornamos velhos."
Muito tem mudado na nossa sociedade. Se há um número muito maior de idosos, há por outro lado uma quantidade menor de bebés a nascer. No princípio dos anos 70, a média da idade em que uma mulher tinha o seu primeiro filho andava pelos 24 anos; hoje ronda os 30.
Nesta altura, no Reino Unido há cerca de 10 mil pessoas com 100 anos ou mais. Cálculos apoiados em dados reais projectam este número para 250 mil nos meados do século. Impressionante! Em princípio, irá haver mais crianças com avós e bisavós vivos do que no passado. E se não houver mais é também porque as crianças nascem aos pais cada vez mais tarde.
Estatísticas das Nações Unidas dizem-nos que em 1950 havia no mundo apenas 205 milhões de pessoas com mais de 60 anos, o que significava qualquer coisa como uma em cada doze pessoas. Havia então apenas três países que tinham mais de 10 milhões de pessoas com essa idade: a China (42 milhões), a Índia (20 milhões) e os EUA (20 milhões). Hoje em dia, o número dessas pessoas triplicou! Presentemente, há doze países com mais de 10 milhões de pessoas de idade superior a 60 anos. Só a China e a Índia combinados ultrapassam os 205 milhões que existiam nos anos 50. Na Europa, 20 por cento da população conta com mais de 60 anos! (Lévi-Strauss, que há dias celebrou o seu 100º aniversário, admitiu que este mundo tão diferente já não é o seu!)
Pense-se no que este panorama significa em termos de sustentação do modelo de Segurança Social. Dos 3 ou 4 activos que agora existem para cada reformado, não é ousado afirmar que se passará para dois activos para cada pessoa que passou à situação de reforma. Muita coisa terá que mudar, evidentemente!
Por que motivo serão os senior citizens tão importantes? Em primeiro lugar, porque se estima que três-quartos de todos os activos financeiros do planeta sejam propriedade de indivíduos com mais de 50 anos. E, depois, porque muitos deles, nestes novos tempos, não se importam de gastar o seu dinheiro. Os americanos chamam SKI-ing (spending the kids’ inheritance) à disponibilidade dos mais velhos de gastarem o seu dinheiro. Entretanto, esta atitude de gastar hoje (já!) a futura herança que se legaria aos filhos deve ter sofrido um golpe muito rude com a actual crise financeira que, aliás, surgiu com a ideia de empregar todo o dinheiro para fazer a economia girar. Pelo contrário, nota-se agora, é fundamental que se aumente de novo a proporção do que se reserva para uma poupança. É mais do que natural que ela venha a ser uma parcela necessária. Só aparentemente é que as economias individuais estarão contra a economia global!

11/23/2008

Uma onda irrepetível

O que terão de comum entre si estes 43 nomes, aqui listados por ordem alfabética – aos quais, aliás, muitos outros se poderiam acrescentar com a mesma característica comum?

Alexandre Quintanilha (Biólogo, investigador, director do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar.)
Amadeu José de Freitas (Locutor desportivo)
António Calvário (Cançonetista)
Barata Feyo (Escultor, professor, director de museu)
Carlos Cruz (Locutor de rádio e de televisão; empresário)
Carlos Pinto Coelho (Jornalista, director de programas culturais na rádio e televisão)
Carlos Queiroz (Treinador de futebol)
David Borges (Jornalista)
Diana Andringa (Jornalista)
Emídio Rangel (Director de estações de rádio e televisão)
Eugénio Lisboa (Conselheiro cultural da Embaixada de Portugal em Londres, Professor universitário, ensaísta, crítico literário.)
Eusébio (Futebolista)
Fausto (Compositor e cantor)
Fernando Dacosta (Escritor, jornalista)
Fernando Gil (Professor, pensador, autor)
Fernando Nobre (Médico, Presidente da AMI)
Guilherme de Melo (Jornalista, escritor)
Gustavo Castelo Branco (Engenheiro, físico e investigador)
Helder Macedo (Professor Catedrático no King’s College, de Londres)
Hermínio Martins (Sociólogo-economista, Professor em Oxford, autor)
João Maria Tudela (Cançonetista, animador cultural)
João Pina Cabral (Antropólogo social, Professor, autor)
Jorge Perestrelo (Relator desportivo)
José Afonso (Cantor de intervenção e compositor; professor)
José Eduardo Agualusa (Escritor, articulista)
José Fonseca e Costa (Realizador de cinema)
José Gil (Professor da UNL e do Collège Int. de Philosophie, de Paris, ensaísta, pensador.)
José Rodrigues dos Santos (Locutor de televisão, Escritor; Professor)
Maria João Seixas (Autora de programas culturais TV, entrevistadora nos media)
Mário Crespo (Locutor de TV)
Mariza (Fadista)
Mia Couto (Escritor, biólogo)
Nicolau Santos (Jornalista)
Paula Teixeira da Cruz (Advogada, política)
Rui Cartaxana (Director do jornal Record)
Rui Knopfli (Jornalista, crítico de literatura e cinema, poeta, adido cultural em Londres)
Rui Nogueira (Escritor, articulista)
Rui Romano (Jornalista RTP)
Ruy Cinatti (Agrónomo, antropólogo, escritor)
Segadães Tavares (Engenheiro)
Sequeira Costa (Pianista)
Vítor Gomes (Músico, Os Gatos Negros)
Vítor Ramalho (Advogado, político)

