6/25/2011

UBUNTU

Uma coincidência totalmente inesperada fez com que esta palavra originalmente de uma língua nativa da África do Sul entrasse no meu vocabulário em dois dias seguidos. Na noite de um desses dias chegou-me um e-mail que contava a história que a seguir transcrevo. No dia seguinte de manhã assisti a uma conferência na Gulbenkian. No meio da sua comunicação, o orador, Achille Mbembe, abordou exactamente esse tema. Comecemos pela história:
Um jovem antropólogo esteve a estudar durante cerca de duas semanas os usos e costumes de uma determinada tribo sul-africana. Objectivo: apresentar um trabalho de investigação na sua universidade. Após o que para ele foi uma experiência interessante, em que julgou ter analisado tudo relativo ao modo de vida da tribo, desde o modo de construção das casas à maneira de vestir, hábitos alimentares, educação, rituais de nascimento e morte, e a questão da liderança na comunidade, chegou o dia das despedidas e do regresso. Como o seu voo era apenas ao fim do dia, ficou ainda com algum tempo de espera. Entre outras coisas, decidiu fazer na aldeia uma brincadeira com as crianças com as quais tinha convivido e cuja confiança tinha grangeado.
Pensando nas crianças, comprou na cidade umas tantas guloseimas para oferecer. Colocou-as todas num cestinho muito bonito, enfeitado com um belo laço vermelho. Colocou o cesto debaixo de uma árvore, à sombra. Depois, chamou os miúdos, raparigas e rapazes, e deu-lhe breves instruções sobre o que iriam fazer. Era algo bastante normal: iam fazer uma pequena corrida a ver quem é que conseguia chegar primeiro à meta. A meta era o cesto com as guloseimas. Quem chegasse primeiro ganhava o cestinho com os doces todos.
As crianças posicionaram-se na linha de partida que ele oportunamente desenhou no chão e aguardaram o sinal. Quando o antropólogo gritou "Partida!", todos os miúdos deram imediatamente as mãos uns aos outros e largaram a correr em direcção à árvore debaixo da qual estava o cesto. Quando lá chegaram, começaram a distribuir os doces entre si e a comerem-nos, felizes da vida.
O antropólogo foi ao seu encontro e, algo estupefacto porque o resultado não era exactamente o que ele esperava, não pôde deixar de lhes perguntar por que razão tinham ido todos juntos se um só poderia ter ficado com o cesto e com todos os doces que lá estavam dentro.
A resposta veio rápida: "Ubuntu! Como é que um de nós podia ficar feliz se os outros ficassem tristes?"
Foi uma resposta que desconcertou o jovem antropólogo. Havia duas semanas que estava a estudar aquela tribo e ainda não tinha compreendido esta parte essencial da vivência do povo. A lição foi para ele.

Como acima referi, no dia seguinte ouvi Achille Mbembe, investigador em História e Política na Universidade Witwatersrand, de Joanesburgo, abordar com alguma profundidade o conceito de ubuntu. Definiu-o como "mutualidade humana". Explicou que era uma tentativa que já há anos se ensaiava na África do Sul, com base em costumes de várias comunidades, e que, como conceito, estava mesmo a ser aplicado na legislação do país. Ubuntu não é o contrário de individualidade, explicou Mbembe, mas baseia-se na vida entrosada dos humanos, na qual todos dependemos uns dos outros. Ubuntu propõe uma ética de existência colectiva. Uma vida não pode adquirir mais valor à custa de outrem. Só conseguimos sobreviver se partilharmos. Como conceito, ubuntu refreia a lógica do individualismo e lembra a origem clássica da democracia.
Pareceu-me extremamente interessante e corajoso que esta ética esteja a ser desenvolvida numa vasta comunidade que, ao longo de muitas décadas, se desenvolveu e se tornou uma das sociedades mais desiguais do mundo. A África do Sul deve ser hoje o segundo país com maiores desigualdades sociais, logo a seguir ao Brasil.
Ubuntu para todos!

