6/17/2014

Forma e Substância

          Creio que mesmo se Antero de Quental tivesse vivido um século mais tarde, ele não iria em futebóis. Para o malogrado escritor e pensador, possivelmente o actual Campeonato do Mundo que se está a realizar no Brasil passaria praticamente ao lado. No entanto, o que há dias sucedeu no Espanha-Holanda e hoje ocorreu no Portugal-Alemanha não pôde deixar de me fazer lembrar as teses de Antero expostas na sua famosa comunicação sobre as Causas da Decadência dos Povos Peninsulares. É que a Espanha, aureolada com o pesado título de campeã do mundo, se viu destroçada por uma Holanda voluntariosa e combativa que logrou o espantoso resultado de 5-1. No jogo que Portugal disputou há horas com a Alemanha, o que aconteceu não foi tão diferente assim. O resultado final de 4-0 não tem discussão.

          E assim os dois povos peninsulares foram copiosamente batidos por dois países do Norte da Europa. Na sua famosa comunicação sobre o atraso peninsular, Antero referia-se, como todos sabemos, à Contra-Reforma, que comparou desfavoravelmente com a Reforma Protestante, à Monarquia Absoluta castradora de liberdade e de espírito de iniciativa, e ao sistema económico que derivou dos Descobrimentos e respectivas colónias (há bens que vêm por mal). 

          Pergunta-se: e o que é que isto tem a ver com o futebol? Nada, pelo menos aparentemente. Mas há um ponto, que creio ter sido também intuído por Antero, que é a diferença entre o primado da forma e o primado da substância. Geralmente, os países do Sul continuam a defender muito o primado da forma, o que os faz falarem e escreverem muito – e no futebol gesticular e discutir as decisões dos árbitros -, prestando menos do que a atenção devida à substância. No jogo de Portugal, conforme transmitido e relatado pela RTP1, foi notória a constante intervenção do locutor sobre um programa do canal que ninguém deveria perder, onde a posteriori se discutiria tudo sobre o jogo, com as melhores declarações, entrevistas e comentários. Bla, bla, bla, bla. O que é isto senão a forma? Entretanto, usando a mesma atitude de apreço primordial pela substância, os alemães iam impiedosamente caminhando para a nossa baliza, coleccionando golos. Originalmente, “goal”, de onde deriva a palavra portuguesa “golo”, significa “objectivo”, e esta é a substância da questão.

          Como português e também como cidadão ibérico custou-me muito ver os dois países da Ibéria serem estrondosamente derrotados por dois países do Norte europeu, mas sou forçado a reconhecer que a superioridade dessas duas equipas foi inegável. Todos sabemos que no futebol podem existir grandes surpresas, mas nos dois encontros em apreço foi menos o milagre e mais a realidade que se impôs. 

5/16/2014

Fugir do Paraíso?