Embora alguns dos eventuais leitores deste blog conheçam na lista acima alguns nomes melhor do que outros, notarão decerto que há entre eles muitas figuras conhecidas. E não só conhecidas como de muito mérito, dotadas de um espírito de iniciativa que as fez, em certa medida, subir para a ribalta. A esmagadora maioria destas pessoas vive ainda entre nós. Infelizmente, Amadeu José de Freitas, Fernando Gil, Jorge Perestrelo, José Afonso, Rui Knopfli, Rui Romano e Ruy Cinatti já faleceram.
No domínio profissional, embora do grupo acima sobressaiam em termos percentuais os homens e as mulheres dos meios de comunicação social, existe uma notável variedade: cientistas como Alexandre Quintanilha, engenheiros premiados como Gustavo Castelo Branco e Segadães Tavares, escritores como Mia Couto, Agualusa, José Rodrigues dos Santos e Fernando Dacosta, poetas como Rui Knopfli e Ruy Cinatti, um pianista (Sequeira Costa), advogados e políticos como Paula Teixeira da Cruz e Vítor Ramalho, cantores e compositores como Fausto e José Afonso, intérpretes de canções como Mariza, António Calvário e João Maria Tudela, um escultor (Barata Feyo), professores e brilhantes pensadores como os irmãos Gil - José e Fernando -, e Hélder Macedo, diplomatas e escritores como Eugénio Lisboa, sociólogos e antropólogos como Hermínio Martins, João Pina Cabral e Ruy Cinatti, um médico que é Presidente e criador da AMI (Fernando Nobre), um treinador de futebol (Carlos Queiroz) e um ex-jogador que se tornou há muito símbolo do futebol português (Eusébio).
Mas não há dúvida de que o grande peso que ressalta desta lista provém de profissionais ligados ao jornalismo e aos media, v.g. Rui Cartaxana, director do jornal Record, Nicolau Santos director de uma secção do Expresso e colaborador da SIC, além de locutores, comentadores e animadores culturais da televisão e da rádio, como José Rodrigues dos Santos, Mário Crespo, Carlos Cruz, Carlos Pinto Coelho, David Borges, Diana Andringa, o saudoso Jorge Perestrelo do “ripa na rapaqueca!”, Maria João Seixas, Guilherme de Melo e os acima mencionados Rui Romano e Amadeu José de Freitas.
Por esta altura creio que já todos entenderam que estou a referir-me a pessoas que ou nasceram nas antigas colónias portuguesas - mais especificamente em Angola ou Moçambique, mas também noutras paragens - ou foram de tal forma docemente picados pelo bom insecto africano - também os há ferozes! - que nunca mais esqueceram o seu passado cultural e foram por ele indelevelmente marcados. São pessoas que se salientaram na sociedade portuguesa - ou na de noutros países do mundo - através do seu dinamismo, capacidade de trabalho e ânsia de inovação.
Há cerca de 50 anos, a emigração de mais de milhão e meio de portugueses para a Europa e para África foi muito positiva para o país. Redundou numa não-propositada democratização, i.e. o contrário daquilo que a censura impunha. A sociedade fechada e policial que tínhamos passou gradualmente a abrir-se, como que por inerência. A televisão contribuiu para essa abertura. Por seu lado, a vinda para a metrópole - devido à guerra que deflagrou nas colónias em 1961 - de numerosos portugueses que nasceram ou fizeram parte da sua vida em terras de África e da Ásia foi igualmente muito enriquecedora para o Portugal europeu. Muitos dos que regressaram das colónias mostraram ser não só pessoas dotadas de uma notável capacidade de iniciativa como também de uma mente aberta a outros horizontes, o que lhes permitiu trazer um saudável apport em vários domínios ao país onde passaram a viver. A África colonial portuguesa, apesar da omnipresente P.I.D.E., era um espaço muito diferente do território metropolitano. Vivia-se mais, os horizontes eram mais vastos para um grande número de famílias brancas. Existia uma mentalidade assaz diferente daquela estreiteza que se pressentia, e sentia, no território da Europa. Lá não se encontrava a mesma mesquinhez e desconfiança que predominava na metrópole. Havia uma amizade mais forte entre as pessoas, uma maior solidariedade. Era uma sociedade com outros horizontes. Nas colónias, a Igreja não conseguia ser tão dominadora e abafante como no Portugal ibérico. Aliás, também as forças armadas aprenderam a democratizar-se na guerra colonial. Por este conjunto de razões, houve muitos brancos que, ou por terem nascido nas colónias ou por nelas terem vivido o tempo suficiente para se poderem considerar saudavelmente "africanizados", sentiram um enorme choque quando vieram para a metrópole. Em certa medida, revoltaram-se. A sua revolta, que também fazia parte da sua sobrevivência, ajudou o país.
Foi assim relativamente natural - embora não seja geralmente reconhecido como tal - que muitas dessas pessoas tivessem singrado na sociedade que os acolheu e nela se tivessem posteriormente destacado. Por natureza produtos híbridos de dois (ou mais) meios distintos, foram primordialmente aqueles que eram possuidores de uma boa educação académica os que sobressaíram. O aroma africano (ou asiático) entrechocava-se com o europeu e produzia frequentemente uma mescla especial. Daí - e certamente de outros factores como os atrás mencionados - nasceu uma irreverência a que nem Lisboa nem o Porto estavam habituados e que deu um impulso significativo ao Portugal do terceiro quartel do século passado. Daqui nascem alguns dos nomes da listagem acima.
Dando o meu testemunho pessoal, reconheço que houve vários países que tive a oportunidade de visitar que me influenciaram poderosamente. Porém, nenhum me influenciou tanto como Angola, onde encontrei a virgindade de terras e de pessoas que ambicionava conhecer. Ainda hoje na minha forma de pensar e agir acho frequentemente traços distintos que me remetem para a minha permanência de cerca de dois anos e meio em terras de Angola. Embora conceda que também viagens, relativamente curtas mas produtivas, a países como o México, a Rússia, os Estados Unidos, a Turquia, o Brasil e a Índia contribuíram para que o meu pensamento saísse da esfera fechada do território onde nasci, a verdade é que a magia de África não mais saiu de dentro de mim.
Ora, se eu próprio sinto esta cultura diferente, como não haveriam de reagir aqueles que nasceram noutra sociedade e que, possuidores de notáveis capacidades potenciais, só precisavam de campo fértil para desabrochar? Daqui nasceu uma plêiade de pessoas a quem presto naturalmente a minha homenagem. É, infelizmente, um núcleo ao qual se tem dedicado pouca atenção no seu conjunto, ainda que individualmente muitas dessas pessoas sejam sobejamente notadas.
E o número é muitíssimo maior do que o dos nomes listados. À guisa de exemplo, note-se que neste mesmo blogue participam com alguma regularidade pessoas como o António (advogado), a Isabel (engenheira civil) e a Elisa (professora de Filosofia). O que têm eles em comum? Todos nasceram em Angola ou lá viveram durante vários anos que foram significativos nas suas vidas. E todos denotam uma curiosidade permanente, um alerta para a cultura e um salutar desassossego que me sabe bem destacar.
Nunca ouvi ninguém dizer que esta é uma onda absolutamente irrepetível, mas certamente que o é. Onde poderão repetir-se, por exemplo, os cinco magníficos do Liceu Nacional de Lourenço Marques, Eugénio Lisboa, Hélder Macedo, Hermínio Martins, Fernando Gil e o seu irmão José Gil? Todos eles são figuras intelectuais que fizeram grande parte da sua vida em reputadas universidades de Inglaterra e França.
Em campo menos intelectual, se nos virarmos para o domínio desportivo, talvez alguém ainda se lembre de quatro sensacionais jogadores de hóquei em patins que nos chegaram de Lourenço Marques e quase faziam só por si o cinco nacional que foi campeão do mundo: Moreira, Vaz Guedes, Fernando Adrião, Velasco e Bouçós. Só Vaz Guedes não era de Moçambique!
Sinto que é bom reconhecer que a transculturalidade tem grandes vantagens, nomeadamente quando é acompanhada por uma sólida educação de base. Quebram-se eventuais amarras, voa-se mais alto, existe uma vontade de agitar o mundo, num inconformismo que surge implícito. Se é pena que esta onda não se possa repetir, há que pensar na enorme vantagem que o sair de fronteiras representa - fronteiras tanto no domínio físico como no da educação. É este o bom caminho que se nos oferece, mas continuará a ser muito gratificante pensar em todos os acima mencionados - e não só -, que contribuíram ou ainda contribuem, através do produto do entrechoque cultural que nos legam, para criar um país mais rico e uma sociedade mais interessante.


P.S.1. Não me foi exactamente fácil descobrir que todos estes nomes estavam ligados às antigas colónias portuguesas. Como digo atrás, muitos outros podem ser acrescentados dentro dos parâmetros da transculturalidade. Fico agradecido se alguns dos leitores me fornecerem outros nomes.

