12/30/2007

A ASAE pode ter muita razão, mas...

Da mesma forma que o canalizador polaco serviu de símbolo na querela da livre-circulação de serviços transfronteiriços na União Europeia, também o mundo das intervenções da ASAE ganhou um símbolo: as bolas-de-berlim. Porquê? "Porque agora já não podemos encontrar bolas-de-berlim nas praias. A ASAE cortou as pernas aos vendedores." As bolas-de-berlim não estiveram sozinhas, porém. "Rissóizinhos feitos em casa já não se podem vender em nenhum estabelecimento. Acabou-se o que era bom!" "Já lá vai o tempo dos bolos-rei com brinde. Que saudades!"
Ora bem. Parece que a ASAE se transformou no diabo que varre a sociedade portuguesa, multa e encerra estabelecimentos. Os esclarecimentos que encontramos na imprensa não são, no entanto, tão irracionais como se possa supor. Comecemos pelas bolas-de-berlim. Você gostaria de saber que algumas das ditas bolas - que podem ser aquelas que lhe vão parar à boca - foram feitas em deploráveis condições de higiene, com uso de óleos saturados, já impróprios para consumo? Não é provável que sim. Se as bolas-de-berlim forem fabricadas num estabelecimento devidamente licenciado e, portanto, inspeccionável, não há nenhuma razão para que não sejam vendidas nas praias ou em qualquer outro local.
O que se passa com os rissóis feitos em casa para venda num estabelecimento é muito semelhante. Que garantia existe de que os óleos com que eles são fritos ainda estão em bom estado? Não nos esqueçamos que quem os faz aumenta o seu lucro se tiver que mudar menos vezes o óleo, que é um produto caro. E quem diz rissóis, diz também empadas, pastéis de bacalhau e coisas semelhantes. Quem pode controlar a casa onde os rissóis são fabricados?
Os bolos-rei podem continuar a ter brindes; contudo, estes têm que se distinguir do bolo que se come, seja pela cor, pelo tamanho ou pela consistência. Colocar um pequeno coração com um alfinete como brinde pode não ser uma boa ideia. Se for ingerido, poderá provocar perfuração ou obstrução do aparelho digestivo.
Outras questões se levantam como o não-uso de galheteiros em restaurantes e o embrulhar em papel de jornal as castanhas assadas à venda na rua. Quanto ao azeite e vinagre, acho que foi uma boa ideia aplicar às garrafas em serviço num restaurante um sistema que foi, salvo erro, primeiramente usado nalgumas marcas de whisky: não há possibilidade de reenchimento da garrafa. Sabendo-se da longa e má tradição que temos em Portugal da mixórdia de azeites e óleos, a medida parece absolutamente correcta.
No que diz respeito ao material que serve para embrulhar as castanhas, há legislação que, razoavelmente, proíbe tanto o uso de papel já usado como o facto de esse papel conter desenhos, pinturas ou dizeres na parte que está em contacto com as castanhas. Qual é o mal?
Ao contrário do que corre populisticamente na Net, estas medidas não são incorrectas, tal como não foi incorrecto há anos proibir que os bolos de pastelaria fossem para as mesas, sendo depois recolhidos os que os clientes não queriam. Eu diria que o problema reside mais na falta de formação das pessoas que dirigem restaurantes e pastelarias do que propriamente nas medidas. Nessa carência de formação e na não-necessidade de quaisquer cursos para que alguém possa abrir um restaurante ou uma pastelaria reside um dos maiores problemas. Ainda por resolver.
Contudo, o problema tem uma outra faceta, a qual não é de maneira nenhuma para desprezar. De facto, muitos locais de Portugal, especialmente em pequenos povoados, ainda são muito antiquados. Porém, é o que temos. Eu diria que os cafés e lojas de mercearia que existem nessas povoações não oferecem as condições que os estritos regulamentos "europeus”"exigem. Ora, se uma entidade como a ASAE decide inspeccionar esses lugares com rigor, as coimas que irá aplicar serão tão elevadas que os proprietários se verão compelidos a fechar as suas portas. Os habitantes dos lugares ficarão sem a sua mais importante fonte de abastecimento de artigos de primeira necessidade ou sem o café local, ponto de reunião básico.
Assim, se não forem equacionados e devidamente acautelados estes inconvenientes, o serviço prestado pela ASAE acabará por ser mais nefasto do que positivo. As coimas aplicáveis nas zonas nobres de uma cidade como Lisboa não podem ser as mesmas que num modesto lugarejo do nosso interior cada vez mais desabitado. Caso não haja alguma ponderação e se avançar com um processo cego, a ASAE passará a ser um dos órgãos mais odiados pela população do país. Neste sentido, haverá certamente pontos da actual legislação que precisam de ser revistos, assim como o montante das respectivas penalizações para os prevaricadores.
Além disso, é claro que se estranha toda esta sanha persecutória por parte da ASAE. Se o seu objectivo é lutar pela saúde da população, por que razão o legislador não previu que fossem retirados, por exemplo, muitos dos produtos à venda que claramente provocam obesidade? (Sabe-se que, incrivelmente, dois terços das americanas, adultas, possuem excesso de peso ou são mesmo obesas, algo que não tem tendência para mudar nos anos mais próximos!) Interesses dos grandes em jogo? É, na verdade, mais fácil atingir os pequenos, que não têm força para fazer lobbying. Não me digam que qualquer dia não se vai poder comprar nas charcutarias fiambre, salame, mortadela, queijo, etc. sem ser em pacotes já embalados! Quem fica a ganhar? Quem fica a perder?

O Evangelho dos Blogues, segundo Pacheco Pereira

Um longo artigo de Pacheco Pereira no Público de hoje diz, a dada altura: "O que se passa é que esse verdadeiro mostruário em linha, feito de mil egos à solta, revela mesmo a nossa pobreza, a nossa rudeza, a falta de independência face aos poderosos, grandes, pequenos e médios, os péssimos hábitos de pensar, a falta de estudos e trabalho, de leitura e de "mundo" que caracterizam o nosso Portugalinho. Nem podia ser de outra maneira." (Lembra o estilo do Vasco Pulido Valente!) Mais à frente, afirma: "Sem reflexão crítica sobre o próprio meio, sobre o meio em Portugal, que introduza critérios de qualidade e exigência que os blogues são lestos a exigir a outros mas não a aplicar a si próprios, os blogues serão apenas mais uma câmara de ressonância da nossa vida cívica."
É-se preso por ter cão, e também por não ter o dito. Será que ajuda alguma coisa falar assim dos blogues portugueses, ou é apenas para denegrir o panorama? Será que não teremos aqui um caso de participação razoável da sociedade portuguesa? Será que a necessidade de pensar, de concatenar ideias e expressá-las de forma acessível não conta? Seria melhor ficarmos mudos, sem usar a escrita? Valeria mais ventilarmos as nossas ideias apenas num café?
Creio que a afirmação de que os bloggers não gostam de ser contraditados não corresponde totalmente à verdade. Por meu lado, já várias vezes aprendi variadíssimas coisas através dos comentários e fui corrigido. Gostei. Recordo-me, por exemplo, que há mais ou menos um ano levantei a questão dos indultos pelo Presidente da República e aprendi (com gosto) várias coisas que desconhecia com quem sabia mais do que eu sobre o assunto. Além disso, os blogs são informativos em muitos aspectos. Se os bloguistas portugueses são assim tão maus, por que razão existirão já firmas comerciais - a começar por alguns media – que incluem blogues nos seus sites da Web? Não é deitando abaixo o "Portugalinho" que se faz desaparecer o diminutivo do nome e se põe Portugal a mexer!

12/28/2007

Byblos

Possivelmente escrevo para quem já visitou a Byblos, a nova livraria de Lisboa, mas quero de qualquer forma saudar aqui no blog o seu aparecimento. Auto-intitulada a maior livraria do país em termos de área, algo de que não duvido por um segundo, a Byblos está longe de ser uma livraria comum. Os livros estão cuidadosamente divididos por secções, existe um enorme espaço para andar, ver e escolher, há diversos locais onde nos podemos sentar e calmamente folhear um livro, e existem diversos computadores à disposição dos clientes, que podem consultar o acervo de livros, DVDs, CDs, playstations, etc. e o respectivo preço (há sempre 10 por cento de desconto sobre o preço habitual). Esteticamente é um local muito interessante e confortável, com dois pisos muito amplos ligados por escadas rolantes. O bar serve refeições a preços acessíveis.
Encontrei um único senão: o acesso. Fica a dois passos do CC Amoreiras, é verdade, mas como a Byblos não é servida pelo Metro, só se nos oferece a alternativa do autocarro ou do automóvel. Parquear um automóvel por aqueles sítios não é tarefa fácil, embora existam estacionamentos pagos, a começar pelo do próprio Centro Amoreiras.
Para quem se lembra da pequena maravilha que foi a primeira Buchholz na Avenida da Liberdade, livraria que depois passou para a Duque de Palmela e teve os problemas que se conhecem, aqui está uma prenda natalícia que se espera fique por longos anos na nossa cidade.

12/23/2007

Boas Festas

Aos colegas e amigos do "azweblog", votos de Festas Felizes e de boas entradas em 2008.

12/22/2007

Cisão da Bélgica à vista?


Ponha a sua imaginação a funcionar e, tendo como base numerosas declarações públicas feitas pelo Presidente do Governo Regional da Madeira, considere a hipótese de ele ter congeminado uma lei, devidamente aprovada pelo Parlamento regional, que determinaria que nenhum cidadão nascido fora da Região ou sem parentesco directo a nativos da ilha pudesse adquirir terrenos públicos. Por outras palavras, terrenos das autarquias ou do próprio Governo Regional só poderiam ser vendidos a “madeirenses”. Concebe esta hipótese?
Se sim, está a ir longe de mais. A. J. Jardim já tomou múltiplas atitudes pró-Madeira, mas esta ainda não e, possivelmente, nunca pensará em tal. Já o mesmo não se pode dizer de um senhor belga chamado Tim Vandenput, que é presidente do município de Hoeilaart, uma cidade relativamente pequena que não fica longe de Bruxelas. Vandenput, flamengo até à medula, determinou que o potencial comprador de terrenos públicos na área da sua autarquia tem de fazer prova da sua fluência na língua flamenga. Se não, não! "Esta é uma região da Flandres e é como tal que queremos que se mantenha!"
Dificilmente se arranjaria uma história mais simbólica do que esta para vincar a profunda aversão que muitos flamengos nutrem pelos habitantes da Bélgica francófona. Ao contrário de Portugal, que é o país mais antigo da Europa com as mesmas fronteiras, a Bélgica data apenas de 1830. A parte belga de língua francesa já foi em tempos muito próspera, mas presentemente está a ser largamente "subsidiada" pela Flandres. Calcula-se que os trabalhadores flamengos contribuem anualmente com cerca de 3000 dólares para cada valão, o que causa naturais ressentimentos. Este é um exemplo verídico e flagrante da importância da língua (e não só) na formação de uma comunidade. Note-se que o Presidente do partido mais votado nas últimas eleições belgas considerou a Bélgica um acidente da história, sem real valor intrínseco, e ousou dizer que "os franceses" eram demasiado estúpidos para aprender o flamengo.
É verdade que o país continua a funcionar e que acabou de ser atamancado um governo temporário, mas não se vê solução à vista. Teremos possivelmente mais um desmembramento, tal como ocorreu com a Checoeslováquia. Pode parecer estranho à primeira vista que, numa altura em que a União Europeia já congrega 27 nações, haja esta cisão em potência. A História continua a mostrar-nos que problemas relativos às raízes culturais dos povos se tornam explosivas quando agregadas a questões económicas. Ainda por cima no país que tem como capital a cidade de Bruxelas, onde está sedeada uma parte substancial do aparelho político e administrativo da União Europeia!

