9/27/2012


A adoptar a cartilha do inimigo ou apenas um caso de Ao serviço de Sua Majestade, o Capital?


Há cerca de trinta anos foi criada uma notável rábula interpretada pela falecida artista portuguesa Ivone Silva. A rábula, intitulada Olívia Patroa, Olívia Costureira ainda hoje pode ser vista no YouTube. O tema é sobre o comportamento humano, o qual chega a ser diametralmente oposto quando somos patrões e quando não passamos de simples empregados. O mesmo se aplica a senhorios e inquilinos e a tantas outras situações. Na realidade, os pontos que são a favor de um desagradam invariavelmente ao outro. Se imaginarmos uma pessoa que seja simultaneamente senhoria num prédio e inquilina num outro, ela tem reacções que são sinceras mas naturalmente contrárias consoante a sua posição seja uma ou outra. Digamos que o livro que os senhorios lêem é um, e que aquele que serve de orientação aos inquilinos é outro completamente diferente.  
Ora, quem tem pouca experiência da vida ou do desempenho de determinada profissão tem frequentemente de recorrer a um livro para ver como deverá proceder. Daqui resulta a conhecida expressão inglesa by the book, também usada entre nós.
Governantes que o são pela primeira vez vêem-se na contingência de consultar o livrinho para ver quais são, num determinado momento e perante uma situação específica, os procedimentos adequados. E se em vez do livro certo, usarem o livro do adversário?
Num ensaio notável sobre a Questão Social, publicado pela primeira vez em 1997 na revista americana Foreign Affairs, o historiador Tony Judt considera que na Europa continental o Estado continuará a desempenhar o papel principal na vida pública por três razões de ordem geral.
A primeira é de ordem cultural. Por exemplo, quando os franceses exigem que o seu governo decrete menos horas de trabalho, salários mais elevados, segurança laboral, idade mínima de reforma mais baixa, e mais empregos, podem ser irrealistas mas não são irracionais. As pessoas esperam que o Estado – o governo, a administração, os ministérios – tomem a iniciativa. Em contraste com a obsessão política que existe nos EUA por cortes nos impostos, os franceses geralmente não fazem pressão por impostos mais baixos. Porquê? Porque reconhecem que os impostos elevados são os meios pelos quais o Estado pode satisfazer essas expectativas, e pagam de facto impostos altos, razão por que se irritam se o Estado não consegue cumprir os benefícios sociais que eles esperam. Em sociedades pouco estabilizadas ou mesmo fragmentadas, o Estado é muitas vezes o único meio de garantir um certo grau de coerência e estabilidade. A alternativa histórica para esses casos costuma ser militar, e tem sido sorte da Europa que esse caminho tenha sido pouco tomado nos tempos recentes.
            O segundo argumento para hoje preservar o Estado é pragmático. Não conseguimos ainda compreender que, no limiar do século XXI, o próprio Estado é uma instituição intermédia. Quando a economia e as forças e padrões de comportamento que a acompanham são verdadeiramente internacionais, a única instituição que pode efectivamente interpor-se entre essas forças e o indivíduo desprotegido é o Estado nacional.
            Por fim, a necessidade de democracia representativa – que torna possível a um grande número de pessoas viver juntas em certa harmonia, mantendo um mínimo de controlo sobre o seu destino colectivo – é também o melhor argumento para o Estado tradicional. É porque o livre fluxo de capitais ameaça a autoridade soberana dos Estados democráticos que precisamos de reforçá-los, e não de os entregar ao canto de sereia dos mercados internacionais, da sociedade global, ou das comunidades transnacionais. Tal como a democracia política é tudo o que se ergue entre os indivíduos e um governo todo-poderoso, assim também o Estado regulador e providencial é tudo o que separa os seus cidadãos das forças imprevisíveis da mudança económica. Na medida em que a estabilidade social e a estabilidade política são igualmente variáveis económicas importantes, e em culturas populares onde o Estado-providência é a condição para a paz social, ele é por isso uma vantagem económica local decisiva.
            Estas longas citações do ensaio de Judt, que me parecem avisadas, tornam-se tanto mais necessárias quanto é certo que a cartilha do inimigo – a dos mercados ditos globais, as multinacionais e os vastíssimos montantes de disponibilidades financeiras que circulam diariamente pelo mundo – pretendem notoriamente encontrar Estados débeis que possam facilmente manejar e manipular.