P.S.2. Este tema está inserido no contexto de um trabalho mais abrangente que ainda não dei por terminado. Gostaria, entretanto, de acrescentar alguns pontos e levantar questões que me parecem relevantes.
Será que alguém que viva sempre no mesmo local e ambiente tem as mesmas possibilidades de desenvolvimento intelectual de uma outra pessoa que conheça vários países e culturas in loco?
Será que um engenheiro que enverede a certa altura pelo mundo das letras, um médico que se apaixone pelo domínio da arte ou um agrónomo pelo campo da antropologia adquirem outra dimensão na sua vida?
Será que alguém com estudos que mude efectivamente de carreira a meio da sua vida produz em si próprio um renascimento ou uma redescoberta? E a isso, que não implica necessariamente mudança de espaço físico, poderemos também chamar transculturalidade?
Será que o dominar idiomas diferentes da língua materna representa em certa medida alguma transculturalidade?
Creio que estas perguntas têm toda a razão de ser. Olhemos para o caso de Ruy Cinatti por exemplo. Dele se poderá dizer que foi agrónomo, antropólogo e poeta. Com o seu curso de agronomia tirado em Lisboa no ISA, a certa altura da sua vida rumou a Timor. Esteve também em S. Tomé. A transcultura fez o resto. Descobriu o que não conhecia. A curiosidade que existe em todos os talentos e que cria a ânsia de saber e de experimentar, impôs-se. A antropologia tomou conta dele, tal como a poesia.
Hoje conhecemos Eugénio Lisboa como professor universitário, ensaísta e crítico literário. Contudo, estamos em presença de uma pessoa que tirou o curso de Engenharia Electrotécnica no IST e que trabalhou em França no ramo petrolífero durante 20 anos. Depois esteve 17 anos como conselheiro cultural da Embaixada portuguesa em Londres e leccionou em várias partes do mundo.
Tomemos o caso do conhecido locutor José Rodrigues dos Santos. Nasceu em Moçambique em pleno período da guerra colonial (1964). Aos 17 anos estava em Macau e enveredava pelo jornalismo (na Rádio Macau). Em Lisboa, cursou depois Comunicação Social na UNL e fez um estágio em Londres, na BBC. Esta acabou por contratá-lo por um período de três anos. Regressado a Portugal ganhou notoriedade na televisão aquando da Guerra do Golfo, em 1991. Passou a ser colaborador permanente da CNN. Após doutorar-se em Ciências da Comunicação, manteve o seu posto na RTP, mas começou igualmente a leccionar. Ultimamente, amadureceu o suficiente para escrever romances que mereceram a atenção do público - um deles vai ser objecto de filme em Hollywood. Temos aqui um caso típico de pessoa que tem conhecimento real e relativamente profundo de várias culturas - de Moçambique, Macau, Londres e Portugal. Deveremos falar dele como locutor de televisão, como professor, ou como romancista? Ou juntar tudo? Transcultura?
Cada vez noto mais que, nos bons cérebros, letras e ciências se unem, em suporte mútuo. O criativo atinge mais facilmente a saturação e consequente rotina de um determinado tema e carece de renovar-se, de criar uma nova paixão. Sempre com a liberdade como substrato. Existe nele uma inquietação permanente. É mais gratificante ser original uma vez do que copiador e imitador cem vezes. Encare-se nesta perspectiva a obsessão criativa e desdobrante de Fernando Pessoa, ele próprio um produto de África na sua formação de base durante a juventude, fluente em duas línguas estrangeiras, e convivente no Portugal europeu com uma cultura diversa e com aquilo que lhe chegava de França, país que nunca visitou.
Descubra-se algo semelhante em Almada Negreiros, um são-tomense tanto pelo solo onde nasceu como pelo lado da sua mãe. Almada, artista irreverente e polifacetado, a desdobrar-se pela pintura, pela poesia, pelo ensaio, pela tapeçaria, pela caricatura, pelo vitral: "poeta d’Orpheu, futurista e tudo".
Disse Kant: "Quanto mais fizeres, quanto mais pensares, tanto mais viverás".

11/21/2008

A Fera da Incerteza

Para explicar o título bastar-me-á naturalmente lembrar que "a era da incerteza", tornada famosa por Galbraith, se tornou tão temível que se transformou numa verdadeira fera. Neste caso, como sucede por vezes quando lemos um livro, não nos é dada a possibilidade de deitar uma olhadela às páginas finais para ver como a história acaba. É que este livro continua a ser escrito e, um pouco como o cadavre exquis dos surrealistas, é redigido por múltiplos autores. Trata-se de uma realidade sem dúvida excitante, na qual nós, para além de leitores diários, somos actores intervenientes, tanto para o bem como para o mal.
Antigamente, a receita era conhecida: quem queria fazer investimentos com alguma segurança no mercado bolsista deveria tentar conseguir um compromisso interessante entre o dólar e o ouro (ou aquilo que estes simbolizam), e entre mercados ocidentais e mercados emergentes. O problema é que a globalização nivelou muita coisa. Já não temos mercados emergentes a reagirem de forma oposta à dos mercados desenvolvidos. Está tudo interligado.
Dentro desta semelhança comportamental, existe contudo muito drama. Ainda há poucos meses a China rejubilava, justificadamente, com a sua brilhante realização dos Jogos Olímpicos e com o seu elevadíssimo saldo da balança comercial. Hoje em dia reina alguma preocupação entre as autoridades chinesas devido à falta de encomendas recebidas, o que já obrigou muitas fábricas a reduzirem o seu pessoal e outras mesmo a fechar. Dado que as autoridades governamentais chinesas têm feito assentar toda a sua política e grangeado popularidade através do crescimento da economia do país, presentemente estão com sérios receios de que a falta de trabalho conduza a tumultos e, o que é mais, faça desencadear a ira dos desempregados contra os que têm ultimamente enriquecido. Quem diria?!
Quem diria também que o petróleo que esteve quase a 150 dólares o barril iria descer em poucos meses para menos de 50! No entanto, é isso que está a ocorrer! As contas públicas de países como a Venezuela, Irão, Rússia, Brasil e Arábia Saudita têm que ser revistas.
Quem diria que as taxas de juro europeias, que estavam elevadas a fim de impedir que a inflação subisse, iriam em curto espaço de tempo baixar substancialmente com a finalidade de fomentar o desenvolvimento da economia!
Quem diria que muitos dos que sempre protestaram contra o Estado se iriam agora pôr de joelhos a pedir-lhe auxílio!
Em Portugal, houve há algumas semanas na televisão um programa que conseguiu a proeza de reunir os CEO dos quatro maiores bancos do país (CGD, Millennium, BES e BPI). Mostraram-se satisfeitos com o facto de o Estado garantir o pagamento das contas bancárias dos seus depositantes até uma determinada quantia. Relativamente pouco tempo depois, o Banco Português de Negócios (BPN) era declarado insolvente e nacionalizado. A CGD controla-o presentemente, enquanto a PJ investiga. Agora chegou a vez do Banco Privado Português (BPP) vir formalmente pedir ao Estado um aval no valor de 750 milhões de euros. Ao contrário dos restantes, o BPP não se apresenta como banca comercial, mas sim como banco de investimento. Daqui decorre que é, grosso modo, um gestor de fortunas. Pressuponho que, devido à avalanche que tem levado as cotações bolsistas de uma maneira geral a valores baixíssimos, impensáveis ainda há pouco tempo, o banco tenha actualmente necessidade absoluta de recorrer a empréstimos. Sabe-se que o BPP tem por hábito apostar forte e jogar num segmento que é de altíssimo risco. Terá possivelmente conseguido obter óptimos resultados no passado, mas presentemente só vê resultados negativos. Será que não está já em condições de pagar eventuais resgates avultados que alguns dos seus clientes lhe venham a exigir?
Neste caso, a concessão do aval por parte do Estado levanta, naturalmente, uma questão moral e ética. Que o Estado tenha dado o seu aval a contas bancárias até um determinado montante por cliente, entende-se na presente situação de crise. Mas que o mesmo Estado, usando igualmente os dinheiros públicos de que dispõe, forneça o seu aval para defender grandes fortunas particulares já não é entendível da mesma forma, por configurar uma situação completamente diferente. Vamos a ver o que o Banco de Portugal decide.
Por mais que queiramos pensar de outra forma, somos forçados a verificar que estamos de facto numa era de feroz incerteza. Não há previsão que se sustente a si mesma. Esperemos, entretanto, que sobrevenha alguma acalmia. No cômputo geral, temos de admitir que, ao contrário dos furacões e tsunamis que tanta devastação causam, toda esta tremenda procela não é mais do que o produto de (uma má) mão humana. Visível e identificável.