12/19/2007

Dois breves apontamentos

1. O meu amigo T. von Holst acaba de me enviar um apontamento do correspondente da BBC, Mark Doyle, que esteve presente aquando da recente assinatura do Tratado de Lisboa. Ele intitula-o, sem crítica, Sócrates-speak: "The Summit ended, as do most meetings of this sort, with smiling photocalls. The Portuguese Prime Minister, Jose Socrates, gave an extraordinary closing speech which spoke about bridges being built, steps forward being taken, and visions being pursued. He went off on such an oratorical flight, in fact, that I became mesmerised by the beauty of the Portuguese language and the elegance of his delivery. I was so bewitched that I didn't register any concrete points in the speech at all. Perhaps there weren't any. But it certainly sounded good."

2. Na imprensa de hoje, os construtores do nosso imobiliário respondem às polémicas declarações sobre a corrupção do sector proferidas por Van Zeller, responsável da CIP, há umas semanas atrás. Afirmam, pela voz de Reis Campos, presidente da FEPICOP, que "fraude e evasão fiscal são problemas transversais a todos os sectores." Logo…
Este é o tipo de argumentação que ouvi há um ano ou dois um bem-humorado ex-governante russo referir num ciclo de conferências da Gulbenkian: "Se digo a alguém que o que está a fazer não me parece correcto, recebo como resposta que aquilo não é nada comparado com o que o fulano tal e tal faz." É isto: uns desculpam-se com os outros. O problema é que, como têm razão, mostram à evidência a profundidade e extensão das raízes da corrupção.

12/18/2007

Auscultadores nos ouvidos

Ainda se lembram deles? Os walkmans já terão cerca de 30 anos e, quando surgiram, representaram um novo conceito: o de ouvir música de forma estritamente individual. Os japoneses criadores dessa nova tecnologia perguntaram-se se a moda iria pegar. Pegou, e de que maneira! Estava-se já num tempo de individualismo, que aparelhos como o walkman vieram aumentar. A rádio que se ouvia em conjunto - ao serão, é possível que ainda haja quem se recorde! -, e posteriormente a televisão que se via juntamente com a família e os amigos, tendem francamente a desaparecer como emissores para plateias familiares. Com a difusão de aparelhos de TV e os seus múltiplos canais, os leitores de DVD, os mini-centros de música onde se ouve o posto ou o CD favorito, é decerto mais frequente encontrar vários aparelhos em cada casa do que apenas um. Isto significa que, mesmo no seu quarto, no quarto ao lado, na sala comum ou na cozinha, cada um pode ver o programa de televisão que mais lhe agrada, sem ter que partilhar com outra pessoa ou impor os seus gostos a outrem.
Os ipods vieram permitir a existência de uma biblioteca musical num pequeno espaço. Auscultadores enchem a cabeça de quem ouve com músicas favoritas. Se dantes se dizia, Out of sight, out of mind, agora a tendência clara é para Out of hearing, out of thinking.
Para mim foi normal, mas ao mesmo tempo curioso, ver ontem no metro que passava pela Cidade Universitária uma moça chegar sorrateiramente junto de uma amiga, certamente colega de faculdade, que estava a ouvir música com um auscultador. “Posso ouvir um bocadinho?” E, com um gesto rápido, sacou-lhe o auscultador do ouvido e colocou-o no seu. Music sharing. Porque não? Sempre é melhor que pedir uma fumaça ou uma passa.

12/17/2007

Verso e reverso


Imagine que, num exame de História, lhe pedem para responder a uma pergunta sobre as grandes linhas do Renascimento nos séculos XV e XVI. O mais natural é que na sua resposta se refira a um vasto movimento cultural que marca o fim da convencionada Idade Média, com o despertar na Europa de um entusiasmo pelos estudos clássicos, um renovada afirmação do papel que está reservado ao homem na Terra, a redescoberta da ciência, e a importância das viagens marítimas de descobrimento no aparecimento de uma enorme curiosidade relativamente ao mundo. Após escrever sobre tudo isto, deter-se-á. Colocará um ponto final.
Deveria, no entanto, ter parado aí? Montaigne, que viveu no século XVI e foi, portanto, testemunha da sociedade desse tempo, escreveu: "Tudo rui à nossa volta, em todos os grandes Estados, seja de cristandade, seja em outras partes. Olhai, e encontrareis uma evidente ameaça de mudança e ruína." A que se devia este posicionamento preocupado de Montaigne? Ao desmoronamento de antigas crenças e concepções, "que davam ao homem a certeza do seu saber e segurança no que fazia. O século XVI desmoronou tudo: a unidade política, religiosa e espiritual da Europa; a certeza da ciência e da fé; a autoridade da Bíblia; o prestígio da Igreja e do Estado."
Daqui terá nascido, como sabemos, um vasto período de cepticismo que levou a duas vias: uma de profunda reanálise da sociedade e do conhecimento em Inglaterra e França, nomeadamente com Bacon e Descartes. A outra que conduziu, inversamente, ao arreigamento de antigas mentalidades, intransigentemente apegadas à cultura anterior. É, afinal, este o processo da Reforma (protestante) em países como a Inglaterra, a Holanda, em vários Estados da futura Alemanha, na Suiça, etc. e da Contra-Reforma da Igreja católica, em nações como a Espanha e Portugal, com profundos efeitos até aos nossos dias - até porque as viagens de descoberta e conquista levaram os povos ibéricos a obter o domínio de toda a América Latina, deixando para a cultura cristã predominantemente de raiz protestante a América do Norte.
O que pretendo fazer aqui, de forma necessariamente breve devido aos constrangimentos impostos pelo blogue, é uma sumária comparação entre essa situação do passado e o actual estado do mundo, naquilo a que se convencionou chamar "globalização". Tal como Montaigne o foi no século XVI, nós estamos a ser testemunhas de uma enorme agitação e mesmo revolução. Aliás, não somos apenas testemunhas. Somos participantes.
Geralmente quem fala sobre a globalização exalta as suas potencialidades. Mas é difícil de escamotear o facto de que a incerteza reina e a relativa segurança das décadas que antecederam os dias de hoje tem vindo a diluir-se. Ressurgem conceitos que se poderiam julgar definitivamente ultrapassados, como a precariedade do trabalho, a desumanização das relações laborais, a mentalidade que vira costas ao social para embarcar furiosamente no lucro puro e duro.
Será que o conceito de globalização ocorre pela primeira vez? Então, e a actividade de séculos dos portugueses nos mares da Índia, da China e do Japão? E as armadas espanholas que transportavam enormes quantidades de mercadorias, de ouro a prata, de especiarias a cerâmica, entre as Filipinas e a América Latina e a Europa? E a grandiosa frota holandesa, que ia tão longe que precisou de criar um crucial entreposto na ponta de África onde Atlântico e Índico confluem, que depois se transformou na África do Sul mas que entretanto permitiu que se fizessem com notável sucesso viagens a Ceilão e à Indonésia? E que dizer da mais poderosa de todas as frotas comerciais e de guerra - a britânica - que formou variadíssimos empórios comerciais, logrou impor-se em todo o vasto continente indiano, vergou o poderio chinês, entrou pela Nigéria dentro e tornou viável a colónia que mais tarde se haveria de transformar nos Estados Unidos da América? Esta globalização que hoje vivemos é, apenas, mais uma globalização. Certamente diferente das outras pelos meios tecnológicos que utiliza, mas tão ou mais exploradora do homem do que todas as outras.
Entretanto, porque terminaram as globalizações anteriores? Porque eram ciclos e não processos lineares que se pudessem estender indefinidamente. Porque as questões em jogo não permitiam continuar o processo da mesma forma. Daí resultaram nuns casos meras querelas, noutros conflitos em maior escala e, em certas conjunturas, sanguinolentas guerras entre as nações colonialistas europeias promotoras dessa globalização.
Não creio que estejamos presentemente à beira de uma guerra, mas é curioso ver como as nações se agregam em blocos para assim se tornarem mais poderosas. Sob o ponto de vista militar, EUA e Rússia continuam a ser os países mais poderosos num mundo global que está muito longe de ser um vastíssimo estado de direito, pelo que, quer queiramos quer não, a derradeira divisa continua a ser might is right (o poder está na força). Daí que ameaças verbais contem pouco contra o real poder das armas. Já nos teremos esquecido de factos ainda recentes como os bombardeamentos de Belgrado, Bagdade e Beirute, todos por aviões ocidentais? O que puderam as populações de Beirute, Bagdade e Belgrado fazer contra as bombas despejadas do ar?
Ameaças fortes, tais como desequilíbrios sérios nas moedas, valorizações e desvalorizações substanciais a fomentarem desemprego e descida do nível de vida, largos movimentos migratórios, elevados preços de matérias-primas e especulação financeira de grande gabarito podem, a prazo indeterminado, conduzir a conflitos bélicos de pequena, média ou grande envergadura. Tudo é uma incógnita. É por isso que convém recordar as palavras de Montaigne sobre o seu tempo. Tanto a (boa) globalização como o seu reverso são factos a tomar em linha de conta.

Nota: As linhas entre aspas foram retiradas de uma conferência de Manuel Cícero, a que assisti na Gulbenkian há uns meses.

12/14/2007

Ainda o acordo ortográfico

Sinto que já não deveria voltar neste blogue ao tema do acordo ortográfico. Há uma boa razão: não suscitou qualquer comentário. Mesmo assim, não me conformo, repetindo embora algumas das minhas ideias-chave. A primeira é que não sou de maneira nenhuma contra mudanças, desde que elas façam sentido e tenham lógica no contexto de uma determinada sociedade e língua. A segunda, também básica, é que não entendo por que razão sociedades diferentes que tiveram a sua evolução própria e são hoje, politicamente, nações independentes, hão-de querer unificar a sua ortografia, se a sua maneira de pronunciar as palavras é por vezes bem diferente. Haverá sempre alguém a ser forçado, e nada justifica isso. Parece que só a parte comercial é que interessa. Até nisto, Santo Deus! A língua, seja na sua forma oral, seja na escrita, não é algo em que se possa mexer como se manipula um produto!
No outro dia, calhei ter ao pé de mim uma edição datada de 1820 de uma obra do Padre António Vieira. Tirei, de propósito, algumas notas. Naquela altura, escreviam-se muitas consoantes duplas que mais tarde se verificou serem desnecessárias, v.g. accender, appetite, aquelle, intelligencia, annos, elle, nellas, soccorro, efficaz, occulto, succede, supponho; ditongos nasais que pareceriam muito esquisitos hoje: satisfaçaõ, naõ, irmaõ, irmãa, maõ, lãa, ladroens, varoens, Capitaens; não se acentuavam palavras nitidamente esdrúxulas como temerario, prudencia, misericordia, lisongeas, materia e Alfandega; muitas palavras graves eram desnecessariamente acentuadas, v.g. pódem, Angòla, cautélas, tomára, óvos, póde, démos; a 3ª pessoa do plural dos verbos no indicativo presente era muito estranha, como se pode ver em trabalhaõ (trabalham), entendaõ, saibaõ, etc.
Ora bem, tudo isto foi corrigido, felizmente. Hoje a língua portuguesa está melhor graficamente, mais rápida na escrita e mais lógica. Não achei mal uma das últimas mudanças que se fizeram, que foi retirar a acentuação nos advérbios de modo (terminados em –mente, como somente, tecnicamente, etc.) Não estou em desacordo com alterações que estejam de acordo com a nossa pronúncia e sejam passíveis de simplificação reflectida e lógica.
Estou, no entanto, totalmente em desacordo com o facto de termos ou que puxar por outros países ou andar a reboque deles. Se o tempo do colonialismo acabou, não se diga uma coisa e faça-se outra. Não temos rigorosamente nada a ver com a grafia do português que se fala no Brasil. Nem devemos tentar mudar a ortografia usada pelos brasileiros nem eles a nossa. Idem para os angolanos e moçambicanos. Os países independentes tomam o rumo que querem. Ponto final.
Repare-se no exemplo dado pelo inglês do Reino Unido e pelo inglês dos Estados Unidos, que, naturalmente, faz com que os nossos computadores estejam equipados com um inglês UK e um inglês USA. O mesmo poderá suceder, se é que não sucede já - e com naturalidade - entre o português de Portugal e o português do Brasil. Quando leio um livro brasileiro, noto logo nas primeiras linhas que está escrito em português do Brasil. Tudo bem. Sigo em frente. Quando um brasileiro lê um livro de um autor português, repara imediatamente que existem diferenças substanciais, e que estas estão longe de se resumir a ortografia. Isto está correcto e é normal. É a evolução natural das sociedades e das línguas. Para quê alterar o que está bem? Colonialismo no sentido inverso? Se quem anda a tratar desta errada uniformidade ortográfica fosse plantar batatas, seria bem melhor! Talvez ao andar de cabeça baixa para plantar as ditas percebesse melhor a dimensão do problema.

