10/26/2011

A lição dos clássicos


Onde quer que se vá nesta cidade de Lisboa, independentemente das pessoas com quem se esteja, a crise estará presente nas conversas, na maneira triste dos olhares que nos fitam, na lamúria que escapa ao mais leve trejeito. Francamente, sinto-me cansado e, como eu, muitos dos meus concidadãos. Não admira que os últimos textos que escrevi para este blog tenham exactamente sido sobre a crise. Intoxicados nós todos, escrevemos ou falamos para nos desintoxicar – esquecendo que com isso estamos a contribuir para uma maior intoxicação de quem nos lê ou ouve.
É por ter consciência deste facto que me sinto hoje particularmente feliz por ter assistido a algo bem diferente e, sem dúvida, muitíssimo mais interessante do que todo o palavreado político.
O que foi? Em princípio, seria apenas mais uma conferência do ciclo "Antiguidade versus Contemporaneidade", que as Sugestões do João Miguel não deixaram de assinalar. Semanalmente, à terça-feira no ISCTE, tenho assistido a conferências sobre Arquitectura, Pintura e Cinema. Desta vez era sobre Literatura. Como professor que leccionou montes de anos e que portanto tem uma ideia do que é uma boa aula, eu daria uma nota muito próxima de 20 valores à Dra. Maria Cristina Pimentel, da Faculdade de Letras. A sua mais-valia começou pela escolha do material, que teve o cuidado de mandar fotocopiar para todos os presentes. Depois, continuou pela forma simples e alegre, entusiástica e entusiasmante, como o apresentou. Falar dos clássicos do mundo da literatura e ver como eles são ou foram transportados para o mundo actual pode ser fastidioso. Nos tempos que correm, de mil tecnologias, de imagens por tudo e por nada, falar com e para uma assistência desconhecida sem praticamente nenhum dos inúmeros gadgets existentes implica um certo risco mas mostra a segurança de quem sabe construir uma empatia com os presentes e domina o assunto com excelência. Falar-nos com vivacidade de obras de Homero, de Vergílio, de Tácito, das Metamorfoses de Ovídio, repescando com singeleza e extraordinária facilidade imensas histórias da mitologia grega e romana, proporcionou à assistência uns surpreendentes "momentos" (aparentemente breve, a aula-conversa durou quase duas horas, mas ninguém olhava para o relógio).
Qual era a declarada intenção da oradora? Mostrar aos seus ouvintes o quanto perdem em numerosos poetas portugueses que eles estejam a ler, de António Ferreira e Camões a Correia Garção e Bocage, de Miguel Torga e Sophia a Eugénio de Andrade e Fiama, de Manuel Alegre e Nuno Júdice a José Mário Silva e Pedro Mexia, se não conhecerem com razoável detalhe o mundo clássico.
Passámos por histórias como a de Píramo e Tisbe (o Romeu e Julieta da antiguidade), a tragédia de Cassandra e o drama não menor de Dido e Eneias, ouvimos falar da maçã que Páris deu a Vénus e que se prolongou até aos nossos dias como "o pomo da discórdia", voltámos ao sempre interessante mito de Narciso, fizemos um desvio para recordar o Minotauro e o fio de Ariadne ("o fio da meada"), relembrámos Orfeu e Eurídice, Apeles, pintor oficial de Alexandre Magno, o suplício de Sísifo, as sereias que originalmente eram metade-mulher e metade-ave (o canto das aves), etc. etc.
Cristina Pimentel tem toda a razão. Sem conhecer em detalhe a mitologia clássica não se captam muitas das referências dos nossos poetas e prosadores. Lemos, olhamos, mas não vemos. Permito-me fazer a transcrição de uma composição recente de José Mário Silva, incluída nas notas que nos foram dadas:

Está na cozinha, a sopa ao lume, os pratos na
mesa, talheres para dois, como se ele viesse. Hoje.
Ele não volta, anda embarcado há muitos anos num
navio com sal e ferrugem nos porões. Mas ela espera,
sabe que ele pode chegar a qualquer momento. Às
vezes espreita a telenovela ou as ervas a crescer junto
ao muro do quintal. No resto do tempo, faz e desfaz
o mesmo naperon, para enganar as horas, o frio,
a solidão e um corpo esquecido do que é o amor.