11/18/2008

A língua e as árvores

Dum lado surge um esguio choupo, do outro uma cerejeira florida. Ali sobe o magro salgueiro enquanto uma centena de metros à frente a macieira nos traz belas maçãs. O eucalipto ávido de água contrasta com a pereira carregada de apetecíveis peras. O carvalho rijo e austero não se revê na linda ameixieira. Aquele pinheiro acolá ergue-se bem mais alto do que a sofredora oliveira. O ácido limoeiro tem alguma inveja dos frutos doces da sua vizinha laranjeira. O cedro não vê na ramalhosa figueira um membro da sua família.
As árvores são assim. Masculinas de um lado, femininas do outro. Mais frutíferas e saborosas as femininas. Mais lenhosas as masculinas. E as que são macho e fêmea simultaneamente? Por exemplo, o que tem o pinheiro manso, com a sua frondosa copa e jeito feminino, a ver com o outro pinheiro, o bravo, macho e seco? Será que o bravo tem que ser sempre o macho, como sucede entre a oliveira e o olivão? Por seu lado, faz pouco sentido que o salgueiro, tipicamente masculino na sua postura, mantenha o nome quando é salgueiro-chorão. Tão diferente, verde e coposo!
Tinha eu a minha teoria de que as árvores de frutos edíveis eram todas femininas, enquanto as outras eram masculinas. No meu enunciado mental, dizia para mim mesmo que as árvores com frutos que não são imediatamente trincados com gosto, como é o caso do limoeiro e do cajueiro, são masculinas. Então e os pessegueiros? Não dão frutos óptimos? O.K., mas esses frutos são masculinos, os pêssegos. Tal como os frutos do limoeiro são os limões. Os restantes são femininos, como as cerejas, as peras, as maçãs, as ameixas, as laranjas. Ah sim, então e os figos, que são filhos da figueira? Deveriam ser figas? Curiosamente, em alemão os figos são femininos. Seja como for, as nossas árvores – femininas na sua designação genérica - contrastam com o masculino el árbol do castelhano, o também masculino arbre francês, assim como com o alemão Baum. Razão tiveram os ingleses para tratar tudo de forma neutra. Nem masculino, nem feminino. Inventaram o cúmulo da facilidade e do pragmatismo. Creio que foi por esta prevalente noção pragmática da sua cultura e, ainda mais, por motivos políticos que não estão certamente dissociados desse mesmo pragmatismo, que o inglês se tornou uma língua fácil de usar no intercâmbio de um mundo tecnologicamente mais unificado.

11/17/2008

O questionário

Que os tempos não estão bons para arranjar emprego já todos nós sabíamos. Que era tão difícil ingressar nos lugares de topo do governo de Obama é que já pode causar alguma surpresa.
Quem quiser candidatar-se a um desses lugares terá de responder a 7 páginas de um questionário que se arrisca a ser dos mais extensos de sempre. Este inclui um total de 63 (sessenta e três) perguntas sobre aspectos pessoais e profissionais dos candidatos, sendo que algumas das questões colocadas abrangem também os cônjuges e os filhos adultos. Num dos pontos, os candidatos devem responder se eles ou alguém da sua família são detentores de armas. Terão de incluir notícia de e-mails que possam causar embaraços a Obama, juntamente com posts de blogs e links às suas páginas do Facebook. Outra questão que é formulada inquere sobre os pseudónimos que eventualmente possam ter usado nas suas comunicações na Internet.
Não é de agora, segundo a edição do Herald Tribune de onde retiro a notícia, que os sucessivos governos colocam obstáculos deste tipo a fim de evitar a repetição de erros do passado, mas nunca uma exposição tão detalhada foi exigida aos candidatos, o que terá também certamente sido ocasionado pelas mudanças tecnológicas entretanto ocorridas no mundo. Todo o questionário levanta alguma controvérsia, mas pretende impedir que aquilo que Obama propugnou na sua campanha - o não ao lobbying e ao banco de favores tão comum em Washington - venha a ocorrer com membros e técnicos superiores do seu governo.
Para dar uma ideia mais pormenorizada das questões, note-se por exemplo que, na rubrica "Auxílio doméstico", o questionário indaga qual é a condição de imigrante de cada um dos empregados que o candidato possa ter na sua casa, de governantas a amas, de motoristas a jardineiros. Mais: pergunta se os próprios candidatos têm em dia os impostos devidos pelas pessoas que empregam.
O item que inicia o questionário não se limita a pedir aos candidatos um curriculum vitae, mas sim todos os c.v. que tenham tido necessidade de apresentar durante os últimos dez anos. Os candidatos têm ainda de fornecer informação sobre as firmas em que eles/elas e os seus respectivos cônjuges tenham exercido actividade, e ainda se detêm interesses nessas firmas superiores a 5 por cento. Por outro lado, todos os presentes de valor superior a 50 dólares que os candidatos ou seus cônjuges tenham recebido de pessoas que não sejam amigos íntimos devem ser identificados.
Eis a transcrição literal de dois dos 63 itens do questionário:

(13) Electronic communications: If you have ever sent an electronic communication, including but not limited to an email, text message or instant message, that could suggest a conflict of interest or be a possible source of embarrassment to you, your family, or the President-Elect if it were made public, please describe.
(14) Diaries: If you keep or have ever kept a diary that contains anything that could suggest a conflict of interest or be a possible source of embarrassment to you, your family, or the President-Elect if it were made public, please describe.


Como estamos em Novembro, lembremos que quem não quer que as castanhas lhe rebentem na boca tem que lhes dar um bom corte antes de as assar. Quem não quer ter no seu governo ministros ou chefes de gabinete que possam um dia ser alvo de escândalos negativos para a imagem da Administração, precavê-se com questionários deste tipo. Ninguém poderá dizer que este questionário não é altamente metediço e espiolhante da vida dos candidatos!

11/12/2008

Dois livros

Recomendar livros nem sempre é fácil pela simples razão de que aquilo de que gostamos não é necessariamente aquilo de que outros gostam. Não é só a forma de escrita que está em questão, mas também a temática abordada. De qualquer modo, dentro do sentimento de partilha que me anima neste blogue, gostaria de deixar aqui duas breves referências a livros que ultimamente li e que me parecem merecer alguma atenção.
O primeiro intitula-se Verdade, Humildade & Solidariedade, tem a autoria de João Ermida e foi publicado pela editora Livros d’Hoje. O autor é um portuense que, com um curso incompleto de Economia da Universidade Católica, iniciou aos 22 anos a sua actividade profissional como corretor de Bolsa, ingressou depois no departamento de mercado de capitais do Citibank e aos 28 passou a fazer parte dos quadros do grupo Santander no qual, primeiro no nosso país, depois no Brasil e, por fim, em Madrid, passou a ter a seu cargo a responsabilidade das áreas de Tesouraria e Mercados Financeiros à escala mundial, com frequentes viagens a toda a América Latina.
Afectado por um intenso stress que resultava não só da enorme responsabilidade de movimentar milhões que poderiam originar tanto ganhos como perdas colossais, mas também da noção de que o sistema se baseava em algo despido dos valores que ele interiormente defendia, aos 38 anos, com um invejável salário, apresentou a sua demissão. Depois, ou tomava montes de drogas ou escrevia um livro a revelar o que o tinha atormentado. Escolheu escrever o livro. Um parágrafo ao acaso: "No mundo de hoje dos negócios, a verdade foi perdendo interesse. É mais importante fazer promessas que nunca serão cumpridas do que tentar vender a realidade em que se vive. Esta situação leva a que empregados sejam postos em situações de total insegurança no seu trabalho, graças aos enormes objectivos que lhes são impostos, os quais só por sorte serão cumpridos."
Do ponto de vista da escrita, o livro carece de alguma afinação, mas vale pela verdade do seu conteúdo. A coincidência com o desencadear da crise financeira empresta-lhe uma particular actualidade.
O segundo livro que gostaria de recomendar é A Viagem do Elefante. Ainda bem que Saramago sobreviveu à grave doença que o atirou para a cama de um hospital quando ia apenas na página 40 desta sua historieta. Toda a ironia e humor de Saramago aparecem aqui a propósito de um elefante indiano que estava em Belém havia dois anos com o seu respectivo cornaca e que acabou por ser oferecido pelo rei português D. João III a seu primo, o arquiduque austríaco Maximiliano. No seu estilo inconfundível, Saramago faz-nos viajar primeiro até Valladolid, onde o arquiduque se encontrava, e depois até Viena. No meio de breves mas incisivas reflexões sobre a lógica, a moral e a filosofia, de um pensamento voante que nos transporta em duas ou três linhas ao futuro que nós conhecemos, de confrontos bem humorados entre a religião cristã e a filosofia indiana, a história do elefante faz-nos viajar no espaço e no tempo com uma notável leveza de escrita e deixa-nos imaginar o prazer e mesmo gozo do autor em ser o condutor dessa atribulada viagem. Vale muito a pena.

11/09/2008

No pasa nada!