6/20/2011

Mais vale cair em graça do que ser engraçado

Todos nós, creio, já experimentámos a sensação de estarmos à beira-mar e recebermos ondas, pequenas ou um pouco maiores, que foram produzidas por um grande barco que passou lá longe e agitou o oceano. Transpondo isso para o que se passa com a nossa memória que, por assim dizer, também é accionada por ondas movidas por semelhança ou por contraste, ocorre frequentemente que só ao fim de alguns anos, por vezes muitos, é que nos damos conta do significado e importância de determinado ditado. Aquele que reproduzo acima chegou-me há dias de volta, embrulhado numa dessas ondas.
"Mais vale cair em graça do que ser engraçado" é algo que conheço desde a minha adolescência. Uma tia, alentejana, em cuja casa passei vários anos enquanto estudava, usava este ditado com relativa frequência. Devo dizer que nunca lhe prestei muita atenção, mas de súbito ele chegou-me agora, a galope. Os ditados têm destas coisas. São grandes verdades. É por isso que resistem à passagem do tempo. É por isso também que usam sempre o verbo no presente. São asserção pura, juízos formulados após muita experiência e acumulação de sabedoria. Por isso não são passado nem são futuro, embora constituam uma das pedras sobre as quais o futuro se há-de construir.
O que é cair em graça? Não estamos aqui a falar da graça divina, mas sim em cair na graça das pessoas. Cair em graça é, fundamentalmente, agradar. Em termos comuns, se tu agradas a alguém, é porque esse alguém gosta de ti. Porque é que gosta de ti? Aqui existe um número quase infinito de hipóteses, mas o essencial é que existe uma empatia que se criou nesse alguém relativamente a ti. E essa empatia é duradoura? Depende. Tal como em inglês se diz fall in love e o seu oposto fall out of love, também a empatia pode chegar ao fim após um curto período ou manter-se por um longo período de tempo. Mesmo até ao fim dos nossos dias.
O "ser engraçado" do ditado lembra a tentativa de cair nas boas graças. Ora, nada que seja forçado dura muito tempo. É como uma única camada superficial de verniz. Na realidade, na maioria dos casos duradouros cai-se nas boas graças de uma pessoa sem esforço, apresentando-se como se é. Há coisas que não são fáceis de explicar, mas parece correcto falar-se de uma certa química que atrai ou que repele.
A diferença entre cair ou não cair em graça pode ser abissal. Imaginemos um professor que lecciona três turmas diferentes. Uma determinada atitude infeliz tomada pelo professor no primeiro dia de aulas numa das turmas pode ter causado uma imediata antipatia nesse grupo de alunos. Embora a situação possa mudar com o tempo e ser eventualmente corrigida, o professor não terá em princípio a mesma receptividade nessa turma que tem nas restantes, nas quais existe uma perfeita empatia.
Em que é que se traduz esta empatia? Em pormenores que são importantes. Uma história interessante e cómica que o professor conte receberá no final um coro de gargalhadas, caso exista empatia total. Mas, em situação contrária, pode levar a um simples esgar ou mesmo uma careta e a um resmungo "Onde está a graça?" Na colaboração é importantíssima a empatia. Trabalha-se de bom grado com um professor de quem se gosta e só a muito custo com alguém que não nos caiu no goto.
Quem cai nas boas graças do público vence com facilidade. E naturalidade. Porém, tal como sucede com os professores, pode perder essas boas graças através de determinados actos. É algo frequente com os políticos. Quando a maioria da "turma" da população eleitora começa a criar antipatia por um político de quem anteriormente gostava, o mesmo discurso que sempre pareceu interessante passa, gradual ou subitamente, a uma balela insuportável. Quedar-se-ão sempre aqueles inabaláveis simpatizantes que, por razões pessoais que ultrapassam a realidade – "o amor é cego" – continuam a ter esse político nas suas boas graças, mas todo o indivíduo que enveredou pela carreira política sabe que quanto mais subiu, tanto mais descerá.