            No final da década de ’60 e no início dos anos ’70 do século passado, houve uma enorme vaga de emigração portuguesa para a Europa. Para o Brasil já tinha sido comum. Para os Estados Unidos e Canadá era algo mais recente. Mas para a Europa e com tal força aquela onda emigratória era inédita. Os anos ’60 e início dos ’70 coincidiram com a Guerra Colonial, mas esta esteve longe de ser a grande força motriz por trás da debandada de portugueses para França, Alemanha, Luxemburgo e outros países da Europa. Os baixos salários que os trabalhadores auferiam em Portugal quando comparados com os que eram pagos no estrangeiro falaram mais alto e levaram muitos e bons braços da terra portuguesa para fora da pátria.
            Curiosamente, essa foi também a altura em que o Portugal turístico, que era então em imagens publicitárias “o segredo mais bem guardado da Europa” atingiu (em 1964) o seu primeiro milhão de visitantes estrangeiros, número largamente superado anos depois.
            De entre os locais descobertos para o turismo sobressaía, como alguns se lembrarão, o nosso Algarve. O Algarve era publicitado como um paraíso de sol e de tranquilidade para visitantes endinheirados. Porém, mesmo do Algarve saíam centenas de emigrantes para os países europeus. Este facto levou a certa altura o Bispo do Algarve a comentar ironicamente que podia imaginar o gosto de alguém em largar o Inferno, mas que lhe era extremamente difícil entender que alguém estivesse interessado em abandonar o Paraíso. Tinha a sua lógica o comentário do Bispo.
            Embora a História, como se sabe, não se repita, é um facto que ela muitas vezes rima. Presentemente, os arautos do Governo português proclamam que a sua governação tem sido um sucesso; que a economia está a dar a volta e a recuperação já começou; que as exportações têm aumentado substancialmente; que, ao contrário do que muita gente esperava, o Governo se decidiu por uma “saída limpa”, calando assim as calhandras que só falavam de desastres. Voltámos à narrativa do Paraíso português!
            Ora, parece que de maneira algo semelhante àquela que levou tantos trabalhadores algarvios a emigrarem do seu Paraíso nas décadas atrás mencionadas, também agora é do Paraíso português propalado pelo actual Governo que duas conceituadas instituições financeiras decidem cessar a sua actividade em Portugal, i.e. abandonar o Paraíso. As duas instituições são sobejamente conhecidas. Uma delas é o Banco Barclays, a outra o BBVA (Banco Bilbao Vizcaya Argentaria). O primeiro está em Portugal há pelo menos 40 anos; o segundo está entre nós há um número inferior de anos: apenas há 23. Segundo o jornal espanhol El País, a operação portuguesa não oferece a rentabilidade esperada. É talvez um pouco mais do que isso, diga-se: nos últimos três anos de actividade em Portugal, o BBVA registou perdas que chegaram aos 133 milhões de euros. Para paraíso não está mal.
            Será que tanto os trabalhadores algarvios de há décadas como os bancos internacionais aqui referidos são insensíveis aos encantos do Paraíso?

5/06/2014

"A gente" e "as pessoas" serão uma e a mesma coisa?


O dicionário de língua portuguesa que geralmente uso diz-me, entre outras acepções do termo, que “gente” é um conjunto de pessoas, o género humano, a humanidade, o povo. É de facto esta a noção que a maioria de nós tem relativamente à palavra. Logo, pode parecer à primeira vista que “as pessoas” e “a gente” são a mesmíssima coisa. Talvez não seja bem assim.  

Na utilização linguística que vemos e ouvimos todos os dias, “a gente” surge-nos geralmente em expressões positivas, desculpantes ou vitimizadoras para quem fala. Há, portanto, uma tendência para nos incluirmos no “a gente” a que nos referimos. Exemplificando:

“Se a gente não é informada da razão do atraso na partida do avião, como é que podemos saber o que se passa?”
“Se não houver saída por esta rua, a gente vai lá por trás, por umas travessas, e sai na mesma.”
“O Governo precisa de dinheiro e a gente é que paga.”
“A gente” é geralmente sinónimo de “uma pessoa”, expressão que é também positiva e na qual igualmente tendemos a incluir-nos.
“Como é que uma pessoa pode decorar isto tudo – duzentas páginas - para um exame?”
“E depois querem que uma pessoa não proteste!”
“Como é que querem que uma pessoa possua sentido crítico, se na escola não nos ensinam a pensar criticamente, a pôr as coisas em dúvida?”

            Pelo contrário, quando utilizamos – e fazemo-lo com grande frequência – a expressão “as pessoas”, colocamo-nos geralmente de fora e tendemos a expressar uma crítica, na qual nos incluímos apenas como bom elemento observador e não como alvo da opinião geralmente negativa que é expressa. Exemplificando:
          
                “As pessoas estão a ficar cada vez mais porcas. Agora nem põem o lixo nos contentores.”
            “As pessoas estão todas a monte aqui à frente no autocarro, quando há tantos lugares vagos lá atrás!”
            “As pessoas agora não sabem nada de História ou de Geografia de Portugal. No meu tempo sabíamos tudo de cor e salteado.”
            “As pessoas agora não querem trabalhar. Preferem receber subsídio de desemprego.”
          