Há coisas que não esquecem. Entre as muitas que só desaparecerão da minha memória quando a minha própria memória um dia desaparecer conta-se uma série de longas conversas que, no início da década de 70, mantive num hospital de Moscovo com um sociólogo de trinta e poucos anos que lá se encontrava internado. Ele era de Tashkent, no Uzbequistão. A certa altura falou-me de um grande tremor de terra que tinha recentemente abalado a sua cidade e causado centenas de mortos. "Doeu-me imenso ver tantos funerais na minha cidade, mas o mais revoltante de tudo foi verificar que, oficialmente, tinham morrido apenas 7 (sete) pessoas. Dado que a União Soviética deveria, se o número de mortos fosse maior, autorizar a entrada em Tashkent de equipas da Cruz Vermelha Internacional, para eles indesejáveis, reduziu-se tudo a sete mortos e a um número indeterminado de feridos. Ter que viver com a mentira oficial foi terrível. Se era assim que deturpavam uma verdade que convivia ali mesmo connosco, como poderiam querer que acreditássemos e confiássemos nas notícias que diariamente nos chegavam de Moscovo sobre outros assuntos?"
Ocorre-me este episódio quando oiço o governo menorizar propositadamente o que se está a passar em muitas escolas públicas de ensino não-superior. Existe um descontentamento profundo que se traduz em comentários sentidos como os que este próprio blogue registou há dias (e que está disponível perto daqui, apenas umas tantas linhas mais abaixo). Por que razão há tantos docentes (e outros funcionários dependentes do Ministério) a pedirem a reforma? Em 2008 totalizam 7471, o que representa um aumento de 43,5 por cento (!) relativamente a 2007 e de 12,5 por cento face a 2006. O que levará tantos docentes com vinte e muitos anos de ensino, ou mesmo trinta, a revoltar-se contra uma situação que nunca até agora encontraram nas suas escolas? Tal como sucedeu o ano passado, está em curso uma avaliação por demais burocratizada e frequentemente conduzida por professores recentemente promovidos a titulares nos quais os colegas nem sempre reconhecem competência para implementar a referida avaliação. Entre outros casos que são do meu conhecimento, o jornal Público informa-nos que uma professora com 34 anos e nove meses de serviço se vai reformar antecipadamente - com isso sendo obviamente penalizada na sua futura pensão. Como diz essa professora, cujo nome vem publicado, "Não tenho medo de falar. Já meti os papéis para me ir embora: não quero avaliar nenhum professor porque isto é uma fantochada."
A manifestação de hoje em Lisboa trouxe à rua muitos docentes que sentiram necessidade de protestar veementemente. Que a manifestação foi organizada por um sindicato com alguns dirigentes comunistas é um facto. Que o Mário Nogueira seja, ao que consta, o inimigo mais detestado por Sócrates, também aceito. Que isto proporciona aproveitamento político aos partidos da oposição é igualmente verdade. Mas paremos para pensar no essencial: quem é que consegue fazer movimentar tantos professores de todo o país, se não existir um substrato de razões objectivas que provoca todo este desvio do statu quo que se desejaria normal em muitos estabelecimentos de ensino?
No pasa nada?

11/05/2008

Obama, a vitória e o discurso


Admito que me deitei mais tarde do que o habitual, mas sem qualquer esforço e devido a um real interesse no apuramento final dos resultados. A diferença de cinco a seis horas entre o nosso horário e o americano forçou-me a isso. Estas eleições eram mesmo especiais.
E eram especiais depois do enorme desapontamento que constituiu, há quatro anos, a reeleição do pior Presidente americano de que me lembro. Custava-me a acreditar que a cena se repetisse, com outro nome mas com o mesmo partido e política semelhante.
Toda uma geração pensante que foi na sua juventude e mesmo na idade adulta profundamente influenciada pelo cinema, pela literatura e música dos Estados Unidos sentiu-se, com Bush e os seus conselheiros, acerrimamente anti-americana. Era inevitável. Ao espalharem guerra por múltiplos lados do planeta, ao serem mentirosos compulsivos, ao intrometerem-se indevidamente nos assuntos de outros países ao mesmo tempo que recusavam asperamente um comentário sobre o seu próprio comportamento, ao praticarem a tortura e isentarem os seus torturadores de serem julgados em tribunal internacional, ao auto-excluirem-se de assinar acordos ambientais que favoreciam o mundo e ao alardearem valores que depois eles próprios não praticavam, os americanos tornaram-se depressa no povo mais odiado do planeta. A recente crise financeira, que ainda fará muitos estragos na economia mundial, também é algo da sua autoria: mais um produto de valores produzidos do lado avesso.
Obama tinha muito contra si. Não era branco WASP (White Anglo-Saxon Protestant). Aliás, nem sequer era branco. Não provinha de famílias conhecidas, não possuía meios de fortuna. A culminar estas suas carências, era detentor de algo terrível: o seu próprio nome. Este rima com Ossama (de Bin Laden) e, como middle-name, contém Hussein (de Saddam). Barack Hussein Obama poderia eventualmente ser o nome dum chefe de estado muçulmano algures em África ou no Médio Oriente. Mas nos Estados Unidos da América?! E depois do 11 de Setembro de 2001?!
Inacreditavelmente, conseguiu bater a sua grande rival democrata, Hillary Clinton, que tinha a seu favor o facto de ser conhecida mundialmente, de ter mantido a sua família coesa apesar das infidelidades públicas do marido-presidente, de poder vir a ser a primeira mulher a eleger e de possuir a experiência e o know-how que o seu lugar de primeira-dama durante oito anos certamente lhe conferiu.
Uma vez arrebatado o ticket democrata para as eleições, Obama conquistou grande parte do eleitorado, democrata e republicano, através do testemunho vivo da sua própria, esmerada educação de Harvard e da diferença em matéria de inteligência e moderação que a sua hibridez rácica lhe proporcionava. O seu poder oratório lembra o dos grandes tribunos. Não pelo esforço gutural de arrastamento de multidões através da elevação do tom de voz e de frenética gesticulação como tantos líderes fazem, mas antes pela calma e fluidez do seu discurso, que surge como que iluminado. De onde vem toda aquela capacidade retórica?, pergunta-se na assistência. De um invisível teleponto divino?
O discurso final de Obama após a vitória torna-se histórico por vários motivos que todos entendemos. Muitos excertos vão obrigatoriamente ser reproduzidos aqui e ali. Justificadamente. Pessoalmente, não pude deixar de me recordar de dois grandes momentos americanos: o primeiro, inevitavelmente, o de Martin Luther King e o seu famoso “I have a dream”; o segundo, que o antecede cronologicamente (1939), o clássico filme do realizador ítalo-americano Frank Capra Mr Smith Goes to Washington (“Peço a Palavra!”, no seu título português). São dois momentos que estão nas bases mais profundas da cultura americana e do famoso American Dream (que Bush num ápice transformou no American Nightmare).
Todos sabemos por experiência própria que as palavras por si sós não movem o mundo. Mas sabemos também que a par de discursos e comportamentos assassinos, que provocam insegurança e pânico, existem palavras que motivam cada um individualmente e uma nação no seu todo maioritário. Ao afirmar, com voz sentida mas moderada, “Change has come to America!”, Obama não se arvorou, felizmente, como redentor, mas colocou o povo através da sua escolha como obreiro dessa mudança que terá, afinal, de ser concretizada por todos. Foi um posicionamento inteligente e altamente motivador.
Esperemos que as as nuvens negras do pesadelo americano se vão gradualmente dissipando. Precisamos de novos ventos. The answer, my friend, is blowing in the wind…