Por vezes pode ser um preconceito a impedir que alguém receba as nossas boas graças. Consideremos uma pessoa de direita, fortemente anticomunista. Ao ter conhecimento de que José Saramago foi um comunista militante, ignora o facto de ele ter ganho um prémio Nobel de literatura. O facto de o escritor ter sido comunista tolda a visão do potencial leitor e impede-o de ler seja o que for: “não lhe acharia graça nenhuma!”
Este juízo ou conceito prévio (preconceito em português, prejudice em inglês) é aplicado noutras situações e com resultados similares. Há pessoas, nomeadamente homens, para quem um poeta foi bom até ao dia em que souberam que ele era homossexual. Semelhantemente, um racista, com o seu preconceito contra uma raça diferente da sua, é capaz de admirar a beleza de uma mulher africana, mas comentará algo como "É preta, mas bonita". Estão fora de questão as boas graças destas pessoas para com homossexuais ou indivíduos de raça negra.
Ter graça é, no sentido do provérbio, "estar em graça". Como o oposto de "estar em graça" inclui uma vasta gama de possibilidades que vão do mero desconhecimento da pessoa ou coisa que é objecto da graça até ao "cair ou estar em desgraça", quem está em desgraça nunca pode ser verdadeiramente engraçado por mais que o tente. Aí, o problema residirá principalmente na intolerância de quem coloca alguém em graça ou em desgraça. Quando a pessoa que tem essas peias eventualmente delas se libertar, pode entrar num mundo novo, que lhe esteve entretanto vedado pela sua própria maneira encouraçada de ser.
Em situações de todos os dias, haverá pessoas no teu grupo de amigos e conhecidos que criaram uma forte empatia contigo, enquanto outras permanecem algo desconfiadas e não vêem nada de especial em ti. Uns calam-se quando tu começas a dizer qualquer coisa, querem ouvir-te; outros fecham os ouvidos e distraem-se com qualquer outra coisa: de ti nada vem de jeito.
Quando as pessoas comentam que aquilo que dizes é geralmente engraçado, elas estão a comunicar-te que gostam de ti. O termo "engraçado" contém em si a "graça" que te envolve.
Que esta graça inicial pode desaparecer ao fim de algum tempo e criar uma desilusão, maior ou menor, atesta-o o elevado número de divórcios entre casais que uma profunda empatia unia e que depois, com a constante proximidade diária e em resultado de múltiplas situações desconhecidas até então, a viram esvanecer-se. E quando falo em divórcios não estou apenas a mencionar aqueles que são registados oficialmente, mas sim aquela passagem da empatia inicial para outro qualquer sentimento, que pode ser, como sucede no caso do político e de outros ídolos, de quase-ódio depois da anterior adoração. Do estado de graça houve alguém que caiu na desgraça.
A vida está cheia destas coisas, seja na componente profissional, nas amizades, no relacionamento familiar. Este é um assunto velhíssimo, por ser muito real. O Raul Solnado costumava ironizá-lo através da história do casal de namorados em que ele inicialmente dizia para ela "Adoro este teu sinalzinho! Tão giro!". Ao fim de longos anos de casamento, quando ela encostava o rosto ao seu apetecia-lhe dizer (embora o não dissesse) "Chega para lá essa verruga!"
Há coisas algo misteriosas aqui, há químicas que constituem um certo enigma para o leigo. Mas vale a pena pensar nelas, creio. Assim como vale a pena saudarmos sempre o aparecimento de alguém para quem as nossas palavras façam verdadeiro sentido e recebam um forte acolhimento. Pode ser "o início de uma longa amizade".