12/11/2007

Discutindo a legalização da prostituição

Um artigo de Francisco Sarsfield Cabral (FSC) no Público de ontem referia-se a "uma anunciada petição ao Parlamento no sentido de legalizar a prostituição em Portugal". Já há muitos anos que leio com agrado os artigos assinados por FSC sobre economia. São equilibrados, informativos e colocam os pontos nos ii com a objectividade própria de um economista.
O artigo intitulado "Vender o corpo" não versa um assunto predominantemente económico, pois, nas palavras de FSC, "o cerne da questão - legalizar ou não a prostituição - é de natureza ética." E é aqui que, feliz ou infelizmente, entramos numa discussão tipo legalização do aborto, em que as opiniões se extremam. Creio que a habitual objectividade de FSC desaparece quando afirma, ao falar dos países escandinavos, da Holanda e da Alemanha, que nesta última "uma mulher desempregada que se recuse a ir para um bordel arrisca-se a perder o subsídio de desemprego." O que é isto?! Quem acredita que, num país como a Alemanha, se uma operária, uma secretária, uma gestora, uma professora perder o seu emprego, a Segurança Social lhe propuser ir para um bordel e ela recusar, perderá o direito ao subsídio atribuído a quem está desempregado?
Por este caminho fundamentalista, a discussão irá indubitavelmente descambar na falta de ética, o que, para um assunto confessadamente ético por natureza, não parece ser o melhor começo.

12/10/2007

Sobre a aprendizagem de línguas

"O síndroma do –s" (02/12) gerou algumas perguntas, a que tentarei dar resposta. Além dos comentários registados, recebi algumas questões que me foram colocadas por e-mail. Na suposição de que determinadas perguntas carecem de uma resposta que será eventualmente de interesse para mais leitores, permito-me responder com novo texto nesta parte principal do blog. Fica combinado que (1) voltarei ao síndroma do -s devido à questão do apóstrofo, (2) tratarei noutro post o assunto do a ou an em inglês antes de substantivo e, já a seguir, tentarei responder a uma questão mais genérica que me foi colocada por M. Alfacinha: porque é que, embora conheçamos as regras de uma língua estrangeira, continuamos por vezes a cometer erros?

Todos sabemos que ensinar e aprender estão, pelo menos em princípio, intimamente ligados. A aprendizagem da língua materna é uma das primeiras actividades humanas. O ensino faz-se, regra geral, de pais para filhos. Mãe, pai, avós & Cª são exímios a ensinar e têm nos bebés atentos alunos, conquanto eles pareçam por vezes algo distraídos. Porque as crianças de berço nada sabem, os ensinantes martelam as palavras, como se estivessem a martelar as teclas de um piano. É uma técnica universal. Repetem as sílabas para que as palavras encaixem melhor no cérebro que se está a desenvolver. É dessas repetições que vem a palavra bebé, conjuntamente com mamã, papá, xixi, cocó, papa, teté, popó, e até o tau-tau. A criança vai absorvendo. Um dia acabará por substituir essas palavras por outras mais adultas, mas reservá-las-á no seu cérebro para falar mais tarde com os seus próprios filhos. Os exemplos acima são de substantivos, uma das partes mais simples da língua. Porém, quando uma criancinha começa a ter de construir frases, o caso muda de figura e torna-se mais complexo. A diferença nos verbos entre passado, presente e futuro implica desde logo a assimilação da noção de tempo, algo que não é intuitivo mas que a criança vai assimilando. Na realidade, vai assimilando tão bem que, pouco a pouco, vai apreendendo e construindo para si própria as regras básicas da (sua) língua. Os adultos vão continuando a falar com ela, e quanto mais o miúdo ou a miúda tiverem de compreender, tanto melhor se expressarão quando precisarem de o fazer. A criança criou, entretanto, o seu software linguístico baseado nos padrões de regularidade que foi captando. Previsivelmente, a mesma criança claudicará nas excepções. E não são tão poucas como isso. Um adulto já há muito que passou essa fase porque esteve exposto à língua durante muito mais tempo. Porém, é normalíssimo e até saudável que uma criança se engane nos tempos verbais e diga posi em vez de pus, di em lugar de dei, ou fazi querendo dizer fiz. São coisas que geralmente provocam o riso dos adultos, mas que não são mais do que o reflexo da apreensão da base da língua (ele pôs, logo eu posi; se eu vi, eu di; ela faz, logo eu fazi). Na mesma linha, é natural que as crianças falem em cãos e não digam logo cães. Aprenderam a regra do padrão normal por si próprias, e é agora que vão começar a lidar com as excepções, o que levará o seu tempo.
Ora, na aprendizagem de uma língua estrangeira, uma criança, um adolescente ou um adulto já tem normalmente que contar com o seu próprio substrato linguístico, por si criado e profundamente enraizado. Vamos supor que a língua estrangeira é o inglês. Para aprender de cor expressões como good morning, good night, thank you, good-bye, ou substantivos como school, book, pen, pencil, ball e coisas simples como estas, a criança não necessita de criar outro software, embora entenda que se trata de uma língua diferente da sua. Contudo, quando precisar de usar adjectivos e substantivos, formas verbais ou construir frases negativas ou interrogativas, aí tem mesmo que criar outro software na sua cabeça. Se as novas estruturas lhe forem explicadas de forma simples, em processo gradual e dando-lhe a possibilidade de ela própria começar a aplicar os conceitos, aprenderá com relativa facilidade. E quanto a fazer erros? Recordemos os exemplos dados, reais, de eu posi, eu di, eu já fazi, e outros, que a criança nunca ouviu da boca de um adulto mas que criou à sua maneira, dentro da regularidade padrão que ela própria edificou. Na aprendizagem da língua estrangeira, vai suceder praticamente o mesmo, mas com comparações diferentes: quanto maior for a diferença entre a estrutura da sua língua materna e a do idioma que está a aprender, tanto menos fácil em princípio se torna a aprendizagem.
Paremos aqui um pouco para lembrar que lembrar que, em português, formação é um vocábulo simples, o que normalmente não sucede em inglês. Para este conceito de formação, o inglês usa education and training, o que nos dá uma chave importante. Tomemos education como a explicação teórica e training como a prática. Os dois aspectos completam-se entre si. Quem raramente pratica uma língua tem, logicamente, mais probabilidade de cometer erros. Porquê? Porque não criou as rotinas suficientes. A criação de rotinas é essencial para que, com uma boa base teórica, que estabeleça uma diferença facilmente compreensível entre os dois tipos de software linguístico, o aluno deixe de pensar tanto na forma do que diz e passe a falar ou a escrever com maior fluência. Daí que seja muitíssimo importante, por exemplo, que nas aulas de língua inglesa se use apenas o inglês como idioma, reservando eventualmente o português para o mero significado de um substantivo, adjectivo ou verbo.
Ao longo da minha vida profissional, encontrei alguns óptimos professores de língua inglesa. Para a esmagadora maioria daqueles com quem trabalhei, o inglês era a língua materna. Pessoalmente, aprendi muito com eles, mas também notei que precisavam frequentemente de saber como explicar a estudantes portugueses determinadas questões. Nenhum deles, porém, fazia erros do género de I didn’t knew it, ou It’s twenty miles far from Lisbon ou It’s a five-stars hotel. Por seu lado, os professores portugueses eram geralmente muito bons, sabiam explicar bem, mas podiam de vez em quando ter um slip of the tongue do género de Did he said that?. Acontece a todos. No passado também me aconteceu a mim. É gravíssimo? Não, a não ser que seja frequente. Aí será realmente preciso corrigir urgentemente. Sabe-se a explicação, mas ainda não se conseguiu a automatização total. Eu diria que com a prática muitos dos erros serão eliminados, porque a componente training é essencial. Para adolescentes (e não só), os filmes são um óptimo complemento de aprendizagem, assim como a leitura de peças de teatro modernas (com um diálogo natural e, ainda por cima, escrito) e a participação em programas de intercâmbio como o Erasmus.
Já agora, convém que quem se põe a aprender uma língua não tenha a aspiração de ser cem por cento perfeito. É uma atitude que tende a causar inibição. No fundo, é preferível cometer um deslize linguístico com um sorriso do que falar de forma gramaticalmente correcta com uma cara-de-pau.

12/08/2007

Colonialismo - "Take" mil!




Como não poderia deixar de ser, a actual cimeira de Lisboa entre a Europa e a África levanta mais uma vez o clássico tema do colonialismo. Mugabe é certamente o líder mais contestado pelos europeus, muito possivelmente devido ao facto de, entre outros actos execráveis, ter retirado terras da posse das antigas famílias colonizadoras britânicas. A este propósito permito-me lembrar as palavras do antigo dirigente negro Jomo Kenyatta: "Quando os brancos chegaram a África, nós tínhamos as terras e eles a Bíblia. Ensinaram-nos a rezar de olhos fechados. Quando os abrimos, eles tinham as terras e nós a Bíblia."
Embora estes brancos não fossem portugueses mas sim britânicos – que portugueses poriam os nativos a ler a Bíblia? -, o problema põe-se sempre da mesma forma: a ocupação das terras. A terra sempre foi vista como mãe, e sagrada por isso. Não foi por mero acaso que no nosso país os judeus podiam entrar na finança e nas artes-e-ofícios, mas não eram autorizados a possuir terras.
Dir-se-á que o Zimbabue de hoje é muito menos rico do que foi aquando da colonização britânica. Quem duvida? No entanto, se o critério para a titularidade de uma terra é a produtividade que dela se obtém, ficaremos muitos de nós aqui em Portugal em maus lençóis. Aliás, essa é uma das justificações que há muitos anos ouço para a ocupação das terras da Palestina pelos israelitas. Bastará esse facto? Por extensão de raciocínio, os poços de petróleo no mundo passariam para a mão de quem melhor os explorasse. Seria, portanto, suficiente cortar as asas à educação dos terra-tenentes para que aparecesse alguém, estrangeiro mesmo, a proceder à respectiva ocupação - pela força das armas se necessário. Quanto ao direito internacional consagrado, bastaria não o cumprir.
Em minha opinião, se o Zimbabue não tivesse sido anteriormente a florescente Rodésia e as boas terras não tivessem pertencido a famílias brancas, o clamor contra Mugabe seria diferente. Sendo mau como governante, como vários dados estatísticos sobre o país amplamente demonstram, é possível que enfileire apenas numa galeria recheada de fracos governantes africanos. Entretanto, entende-se perfeitamente a atitude de ausência da cimeira por parte das autoridades britânicas. Se viessem, estariam em certa medida a endossar a política de Mugabe, o que irritaria sobremaneira os numerosos colonos brancos britânicos que se mantêm em países independentes que outrora fizeram parte do império de Sua Majestade e que contribuem fortemente para os contactos com a metrópole e respectivos negócios.
Hoje, junto ao Parque das Nações, houve pequenas mas ruidosas manifestações contra e pró-Mugabe. Deixo aqui duas das várias fotos que tirei. Cada um conclua o que quiser.