11/03/2008

Do "Milagre de Milão" ao milagre da Milú

Quando ontem li a crónica que António Barreto escreveu para o Público, sob o título "O Milagre", acerca dos resultados do último ano lectivo, não pude deixar de sorrir. A crónica nada tem de verdadeiramente novo para quem está atento ao mundo da educação, mas merece naturalmente ser lida. É, afinal, mais um reputado cronista a falar em facilitismo de provas para que os resultados acabem por aparecer. De facto, quem alguma vez ensinou sabe que em determinadas disciplinas não é possível conseguir elevadas taxas de sucesso de um ano para o outro como se de um passe de mágica se tratasse. É pena que só à custa de exames mais fáceis e de notas empoladas, de critérios generosos que não penalizam a forma de expressão nem os erros ortográficos para não atrapalhar mais o sistema, se consiga obter melhores resultados.
Entretanto, no meio de tudo, há docentes que se esforçam verdadeiramente no seu conturbado ambiente e há igualmente alunos que dão tudo o que têm para obter boas classificações. Porém, descontabilizando estes casos que são mais excepção do que regra, não é crível que de um ano para o outro surja uma elevação tão notória e generalizada de notas como esta, que lembra mais um truque de ilusionista do que uma situação real, sustentável no futuro.
Para fazer um simples jogo de palavras no meu título, relembrei o clássico filme de Vittorio de Sica “O Milagre de Milão” (1951) e contrapu-lo ao milagre da Milú. Contudo, a verdade é que não é só a Milú ministra da Educação a usar poções mágicas típicas de druidas. Há muito que em certas escolas do ensino superior se dá uma generosa ajuda à fraqueza dos resultados obtidos pelos alunos do secundário para que os candidatos possam entrar na Faculdade X ou Instituto Y. Há anos e anos que nas escolas com menor reputação se utilizam os estratagemas mais diversos para permitir o maior número possível de ingresso de candidatos: começou-se por criar uma banda larguíssima de provas de acesso; mais tarde, passou a atribuir-se apenas 35 por cento às notas dos exames nacionais, indo os restantes 65 por cento para as médias escolares, que são por norma mais elevadas; com novas leis mais apertadas do Ministério, iniciou-se a escolha para provas de acesso à instituição de ensino superior de blocos de duas disciplinas, sendo uma delas básica para o curso - geralmente a Matemática - e a outra apenas auxiliar, mas mais fácil e portanto de nota compensatória no cômputo da média de ambas; utilizaram-se igualmente percentis (legais) para preenchimento de vagas.
Hoje em dia, em face do requisito obrigatório de nota positiva à cadeira básica de acesso, por exemplo a Matemática, muitas escolas superiores de menor prestígio eliminaram a obrigatoriedade da disciplina, escolhendo como alternativas possíveis cadeiras como Português, Economia ou Direito. O leque de candidatos abriu-se instantaneamente como por encanto, enquanto as médias de ingresso treparam. Mas quantos alunos tiveram a sua média de acesso computada na base da Matemática que costumava ser cadeira sine qua non? Isto sucede em várias escolas de engenharia, de contabilidade, de gestão e, eventualmente, outras áreas.
E que dizer do facilitismo das Novas Oportunidades? Se nalguns casos, claramente minoritários, surgem alunos esplêndidos, alguns até a adicionar uma nova licenciatura àquela que já possuem, no geral o panorama é sombrio, com estudantes detentores da habilitação máxima do 9º Ano (a Matemática, por exemplo) a debaterem-se com naturais dificuldades no ensino superior para o qual não estão preparados. A taxa de abandono é elevada e as não-passagens a disciplinas mais numéricas não são menos impressivas.
Daí que acusar apenas a Milú me pareça ser uma atitude que peca por bater sempre na mesma ceguinha. Há outros com culpas no cartório. Mas claro que isto de culpas é algo que depende sempre do ponto de vista!
Na questão do ranking, procurar estabelecer uma distinção competitiva, no ensino básico e secundário, entre os resultados do sector privado e do público é esquecer que as condições não são idênticas em vários aspectos, a começar pelo pagamento, que estabelece uma primeira selecção. Os melhores colégios particulares, em face do grande afluxo de pedidos de matrícula que lhes chegam, fazem aquilo que é mais natural: deixam de fora os alunos potencialmente piores. E se alguns hoje são indisciplinados e perturbadores, no ano que vem a escola não lhes renova a matrícula. Ora, na medida em que começam com uma certa "nata" do corpo discente e tentam manter um corpo coeso de docentes que exerce a sua actividade dentro dos parâmetros de um projecto escolar válido, nada de mais natural que as melhores escolas do ensino secundário privado surjam com resultados muito superiores aos do ensino público. Neste, não se podem recusar alunos. Além disso, nas últimas décadas têm surgido com gravosidade crescente os problemas que todos conhecemos.
A perversidade do sistema termina o seu ciclo com muitos dos melhores alunos provindos do sistema particular de ensino secundário - filhos de famílias com maiores posses - a preencherem muitos dos lugares nas melhores universidades públicas, com propinas consideravelmente mais baixas do que as do ensino superior privado.
Este é um breve resumo do que me tem sido dado observar após várias décadas de ensino, tanto no sector privado como no público.

11/02/2008

E um pouco mais de poesia, porque ainda é fim-de-semana...

Dizem os ventos que as marés não dormem esta noite.
Estou assustada à espera que regresses: as ondas já
engoliram a praia mais pequena e entornaram algas
nos vasos da varanda. E ,na cidade, conta-se que
as praças acoitaram à tarde dezenas de gaivotas
que perseguiram os pombos e os morderam.

A lareira crepita lentamente. O pão ainda está morno
à tua mesa. Mas a água já ferveu três vezes
para o caldo. E em casa a luz fraqueja, não tarda
que se apague. E tu não tardes, que eu fiz um bolo
de ervas com canela; e há compota de ameixas
e suspiros e um cobertor de lã na cama e eu

estou assustada. A lua está apenas por metade,
a terra treme. E eu tremo, com medo que não voltes.

(Fado, de Maria do Rosário Pedreira)

10/31/2008

Um pouco de Cesariny para o fim-de-semana

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco

10/29/2008

Interculturalidade

A Conferência Gulbenkian que a Fundação voltou a realizar este ano (ontem e hoje) foi bastante interessante. É um verdadeiro privilégio poder ouvir conferencistas de nível muito aceitável vindos de várias partes do mundo. Este ano, a temática da conferência perguntava "Podemos viver sem o outro?" e abordava as possibilidades e os limites da interculturalidade. Dado que o keynote-speaker era um conceituado indiano que presentemente trabalha em Nova Iorque e também na sua cidade-natal (Bombaim), sucedeu que pelo menos três dos oradores vinham da Índia. Esse facto acabaria por proporcionar algo curioso no dia de hoje: depois de o conferencista de abertura se ter referido ontem aos riscos inerentes ao diálogo entre pessoas e nações de culturas diferentes, uma escritora católica indiana abordou hoje alguns pontos de fractura na Índia dos nossos dias. Contemporizador, o keynote-speaker interveio no final da comunicação da sua compatriota para sugerir que talvez não fosse tanto assim. Começou aí um vivo diálogo/debate intracultural que levou a óbvia discordância. Se a questão é assim entre pessoas da mesma cultura, quanto mais difícil não será o diálogo entre pessoas de culturas diferentes!
A este propósito, uma professora de Estudos Islâmicos do U.S. Army War College foi muito contundente no que toca à política americana em países muçulmanos. Esclarecendo que falava em nome pessoal - ela própria é muçulmana -, denunciou o erro de práticas implementadas pelos Estados Unidos no Iraque, Síria e Irão pelo desconhecimento do "outro". Enumerou em detalhe uma série de pontos que lhe permitiram concluir aquilo que, afinal, o senso comum nos diz: Whatever is imposed is opposed.
A existência de limites no diálogo entre culturas diferentes acabou por ser um dos tópicos principais da conferência, pelo menos na parte a que assisti: para que conversas e negociações se possam efectuar produtivamente torna-se necessário que os itens de extrema diferença não sejam lançados para a arena. Caso contrário, isso implicará uma sempre indesejável fricção e ruptura, com atitudes fundamentalistas a surgirem de um lado e do outro.
Uma anotação que faço com todo o prazer relativamente às intervenções da assistência portuguesa é que na sua maioria foram curtas, inteligentemente incisivas e, além disso, em inglês fluente. São perfeitamente visíveis as vantagens dos numerosos intercâmbios e cursos no estrangeiro em que estudantes, professores e outros profissionais participam. Os horizontes estão a alargar-se, uma parte da sociedade portuguesa está claramente mais aberta, e dá-me um gosto especial poder testemunhar este desenvolvimento.