P.S. Sobre a amizade e, afinal, as boas graças em que uma pessoa está ou não, escreveu um dia o cardeal Mazarino (1602-1661): "Faz grandes elogios de uma pessoa na presença de um terceiro. Se este se mantém calado, é porque não é amigo dessa pessoa. O mesmo poderás adivinhar se ele desviar a conversa para outro assunto, se mal responde, se se esforça por moderar os teus elogios, se se diz mal informado acerca da pessoa em causa ou ainda se se lança no elogio de pessoas que nada têm que ver com aquela de que se está a tratar.
Podes igualmente mencionar um acto admirável praticado por essa pessoa - um acto acerca do qual sabes que o teu interlocutor está perfeitamente ao corrente - para veres se ele aproveita ou não para o valorizar. Reagirá, talvez, dizendo que, nesse caso, foi uma questão de sorte ou que a Divina Providência é, por vezes, muito pródiga. Ou então aproveitará para gabar proezas ainda mais notáveis de outros. Pode ainda afirmar que essa tua pessoa se limitou a seguir um bom conselho."

6/12/2011

Os que estão abaixo de nós



Para fazer um intervalinho na temática das politiquices que, em certa medida, já cansam e são frequentemente má-língua, passemos para algo de boa-língua. O que não quer dizer, no entanto, que não usemos algo que seja político. Ou mesmo má-língua. Confuso? Nem por isso. Esclareçamos:
Quando países do Norte da Europa, como a Alemanha, a Inglaterra, a Holanda, a Suécia e a Dinamarca usam a sigla PIGS em inglês para Portugal, Itália (ou Irlanda), Grécia e Espanha, eles estão naturalmente a depreciar-nos a todos. Note-se que quem chamar pig (porco) a um juiz pode ter como garantido que vai ter que responder perante a justiça e é muito natural que termine na cadeia. Porco é palavra tão insultuosa que em França quem der o nome de Napoleão, herói nacional para muitos franceses, a um porco sujeita-se a uma pena de prisão. (Suponho que George Orwell pressentia este facto quando deu o nome de Napoleão exactamente a um dos porcos que passaram a dirigir a quinta dos animais no seu conhecido livro O Triunfo dos Porcos, Animal Farm.)
Os mais ingénuos dirão que isto é algo do passado. Hoje em dia já ninguém usaria termos desta ordem. Bem, o actual uso de PIGS para os referidos países da União Europeia desmente categoricamente esta suposição.
Sejamos justos: quer queiramos admiti-lo ou não, o homem tem uma visível tendência para criar uma escala hierárquica e desconsiderar aqueles que estão abaixo de si. Não é só na Índia que existem castas. Tudo expressa ou pretende expressar uma forma de superioridade e de domínio ou poder. Ou de menos poder. Aliás, trata-se de um facto que a língua materna espelha à evidência. Como? As formas são múltiplas, variadas, mas por hoje demos uma mirada basicamente às comparações depreciativas para as quais usamos frequentemente animais.
Se se perguntar a uma criança se os animais estão acima ou abaixo do homem, ela responderá automaticamente que estão abaixo. Caramba, nós somos racionais, eles não. A criança não estranhará muito o acima e abaixo, embora nunca tenha ouvido falar no darwinismo social, que elenca ou hierarquiza a sociedade consoante determinadas características, frequentemente medidas através da riqueza pessoal, da inteligência, habilidade para negócios, poder mediático, etc.
Ora, se bem que seja verdade que há animais que parecem compreender-nos relativamente bem numa ordem que lhes dermos, na realidade eles são incapazes de entender uma anedota ou de fazer contas de cabeça. De entre a vasta gama de animais há uns que nos estão mais próximos, que por assim dizer convivem connosco e que são, obviamente, aqueles que conhecemos melhor. O modo como na nossa língua hierarquizamos esses animais é interessante e está longe de ser igual em todas as culturas.