           Como no nosso país criticar há muito que se transformou numa instituição nacional, quando ouvimos alguém usar “as pessoas” como sujeito de uma oração sabemos antecipadamente que vamos ter algo reprovativo. Em princípio não ofende ninguém em particular ou, visto de outro ângulo, atinge toda a gente, com clara e óbvia excepção de quem formula a censura, que se arvora em professor ou professora do povo: se pudesse, endireitaria este mundo e o outro. Infelizmente, não pode. À guisa de compensação, invectiva tudo e todos.
            
          
Se prestarmos atenção, encontraremos este quadro em muitos lados e em variadíssimas ocasiões. E se a nossa atenção for implacável, talvez nos encontremos também nós próprios a pintar esse quadro de “as pessoas”.

4/20/2014

AGUENTAR OU NÃO, EIS A QUESTÃO


          Num dos pelotões militares que, como oficial miliciano, me atribuíram para a obrigatória recruta, encontrei um soldado que era na altura campeão nacional de 5 000 metros. Nas boas instalações que tínhamos no quartel, ele treinava diariamente ao ar livre a sua corrida, de uma maneira que para mim constituiu alguma novidade: corria 100 metros para um lado, descansava uns segundos, corria 100 metros em sentido contrário, e ali estava um ror de tempo exercitando-se sem cansaço aparente. Eu tinha na altura uma razoável preparação física e, falando com ele, admiti que não aguentaria treinar durante tanto tempo. “É preciso praticar”, dizia-me ele. “Depois aguenta-se melhor.” Era o clássico conceito de Practice makes perfect aplicado à corrida. “Mas há uns que aguentam melhor e outros que não aguentam mesmo”, contestei eu. O soldado, que corria por um dos grandes clubes do país, admitiu naturalmente que isso também era verdade e confessou-me, a meu pedido, onde é que arranjara aquela resistência toda: “Fiz muito contrabando lá na minha terra. Tinha que percorrer grandes distâncias.”

          De facto, a prática é muito importante, mas só testando as pessoas se vê se elas aguentam ou não um determinado esforço. Mudando de agulha neste discurso, quero lembrar que o Governo do nosso país nos tem aplicado doses maciças de impostos e de cortes nos rendimentos que vêm testando a nossa capacidade de suportar esses esforços. 

        Aumentou a pobreza no país, o desemprego tornou-se uma praga, foi reduzida a assistência na doença mas, melhor ou pior, o povo tem na generalidade aguentado o sacrifício. Tem crescido o número de suicídios e divórcios, tem diminuído o número de crianças nascidas, morre-se em Portugal mais do que se nasce. Mas há ainda muita gente que vem aguentando, gente que parece ser em número demasiado elevado na óptica do Governo. O ideal era que desaparecessem mais pessoas, através de morte natural ou auto-infligida, ou através da emigração para outras paragens.

          Todavia, o Governo, que se preocupa primordialmente com as contas públicas e tem os seus alvos fiscais preferidos, já pode dizer agora, após três anos de experiências agravadamente repetidas, que os esforços apodados de temporários vão passar a definitivos. A prática mostrou que há muita gente que os aguenta, pelo que não há argumentos que possam destruir os factos.

          O “aguenta, aguenta!”, que se tornou célebre depois de saído da boca de um conhecido banqueiro português, não consistiu apenas em palavras. Foi todo um processo para verificar as reacções e os respectivos resultados.

          O antigo soldado do meu pelotão tinha razões de sobra para confiar na prática do treino. 

4/12/2014

A banca portuguesa como centro de decisão nacional?