P.S. À noite, foi passada uma série de 18 filmes curtos, documentários com cinco minutos de duração cada. Os filmes foram especialmente encomendados pela Fundação e, francamente, só apetece ter em casa um DVD com aquelas pérolas. Dentro do mesmo tema da conferência, os documentários são muito diversificados e interessantíssimos, com contributos bem realizados por portugueses, japoneses, brasileiros, canadianos, mexicanos, croatas, chineses, iranianos, sérvios, coreanos, argentinos e namíbios. Uma volta ao mundo. Tão longe, tão perto!

10/26/2008

Democraticidade e tirania onomástica

Desculpe-se-me um título destes para um assunto tão simples e corriqueiro. O tema, trivial mas eventualmente útil, nada tem a ver com a sumptuosidade em epígrafe mas tem alguma relação com o seu significado. Basicamente o que pretendo perguntar é: quem tem um filho, deve dar-lhe apenas um nome próprio ou escolher dois?
Durante a minha vida profissional fui obrigado a ler muitos milhares de nomes e a decorar uma boa porção deles. Alguns eram tão neutros que não causavam o mínimo comentário, como foi o caso de Carlos Vieira da Silva ou Maria Teresa Brito Sousa. Outros, porém, obrigavam a fazer uma pausa na leitura e a usar uma língua mais ou menos desentaramelada: Ambrósio, Asdrúbal, Austregésilo, Leovegildo, Adalberta, Aldegundes, Felismina, Felizarda. Pessoalmente, sempre achei que um nome apenas estaria bem, i.e., João, Leonor, Vasco, Nuno, Sílvia. Porém, com o avançar da minha consciência democrática, passei claramente a preferir o conjunto de dois nomes, tanto para rapaz como para rapariga. Explico porquê.
Geralmente a situação passa-se desta forma: os pais conversam entre si o nome a dar ao bebé, questionam alguns membros da família, eventualmente os futuros padrinhos e, já está! O que pode "já estar" é o nome de "Adalberta". Isto significa que a criancinha vai crescer, passar a rapariga, a mulher adulta e sempre, inexoravelmente, a arcar sobre os ombros com este nome que, francamente, denota pouca caridade da parte de quem o escolheu.
Ora, admitindo que a rica madrinha tivesse feito questão de que o seu próprio nome passasse para a sua afilhada, bastaria um ligeiro toque para amenizar a dor que a criança iria um dia certamente experimentar. A tirania ficaria menorizada se, por exemplo, a criança se denominasse “Adalberta Isabel”. Com este simples passe de mágica, que a madrinha católica não deixaria de aprovar pela sua devoção a Santa Isabel, a criança poderia a determinada altura escolher ser “Isabel” em vez de Adalberta. O seu primeiro nome ficaria apenas para o registo escrito, mas socialmente a pessoa em questão cresceria entre os seus amigos e familiares como Isabel. (Para a abastada madrinha continuaria a ser Adalberta Isabel, claro!).
Seguindo esta linha de pensamento, mesmo dois nomes pouco controversos como Vasco e Rafael poderão ser preferíveis a simplesmente Vasco, ou simplesmente Rafael. Imaginemos que o rapaz a certa altura percebe que lhe puseram o nome de Vasco por causa daquele irmão do pai que ele detesta. Se lhe tivessem chamado Vasco Rafael, ele passaria a escolher Rafael e assim cortaria com qualquer ligação mental ao seu pouco-amado tio. Com raparigas, Ana Paula permite o uso de “Ana”, de “Paula” ou de “Ana Paula”. Três hipóteses, de entre as quais a portadora do nome pode um dia escolher a que mais lhe agrada. Com um nome só, não tem escolha! É daí que advém a citada tirania.
O mais curioso é que já tenho notado que, em certos casos, mesmo para os pais um nome simples não chega. Carece de uma bengala, especialmente quando esses pais estão menos contentes com o rapaz ou rapariga em questão. Ainda há dias ouvi uma mãe dizer para a sua pequena filha, em tom de ralhete, "I-nês Ma-ri-a, não mexas aí!" Questionei a mãe: "Ela é Inês Maria!? Não sabia!" A resposta não se fez esperar: “Na realidade, ela é só Inês, mas preciso de mais qualquer coisa quando quero repreendê-la!" Este era um dado que não me ocorria, confesso. Mas contra factos não há argumentos.

10/23/2008

Mais uma questão de ética deplorável


Nos anos 60 do século passado, americanos e ingleses estiveram na primeira linha das nações que exigiam a descolonização. "África para os africanos" foi o seu slogan principal. Por seu lado, "independência" e "libertação" eram as palavras que mais ressoavam no grande areópago das Nações Unidas em Nova Iorque.
Ontem, a britânica Câmara dos Lordes deu o seu parecer relativamente a um caso que ocorreu exactamente entre 1967 e 1973. Não se tratou de nenhum acto de independência, libertação ou descolonização. Pelo contrário. O que se passou foi a expulsão pura e dura dos habitantes nativos das suas casas e terras em ilhas que em certa medida se assemelham às paradisíacas Maldivas e não ficam longe destas. As ilhas Chagos constituem um arquipélago de atóis no meio do Oceano Índico. Nos anos 60 já eram território britânico. Um entendimento entre a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, as duas grandes "nações descolonizadoras", fez com que a maior das ilhas - Diego Garcia - fosse concessionada aos americanos para estabelecimento de uma base militar. Na altura dizia-se que as ilhas eram atóis praticamente desertos. Afinal havia pelo menos duas mil pessoas a viverem lá. Contra indemnizações que muitos acabaram por não receber, os nativos foram enviados para outros locais. Alguns deles foram convencidos a irem passar férias fora, com a oferta de um bilhete. O problema é que esse bilhete não contemplava a viagem de regresso. Em 1973 completou-se a total desafectação das pessoas do arquipélago. Diego Garcia, a ilha mais a sul e hoje uma das maiores bases aéreas dos americanos em todo o mundo, pronta a actuar em conflitos na Ásia ou em África, foi entretanto convenientemente apetrechada. Nela convivem cerca de dois mil militares, ao lado de bombardeiros de longo raio de acção e aviões de vigilância e controlo. Constitui, aliás, pedra basilar para ataques aéreos ao Afeganistão e ao Iraque.
Os 500 antigos habitantes que ainda estão vivos, juntamente com quatro mil descendentes, pretendem voltar às suas terras. Há oito anos conseguiram que o Supremo decidisse que os expropriados podiam voltar a todos as ilhas, com excepção de Diego Garcia. O veredicto final pertenceria, no entanto, à Câmara dos Lordes. Ora, os mesmos países que apoiaram os judeus no seu regresso à terra prometida de Israel recusam categoricamente o regresso destas pessoas. Os mesmos países que repetidamente trompetearam através dos seus media a urgência da independência de tantos povos acabaram por fazer pior do que o oposto daquilo que proclamavam. A Câmara dos Lordes deu ontem razão ao governo britânico: os habitantes de Chagos estão proibidos de voltar ao seu arquipélago. Na votação final, o júri assim o decidiu, por três votos contra dois.

10/21/2008

Nacionalização de fundos privados de pensões

A notícia chega como uma bomba: na Argentina, a Presidente da República já assinou um projecto de lei que irá nacionalizar os dez fundos de pensões que existem no país. O projecto ainda precisará da aprovação do Congresso mas, dado que o partido governamental possui a maioria, a nacionalização concretizar-se-á. Tomada com a finalidade de proteger os pensionistas da turbulência financeira mundial, a medida não é impopular junto dos muitos argentinos que estão descontentes com as comissões que são impostas sobre as pensões e com a não-existência de uma pensão mínima garantida. O director da Segurança Social argentina declarou que a experiência dos fundos de pensões privados tinha fracassado e estava na altura de lhe pôr termo. Será interessante ver a reacção da imprensa portuguesa, dominada por grupos económicos interessados nesta área, à notícia vinda da Argentina.