12/07/2007

Capítulo revisto

Em Abril do ano passado, referi aqui o problema de uma parte significativa da sociedade portuguesa - e, certamente, também de outras - relativo à dificuldade com que mulheres empregadas se deparam para ter filhos. Entre outros factores, pelo receio de perderem o seu lugar, essencial para o equilíbrio das contas do casal. No caso em questão, contei que a Leonor, uma simpática e eficiente funcionária do banco a que costumo ir, tinha 27 anos, estava casada havia três anos, morava do outro lado do Tejo, não tinha ainda filhos e, como me disse, "não sei como é que isso vai ser". E concluiu o seu raciocínio: "Não tenho tempo. Entro aqui todos os dias pouco depois das oito e chego de volta a casa às 8 da noite." O horário do banco era ultrapassado em muito, como é evidente, mas havia também o factor dos transportes.
Eu referia no post, algo azedamente, reconheço, que "é assim que a empresa espera que a sua funcionária corresponda, contribuindo com o seu quinhão de esforço para que o banco alcance os objectivos anuais que previamente definiu."
Já não vejo a Leonor há bastantes meses. Teria deixado a agência depois de lá ter trabalhado durante três anos? A boa notícia que me deram hoje é que ela está feliz, em casa e ainda em licença de parto, com a sua bebé. Por seu lado, o Banco portou-se bem e prometeu arranjar-lhe um lugar numa agência mais próximo de sua casa. Para mim foi uma excelente notícia de Natal, até porque é de algo natalício que se trata. All’s well that ends well.

12/06/2007

Afeganistão

Eu já sabia que o –tan (ou –tão, em português) que termina alguns nomes de países asiáticos significa "terra". Assim teremos, por exemplo, Cazaquistão (terra dos cazaques), Industão, Paquistão e Afeganistão. O que eu não sabia é que as exportações de ópio do Afeganistão somavam o equivalente a mais de metade do PIB lícito do país e constituíam 93% de todo o ópio que se consome no mundo. Graças a estes números, o Afeganistão tornou-se o maior produtor de narcóticos à escala mundial desde o período de ouro da China, neste mesmo domínio mas no século XIX.
Uma pergunta: não é no Afeganistão que estão tropas portuguesas?

12/04/2007

Mudanças

Para quem já pode falar de um relativamente longo curso de vida é, obviamente, mais visível a mudança das sociedades em determinados padrões. Atrevo-me a dizer que na sociedade portuguesa existem, para além de vários outros, uns tantos pontos em que são bem notórias alterações substanciais. Embora os factores que agora são predominantes sempre tivessem existido, o seu peso era claramente inferior ao dos seus contrários. Todos os itens que aponto têm alguma ligação entre si.
Uma das alterações mais significativas consistiu na passagem de uma sociedade prioritariamente do dever para uma outra primordialmente dos direitos. Onde outrora se falava de obrigações, hoje tende-se a invocar direitos. Este novo posicionamento retira prazer ao trabalho, que se continua a fazer mas mais esforçadamente, incentiva o pensamento em fins-de-semana, nas férias e na aposentação/reforma e, à escala nacional, conduz a menor rigor, maior facilitismo e produtividade mais baixa.
Directamente correlacionada está a redução da capacidade de sacrifício, como reflexo da glorificação do prazer. A sociedade de há umas décadas era mais resignada e arcava com o seu fardo como um dever natural. Com a diminuição do limiar de sofrimento, passou a existir uma insatisfação maior e um mais agudo sentimento de inveja perante os que se podem dar ao luxo de prazeres vários e excentricidades. Daqui resulta uma sociedade mais tumultuosa e menos contida.
Os valores éticos sofreram uma clara menorização, em parte como resultado da limitação da consciência do que é "pecado". A contrapor-se, surgiu a liberdade, o vale-quase-tudo. Aspectos religiosos, muito salientes em décadas anteriores, esvaneceram-se notoriamente. As filas que se registavam noutros tempos para a confissão dos pecados dos fiéis só muito esporadicamente poderão voltar a surgir. A existência de menos valores de referência leva a que, em caso de comportamentos duvidosos, a lei seja invocada por uns tantos como não infringida - o ónus da prova ficará a cargo do acusador -, relegando para segundo plano eventuais aspectos éticos.
Toda a transição do culto de um certo espartanismo, que anteriormente prevalecia, para uma ficcionada sociedade de bem-estar "romano" levou a que vários provérbios antigos passassem a ser ignorados. "No poupar é que está o ganho" constitui um bom exemplo, substituído gradualmente por algo não expresso mas materializado em "no gastar é que está o prazer da vida". Deste novo posicionamento resultou inicialmente uma taxa de poupança em forte diminuição que, posteriormente, se traduziu num acentuado endividamento das famílias.
No seu conjunto, estas são alterações muito profundas.

12/02/2007

O síndroma do -s




Pergunte-se a um professor de inglês se os seus alunos têm grandes dificuldades em aprender a língua. O mais natural é que ele (ou ela) diga que não. Mas acrescentará que existem alguns berbicachos. Talvez o mais importante destes seja a interferência do nosso –s. Poder-se-ia mesmo chamar-lhe o síndroma do –s. Porquê?
A resposta cabal seria longa, mas vou tentar sucintamente dar uma ideia. Calcula-se que um terço das dificuldades que os alunos denotam na aprendizagem de uma língua estrangeira derive de interferências da sua própria língua. É lógico que essas interferências existam. No que respeita à aprendizagem do inglês, o caso do –s é característico. Para um português, pensar em termos de –s final é pensar em plurais. Esqueçamos palavras de excepção como lápis e pires que, apesar de serem singulares, já contêm um –s. Pensemos antes em praticamente todas as outras, como livros, computadores, homens, mulheres, crianças, etc. É a ideia enraizada de que "um –s no fim da palavra é igual a plural" que nos leva a pensar que é assim em todas as línguas.
Porque haveria de ser? Na foto que acompanha este post, vemos o anúncio de quartos em vários idiomas. Tudo termina em –s, uma vez que falamos de quartos e não apenas de um quarto. Foi certamente isso que levou o bem-intencionado autor do letreiro a escrever erradamente Zimmers. De facto, quartos são, na língua alemã, Zimmer. Perguntar-se-á: então como se distingue um quarto de vários quartos? É fácil. Nos exemplos dados de lápis e pires, se falarmos em os lápis e os pires, sabemos que estamos a tratar de um plural. Em alemão, basta igualmente a mudança da palavra que antecede Zimmer para se compreender se é singular ou plural.
Ora, o inglês é uma língua originariamente germânica, se bem que a esmagadora maioria do seu vocabulário seja, felizmente para nós, de raiz latina. Daqui sucede que quando surgem palavras como man, woman, child, foot, mouse, etc., todas de origem germânica, haja uma enorme tendência para fazer erradamente o plural em mens, womens, childrens, feets e mouses. Difícil de corrigir? Não. Qualquer explicação simples como esta, conjugada com exercícios para a criação de rotinas, resultará.
Pior, muito pior, é o caso dos verbos. Quando se diz a um aluno que a terceira pessoa do singular do Indicativo Presente dos verbos termina em –s, ele aceita - que remédio! - mas a coisa custa-lhe um bocado a engolir, principalmente quando tem de aplicar. Para quem aprende, aquele –s é perfeitamente contra naturam. Ora, facilitará muito a missão do professor explicar que afinal aquele –s nada tem a ver com plural e que essa é a razão porque não tem significado de maior aplicá-lo num singular. De facto, quando o aluno tem que aprender que é he likes it em vez de he like it, ele olha algo de esguelha para a língua. Mas se se lhe disser que aquele –s até está lá, por assim dizer, para lhe facilitar a vida, ele fica mais receptivo. Na realidade, o actual –s que encontramos em praticamente todos os verbos (she loves it, he writes books, it looks fine) não passa de uma simplificação do antigo -th, que tem uma pronúncia aproximada do –s e, afortunadamente, evoluiu para este. Imagine-se a frase: What God giveth, He can take. Não será muito mais simples dizer What God gives, He can take? Se o inglês continuasse sempre com aquele –th, contaminar-nos-ia com a forma de falar tipo "sopinha de massa". Tenho por experiência própria que, perante esta explicação simples, o aluno apreende a ideia facilmente e, depois da prática que lhe vai naturalmente ser necessária, horrorizar-se-á até com aqueles colegas que dizem he speak, he read em vez de he speaks, he reads.
Esta arreliadora interferência do –s surge ainda noutros casos, de que mencionarei apenas mais dois ou três. Experimente-se pedir a alunos médios para dizer ou escrever em inglês algo como "as fábricas e os seus produtos". Garantidamente, alguns dirão the factories and its products. Quando se lhes chama a atenção para o uso não correcto de its, dirão "as fábricas não são pessoas, logo..." Logo, o quê? É verdade que its se emprega como possessivo de coisas. O problema é que estamos em presença de um plural (factories). Pois é, mas o problema reside exactamente no facto de que its também termina em –s, o tal que é característico do plural em português. É daqui que vem a interferenciazinha. Quando se pede aos alunos para usarem their, alguns a princípio até duvidam: afinal their é uma palavra que não termina em -s.
Então, e o que dizer da palavrinha inglesa this? É muito frequente que mesmo alunos razoáveis escrevam this things ou algo do género. Mas se pensarmos no "síndroma do -s", que coisa pode haver de mais natural? Embora this seja um singular (isto; este, esta), o facto de terminar em -s torna-o numa atracção quase fatal, que consiste em fazer coincidir o -s de things com o -s de this. De facto, a palavra correcta a usar - these - parece em princípio à nossa formatação cerebral pouco ajustada a um plural por não terminar em -s.
Precisamente pelo mesmo motivo, people é tratado por muitos estudantes de inglês como singular (falta-lhe o essezinho!) e news, apesar de singular, é uma palavra vista como plural. É claro que quanto mais cedo se alertar para esta tendência, explicando a sua etiologia, e praticar, tanto melhor. Caso contrário, teremos durante muito tempo estudantes a dizerem people is like this e what are the news? - em vez de people are like this e what's the news?
É assim, através das raízes lógicas que a língua materna forma no nosso cérebro que se dão muitas colisões na aprendizagem de línguas estrangeiras. Nada que não se resolva, mas convém alertar para estes factos e fazer incidência neles através de exercícios interessantes para que o problema tenha uma solução mais rápida.


P.S. Este é um modestíssimo contributo linguístico - elementar mas original - que dou aqui no blog. Se for do agrado de alguns leitores, prosseguirei de vez em quando com outros. Se ninguém se manifestar, este terá sido o último. Por razões óbvias.

11/28/2007

De novo o aeroporto na baila

Cá temos mais um estudo para optimizar a solução aeroportuária na zona de Lisboa. Desta vez o trabalho foi realizado pela Universidade Católica na sequência de uma encomenda da Associação Comercial do Porto. O estudo defende a manutenção do aeroporto da Portela, apoiado por uma base na margem sul do Tejo para os voos low cost. Segundo rezam as notícias, esta solução de Portela + 1 pode representar uma poupança da ordem dos dois mil milhões de euros ao Estado e constituir uma melhor adaptação para mudanças que poderão ocorrer no futuro.
Só posso reagir favoravelmente a esta solução, que me parece perfeitamente viável e evitaria o grande desmando que o poderoso sector imobiliário português pretende: ocupar os cobiçados terrenos do aeroporto para aí construir, construir, construir. Como se Portugal precisasse continuamente de mais e mais cimento, por acaso numa altura em que algumas bolhas resultantes do boom habitacional já rebentaram noutros países. Entretanto, com a linha do Metro mais do que planeada para a zona, imagino os ataques que vão surgir contra esta opção.