Há dias, Cunha e Silva, vice de Alberto João Jardim e candidato à sucessão de presidente do PSD/Madeira, rematou o discurso da sua candidatura criticando o actual primeiro-ministro com uma frase lapidar: “para salvar Portugal não era preciso matar os portugueses.” Basta olhar para a nossa vizinha Espanha para verificar que isso teria sido possível.
Porém, quando em 2011 o actual primeiro-ministro concorreu às eleições e as venceu com a língua cheia de falsas promessas, a banca estava por detrás dele pressionando-o para pedir a intervenção da troika. Porquê? Endividadíssima na sua tremenda ganância de anos e anos a financiar construtores de imóveis por todo o país e posteriormente a financiar os compradores desses imóveis, a banca, que tinha recebido fartos empréstimos dos alemães e dos franceses e também de instituições de outras nacionalidades, necessitava urgentemente de dinheiro para pagar as suas dívidas. Pressionou assim a saída de Sócrates e apoiou a entrada de Passos Coelho.
Três anos depois, ao ouvir Passos Coelho falar de uma eventual “saída limpa”, a mesma banca portuguesa que se viu obrigada a pedir empréstimos ao BCE através do Estado português, que aliás lhe cobra juros elevados por esse empréstimo, está contra essa hipótese. Para o primeiro-ministro, uma saída limpa daria imenso jeito para as legislativas, graças à almofada de segurança que entretanto logrou constituir através dos impostos cobrados aos portugueses e de um maior endividamento externo e interno a juros substancialmente mais baixos do que os iniciais. Para a banca, no entanto, seria mau. Porquê? Porque continuando o país cotado como junk pelas principais agências de rating e tendo importantes bancos que operam em Portugal – BCP, BPI, CGD e Banif - recebido do Estado muitos milhões de euros, a credibilidade destes bancos passou igualmente a ser considerada “lixo”. Como tal, não são em princípio passíveis de se financiarem junto do BCE, o que lhes dificulta tremendamente a vida.
Pode suceder que, tal como há 3 anos, seja agora em 2014 a banca a ter a última palavra? É uma hipótese perfeitamente verosímil. A confirmar-se, constituiria um óptimo exemplo da prioridade da economia e das finanças sobre a política. Não custa a crer que venha a ser assim. 