10/19/2008

Fim-de-tarde na Alameda

Morar junto à Alameda Afonso Henriques tem imensas vantagens. Uma delas é a de poder numa tarde de domingo como a de hoje sair de casa e dar logo uma rápida espreitadela a ver como estão as coisas por lá. E aí alegra-se a alma. Sol lindo, céu com nuvens de um lado e absolutamente limpo do outro. A relva, que já cresceu bem depois das pequenas chuvas que têm caído - ontem foi o dilúvio, mas digamos que foi a excepção - brilha ao sol e fica bonita como pano de mesa colocado para vários grupos de rapazes e homens que, na sua maioria, jogam futebol. Num flash de memória voo até ao tempo da minha juventude. Não seria decerto permitido pisar a relva. Muito menos jogar à bola sobre ela. Os jardins e parques nacionais eram para ser mantidos totalmente impecáveis, mas também sem grande uso pelas pessoas. Estas sentar-se-iam nos bancos ou espalhar-se-iam por ali – mas não em cima da relva! Esta é a primeira grande diferença que noto. Mas existem tantas outras! Os fatos cinzentos dos homens, com a clássica gravatinha, desapareceram por completo neste domingo ensolarado. Hoje, o O’Neill já não escreveria "Portugal, país engravatado todo o ano e a assoar-se à gravata por engano". Hoje há cor: as bolas com que se joga são de vermelho vivo, de amarelo garrido, brancas-e-pretas, verdes. As raparigas jogam no meio dos rapazes, e têm mais habilidade que alguns deles. Há camaradagem a sério. E uma sociedade profundamente heterogénea no que respeita a nacionalidades. Aqui estão indianos a jogarem o seu jogo favorito – o cricket -, estão brasileiros com as suas T-shirts canarinhas, africanos de Angola, de Cabo Verde e de Lisboa, ucranianos, romenos e russos. A tarde continua linda, já com algumas sombras a cair. Junto aos muros que bordejam a Alameda as buganvíleas brilham ao sol. As habituais mesas debaixo das árvores estão repletas de jogadores de sueca, reformados que aos domingos não sabem mesmo o que hão-de fazer senão isto. Quatro estão sentados, um em cada lado da mesa, os outros acotovelam-se para ver as jogadas. Mas há também quem, melancolicamente, se arrime a um banco, meditando e sentindo a vida a escorrer-lhe pelo corpo abaixo minuto a minuto. Os mais pequenos brincam dentro da área do pequeno parque dos baloiços e dos escorregas, com as mães do lado de fora a não pararem de lhes gritar indicações desnecessárias. A algazarra é muita. Mas os bancos também convidam aquele casal além para namorar, os mais velhotes a darem dois dedos de conversa, e os turistas a observarem o panorama ao mesmo tempo que tiram umas fotos. Ali, quatro rapazes mais velhos, transpirados, fazem uma pausa no jogo para tragarem uma sandocha e fazê-la acompanhar por uma bejeca geladinha. Chegam dois cães a correr. Um miúdo foge espavorido julgando que é ele o alvo. Mas a cãzoada está apenas feliz na sua liberdade. Passa uma mulher imensa, brazuca pelo sotaque, a falar ao telemóvel. Aqui há miúdos pequenos, de uns sete ou oito anos, a fazerem o seu jogo. Quase a sério. O pai de um deles trouxe de casa duas balizas de hóquei, equipadas com redes e tudo. O jogo é de futebol. Também com raparigas à mistura. A Fonte Monumental, com as suas belas tágides e o lindo cavalo ao centro não pára de jorrar água. Um velhote sentado no murete que circunda a fonte ouve o seu telemóvel tocar, atende, mas protesta que não consegue ouvir nada. Vai ter que escolher entre o ruído da fonte e a chamada telefónica. Eis que chega agora o arco-íris! Não pode começar a chover, dizem. O céu não tem a mesma opinião. Não é chuva a sério, mas os pingos são bem grossos. O arco-íris está lindo, faz a volta completa mesmo por cima da fonte. Do outro lado o sol brilha ainda em pleno. As pessoas hesitam. Passado um pouco, começa a debandada geral. Este Outubro é um pouco traiçoeiro. Os bebés não podem molhar-se. Pais chamam os filhos, acaba a brincadeira. "De qualquer forma a relva vai ficar molhada e isso não é bom." Ala, que se faz tarde! Os putos que têm andado sempre ali às voltas nas suas bicicletas pelo lado do cimento dão umas pedaladas mais fortes. Está também a anoitecer. Acaba a algazarra por hoje. No próximo fim-de-semana há mais.

10/18/2008

Os petrodólares

Ao longo dos anos, têm sido muitos os artigos que li sobre o poderio dos Estados Unidos e a forma como a América conseguiu, após a desintegração da União Soviética, constituir um mundo unipolar, em que se arvora como país dominante, não aceitando regras mais ou menos universais como as do Tribunal Internacional de Haia e do Protocolo de Quioto, tentando impor a sua democracia a países que possuem culturas diferentes, fazendo guerra a nações ricas em petróleo, marimbando-se para o mundo relativamente aos tratamentos dados a prisioneiros em Guantanamo, etc.
Como todos sabemos, essa unipolaridade presentemente já não existe e o recente escândalo financeiro que se iniciou nos Estados Unidos e contaminou todo o mundo veio levantar novas questões ou fazer ressurgir algumas antigas. A questão dos petrodólares que dá o título a este post está longe de ser nova. Mas foi algo que evoluiu com os anos. Chegou-me recentemente um PowerPoint assinado por um desconhecido para mim - William R. Clark -, que apresenta uma tese que me parece digna de consideração, onde a questão dos petrodólares é reanalisada a uma nova luz. O que ele diz é mais ou menos o seguinte: Aquilo que as pessoas crêem, que a guerra no Iraque e as ameaças ao Irão têm a ver com a existência de armas nucleares, com terrorismo ou mesmo com petróleo, não possui grande razão de ser. Do que verdadeiramente se trata é da manutenção do maior conto do vigário dos últimos anos: o esquema americano dos petrodólares.
Sucedeu que, em 1971, os EUA imprimiram e gastaram mais notas de dólar do que a cobertura-ouro aconselharia. Alguns anos depois, quando os franceses exigiram o resgate em ouro das suas reservas de dólares-papel, os EUA viram-se obrigados a recusar o pedido: não estavam em condições de o satisfazer. A América decidiu entretanto fazer um pacto com os sauditas, que dominavam a Organização dos Países Produtores de Petróleo (OPEP): todas as vendas de petróleo da OPEP seriam única e exclusivamente efectuadas em dólares. A partir dessa altura, todo o país que quisesse comprar petróleo teria primeiro que se munir de dólares dos EUA, o que significaria que aos americanos bastaria imprimir mais dólares em troca de bens e serviços. Era um passe de mágica.
Porém, o aparecimento do euro veio colocar uma alternativa real ao dólar. Tratava-se de uma moeda forte, sustentada por economias de 15 países, entre eles a Alemanha, a França, a Áustria, a Holanda, a Bélgica, o Luxemburgo, a Itália e a Finlândia. Foi aí que, descontente com os americanos por razões que facilmente se entendem, Saddam Hussein começou a vender petróleo iraquiano directamente em euros. Para os americanos só restou uma solução: eliminar Saddam. Os EUA aproveitaram o pretexto da destruição das torres do World Trade Center em Nova Iorque para meter o Iraque na ordem. Sem qualquer razão objectiva, como sabemos. Depois, uma das primeiras coisas que asseguraram foi que o sistema de venda do petróleo voltasse unicamente aos dólares.
Entretanto, o venezuelano Hugo Chávez começou a negociar petróleo também noutras moedas, incluindo o euro, o que terá levado a (infrutíferas) tentativas da CIA para o eliminar. Por seu lado, o Presidente do Irão decidiu avançar com a mesma medida, e foi mais categórico ainda do que Saddam: venderia petróleo em qualquer moeda, excepto em dólares americanos.
Nesta altura, se mais países fizerem o mesmo, acaba-se a maminha americana mais cedo do que os EUA esperavam. Sem esta verdadeira mina, o império americano entrará em declínio.
O que dizer desta tese? Não me parece totalmente inverosímil, de outra forma não a citaria aqui, mas gostava de ouvir algumas opiniões.