Que título deu o autor à sua composição? Penélope, Meio-Dia. Quem não tiver presente a aliás bem conhecida história de Penélope entenderá o porquê do título e a razão do fazer e desfazer o naperon?
Aliás, num outro exemplo famoso, como se poderá entender completamente o Ulysses, de James Joyce (1922), sem ter lido a Odisseia, com as referências a Calipso, a Circe, a Cila e Caríbdis, a Ítaca, etc. (O quadro acima é de Primaticcio e representa Ulisses e Penélope.)

Por mera coincidência estou presentemente a ler um livro de George Steiner, onde ele faz significativas referências aos clássicos. Diz coisas cheias de interesse: "Eu defino um clássico, seja na literatura, na música, nas artes ou na filosofia, como uma forma significante que nos lê. Lê-nos mais do que nós o lemos. (…) De cada vez que entramos nele, o clássico questiona-nos. (…) O clássico perguntar-nos-á: "compreendeste?", "estás preparado para agir sobre as transformações, sobre as possibilidades de uma outra existência, mais enriquecida, que eu formulei?" (…) Enquanto "o atributo da vulgaridade, da obra efémera é precisamente o de poder ser classificada e compreendida de uma vez por todas" "o clássico esquiva-se a qualquer decidibilidade definitiva."

Valeu muito a pena ter ido à conferência. Apreciei imenso a qualidade de uma óptima profissional do ensino. Transmitiu mensagem. Eficientemente.

10/20/2011

À guisa de resposta a uma pergunta

Um "convidado" não imediatamente identificável, o que para o caso nada importa, formulou recentemente uma pergunta, que muito agradeço, na área reservada aos comentários a um texto meu ("Paraísos fiscais & Cª Ilimitada") publicado em 6/10: "Mas será que a riqueza de uns tem mesmo que gerar a pobreza de tantos? ou será apenas possível "à custa" da pobreza de tantos?" A questão levantada é interessante e, dado que o espaço reservado para comentários e respectivas respostas acaba por ser muito reduzido, resolvi ensaiar uma resposta num novo post:


Embora não se trate de um mero jogo de palavras, dizer que a riqueza de uns tem de gerar a pobreza de tantos ou afirmar que a riqueza de uns tantos será apenas possível à custa da pobreza de muitos acaba por incluir conceitos e factos que não andam muito distantes uns dos outros. Em meu entender, a famosa frase do século XIX que nos fala da "exploração do homem pelo homem" contém muito de verdade.
O rico tende a colocar-se num pedestal muito superior ao dos outros, pelo que também a sua ética tende a não ser a ética comum. Nos Estados Unidos, país em que desde sempre existiu um número significativo de homens riquíssimos, ainda hoje os ricos conferem a si próprios um estatuto social diferente. No século XIX, as teorias de Darwin sobre a evolução das espécies serviram-lhes às mil maravilhas na combinação entre religião e filosofia que lhes foi oferecida pelo pensador inglês Herbert Spencer. Como seria previsível, Spencer teve muito mais eco nos Estados Unidos do que na própria Inglaterra. Ao aplicar as teorias de Charles Darwin à sociedade, Spencer colocou os ricos no topo de uma pirâmide – o darwinismo social -, o que foi subtilmente associado ao protestantismo calvinista: ser rico é a prova de que se está nas boas graças de Deus. Os ricos habituaram-se a considerar-se mortais-imortais, já que podem continuar a viver após a morte através das fundações que criam. Eles podem assim continuar a influenciar o mundo após a sua morte. Cheira a imortalidade!
Esta é, aliás, uma das mais importantes razões que explicam a existência de tantos mecenas nos Estados Unidos, ajudados por uma fiscalidade que naturalmente os beneficia.
Quando, devido às lutas liberais em Portugal, Almeida Garrett se viu forçado a abandonar a pátria e a exilar-se em Inglaterra, ele apercebeu-se bem do que era a exploração, por ele descrita nas suas Viagens na Minha Terra de forma contundente: "Andai, ganha-pães, andai: reduzi tudo a cifras, todas as considerações deste mundo a equações de interesse corporal, comprai, vendei, agiotai. No fim de tudo isto, o que lucrou a espécie humana? Que há mais umas poucas dúzias de homens ricos. E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico?"
Ou seja: segundo Garrett, os ricos geram pobreza e vivem à custa dos pobres. Nos países nórdicos da Europa, como se pode ver através do índice de Gini e dados estatísticos de diversa ordem, existe uma maior igualdade e uma consciência social que impede a existência das percentagens elevadas de pobres que se vêem noutros países ditos desenvolvidos. Os religiosos desses países acreditam num Deus justo e justiceiro. Em inglês bíblico diz-se God giveth, and God taketh away; em Portugal, país católico, o que se ouve frequentemente é algo muito diferente: "Quem dá e torna a tirar, ao inferno vai parar".