2/25/2014

O Nicolau



Imagine quem lê estas linhas um daqueles indivíduos supinamente chatos que parece só se preocuparem com torneiras que pingam, televisores que são deixados a funcionar sem ninguém a olhar para eles, luzes da casa de banho que são acendidas por alguém à entrada mas completamente ignoradas à saída, máquinas de café ligadas longas horas depois do café ter sido feito e bebido, esquentadores com a chamazinha acesa 24 horas por dia, ou mesmo tubos de pasta de dentes ou esferográficas sem as respectivas tampas. Indivíduos desses não deviam existir no mundo. Chateiam os outros e complicam mais do que resolvem. Se pensam que vão conseguir emendar os outros, levá-los a ser como eles, estão redondamente enganados. Características profundas dos seres humanos, tais como distracção, desleixo e coisas quejandas, se nasceram com a pessoa com ela hão-de morrer.
Este breve intróito serve para apresentar um caso que nada tem de incomum e que ocorreu ontem à noite com o meu amigo Nicolau. Foi ele próprio que mo contou. O Nicolau, é conveniente referi-lo aqui, é precisamente um desses indivíduos que se preocupam com montes de coisas. Na sua vinda para o apartamento de praia que possui num condomínio, notou que a porta ao lado da sua tinha por cima a luz acesa. Sabendo que o seu vizinho Gomes estava ainda em Lisboa e não viria tão cedo ao prédio, ficou preocupado e desgostoso com aquele gasto inútil. Um verdadeiro desperdício! Mesmo que o filho do Gomes viesse ocupar o apartamento durante o fim-de-semana, como era seu hábito, ainda faltavam três dias. Mais três dias com a luz acesa!
A primeira coisa que ocorreu ao Nicolau foi telefonar ao seu vizinho a dizer-lhe que tinha deixado a luz acesa. Mas para quê? Será que o Gomes viria de Lisboa até ali, de carro, a gastar gasolina? Seria maior o custo do que o benefício. E, por outro lado, teria sido mesmo o Gomes a deixar a luz acesa? Por que não a mulher-a-dias? Se não tivesse sido o Gomes, com que cara ficaria ele, Nicolau, a acusar o seu amigo de uma coisa que ele, afinal, não tinha feito?
E se não lhe dissesse nada? Pensando bem, o Gomes não sabia o que se passava, não fazia a mínima ideia de que a luz estava acesa, logo não estaria agora nem preocupado, nem a sofrer. O total desconhecimento de um facto desagradável impede que a dor se manifeste. Ele, Nicolau, que tinha consciência de tudo, é que estava a sofrer. E não era ele que iria ter que pagar aquele consumo inútil de luz!
Mas, prosseguiu o Nicolau nas suas divagações, por que razão teria o Gomes de ser exactamente como ele, a sofrer com coisas como aquela? O Nicolau sabia por experiência pessoal que as pessoas diferem entre si e que ele próprio, infelizmente, não era metro-padrão que se aplicasse à maior parte das pessoas. Afinal, era bem possível e até provável que o Gomes, quando finalmente viesse a casa e encontrasse a luz acesa a apagasse, tout court, limitando-se a premir o interruptor que estava dentro de casa, junto à porta. E estava agora, ele, Nicolau, para ali aflito, testa enrugada de tanto pensar...
Galgando a escada a dois degraus de cada vez, surgiu entretanto o seu filho Luís, 11 anos desenvoltos. O que estava ali o pai a fazer, especado a olhar para a luz? O pai explicou-lhe em pormenor a sua angústia e concluiu: “Sabes como detesto ver uma lâmpada a gastar electricidade sem necessidade nenhuma!”
“Oh pai”, disse-lhe o miúdo, “ponha-me às suas cavalitas!” O pai fez-lhe a vontade. Já à altura da lanterna, o miúdo preparava-se para a abrir e desatarrachar a lâmpada quando o pai, atento e solícito, lhe passou rapidamente para as mãos o lenço que acabava de tirar do bolso: “A lâmpada está com certeza muito quente.” 
Com toda a facilidade, o Luís fez com que a luz, antes acesa, passasse a conversa do passado. Desceu das costas do pai, que entretanto ficou e orgulhoso com a perspicácia do filho. Deu-lhe os parabéns. Mas para si próprio, o Nicolau ficou confuso. E, para não variar, preocupado. Como é que ele não tinha pensado naquela solução, tão simples? Com uma cadeira, teria num ápice resolvido a situação. Concluiu, com forte dose de honestidade para consigo mesmo, que demasiados pensamentos e hipóteses em excesso acabam por ser teorias sobre teorias e não têm nada de prático. O seu catraio tinha resolvido a questão num abrir e fechar de olhos!
           Creio que a luz, agora apagada, tinha feito acender uma outra luzinha no cérebro do Nicolau. Afinal, aquela lâmpada acesa talvez não tivesse sido de todo inútil.