11/27/2007

O acordo ortográfico (II)

Finalmente, estou a encontrar mais alguma (pouca) informação na imprensa sobre o acordo ortográfico a que me referi na semana passada neste blog. Não é sem tempo. Pelo que leio, Portugal garantiu à CPLP que aplicaria o acordo quando houvesse três países que o ratificassem, o que presentemente já sucede: o acordo foi ratificado por Brasil, Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe.
Um professor da Universidade da Bahia (Brasil) afirma que o acordo, que ele conhece, é muito simples. Acentos considerados desnecessários desaparecem, consoantes mudas são abolidas e as três letrinhas que faltavam para que o nosso alfabeto ficasse igual ao dos ingleses - k, w e y - são adicionadas.
Sobre esta última adição nada tenho a dizer e até a saúdo. Aliás, supunha mesmo que ela já se tinha verificado (os dicionários modernos incluem o k, o w e o y. )
Quanto ao resto não sei se concordo, sem ver as regras estabelecidas. Se a forma diferente de pronunciar as palavras em cada país não for respeitada só para que haja uma uniformidade artificial, estou em absoluto desacordo. Repito o que disse no meu post anterior: não faz qualquer sentido uniformizar o que é diferente. Para quê? Porquê? Aliás, a nossa sintaxe é em muitos casos tão diferente da brasileira que ter todos os vocábulos grafados da mesma maneira é algo ridículo.
Informam-me que, no total, o novo acordo mexe com cerca de 0,4 por cento das palavras usadas no Brasil e com um pouco mais de 1 por cento da ortografia de Portugal. Ora, aqui já temos uma informação quantificada: planeia-se a mudança ortográfica de cerca de 3 vezes mais vocábulos usados em Portugal do que no Brasil! O que é que isso significa?
Dando como certa a informação de Jonuel Gonçalves, o já referido professor da Universidade da Bahia, óptimo passará a escrever-se ótimo e redacção transformar-se-á em redação. Que redacção passe a redação não acho muito grave, até porque ilação, que só se escreve com -ç- em português luso, pronuncia-se como se tivesse -cç-. Tal como inflação.
Estou a imaginar que, na mesma linha, vocábulos como acção, accionar, accionista, acta, actividade, activista, activo, acto, actor, actuar, actualização, actualmente, actuar, aspecto, atracção, baptista, baptizado, característico, colectivo, correcto, detectar, directamente, directo, director, efectivo, efectuar, eléctrico, electricidade, espectador, exactamente, exacto, factor, factura, impacto, incorrecto, infractor, inspector, pactuar, protector, respectivo, sector e transacção irão passar para ação, acionar, acionista, ata, atividade, ativista, ativo, ato, ator, atuar, atualização, atualmente, atuar, aspeto, atração, batista, batizado, caraterístico, coletivo, correto, detetar, diretamente, direto, diretor, efetivo, efetuar, elétrico, eletricidade, espetador, exatamente, exato, fator, fatura, impato, incorreto, infrator, inspetor, patuar, protetor, respetivo, setor e transação.
Há umas tantas palavras que me chocam sobremaneira e que, ao não respeitarem nem a etimologia nem a pronúncia, não só surgem aparentemente como incorrectas como irão causar problemas ortográficos na escrita de quem aprende línguas estrangeiras como o inglês e o francês. Se é verdade que director e diretor se podem ler da mesma forma, há algo cultural a faltar na segunda forma - algo que nem o francês nem o inglês abandonaram. Por que razão haveríamos nós de o fazer? Entretanto, para não-europeus esse substrato cultural pode contar menos do que para os europeus. Terão eventualmente uma visão mais pragmática, mais desapegada da etimologia. Tudo bem. Já hoje no Brasil se escreve atividade, por exemplo. Que os brasileiros continuem a fazê-lo, mas que não nos obriguem a segui-los.
Quanto à abolição de acentos, o que sucederá a palavras como polémica, económico, megalómano e quilómetros? No português falado no Brasil, a pronúncia destas palavras e de muitas outras faz-se com vogais fechadas. Daí que se escreva polêmico, econômico, megalômano e quilômetros. Qual será a solução? Se é abolido o acento, as palavras deixam de parecer esdrúxulas, como de facto são. Não se queira é mudar a pronúncia do português através da ortografia. Esta é que tem de acompanhar a oralidade tanto quanto possível, não o contrário.
Entretanto, tudo isto é cozinhado sem debate, num país que se intitula democrático! Foram os cidadãos de uma maneira geral e os professores em particular chamados a pronunciar-se? Não! O governo cala-se. Parece que só os livreiros é que se têm manifestado, e mansamente. Será que um caso destes, da nossa língua, serve apenas interesses comerciais? Muito mal vai o país se o governo oculta factos como este dos seus cidadãos!

11/26/2007

Say "Money Money!"

Já experimentei várias vezes durante anos e nunca deu errado. Preparo-me para tirar a fotografia de uma ou mais pessoas e atiro-lhes com a velha frase Say cheese! Uns ainda riem, mas a maior parte já acha a frase tão batida que fica na mesma, de lábios fechados, ou ainda pior. E cheese obriga a abrir para o lado as comissuras dos lábios, sendo portanto meio-caminho andado para o sorriso!
Garantidamente porém, quando lhes peço que digam Money Money!, aí o sorriso é total. É que money money não só causa o mesmo efeito físico de cheese - e a dobrar - como também evoca o dito money. E a isso nem o mais empedernido anti-capitalista resiste.

11/24/2007

Quando o Anjo da Guarda não guarda bem

Sem mencionar nomes, o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais acusou grandes empresas de fugirem ao fisco. Protestou Van Zeller, o presidente da Confederação da Indústria Portuguesa (CIP), dizendo que referir empresas sem especificar quais lançava um anátema sobre todas. Então, o Secretário de Estado ter-lhe-á mostrado documentos que provavam existir uma maior incidência clara sobre o sector imobiliário. Aí, o presidente da CIP descansou e até concordou com o Governo. Saltaram-lhe em cima os homens do imobiliário (a construção civil também faz parte da CIP, embora na sua actividade não tenha qualquer semelhança com indústrias químicas, metalo-mecânicas, de produtos alimentares, etc.). Se já andavam um tanto às turrras com a Confederação por esta estar a retardar o andamento das apetecíveis obras relativas ao novo aeroporto com a apresentação do projecto alternativo de Alcochete, os construtores decidiram agora agir. Se a CIP não nos defende, para que é que estamos lá? E saíram.
Sobre a fuga fiscal, nem uma palavra. Mas era esse o assunto?

11/23/2007

Senha e contra-senha

Toda a gente sabe que, sempre que temos um ficheiro confidencial no computador podemos usar uma palavra secreta, de código, que geralmente designamos por password. Semelhantemente, nas Forças Armadas assuntos secretos podem exigir o uso de uma senha e respectiva contra-senha. Em casas-fortes de bancos usam-se chaves com códigos, sendo geralmente necessárias duas para a abertura dos cofres. Noutros locais, contra a senha Pássaro azul, o visitante terá de saber a contra-senha, v.g. Falcão prateado. Imitando o que se passa no mundo dos adultos, também filmes com crianças como protagonistas mostram o uso de senhas e contra-senhas, como se vê por exemplo na película alemã Emílio e os Detectives e numa das obras-primas de Manuel de Oliveira, Aniki-Bobó.
Esta série de situações com algum paralelo entre si traz-me, afinal, a uma história que no outro dia me contaram e que me levou na altura a uma sonora gargalhada pelo inesperado da cena. Contou-me uma divertida senhora, que há cerca de 35 anos estudou em regime de internato num colégio de freiras no Alentejo, que a disciplina que lá dentro reinava era rígida. Havia horas precisas para as refeições, para o estudo, a meditação, o jogo, etc. Até aqui tudo bem. Nada que verdadeiramente nos surpreenda. O interessante é o que se passava diariamente ao despertar, manhã ainda cedia: as raparigas que descansavam todas no mesmo dormitório eram pontualmente acordadas às sete horas pela freira de serviço que, após bater à porta, lançava do lado de fora como senha um sonoríssimo e vibrante Viva Jesus!. Pois do lado de dentro as estremunhadas moças tinham de responder de pronto e em coro, na voz mais alta que conseguissem, a contra-senha combinada: Morra o pecado! Assim mesmo: Viva Jesus! Morra o pecado! Diariamente.
Imagine-se a cena! Deo gratias, a sociedade está hoje livre destes rituais que, pelo menos a mim, parecem provir de uma longínqua Idade Média de profundas trevas, embora, quem sabe?, cheia de boas intenções.

11/21/2007

Ao pé de Casco-de-Rolhas

Havia na Transilvânia,
Ao pé de Casco-de-Rolhas,
Um rei chamado Dencolhas
Imperador da Circânia;
Tinha por ceptro a catânia,
Com que cortava o presunto,
E não gostava de assunto
Que não fosse de manérea
Que aquela cabeça aérea
Se risse e sorrisse muito!

De quem são estes versinhos?

11/19/2007

O pior cego

Ontem, ao comprar o Público dei uma mirada na página 1 do DN, que citava Durão Barroso como tendo agido como agiu no caso da guerra no Iraque devido a informação errada. É interessante que todas as muitas pessoas que estiveram presentes nas manifestações que ocorreram em Lisboa e outras cidades do país contra a (futura) guerra do petróleo tivessem tido melhor informação do que o primeiro-ministro do seu país.
O pior cego é aquele que não quer ver, diz a sabedoria popular.

11/18/2007

Desacordo ortográfico outra vez?

Uns anos depois de uma ampla e acalorada querela que encheu todos os media e que, felizmente, acabou em águas de bacalhau, eis que agora, sorrateira e repentinamente, é anunciado que está para breve a celebração de um acordo ortográfico entre os países lusófonos. Um acordo ortográfico? Estaremos a ouvir bem? Se há coisas que são muito necessárias neste mundo, há outras que não só são totalmente inúteis como são até nefastas e, diga-se com todas as letras, não têm qualquer razão de ser. A ânsia burocrática da parte de governantes que pretendem tudo uniformizar, ao mesmo tempo que nos seus discursos proclamam as virtudes da diversidade para taparem os olhos e os ouvidos das pessoas e baralharem-nas está a atingir proporções incalculáveis e atinge o ridículo ditatorial em países que se intitulam de democráticos.
Provavelmente na sequência do filme da Constituição Europeia que foi rejeitada em referendos para ser substituída pelo Tratado Reformador praticamente sem referendos, pretende-se agora assinar de cruz um Acordo Ortográfico entre os países lusófonos, como se uma língua fosse algo que pudesse ser alvo de tratados semelhantes, e sem debate prévio. É assim. Já está! Os senhores decidem, e todos os outros amocham.
Espero vivamente que haja intenso debate, porque o assunto é quentíssimo. Como sabemos, a língua portuguesa não é pertença de nenhum país, nem de nenhuma organização. Isto significa que o português de Portugal deu origem, há muitos anos, à língua que hoje se fala no Brasil e nos PALOP, mas que depois teve os seus desvios normais nos diferentes países. Porquê? Porque a sociedade dos diferentes países lusófonos não é igual, em razão do seu substrato e da sua evolução ao longo de séculos. Como a língua é um fenómeno sociológico, está fortemente correlacionada com a sociedade. Sendo a sociedade brasileira substancialmente diferente da portuguesa, seria previsível pela lógica que a língua apresentasse também notórias diferenças. E esse é um facto que se confirma. Dado que a ortografia deve reflectir o mais fielmente possível a forma oral das palavras, não espanta ninguém que a ortografia brasileira e a portuguesa sejam diferentes nalguns vocábulos. O contrário é que seria de admirar, pois não podemos falar de colonizados e colonizadores, em que estes impõem a sua ortografia aos outros. Assim, a língua é a mesma mas existem diferenças, e algumas dessas diferenças são reflectidas na grafia.
O inglês falado numa antiga colónia britânica, os Estados Unidos da América, é algo diferente do que se fala na Grã-Bretanha. Tão natural é esta diferença na oralidade como eventualmente na ortografia. Color, harbor, center, traveler e travel check (EUA) convivem muito bem com colour, harbour, centre, traveller e traveller’s cheque (RU). Como estas, dezenas de outras palavras. Não há problema! Nunca a Inglaterra proporia aos Estados Unidos a uniformização da ortografia, nem os americanos quereriam impor a sua grafia no Reino Unido. A língua, tal como a democracia, não se impõe. É um produto natural, cuja ortografia pode e deve ser mudada em cada país de tempos a tempos para melhor corresponder à mutante forma oral ou por razões de simplificação. Mas que os portugueses passem a escrever "fato" se dizem "facto" não faz qualquer sentido. E se nós "optimizamos" as coisas, não vamos passar a "otimizá-las" agora só porque os brasileiros, não nós, não pronunciam o "p".
Haja bom senso e, além disso, boa conduta democrática!