Imaginemos animais como a galinha, o burro, o cavalo, a vaca, o boi, a cabra, o porco, o cão, a hiena, o antílope e o porco-espinho. Verificamos desde logo que os três últimos não vivem exactamente junto a nós nem são populares no nosso vocabulário. Os outros são. Deixemos portanto o porco-espinho, o antílope e a hiena a dormir descansados. Temos os outros com que nos ocupar.
Para já, voltemos aos PIGS. Como cidadão português, sinto-me aviltado sempre que oiço um alemão ou um holandês a incluir o meu país no grupo dos PIGS. Somos todos pessoas, não animais. E logo porcos! De facto, chamar porco a uma pessoa é feio, deselegante e ofensivo. Entretanto, que nome davam os portugueses aos judeus que, muitas vezes sob ameaça de morte ou de perseguição, acabavam por converter-se ao cristianismo? Marranos, não era? E o que são marranos? Não são suínos, porcos? Nem mais.
A visão hierárquica da nossa sociedade está bem expressa no racismo. Portugal foi, como todos sabemos, um país colonizador e um dos maiores traficantes de escravos provindos de África. Esses escravos eram os tais que, para alguns negreiros e não só, nem alma tinham. Uma comparaçãozinha com animais não ficaria mal. E daí nasceram entre outros os mulatos, nome proveniente do cruzamento de um progenitor branco com um progenitor preto, a lembrar as mulas, as quais resultam do cruzamento de um cavalo com uma burra ou de um burro com uma égua. E as cabritas? As cabritas são mais brancas do que as mulatas, mas são também comparadas a um animal. Não se diz cabra por ser demasiado feio; cabrita acaba por ser um eufemismo. A cabrita tem um progenitor mulato e o outro branco. O termo cabrita é possivelmente mais doloroso do que o de mulata. Porquê? Porque podendo a cabrita passar por branca, recordar que ela, apesar disso, é cabrita torna-se-lhe socialmente penoso. Quando brancos racistas o fazem é mesmo uma crueldade.
Os animais entram, pois, na criatividade linguística, deixando escondidos com-o-rabo-de-fora sentimentos racistas ou sexistas. Se é um branco a dominar, a diferença de raças vai servir em princípio para elevar a sua própria raça a um plano de superioridade. Para o fazer, para além de pagar salários mais baixos, cria anedotas depreciativas, de uma maneira muito semelhante àquela que usa para denegrir a mulher (se for homem) ou o homem (se for mulher), o homossexual e a lésbica (pelos seus desvios relativamente ao padrão mais comum), o campónio ou saloio (para acentuar a superioridade do urbano sobre o campesino).
Para denegrir uma mulher, por exemplo, não é raro que o homem use os nomes de cabra, vaca e baleia. Pode dizer que ela é estúpida que nem uma galinha, que parece mesmo uma galinha a cacarejar ou então lembrar-lhe o ditado: se a galinha canta de galo, então corta-se-lhe o gargalo. A mulher chamará ao homem burro, porco, camelo – até este pacato animal do deserto chega a estas paragens - machão ou garanhão. Em caso de adultério o homem será cabrão. A mulher será uma pega ou uma cadela. Uma besta dá para ambos. Tudo animalada. Um homossexual será bicha, que dá para os dois sexos, e veado ou borboleta só para o masculino.
Assim se vê, de uma penada, como os animais servem ao ser humano como arma de arremesso em caso de arrufos, discussões e zangas mais ou menos graves. Se os bichos soubessem deste tipo de uso que os homens deles fazem talvez fossem menos colaborantes e amigos.
Com isto tudo, resta lembrar que o animal mais vezes invocado pejorativamente é indubitavelmente o burro. Este é de longe o grande campeão. Mais domingueiramente, assume o nome de asno. Mas de burrices e de burradas está o mundo cheio, assim como de asneiras, asneirolas e indivíduos asnáticos. Pobres bichos! Quase sempre na mó de baixo!