1/06/2014

Manipulação de nomes


            Uma das mais famosas citações de Shakespeare é a que nos pergunta e logo nos responde: What’s in a name? That which we call a rose by any other name would smell as sweet. Realmente, com o nome de “rosa” ou com qualquer outro, aquilo que designamos por “rosa” teria exactamente o mesmo perfume. Por outras palavras: a sua essência permaneceria igual; só o seu nome se alteraria. 
            Num exemplo que costumava ser-nos fornecido na escola secundária, não foi pelo facto de o original Cabo das Tormentas ter passado a designar-se Cabo da Boa Esperança que o mar naquele lugar deixou de ser menos tormentoso. Mas suavizou a sua imagem. É um eufemismo típico.
            Os eufemismos são tão comuns na linguagem que, muitas vezes, a forma quase se torna tão importante como a substância. Se falarmos em spread em vez de “margem de lucro do banco” há uma clara suavização do sentido, quanto mais não seja pela aura de mistério que para muitas pessoas a palavra inglesa spread envolve.
            E se em lugar de chamarmos “empréstimo financeiro tripartido” ao dinheiro que foi acordado emprestar a Portugal sob condições devidamente estipuladas e lhe chamarmos “ajuda financeira”, teremos o facto encarado sob outro ponto de vista, embora se trate do mesmíssimo empréstimo.
            E se transformarmos aquilo que, na prática, é um “imposto” no termo “contribuição”, não estaremos a alterar a substância mas sim a adoçar a forma.
            A palavra “imposto” é feia. Whatever is imposed is opposed, diz-se em inglês. E de facto existe uma tendência para reagir a uma imposição com uma oposição. É humano que assim suceda. Daí que, não só para simplificar mas, principalmente, para atenuar a ideia, o termo “imposto” seja cada vez menos usado. Como? Usa-se o “I” inicial da palavra e o resto é uma sigla. É o que encontramos em IMI (Imposto Municipal sobre Imóveis), em IA (Imposto Automóvel), em IRS, IRC e também no nosso bem conhecido IVA (Imposto sobre o Valor Acrescentado).
            Deve ter sido por estas e por outras que o Governo decidiu chamar ao novo imposto a incidir sobre os reformados Contribuição Extraordinária de Solidariedade (CES).
            Dentro da manipulação de nomes que os governantes gostam de fazer, o pagamento das pensões de reforma é visto apenas como uma despesa do ponto de vista do Estado. É-o, de facto. Mas é também uma parte integrante da Dívida Pública (Interna). E, como tal, cortar as pensões de reforma já contratualizadas traduz-se num haircut, o qual tradicionalmente significa um perdão da dívida por parte do credor. Porém, a posição do Estado neste caso não é a de credor mas sim de devedor. Logo, se o devedor se outorga a si mesmo o direito de não pagar, torna-se naturalmente faltoso e incorre em óbvias penas, como todo o devedor que não paga as suas dívidas. Ou será que a dívida pública é apenas a externa e a interna não conta?
            Na era do escudo, existiram várias crises financeiras em Portugal, como todos sabemos. Estas crises resolveram-se basicamente através da desvalorização da moeda. Por duas vezes que me lembre, houve desvalorizações da ordem, cada uma delas, de 14 por cento. Se não se colocavam tantos problemas como agora e a situação não originava um tão grande sentimento de revolta era por uma razão muito simples: a desvalorização do escudo afectava toda a gente. É evidente que os mais ricos sentiam menos a subida do custo de vida do que os mais pobres – é um pouco como as cheias, em que estas não chegam geralmente aos andares de cima -, mas não havia excepções. Agora, com o euro como moeda de várias nações, nenhum país pode per se efectuar a desvalorização cambial. Resta-lhe, portanto, a desvalorização fiscal. 
            Apropriadamente, é esta desvalorização fiscal que tem sido levada a cabo pelo Governo. Esqueceram-se, porém, os governantes de a fazer aplicar a todos, isentando apenas “os mais vulneráveis”, como aliás consta do memorando assinado entre os representantes dos emprestadores internacionais e de três partidos políticos portugueses. Injustamente, há numerosas excepções, que criam o terrível precedente, o qual, como sói dizer-se, pode ser numa organização mais importante do que o presidente.
            E é aqui que voltamos à assim-chamada Contribuição Extraordinária de Solidariedade. Em primeiro lugar, a designação é falsa por não se tratar de uma contribuição (voluntária, como o nome parece indiciar), mas sim de um imposto puro e duro. Em segundo lugar, a CES fere o princípio da equidade ao incidir apenas sobre uns tantos portugueses e não sobre todos.
            Na realidade, se a questão essencial é a obtenção de cerca de 400 milhões de euros para o Orçamento de Estado de 2014, existe uma solução bem mais simples e mais tolerável, na medida em que constitui um esforço menor para cada um dos portugueses: criar um Imposto de Solidariedade Nacional (ISN) – chamemos os bois pelos nomes -, que abranja todos os portugueses, com excepção das classes mais vulneráveis acima referidas. Este ISN, que incluiria uma progressividade de acordo com os rendimentos declarados dos cidadãos, atingiria facilmente os 400 milhões que são requeridos e evitar-se-ia a ideia, negada pelos governantes mas confirmada pelos factos, de que existe uma verdadeira obsessão por parte do Governo com os cortes das pensões dos pensionistas e reformados.