11/16/2007

Infrontalidade

Numa célebre conferência realizada no já longínquo ano de 1871, Antero de Quental fala sobre os males que afligiram e na altura ainda afligiam a sociedade portuguesa, afirmando que "a hipocrisia torna-se um vício nacional." Como sabemos, uma atitude hipócrita é muito diferente de uma atitude frontal; lembra a movimentação dos Bispos no jogo de xadrez, atacando sempre de forma oblíqua.
Gostaria de estar enganado e que este intróito nada tivesse a ver com o caso de José Rodrigues dos Santos, mas, pelo que se infere dos media, a nota de culpa que lhe terá sido entregue pelo Conselho de Administração da RTP invoca questões laborais, incumprimento de horários e outras coisas do género para acusar aquele que é um dos mais conhecidos pivots da televisão portuguesa, numa tentativa de o expulsar dos seus quadros.
O tour de force não é, pois, à volta das polémicas declarações de JRS quando entrevistado pela Pública, as quais certamente exigiam uma convocatória do funcionário para exposição das suas razões perante o C.A. Suponho que isto terá sido feito. Trata-se de uma via oblíqua. É história antiga e consabida: o poder detesta que lhe pisem os calos. "Porque no te callas?"
Vamos a ver no que tudo dá.

11/13/2007

Exames de acesso à carreira docente

Foi recentemente aprovado um decreto que regulamenta a realização de dois exames para quem pretenda leccionar. Apesar das tentativas que fiz, nomeadamente na Net, não consegui ainda ter acesso ao articulado do decreto em questão, pelo que admito perfeitamente que a minha opinião possa sofrer algumas correcções após a leitura do documento.
Entretanto, os sindicatos já protestaram vivamente. Talvez seja interessante recuar umas décadas para entendermos melhor o assunto.
Pelo menos a partir dos anos 60, quando novas instituições privadas surgiram no panorama de ensino, os novos cursos - Relações Públicas e Publicidade, Secretariado, Turismo, Gestão de Empresas - tinham obviamente de ser aprovados pelo Ministério da Educação. Os requerimentos respectivos apresentados pelas escolas continham basicamente uma justificação para a abertura dos cursos, os planos de estudo em detalhe e as respectivas saídas profissionais. No que respeita a estas, a entidade requerente incluía sempre a via de ensino. Era um ponto importante para atrair alunos. Quando os requerimentos eram despachados favoravelmente, os estudantes diplomados ficavam habilitados a leccionar as disciplinas X e Y no ensino secundário com uma classificação a que correspondia uma determinada letra – algo importante para o seu vencimento. Esta possibilidade de os alunos diplomados leccionarem era sempre uma garantia importante para um emprego caso o diplomado não achasse nenhum trabalho conveniente na área principal do seu curso.
Posteriormente, com a explosão tanto do ensino superior público como do privado, estas saídas profissionais para o ensino passaram a tornar-se cada vez mais importantes, dada a real concorrência que se gerou. Em princípio, os estudantes que frequentavam os mais diversos cursos não estavam especialmente vocacionados para leccionar nem era esse o seu objectivo número 1, mas tal não invalida que não pudessem ter saído das muitas escolas que então nasceram alguns docentes com boas aptidões paradar aulas. E, para sermos justos, outros com fraquíssimas qualidades. Há sempre de tudo.
Entretanto, a massificação do ensino, o facilitismo que tem reinado em muitas instituições e o desfasamento entre o desenvolvimento da economia e a oferta de cursos conduziram à presente situação de muitos licenciados, à falta de melhor, enveredarem pela via de ensino. Nos casos de cursos tipicamente para professores, a ausência de estudos sobre as necessidades efectivas do mercado fez com que universidades e institutos formassem milhares de alunos que se debatem hoje com a falta de empregos na sua própria área.
Daqui resulta uma situação delicada. Em primeiro lugar, o Ministério, que foi quem autorizou o funcionamento dos cursos com aqueles requisitos, é pelo menos tão responsável como as instituições pelo panorama actual. A verdade é que existe um excesso de professores para os alunos que frequentam as escolas. Não será lógico que, nessas condições, se escolham os melhores?
Algumas ordens profissionais, v.g. dos Engenheiros e dos Advogados, sob pressão dos seus membros, já exigem estágios e exames a diplomados por determinadas instituições. Sabem que muitas das qualificações que os diplomados apresentam acabam por não corresponder ao nível expectável. O Estado propõe-se fazer o mesmo agora. A situação não é igual, porém. Enquanto as ordens profissionais não podem ser responsabilizadas pelo panorama da educação, o ministério pode e deve sê-lo. Daí que a situação, que em princípio se justifica, possa surgir como duvidosa do ponto de vista legal e mesmo ético. Por outro lado, a exigência da classificação de 14 valores como nota mínima necessária para aprovação nos exames é em si uma barreira intransponível para muitos candidatos. Contudo, se é igual para todos não é aí que reside o problema principal.
Será que docentes com 10 e 15 anos de bom exercício nas escolas terão que passar estes mesmos exames? A apreciação do seu trabalho prévio conta ou não para a aprovação final? Os docentes com habilitação própria serão considerados na mesma base dos que a não possuem mas têm já uma larga prática de ensino? Estamos perante uma situação que está longe de ser pacífica e onde a forma atrapalha a substância.

11/11/2007

Doping mentiroso

O alemão Sinkewitz, Patrick de nome próprio, personalizou o caso mais recente de confissão pública de doping no mundo do ciclismo. Admitiu há dias que começou a dopar-se em 2003 quando ingressou nos quadros da Quick Step: "Quando entramos numa nova equipa como profissionais, encontramos um sistema montado. Os mais velhos ensinam-nos como é que a coisa funciona. A nossa ambição e a dureza do treino fazem com que nos desenvolvamos, mas ainda não o suficiente. Aí arranjamos uma ajuda extra, os resultados melhoram, começamos a ser mais conhecidos e todos gostam de nós. É assim que o doping se torna normal. " Acrescenta: "Quando soube que uma dose de EPO era detectável durante um período de cinco dias, deixei de usar esse dopante seis dias antes das provas. Era raro naquela altura que se fizessem controlos-surpresa nos treinos." Mais tarde, Sinkewitz passou para a T-Mobile, onde usou, para além de testosterona, cortisona e outras drogas dopantes, e ainda auto-transfusões de sangue. Num controlo antes da última volta a França, foi-lhe detectada testosterona sintética. Não pediu contra-análise e, obviamente, não participou no Tour.
Têm sido inúmeros os casos de doping noutras modalidades, como no atletismo, onde a atleta americana Marion Jones, grande campeã dos Jogos Olímpicos de Sydney 2000, protagonizou o episódio mais célebre.
Mas de longe o caso mais grave de todos, creio, foi a dopagem contínua a que antigos atletas da República Democrática Alemã foram submetidos para alcançarem os fantásticos resultados que atingiram e assim realçarem estrondosamente o valor das repúblicas socialistas face ao ocidente. Muitas pessoas se recordarão de que era sempre uma sensação impressionante encontrar a RDA entre as nações que mais medalhas recolhiam. Hoje, cerca de 200 desses atletas viram reconhecidos pelo actual governo alemão muitos dos males físicos de que padecem e que os incapacitaram para um sem-número de tarefas. Vão receber as indemnizações que o tribunal considerou adequadas. Não hesito em classificar toda a situação como uma exploração deplorável do nacionalismo, com uso e abuso de indivíduos, desprezando as consequências futuras. Louvo, entretanto, o que se está oficialmente a fazer na Alemanha. É claro que existem conotações políticas, mas o gesto é de humanidade. Por outro lado, a atitude das autoridades já conduziu a mais de uma dezena de confissões públicas de dopagem actualmente.
É mais do que natural que nos questionemos hoje em dia se o que iremos ver nos próximos Jogos Olímpicos de Pequim serão apenas pessoas bem treinadas que darão o seu máximo, ou se serão indivíduos treinados sim, mas fortemente dopados também - e de maneiras ardilosas. Dificilmente se voltará a acreditar naqueles atletas que são vistos como verdadeiras forças da natureza, capazes de arrasar tudo e todos. E sabem quem está já a preparar fórmulas mágicas para esticar o mais possível a capacidade dos atletas nos anos futuros, para que consigam atingir marcas hoje tidas como inatingíveis? Os homens e as mulheres da genética! Investigadores de vários países trabalham nesse sentido. Mais bandeiras nacionais a tremularem nos mastros, mais pódios, mais hinos. Tudo com essas máquinas por detrás. Afinal, o espelho de uma sociedade que se desejaria muito mais sã!

11/09/2007

Não somos todos iguais

Cultura não é algo fácil de definir. Não vou, portanto, cair na tentação de chaterrimamente citar dez formas diferentes de definir a dita. É evidente, no entanto, que sempre que viajamos num determinado país longe do nosso nos deparamos com usos e costumes - eles próprios englobáveis no conceito cultural - que achamos estranhos só por serem diferentes dos nossos. Daí que normalmente se diga, e com inteira razão, que não há possibilidade de conhecermos bem o nosso país e o ambiente geral que nos rodeia se não conhecermos outros diferentes. A cultura X dá ênfase a um determinado aspecto, muitas vezes transformado até em lei, que a cultura Z praticamente ignora.
Esta semana, alguém da BBC Online teve a curiosidade suficiente para concatenar alguns costumes e até leis que poderão soar como um verdadeiro disparate ou, pelo menos bizarria, em certos meios culturais. Para quem não encontrou o artigo na imprensa, eis algumas dessas curiosidades, a que de caminho juntei outras que conheço.
Na Austrália, qualquer homem ou mulher pode embebedar-se. Como se esperaria, aliás. Pode até andar na rua aos tombos, se não perturbar ninguém. Porém, não pode cair. Se cair e um agente da autoridade estiver por perto, é levado preso. Por este simples motivo, que é bem conhecido dos australianos, algo que o bebedolas local aprende a fazer desde a adolescência é a agarrar-se a um candeeiro de iluminação pública. Enquanto se mantiver de pé não poderá ser levado para a esquadra!
Da antiga metrópole dessa Austrália, a Grã-Bretanha, vem uma lei que pode parecer surpreendente: é proibido morrer no Parlamento. Creio que não será o morto que vai preso nem acredito que o mesmo seja condenado a pagar uma multa. Mas a lei da proibição existe, talvez como recomendação firme para que eventuais rixas parlamentares sejam resolvidas “cá fora”.
Lembram-se do caso recente do Pacheco Pereira que, ao saber da vitória de L.F. Menezes, colocou o símbolo do PSD ao contrário no seu blog? Houve logo um correligionário que participou dele. Não sabia o denunciante, porventura, que colar numa carta um selo com a efígie invertida do rei ou da rainha é em Inglaterra considerado um acto de traição. Se o soubesse, tê-lo-ia possivelmente mencionado.
Na Escócia, se você estiver num hotel e alguém lhe bater aflitivamente à porta da casa de banho, abra. É melhor para a pessoa em questão, e também para si. A lei obriga-o a prestar esse auxílio.
Nas mesmas ilhas britânicas, embora seja proibido urinar contra paredes de prédios ou muros numa cidade, uma mulher que esteja grávida pode fazê-lo onde bem entender. Se para tal precisar do capacete de um polícia, este deverá entregar-lhe o dito. A protecção à família está acima de tudo.
Já na Suiça existe uma disposição algo diferente no que respeita a necessidades fisiológicas: nenhum homem pode urinar de pé em locais públicos a partir das 22 horas.
Dar nomes a animais, sejam eles cães, gatos ou outros, também pode ser perigoso. Em Portugal já conheci cães com nomes interessantes, como Zé Gomes, Carlinhos ou Faruk, e isso não trouxe nenhum mal ao mundo. Mas em França, por exemplo, experimente chamar Napoleão a um porco que tenha na sua quinta. A esquadra será o seu próximo posto para prestar declarações, pagar uma napoleónica multa e rebaptizar o suíno com um nome mais apropriado.
Como sabemos, em determinados países muçulmanos, o roubo pode ser punido com o corte da mão direita. É duro. Mas mais duro, parece-me, é o castigo para a masturbação na Indonésia: a morte. Esta medida poderá constituir uma maneira eficaz de controlar o número de habitantes do país, mas se o governo decidir mandar instalar câmaras de vídeo-vigilância nas casas das pessoas é capaz de passado algum tempo ficar sem alunos nas suas escolas. E, em nome da paz social e não só, desaconselha-se firmemente deixar professores no desemprego.