P.S. Entre outros, deixei de fora três bichinhos simpáticos que são frequentemente usados como comparação para o género humano, nomeadamente para a mulher: a cobra, a víbora, e a serpente da Evita. Foi de propósito; mordem!

6/07/2011

Poesia de A a Z

Para a letra G, um poema de António Gedeão, dedicado a um amigo que faz anos hoje.

Poema para Galileo

Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios.)
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.
 
Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria…
Eu sei… eu sei…
As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileo Galilei!
 
Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.
 
Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar- que disparate, Galileo!
- e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação-
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.
 
Pois não é evidente, Galileo?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da praia?
Esta era a inteligência que Deus nos deu.
 
Estava agora a lembrar-me, Galileo,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente.
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se tivesse tornado num perigo
para a Humanidade
e para a Civilização.
Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios,
e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.
 
Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas- parece-me que estou a vê-las -,
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e descrevias
para eterna perdição da tua alma.
Ai Galileo!
Mal sabiam os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileo Galilei. 
Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.
Por isso estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto incessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo,
caindo,
caindo,
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa do quadrado dos tempos.

6/04/2011

Centros de decisão

Taxation without representation is tyranny! Foi este conhecidíssimo slogan que deu início à grande revolta da colónia britânica da América contra o país colonizador. Fazer os colonos americanos pagar impostos e não lhes dar a oportunidade de representação no Parlamento londrino parecia-lhes, e com razão, ultrajante. O centro de decisão estava todo colocado na capital britânica para servir os interesses da grande metrópole e não prioritariamente para defender os interesses da colónia, onde os impostos eram colectados na razão directa da sua produção.
Que me lembre, nunca houve também no Parlamento português representações condignas de elementos angolanos, moçambicanos, caboverdianos, etc. O centro de decisão era Lisboa, sede do governo português. Aqui se decidia sobre que contratos de exploração petrolífera e mineira se deveriam assinar e em que bases, aqui se planeava a estratégia para o tipo de plantações, exploração de madeiras, etc. que eram possíveis nas colónias e que iriam servir maioritariamente os interesses da metrópole.
Quando nos finais da década de 90 Portugal aderiu ao euro, acto que se veio a concretizar com circulação monetária apenas em Janeiro de 2002, o nosso país abriu mão de um importantíssimo centro de decisão. Deixou de poder verdadeiramente controlar a emissão da sua própria moeda e viu ser-lhe retirada a possibilidade com que sempre tinha jogado no meio cambial: a desvalorização do escudo e, mais raramente, a sua valorização.
Simultaneamente ou de forma gradual, outros centros de decisão passaram a ser externos. Estabeleceram-se quotas. A nossa produção de leite, a frota pesqueira, a produção de vinho e vários outros itens passaram a ser colectivamente decididos fora das nossas fronteiras. Na altura, embora alguns políticos e economistas tenham alertado para a importância desta perda de decisão nacional, a novidade do euro com os seus baixíssimos juros e os vultosos fundos que vinham chegando de Bruxelas fizeram calar muitas bocas. Hoje, estamos a ver como os alertas dos "velhos do Restelo" de então eram amplamente justificados. A tradicional indisciplina portuguesa, o descontrolo contabilístico de autarquias e de governos autónomos, a facilidade de endividamento administrativo e pessoal foram factores que se conjugaram numa atmosfera de optimismo nacional que possivelmente atingiu o seu cume em 1998 – o ano da Exposição Universal e do Prémio Nobel de Literatura para o português José Saramago.
A isso se juntou um conjunto extraordinário de benesses que os políticos a si próprios se concederam e regimes fiscais que beneficiaram sectores privilegiados. Tudo, incluindo ataques planeados de especuladores às finanças portuguesas carentes de empréstimos, esteve na origem de uma situação financeira e económica que acabou por nos retirar praticamente todos os centros de decisão. Hoje obedecemos à cartilha que nos é imposta de fora. Somos obrigados a comer e a calar.
Não obstante o intercâmbio e a interdependência obviamente existentes entre países, ser de facto independente pode ser difícil, mas não há nada como não depender em coisas básicas seja de quem for. Gradualmente, e a conjuntura económica e financeira contribuiu para isso, passámos de uma democracia mais ou menos aceitável para uma ditadura com algumas liberdades. A possibilidade de escrever este texto e de o colocar on line é um exemplo das liberdades que existem. Mas do que não restam dúvidas é de que a ditadura que nos é imposta por poderes externos é ainda mais severa e decerto mais humilhante do que se tivesse a sua origem dentro do país. Infelizmente, não será fácil livrarmo-nos do colete-de-forças em que nos encontramos.

6/03/2011

Ortografia: atenção ao que foi acordado!

