O
dicionário de língua portuguesa que geralmente uso diz-me, entre outras
acepções do termo, que “gente” é um conjunto de pessoas, o género humano, a
humanidade, o povo. É de facto esta a noção que a maioria de nós tem relativamente
à palavra. Logo, pode parecer à primeira vista que “as pessoas” e “a gente” são
a mesmíssima coisa. Talvez não seja bem assim.
Na utilização linguística que vemos e ouvimos todos os dias, “a gente” surge-nos geralmente em expressões positivas, desculpantes ou vitimizadoras para quem fala. Há, portanto, uma tendência para nos incluirmos no “a gente” a que nos referimos. Exemplificando:
“Se a gente não é informada da razão do atraso na partida do avião, como é que podemos saber o que se passa?”
“Se não houver
saída por esta rua, a gente vai lá
por trás, por umas travessas, e sai na mesma.”
“O Governo
precisa de dinheiro e a gente é que
paga.”
“A gente” é
geralmente sinónimo de “uma pessoa”, expressão que é também positiva e na qual
igualmente tendemos a incluir-nos.
“Como é que uma pessoa pode decorar isto tudo –
duzentas páginas - para um exame?”
“E depois
querem que uma pessoa não proteste!”
“Como é que
querem que uma pessoa possua sentido
crítico, se na escola não nos ensinam a pensar criticamente, a pôr as coisas em
dúvida?”
Pelo
contrário, quando utilizamos – e fazemo-lo com grande frequência – a expressão
“as pessoas”, colocamo-nos geralmente de fora e tendemos a expressar uma
crítica, na qual nos incluímos apenas como bom elemento observador e não como
alvo da opinião geralmente negativa que é expressa. Exemplificando:
“As pessoas estão a ficar cada vez mais porcas. Agora nem põem o lixo nos contentores.”
“As pessoas estão todas a monte aqui à
frente no autocarro, quando há tantos lugares vagos lá atrás!”
“As pessoas agora não sabem nada de
História ou de Geografia de Portugal. No meu tempo sabíamos tudo de cor e
salteado.”
“As pessoas agora não querem trabalhar.
Preferem receber subsídio de desemprego.”
Como no nosso país criticar há muito que se transformou numa instituição nacional, quando ouvimos alguém usar “as pessoas” como sujeito de uma oração sabemos antecipadamente que vamos ter algo reprovativo. Em princípio não ofende ninguém em particular ou, visto de outro ângulo, atinge toda a gente, com clara e óbvia excepção de quem formula a censura, que se arvora em professor ou professora do povo: se pudesse, endireitaria este mundo e o outro. Infelizmente, não pode. À guisa de compensação, invectiva tudo e todos.
Se prestarmos atenção, encontraremos este quadro em muitos lados e em variadíssimas ocasiões. E se a nossa atenção for implacável, talvez nos encontremos também nós próprios a pintar esse quadro de “as pessoas”.
Depois de ler este artigo, uma pessoa tem perfeita consciência de que a gente não pode pactuar com a forma como as pessoas confundem expressões que aparentam ser sinónimos mas que afinal são utilizadas para fins bem distintos!
ResponderEliminarCurioso, depois de ler o texto parece evidente o que nele se diz. No entanto, nunca tinha pensado desta maneira, nem ouvido alguém desenvolver tal ideia. Muito interessante!
ResponderEliminarGostei muito.