            Vem de há cerca de duas décadas uma notória insistência nos meios de comunicação social numa comparação entre os PIBs de determinados países e os movimentos de capitais gerados por largas multinacionais. Não se trata de uma comparação inocente. É mais uma demonstração da posição de força das multinacionais e uma óbvia tentativa de menorização dos Estados, como se um país fosse constituído apenas por factores de ordem económica.
            Na década de 60 do século passado, era costume considerar como elementos-base da economia de um país três indústrias: a produção de electricidade, de cimento e de aço. É verdade que os tempos mudam e, portanto, há alterações que surgem com o desenvolvimento da sociedade. É um facto, por exemplo, que o carvão não é hoje em dia tão importante como em tempos passados, parcialmente substituído como foi por outras fontes de energia. Mesmo assim, é curioso verificar que na segunda década do século XXI em que nos encontramos o Estado português já não possui o sector eléctrico, a nossa siderurgia não é relevante e, quanto às nossas grandes cimenteiras, elas foram vendidas a estrangeiros. Será que os elementos-base de uma economia sofreram em relativamente poucos anos uma transformação tão significativa que deixaram de ser importantes, ou estaremos a tratar basicamente de um caso característico do enfraquecimento de um Estado? 
            Cada vez me convenço mais de que a globalização, tal como está a ocorrer, não passa de uma forma moderna de colonização. E a colonização máxima é a feita pela finança à economia. Por colonização sempre entendi trocas comerciais e culturais injustas, por desiguais, entre o país colonizador e o colonizado. Desde os costumes à religião, à língua, à definição da economia no território colonizado, ao intercâmbio comercial, existe uma clara supremacia por parte do colonizador a que o colonizado tem de se vergar. No seu livro Social Statics, de 1850, o filósofo britânico Herbert Spencer escrevia: “O imperialismo pôs-se ao serviço da civilização ao limpar as raças inferiores da face da Terra. As forças que accionam o grande esquema da felicidade perfeita, sem tomarem em consideração o sofrimento incidental, exterminam qualquer parcela da humanidade que se atravesse no seu caminho. Quer seja humano ou besta, o obstáculo tem de ser afastado.”
            Hoje em dia, as forças imperialistas modificaram consideravelmente a sua forma de actuação. Uma tecnologia muito mais avançada do que a existente em meados do século XIX permite dominar, colonizar, sem ter de ocupar territórios. Há outras maneiras de o fazer, que vão desde a fixação de preços a nível mundial de produtos alimentares básicos até ao controle da economia feito pela banca e, no geral, da supremacia da finança sobre a referida economia. Quando se estima que os activos existentes em paraísos fiscais em todo o mundo são, grosso modo, equivalentes ao Produto Nacional Bruto (PNB) dos Estados Unidos somado ao do Japão, entende-se a ordem de grandeza dessa força majestática que percorre o planeta, pronta a aumentar os seus lucros.
            A sua táctica principal consiste em colocar no poder de países ditos soberanos governos que possuam a sua ideologia neoliberal e contribuam para a sua concretização no terreno. O que interessa a Sua Majestade, o Capital, não são as populações, a não ser na medida em que são necessárias para a produção. Quanto mais subjugadas e manietadas forem, quanto mais empobrecidas estiverem, tanto mais se submeterão às ordens de Sua Majestade. Daí que para a generalidade das populações de países que são há muito soberanos embora naturalmente interdependentes relativamente a outros, pareça estranha a atitude dos seus governos de alienarem as jóias da coroa que estavam na posse do Estado e que para ele constituíam significativas fontes de receita. Daí também que as populações não entendam a razão do seu empobrecimento se não contribuíram directamente para tal. Daí que as promessas governamentais sejam tão díspares da sua concretização, pois o povo nunca elegeria quem lhes prometesse o seu empobrecimento para chegarem a um futuro melhor. A população, a classe média nomeadamente porque é aquela que tem algum capital que pode ser mais facilmente confiscado, vê-se esbulhada dos seus rendimentos próprios através de novos impostos e eliminação de meses de salário e de privilégios especiais que conquistara e de que usufruía.
            Vários membros dos governos que assim actuam tenderão a ser futuramente recompensados com lugares materialmente muito interessantes em instituições ou nas empresas que ajudaram a vender ao grande capital: sem este incentivo, Sua Majestade não conseguiria aliciar muita gente para novos governos. Daí que nos pareça estranho que de repente tudo comece a desabar. É a globalização, sim, mas a globalização da pobreza, que outros já anunciaram há vários anos. Basta olhar para o governo através de um espelho: veremos uma imagem naturalmente invertida. Porém, é essa que conta. É contra ela que é urgente lutar.