Presentemente, qualquer português que queira escrever com exatidão tem de pensar duas vezes antes de escolher a ortografia exata. Correto passa a ser o que não era correcto, sendo que dentro em breve esta última grafia passará ao Canal História.
Entretanto, pelo que julgo saber, não houve um só partido que no seu recente programa eleitoral tivesse adotado a nova ortografia. Sucede que este não é um simples pormenor. É que foi a Assembleia da República que aprovou o acordo ortográfico (contra a opinião de inúmeros portugueses, entre os quais muitos linguistas). Os deputados refletiram demoradamente sobre o assunto e votaram com grande consciência, como a ortografia que utilizam nos programas dos seus partidos amplamente demonstra!
Embora seja abjeto escrever nesta nova forma, porque nada tem a ver com a prática europeia, o número de palavras que temos que mudar é excecionalmente elevado. É difícil ter a priori a perceção daquilo que se tem que alterar. A confusão ainda será maior quando nós – e, connosco, as crianças que agora se iniciam – tivermos que escrever em espanhol, francês ou inglês, e mesmo algumas palavras em alemão, porque se o direto e o diretor são presentemente grafados assim, sem –c-, directo, direct, direct e direkt mantêm-se nas quatro línguas acima mencionadas, assim como director, directeur, director e Direktor. O mesmo se passa com factor, reactor, actor, actriz, expectativa, expectoração, atracção, fracturante, injectar, perspectiva, preceptor, reactividade, receptividade, etc. etc. Está escancarada a porta para a entrada em grande dos portugueses nos erros ortográficos cometidos quando usam línguas estrangeiras na sua escrita. Mas que importância tem isso? O corrector, perdão, corretor existente no computador tratará de resolver o assunto. Quem escrever à mão terá maior dificuldade, mas, francamente, quem é que hoje escreve à mão?
Com o novo acordo, a nossa atividade terá outros objetivos, a atuação de grupos de teatro ou da própria seleção nacional de futebol também. Na realidade, todos os nossos atos passarão a ser diferentes e nós próprios seremos mais ativos graças ao uso de uma ortografia mais atual que, diga-se por mera curiosidade, os brasileiros já utilizam há variadíssimas décadas. Nós é que estávamos atrasados, tal como aliás outros idiomas, v.g. o inglês, o espanhol e o francês se mantêm atrasados.
Estas alterações não afetarão alguns profissionais, como por exemplo os arquitetos porque eles também mudam a sua grafia. Espera-se, porém, que o seu caraterístico caráter se mantenha, para que o público não passe a encarar com ceticismo a sua conceção de arte.
Alguns homens terão a sua vida facilitada no que respeita à ereção porque sempre é um peso a menos que têm que arrostar. A posição de ereto também trará benefícios para a sua coluna. São só benefícios.
Mas, já agora, quem paga a fatura destas diferenças todas? E para quê? Esse é o grande mistério. Será que um texto oficial em português emitido por um órgão oficial como a ONU não necessitará a partir de agora de quaisquer alterações na sua versão brasileiro-portuguesa? Só um ingénuo dirá que não. Existem numerosas diferenças sintáticas entre o português do Brasil e o de Portugal que naturalmente se mantêm. Isto para não falar já nos casos de Angola, Moçambique, Cabo Verde, etc. Os inteletuais, os inspetores, os detetives, os espetadores ver-se-ão à perna com problemas. E quanto aos professores? Lecionar será mais fácil para eles? Um otimista dirá que sim. Muda-se o tato, muda-se o olfato, mas tudo fica ótimo. Mudam-se os projetos, uns tantos objetos e, como vem sendo costume, não haverá praticamente qualquer reação. Quem fala de rutura? O assunto está a ter boa receção em todos os setores. Sem as sutilezas do antigamente, o nosso trajeto está traçado para o sucesso!


P.S. Este post-scriptum é puramente pessoal. Como já em tempos mencionei a amigos, não vou cumprir o acordo ortográfico. Professor durante muitos anos, bendigo a minha situação de retirado das funções de leccionação, pois se continuasse no ensino teria muito a contra-gosto de aplicar o acordo. Ao longo da vida acatei sem dificuldade várias alterações ortográficas que se produziram (o ele quiz passou a ele quis, o tècnicamente a tecnicamente, o trema desapareceu, tal como o ponto de interrogação invertido e outras coisas do género). Mas o que está a suceder é a sul-americanização da língua europeia, é o aculturamento ao brasileiro, a descaracterização da língua escrita e o afastamento ortográfico das principais línguas europeias. É humilhante para Portugal.
Fernando Pessoa, em nome de quem se usa e abusa da frase “Minha pátria é a língua portuguesa”, seria o primeiro a estar contra estas alterações, como aliás ele próprio bem atesta no seu Livro do Desassossego. Infelizmente, as suas reflexões foram escamoteadas por quem, devido a interesses mais ou menos obscuros, acabou por fazer o mal e a caramunha.
Ainda tive alguma esperança o ano passado quando um amigo me passou o endereço de um centro coordenador de protesto contra o acordo. Entrei em contacto, tirei fotocópias, arranjei dezenas de pessoas ávidas de rejeitar o acordo – só uma das que contactei colocou alguma objecção a assinar. Porém, a necessidade de papel escrito, da óbvia assinatura e não só do documento de identificação como também do número do cartão de eleitor, factores a que se juntou a não-realização de reuniões – fui a uma, na Voz do Operário, interrompida ao fim de pouco tempo e, ao que julgo, nunca repetida – foi todo um conjunto de coisas que tornou impeditiva a recolha de 35 mil assinaturas no tempo concedido. Passei palavra a amigos, que fizeram o mesmo que eu, recolhendo assinaturas. Depois, creio que tudo esmoreceu. Lamento muito que assim seja. Dizem-me que existe agora um novo prazo, mas sem uma entidade coordenadora custa-me a crer que o trabalho seja viável. As crianças nas escolas, como vejo pelo caso do meu neto, já estão a aprender com a nova ortografia. Parece-me irreversível. É um crime o que estão a fazer à língua portuguesa. Esta enorme transformação não deixa de ser uma componente significativa do nosso declínio como país soberano.