11/05/2007

Capitães de Abril

Há poucas semanas, tive ocasião de ouvir e falar com um capitão de Abril - de facto um dos mais importantes do movimento das forças armadas - durante o jantar de uma tertúlia de que faço parte. Ele foi o orador convidado. Gostei que ele se tivesse considerado “herói acidental”. É a propósito dessa evocação que alinhavo estas linhas, que traduzem sinteticamente o meu pensamento sobre a revolta. Aproveito o facto de se estar agora a discutir mais o problema colonial a propósito de uma óptima série na RTP.
O movimento militar do 25 de Abril de 1974 foi, como se sabe, conduzido principalmente por oficiais, na sua maioria com o posto de capitão. Para quem já não se lembra ou, eventualmente, nunca soube, é conveniente dizer que o despoletar do movimento, que levou à realização de várias reuniões entre oficiais, teve a sua origem próxima num decreto governamental de 1973 que foi considerado grave pelos capitães, muitos deles em missão de guerra em terras de África. O decreto permitia que oficiais milicianos - portanto, não de carreira - já com experiência de uma campanha nas colónias, pudessem, após um período relativamente curto, ser promovidos a capitães. Para o governo, a medida tinha como desígnio assegurar a existência de mais oficiais para comandar as tropas na guerra de África. Aos olhos dos capitães, porém, o decreto foi visto como um retardamento ao seu já demorado processo de promoção, o que os faria transitar para o posto de major muito mais tarde do que esperavam, com a agravante possibilidade de poderem ser injustamente ultrapassados por milicianos que não tinham tido a longa preparação deles na Academia Militar.
Embora este tenha sido o detonador do descontentamento militar, tem de reconhecer-se que existia latente um grau elevado de insatisfação. Eu chamar-lhe-ia "o cansaço da guerra". Um conflito que eclodira em 1961 mantinha-se sem resolução em 1973. Eram 12 longos anos, e em certos casos até mais porque antes de 1961 já havia oficiais que tinham estado na Índia, em Macau, em Timor, etc. Tomemos, em termos de comparação, o caso actual do Iraque, uma guerra que era para ter sido resolvida num ápice. Já lá vão cinco anos. Os oficiais portugueses iam em 12! Todo o militar gosta de ganhar guerras e não de perdê-las. Por outro lado, ficar sem um braço ou uma perna, com a coluna partida ou mesmo morto, era uma possibilidade não muito remota. A revolta era uma oportunidade para terminar com a palhaçada dos capitães milicianos e de um regime caquético. Esperava-se que desse certo, e certo deu. Depois de um percalço notório com uma saída fracassada de tropas das Caldas da Rainha em Março, o 25 de Abril foi um sucesso. O regime caiu de podre.
Como resultado de algo que aconteceu mesmo surpreendentemente bem - a revolução dos cravos foi feita mais com flores do que com balas - os militares deixaram de ser os perdedores da guerra colonial para se tornarem os libertadores da pátria. Deixaram de ir para África em campanhas, a sua vida voltou ao remanso dos quartéis e dos estados-maiores. Vários deles tornaram-se uma elite de heróis e membros do chamado Conselho da Revolução.
Hoje, quase trinta e quatro anos depois, os tempos são outros. O destemido plano dos capitães de Abril está algo esquecido, mas a derrota do exército no conflito de guerrilha africana não é vista como tal. Os capitães tornaram-se os libertadores de Portugal. Cumulativamente, foram elemento decisivo na libertação das colónias.
Rever, nesta ultra-síntese tipo-blogue, uma página importante da história portuguesa talvez valha a pena.

P.S. Dar uma vista de olhos a uma série de entrevistas de rua sobre o 25 de Abril, um link que me foi amavelmente enviado pelo Capuchinho Vermelho, é que vale certamente a pena.
http://www.megavideo.com/?v=QHOYAVC0

11/03/2007

Brasil ou Brazil?

Ontem lembrei-me do Eusébio de há quarenta anos. Quando ele atingiu o auge da sua fama, por alturas do Campeonato do Mundo que se disputou em Inglaterra, os ingleses ensinaram a todo o globo como se pronunciava o nome daquela estrela do futebol: You-say-be-oh. E lembrei-me dele e desta atamancada transcrição fonética do seu nome quando por mim passou um rapaz brasileiro com uma T-shirt canarinha que ostentava, em grandes letras, a palavra BRAZIL. Disse para mim próprio que aquela era, possivelmente, mais uma T-shirt made in China por uma multinacional que grafara o nome em inglês para assim conseguir mais vendas. A pergunta surgiu-me como normal: por que razão escrevem os ingleses o nome dessa antiga colónia portuguesa com um -z- quando os portugueses o escrevem com um -s-?
A resposta, não difícil, é porventura linguisticamente interessante. No século XVII, por alturas de 1640, a velha aliança entre Portugal e a Inglaterra foi reforçada com novas cláusulas que, como se sabe, incluíram a ajuda militar para que Portugal pudesse manter a sua independência relativamente a Espanha, o casamento da princesa Catarina com Carlos II de Inglaterra e um dote que era um senhor dote. Entre outros pontos, aos navios de Sua Majestade britânica era garantido o livre acesso ao Brasil para trocas comerciais. Como é natural, os ingleses não desaproveitaram essa cláusula e fizeram largo comércio com a colónia portuguesa que derivava o seu nome das árvores visíveis ao longo de grande parte da sua costa atlântica. Essas árvores, que refulgiam como fogo (brasa) ao sol, produziam uma bela madeira, que de tanto explorada pode hoje ser encontrada mais em jardins botânicos do que noutros locais. O pau-brasil deu, assim o nome ao país.
Acontece que, na língua portuguesa, o -s- intervocálico lê-se como se fosse -z-. Assim sucede em casa, casino, fuso, luso, atraso, brasa e, naturalmente, Brasil. Ocorre o mesmo em inglês ou não? A resposta, que a minha experiência de professor me diz que muitos portugueses não sabem exactamente, é "umas vezes sim, outras vezes não". Muitas vezes não, de facto. Vejamos alguns dos muitos exemplos em que o -s- entre duas vogais se pronuncia como se fossem dois ss: basic (que muitas pessoas ligadas à informática lêem bázíque), case, casino, crusade, decrease, house, increase, lease, mason (reproduz o maçon francês), mouse, release, research, resources e used (quando significa "dantes" ou "costumava"). Ora bem: se os portugueses liam o -s- como -z, o melhor, pensaram os ingleses, seria grafá-lo como -z- para evitar problemas e impedir que aparecessem pessoas a lerem Brassil (em francês, língua em que o -s- intervocálico se lê como em português, o problema não se colocou, e a escrita é Brésil). Admitamos que foi uma solução pragmática.
Pragmática, mas diferente da solução arranjada para Brasil, foi também a maneira de os ingleses resolverem o problema da grafia de Açores e Moçambique, duas partes do império português com as quais igualmente comerciavam. Como no seu abecedário não possuem o c cedilhado, pespegaram-lhe com um -z-. Foi assim que apareceram Azores e Mozambique.
Ah, é verdade! O tal brasileiro com a T-shirt celebrava a escolha oficial do Brasil como país organizador do Campeonato do Mundo em 2014.

10/30/2007

Petróleo alumia ou cega?

Se imaginarmos um mapa-mundo como um grande campo de futebol com um jogo a ser disputado, chegaremos possivelmente à conclusão de que, como seria normal, a América é um país que não gosta de sofrer golos e que, em conformidade, defende estratégica e inteligentemente longe da sua baliza, fazendo o chamado pressing alto.
É neste sentido que o dólar americano circula por todo o mundo em larguíssimas quantidades, o que faz com que a sua eventual vulnerabilidade seja sentida não só na América, mas também em múltiplos países que possuem títulos americanos nos seus bancos nacionais e nos privados. Com isto resguarda-se a América, como é óbvio, pois ocasionais acções contra o dólar constituem de certo modo um tiro-no-pé para quem o tentar.
A estratégia de defender longe da sua baliza faz com que os Estados Unidos detenham, astutamente, bases em quase toda a parte. Dos Açores à Alemanha, de Diego Garcia ao Paquistão, os americanos possuem bases militares em 70 países do globo, sendo que 13 dessas bases são novas, criadas depois de 11 de Setembro de 2001.
Curiosamente, até a sua principal prisão de segurança - Guantánamo - foi colocada em território exterior aos EUA, em Cuba.
Por outro lado, contradizendo-se relativamente ao muro de Berlim que a América tanto criticou e que apodou de "muro da vergonha", não só a Administração americana apoia a construção do muro-barreira de Israel, como está a erguer um enorme muro-barreira ao longo da sua vasta fronteira com o México.
Os americanos têm, ainda, agentes da CIA e personalidades importantes das cenas nacionais de várias nações a trabalharem para si em muitos pontos do globo e a fornecerem preciosos dados. A este núcleo de informações, juntam-se as dos satélites que giram ininterruptamente em volta da Terra. Pressing alto, também.
Na linha das suas protecções a distância, os americanos criaram, juntamente com os europeus, a NATO - a que De Gaulle gostava de chamar North American Treaty Organization em vez de North Atlantic -, a qual, embora fundamentalmente de defesa, já serviu para atacar Belgrado e outros pontos, tendo além disso sido invocada pelos EUA imediatamente a seguir aos ataques a Nova Iorque em 2001.
Mais recentemente, os EUA pretendem criar postos de "defesa anti-míssil" tanto na República Checa como na Polónia.
Esta listagem de casos de pressing alto não podia deixar de fora o controle semi-paranóico nos voos para os Estados Unidos, país que há muito vive o complexo da segurança. Foi na base dessa segurança que os norte-americanos criaram as suas próprias histórias, em filme e banda desenhada, de Superhomens para defenderem a super-fortaleza, fonte e farol do Bem.
Foi por este conjunto de factos que o ataque do 11 de Setembro de 2001, bem dentro do seu território, foi tão sentido pelos americanos! Lembra muito a história de Roma, que só construiu muralhas à volta da cidade séculos depois de ter criado o seu grandioso império. A construção das muralhas e a transformação de Roma em cidade-bunker marcou o início do seu declínio.
Tudo isto vem a propósito da presente situação de paranóia americana perante o Irão. Como se não bastasse o mal que os americanos andam há muito a infligir à população iraquiana para conseguirem sacar o seu petróleo, eis que agora escolhem outro alvo, rico em petróleo e gás. Na semana passada, segundo informa a Newsweek, o Presidente Bush disse numa conferência de imprensa que "se estamos interessados em evitar uma Terceira Guerra Mundial, deveremos impedir que o Irão alcance o know-how necessário para produzir armas nucleares." Por outras palavras, Bush declarou que o Irão poderia provocar uma 3ª Guerra Mundial. Um dos seus conselheiros escreveu mesmo que o Presidente iraniano é semelhante a Hitler, na medida em que se trata de um revolucionário cujo objectivo é o de desestabilizar a actual ordem internacional e substituí-la por uma nova, dominada pelo Irão e governada pelo fascismo muçulmano.
Não esquecendo que, antes de lançarem bombas atómicas sobre o Japão no final da 2ª Guerra Mundial, os EUA declararam, mentirosamente, fazê-lo em nome dos 500.000 militares americanos que operavam naquela zona do Pacífico quando na realidade tinham apenas 46.000, atente-se nos dados fornecidos pelo comedido director da citada revista. Segundo Zakaria, o Irão tem uma economia semelhante à da Finlândia em termos dimensionais, sendo o seu orçamento anual de defesa da ordem dos 4,8 biliões de dólares. Desde o século XVIII que o Irão não invade nenhum país. Por seu lado, os EUA possuem um PIB 168 vezes maior e as suas despesas com a defesa ultrapassam 110 vezes as do Irão. Anote-se que Israel e todos os países árabes - com excepção da Síria e do Iraque - são contra o Irão. Pois mesmo assim devemos acreditar que Teerão está prestes a desestabilizar a ordem mundial? Valha-nos Deus!

