11/18/2007

Desacordo ortográfico outra vez?

Uns anos depois de uma ampla e acalorada querela que encheu todos os media e que, felizmente, acabou em águas de bacalhau, eis que agora, sorrateira e repentinamente, é anunciado que está para breve a celebração de um acordo ortográfico entre os países lusófonos. Um acordo ortográfico? Estaremos a ouvir bem? Se há coisas que são muito necessárias neste mundo, há outras que não só são totalmente inúteis como são até nefastas e, diga-se com todas as letras, não têm qualquer razão de ser. A ânsia burocrática da parte de governantes que pretendem tudo uniformizar, ao mesmo tempo que nos seus discursos proclamam as virtudes da diversidade para taparem os olhos e os ouvidos das pessoas e baralharem-nas está a atingir proporções incalculáveis e atinge o ridículo ditatorial em países que se intitulam de democráticos.
Provavelmente na sequência do filme da Constituição Europeia que foi rejeitada em referendos para ser substituída pelo Tratado Reformador praticamente sem referendos, pretende-se agora assinar de cruz um Acordo Ortográfico entre os países lusófonos, como se uma língua fosse algo que pudesse ser alvo de tratados semelhantes, e sem debate prévio. É assim. Já está! Os senhores decidem, e todos os outros amocham.
Espero vivamente que haja intenso debate, porque o assunto é quentíssimo. Como sabemos, a língua portuguesa não é pertença de nenhum país, nem de nenhuma organização. Isto significa que o português de Portugal deu origem, há muitos anos, à língua que hoje se fala no Brasil e nos PALOP, mas que depois teve os seus desvios normais nos diferentes países. Porquê? Porque a sociedade dos diferentes países lusófonos não é igual, em razão do seu substrato e da sua evolução ao longo de séculos. Como a língua é um fenómeno sociológico, está fortemente correlacionada com a sociedade. Sendo a sociedade brasileira substancialmente diferente da portuguesa, seria previsível pela lógica que a língua apresentasse também notórias diferenças. E esse é um facto que se confirma. Dado que a ortografia deve reflectir o mais fielmente possível a forma oral das palavras, não espanta ninguém que a ortografia brasileira e a portuguesa sejam diferentes nalguns vocábulos. O contrário é que seria de admirar, pois não podemos falar de colonizados e colonizadores, em que estes impõem a sua ortografia aos outros. Assim, a língua é a mesma mas existem diferenças, e algumas dessas diferenças são reflectidas na grafia.
O inglês falado numa antiga colónia britânica, os Estados Unidos da América, é algo diferente do que se fala na Grã-Bretanha. Tão natural é esta diferença na oralidade como eventualmente na ortografia. Color, harbor, center, traveler e travel check (EUA) convivem muito bem com colour, harbour, centre, traveller e traveller’s cheque (RU). Como estas, dezenas de outras palavras. Não há problema! Nunca a Inglaterra proporia aos Estados Unidos a uniformização da ortografia, nem os americanos quereriam impor a sua grafia no Reino Unido. A língua, tal como a democracia, não se impõe. É um produto natural, cuja ortografia pode e deve ser mudada em cada país de tempos a tempos para melhor corresponder à mutante forma oral ou por razões de simplificação. Mas que os portugueses passem a escrever "fato" se dizem "facto" não faz qualquer sentido. E se nós "optimizamos" as coisas, não vamos passar a "otimizá-las" agora só porque os brasileiros, não nós, não pronunciam o "p".
Haja bom senso e, além disso, boa conduta democrática!

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