11/03/2008

Do "Milagre de Milão" ao milagre da Milú

Quando ontem li a crónica que António Barreto escreveu para o Público, sob o título "O Milagre", acerca dos resultados do último ano lectivo, não pude deixar de sorrir. A crónica nada tem de verdadeiramente novo para quem está atento ao mundo da educação, mas merece naturalmente ser lida. É, afinal, mais um reputado cronista a falar em facilitismo de provas para que os resultados acabem por aparecer. De facto, quem alguma vez ensinou sabe que em determinadas disciplinas não é possível conseguir elevadas taxas de sucesso de um ano para o outro como se de um passe de mágica se tratasse. É pena que só à custa de exames mais fáceis e de notas empoladas, de critérios generosos que não penalizam a forma de expressão nem os erros ortográficos para não atrapalhar mais o sistema, se consiga obter melhores resultados.
Entretanto, no meio de tudo, há docentes que se esforçam verdadeiramente no seu conturbado ambiente e há igualmente alunos que dão tudo o que têm para obter boas classificações. Porém, descontabilizando estes casos que são mais excepção do que regra, não é crível que de um ano para o outro surja uma elevação tão notória e generalizada de notas como esta, que lembra mais um truque de ilusionista do que uma situação real, sustentável no futuro.
Para fazer um simples jogo de palavras no meu título, relembrei o clássico filme de Vittorio de Sica “O Milagre de Milão” (1951) e contrapu-lo ao milagre da Milú. Contudo, a verdade é que não é só a Milú ministra da Educação a usar poções mágicas típicas de druidas. Há muito que em certas escolas do ensino superior se dá uma generosa ajuda à fraqueza dos resultados obtidos pelos alunos do secundário para que os candidatos possam entrar na Faculdade X ou Instituto Y. Há anos e anos que nas escolas com menor reputação se utilizam os estratagemas mais diversos para permitir o maior número possível de ingresso de candidatos: começou-se por criar uma banda larguíssima de provas de acesso; mais tarde, passou a atribuir-se apenas 35 por cento às notas dos exames nacionais, indo os restantes 65 por cento para as médias escolares, que são por norma mais elevadas; com novas leis mais apertadas do Ministério, iniciou-se a escolha para provas de acesso à instituição de ensino superior de blocos de duas disciplinas, sendo uma delas básica para o curso - geralmente a Matemática - e a outra apenas auxiliar, mas mais fácil e portanto de nota compensatória no cômputo da média de ambas; utilizaram-se igualmente percentis (legais) para preenchimento de vagas.
Hoje em dia, em face do requisito obrigatório de nota positiva à cadeira básica de acesso, por exemplo a Matemática, muitas escolas superiores de menor prestígio eliminaram a obrigatoriedade da disciplina, escolhendo como alternativas possíveis cadeiras como Português, Economia ou Direito. O leque de candidatos abriu-se instantaneamente como por encanto, enquanto as médias de ingresso treparam. Mas quantos alunos tiveram a sua média de acesso computada na base da Matemática que costumava ser cadeira sine qua non? Isto sucede em várias escolas de engenharia, de contabilidade, de gestão e, eventualmente, outras áreas.
E que dizer do facilitismo das Novas Oportunidades? Se nalguns casos, claramente minoritários, surgem alunos esplêndidos, alguns até a adicionar uma nova licenciatura àquela que já possuem, no geral o panorama é sombrio, com estudantes detentores da habilitação máxima do 9º Ano (a Matemática, por exemplo) a debaterem-se com naturais dificuldades no ensino superior para o qual não estão preparados. A taxa de abandono é elevada e as não-passagens a disciplinas mais numéricas não são menos impressivas.
Daí que acusar apenas a Milú me pareça ser uma atitude que peca por bater sempre na mesma ceguinha. Há outros com culpas no cartório. Mas claro que isto de culpas é algo que depende sempre do ponto de vista!
Na questão do ranking, procurar estabelecer uma distinção competitiva, no ensino básico e secundário, entre os resultados do sector privado e do público é esquecer que as condições não são idênticas em vários aspectos, a começar pelo pagamento, que estabelece uma primeira selecção. Os melhores colégios particulares, em face do grande afluxo de pedidos de matrícula que lhes chegam, fazem aquilo que é mais natural: deixam de fora os alunos potencialmente piores. E se alguns hoje são indisciplinados e perturbadores, no ano que vem a escola não lhes renova a matrícula. Ora, na medida em que começam com uma certa "nata" do corpo discente e tentam manter um corpo coeso de docentes que exerce a sua actividade dentro dos parâmetros de um projecto escolar válido, nada de mais natural que as melhores escolas do ensino secundário privado surjam com resultados muito superiores aos do ensino público. Neste, não se podem recusar alunos. Além disso, nas últimas décadas têm surgido com gravosidade crescente os problemas que todos conhecemos.
A perversidade do sistema termina o seu ciclo com muitos dos melhores alunos provindos do sistema particular de ensino secundário - filhos de famílias com maiores posses - a preencherem muitos dos lugares nas melhores universidades públicas, com propinas consideravelmente mais baixas do que as do ensino superior privado.
Este é um breve resumo do que me tem sido dado observar após várias décadas de ensino, tanto no sector privado como no público.

Sem comentários:

Enviar um comentário