10/28/2007

Exposição na Gulbenkian




Uma das actuais exposições da Gulbenkian chama-se "Um Atlas de Acontecimentos" e encerra o programa "O Estado do Mundo" incluído nas comemorações do meio século de existência da Fundação. Sem ser uma exposição enorme, ocupa dois amplos espaços do edifício e exibe trabalhos de 28 artistas de vários países. Algumas das obras foram especificamente feitas para a mostra agora exibida.
Por gostar muito do presente, com toda a multiplicidade de ângulos sob os quais ele pode ser visto, deu-me gosto apreciar as várias formas como as diferentes disciplinas de arte se expressam, de facto multidisciplinarmente. Foi bom vaguear pelas duas salas, quase desertas de público no dia em que as visitei, voltando aqui e ali atrás.
Não se esperem maravilhas. Nada há de arte tradicional, nem Kandinsky, nem Magritte, nem Warhol. Tão pouco Mondrian, a cabeça de Nefertitis ou um busto de Péricles. O número de obras não é muito significativo, mas isso não impede que possamos ter uns bons momentos de reflexão e que nos encontremos a sorrir perante certeiras irreverências. Para mim, valeu a pena.
(Numa das fotos, vê-se uma imagem do Iraque durante a Guerra do Golfo, com palmeiras abatidas a lembrarem destroços armados do conflito, como se fossem canhões ainda apontados para tudo e para nada. Na outra, um simpático crocodilo olha como um basbaque para um aparelho de televisão e dá o mote para a evolução do seu cérebro - uma explicação sobre o fundamentalismo que está patente na parede ao lado. A explicação diz o seguinte: "Fundamentalism: the rise of the crocodilian brain. Sun radiation, alcohol and fat consumption, talk radio and sports on TV overstimulate the hypothalamus. If high degree of activity in the crocodilian brain expands into the lonely system it activates the "God" spot and automatically blocks most of the rational functions of the neo-cortex. Gland secretions are geared toward systematic destruction and reproduction. Territorial reflexes and other self-preservation instincts govern all emotions: predatorial sex and cannibalism are justified. Religious ecstasy is achieved by war. The crocodile’s brain rises to fundamentalism by interpreting its own compulsions as "God’s" direct orders.")

10/26/2007

Educacão

Onde deveria haver rigor, porque o desrigor já grassa há demasiados anos, existe facilitismo. E nunca mais pára!
No princípio do ano soube-se que muitos dos cursos do Ensino Superior Politécnico que incluem Matemática e disciplinas afins no seu plano de estudos deixaram de exigir aquela disciplina nas respectivas provas de acesso ao ensino superior - e os cursos são de Contabilidade e de Gestão ou áreas semelhantes! Se se tratasse de ensino privado, talvez a admiração não fosse grande. Mas como é ensino superior público...
Sabe-se do desejo expresso por parte do Ministério da Educação de fazer exames do 12º Ano que cubram apenas este ano, deixando de fora as matérias leccionadas no 10º e 11º. Pasma-se!
Lê-se agora que chumbos por faltas vão deixar de existir no ensino básico e secundário. Trata-se de um verdadeiro convite à falta. Num país já de si com mentalidade que acusa grande falta de rigor, esta é mais uma machadada. Em vez de governo, temos desgoverno!

10/24/2007

Substância e forma

Às vezes, um exemplo pode facilitar uma explicação que, em teoria, é possível que não seja entendida à primeira.
Qual é a diferença entre substância e forma?
Um exemplo: o que pesa mais? Um quilo de algodão ou um quilo de chumbo? Formalmente, pesam ambos o mesmo. Substantivamente, porém, quem os deixar cair em cima da cabeça verá imediatamente como é!

10/21/2007

A imagem reflectida

Acho que para lá do primeiro reflexo que todos nós vemos, que é possivelmente a nossa imagem e a de outros num espelho, um outro reflexo que não nos escapa é o do céu espelhando-se nas águas do mar ou de um lago. Talvez tenha sido esta imagem que inspirou ordens religiosas como a dos cistercienses a conceptualizar uma ordem divina lá em cima no céu, que os monges tentavam reproduzir na Terra o mais fielmente possível. Assim, baseados nessa visão celestial, os conventos e mosteiros terrestres da Ordem de Cister seguiam sempre o mesmo tipo de construção nos vários países em que foram erguidos. Respeitavam o plano original.
Lembro-me que, quando aprendi este facto, dei por mim a pensar de maneira mais reflexiva, no sentido literal da palavra. Recordo-me que ao ir pela primeira vez a Évora com olhos de ver, depois de encontrar nas terras do Alentejo próximas da cidade vastos latifúndios, imaginei que o reflexo dessas propriedades tinha de ser visível nas casas que iria encontrar na cidade. Como seria natural, a ideia confirmou-se com a existência de algumas casas amplas, não altas, mas sempre com um fresco átrio e numerosas divisões.
Da mesma forma, é normal que se pense nos muitos zeros de conta bancária que os proprietários de luxuosas vivendas, automóveis espectaculares, iates e aviões privados têm necessariamente de possuir. É mais uma vez o reflexo, aquilo a que o fiscalista chama "sinais exteriores de riqueza".
Numa outra versão do mesmo tema, encontro frequentemente um reflexo notório nos transportes públicos lisboetas, dos autocarros ao metro, e nalgumas zonas da cidade. Não se trata aqui de casos de pobreza ou de riqueza, mas algo de ordem histórica e cultural. A percentagem de pessoas de cor não branca na cidade de Lisboa é hoje em dia bastante elevada. Angolanos, cabo-verdianos, brasileiros, moçambicanos, guineenses, são-tomenses, goeses, timorenses são às dezenas, às centenas, aos milhares. Nada tenho contra eles, obviamente, mas não posso deixar de entrever aqui o reflexo bem nítido de uma sociedade portuguesa que foi colonialista durante séculos. Os efeitos dessa longa colonização por outras terras mais tropicais acabam por reflectir-se no dia-a-dia de hoje. Também Londres, dado que o império britânico se espalhou por todo o mundo, oferece um reflexo semelhante, embora aí a percentagem maior seja de indianos, paquistaneses e nigerianos.
Em contrapartida, se formos, por exemplo, a Viena, a Berlim, a Praga, Budapeste ou Zurique, constatamos que a percentagem de pessoas de cor não branca é muitíssimo mais reduzida. A não-existência de um passado colonial do tipo do nosso ou do inglês explica imediatamente o fenómeno.
No jogo da vida, é interessante pensarmos nos aspectos em que somos apenas o reflexo, contrastando com outros em que somos eventualmente agentes de imagem-espelho.
A propósito do reflexo colonial, permito-me recordar o início do interessante ensaio A Stranger in the Village do escritor negro americano James Baldwin, publicado há cerca de 50 anos: "From all available evidence no black man had ever set foot in this tiny Swiss village before I came. I was told before arriving that I would probably be a "sight" for the village; I took this to mean that people of my complexion were rarely seen in Switzerland, and also that city people are always something of a "sight" outside of the city. It did not occur to me – possibly because I am an American – that there could be people anywhere who had never seen a Negro."

10/19/2007

Catalina, Rodrigues dos Santos et al.

Assistimos de vez em quando a revelações públicas que, submersas por outras notícias entretanto vindas a lume, acabam por desaparecer na (de)voragem do tempo. Ultimamente, sucederam três casos: o de Catalina Pestana sobre a Casa Pia, o do conhecido locutor Rodrigues dos Santos sobre a administração da RTP e um outro em que o líder do PS-Madeira fala de promiscuidade entre magistrados e o poder político regional, tendo sido entregue pelo PS um dossier ao Procurador-Geral da República. Estes são assuntos que nos fazem pensar em (aparentes) verdades simples de resolução complexa. E porquê de resolução complexa? Porque o mal está profundamente enraizado e propagou-se a um número muito grande de "plantas".
Os que se manifestaram até agora - e isso não quer dizer que os que não se manifestaram sejam menos numerosos - foram bastante contra Catalina por não ter prestado anteriormente as suas informações, mostraram-se geralmente a favor de Rodrigues dos Santos e, quanto ao caso da Madeira, encolheram os ombros porque "isso é música consabida".
O que os três casos têm em comum é a luta entre uma alegada verdade dos factos feita por figuras de 2º plano e a resistência de poderes fortes a revelações deste tipo. Popularmente, fala-se da panela de barro, que pode ter razão, mas perde sempre na sua luta contra a panela de ferro - por razões óbvias de superioridade do ferro sobre o barro.
Catalina Pestana é acusada de só ter dado esta informação depois de ter deixado o seu lugar. Que admiração é essa? Quantas pessoas não são cilindradas exactamente por denunciarem algo inconveniente? Quantos mensageiros de más notícias não são trucidados pela máquina que lhes está por cima? Essas pessoas são sempre panelas de barro. A vantagem dos poderes fortes consiste precisamente nas benesses que distribuem e nos conluios que estabelecem, os quais acabam por amarrar indivíduos em princípio honestos mas que, pressionados a determinada altura para, por exemplo, passarem uma factura falsa sob pena de perderem o lugar ou de nunca serem promovidos, acabam por fazê-lo. Julgam-se custodiados pelos que lhes estão acima, mas esses deixam-nos frequentemente cair depois de estarem servidos. Mais: em tribunal, acusam-nos de falsear a verdade se eles, pressionados por um juiz, ousam contá-la.
Tal como tanta gente em tanto sítio, Catalina Pestana soube defender-se. A verdade que a atormentava atirou-a cá para fora, mas na altura em que já não lhe podiam mover um processo disciplinar. Um processo disciplinar poderia acarretar-lhe problemas imensos e arrastar-se por anos e anos. Assim, acabou por fazer aquilo que o sistema e o seu bom-senso a obrigaram a fazer. Não houve uma outra senhora antes dela, salvo erro de apelido Macedo, que fez algo semelhante?
Quanto a Rodrigues dos Santos, ele terá feito um jogo mais perigoso, possivelmente mal medido pelo próprio. A opinião pública pode estar a favor dele. Só quem nunca trabalhou em lugares de responsabilidade em empresas é que pode acreditar que não há pressões por parte de uma direcção ou administração. Se fossem totalmente legais, essas pressões assumiriam a forma escrita; como o não são e ocultam uma verdade que não se quer revelada, elas não passam por prova documental. São feitas durante conversas, eventualmente no decorrer de um telefonema interno - pelas mesmíssimas razões que levam determinados pagamentos a serem feitos em notas de banco e não por cheque.
Nesta luta entre Rodrigues dos Santos e a administração da RTP, não vai, portanto, ser fácil ao acusador provar as suas acusações. Talvez uma apenas: a de um concurso, relativamente ao qual haverá de facto provas documentais. Mais por isso, e porque o caso representa para ele uma pedra no sapato, ele tê-lo-á levantado. E aqui põe-se a questão: será que ele quer ganhar a guerra da corrupção em Portugal? Veja-se o que sucedeu ao projecto do Cravinho na Assembleia. Certamente que não será ingénuo a esse ponto. Se não se retratar publicamente e disser que afinal foi mal interpretado, o mínimo que lhe pode suceder é arrastar-se durante alguns anos na empresa, já sob outra administração, e ocupar lugares de importância relativamente subalterna. Como sabemos, não basta ter a verdade. Só nos filmes de Frank Capra, com o velho Jimmy Stewart, é que o barro ganhava ao ferro.
No caso da alegada promiscuidade madeirense, com as cedências de toda a ordem que ocorreram no passado dos Governos ao actual Presidente da Região Autónoma, existem centenas de telhas de vidro por parte de personalidades e de partidos. O que se espera? Inevitavelmente, teremos proclamações de existência de normalidade total num assunto que é politicamente muito complicado.
Com isto, não pretendo dizer que não se deve fazer o que Catalina, Rodrigues dos Santos e o líder do PS-Madeira fizeram. Que outros resultados não brotassem dos seus actos, estes já valeriam a pena pelo acordar das consciências de muitos que andam a dormir. Além disso, assim consegue-se entrever melhor a importância da existência de um verdadeiro estado de direito em Portugal. É sempre altura de dizer "basta!".