Constatamos aqui a existência de duas atitudes diferentes perante a vida e perante Deus. Do Deus justiceiro dos países protestantes, que pode dar mas depois pode igualmente tirar se a pessoa não se mostrar, através do seu comportamento, à altura do que lhe foi concedido, passamos por assim dizer à mentalidade dos direitos adquiridos para sempre. Quanto ao papel do Deus católico, quero crer que ele é, por assim dizer, visto como o de um passa-culpas, que perdoa através da confissão feita por um representante seu na Terra – um padre - os pecados que vão sendo cometidos pelos humanos. Daqui derivam duas atitudes bem distintas: uma maior responsabilização do lado protestante, com a consciência de cada um a desempenhar um papel importante; e, do lado católico, uma francamente maior desresponsabilização e um facilitismo mais abrangente. Estamos assim em presença (aqui simplificada) de dois modos de ver o mundo, que depois se reflectem substancialmente no comportamento, na produtividade do trabalho, na iniciativa e inovação e até na honestidade das pessoas para com os seus concidadãos.
Vejamos ainda um outro aspecto nada despiciendo: os media. Eles constituem um verdadeiro poder, como todos sabemos. Influenciam iniludivelmente a opinião pública. Manipulam notícias e não raramente oferecem informações e visões truncadas daquilo que se passa. De governo para governo em países que respeitem eleições democráticas, os meios de comunicação social regra geral mantêm-se. Ora, para que uma revolução dos mais fracos tenha sucesso, algo que é fundamental é o domínio imediato dos órgãos de comunicação. Se os media continuam nas mãos dos ricos, que são os seus habituais proprietários, a revolução acaba mais tarde ou mais cedo por soçobrar.
Para continuarmos um pouco mais este arrazoado, onde de resto caberia este mundo e o outro, veja-se o caso actual dos Estados Unidos, conforme analisado no artigo da Time por Jeffrey D. Sachs, com a exploração que os ricos vêm fazendo do restante da população. Com uma pitada de óbvio exagero, a sociedade americana presentemente em revolta (os Occupy Wall Street, por exemplo, que já tem mais adeptos do que o Tea Party) adoptou um determinado número: o 99. Representa 99 por cento. Porquê? Porque simbolicamente deixa 1 por cento para os ricos e vê que eles mesmo assim dominam a sociedade dado que a diferença material entre ambas as partes é abissal.
Por mero acaso, o último número da mencionada Time, publicação que é propriedade maioritária de pessoas ricas e influentes dos Estados Unidos, traz na capa em grandes letras o seguinte título: Why the U.S. will never save Afghanistan. As perguntas que um europeu normal colocará são relativamente simples: "E porque é que os Estados Unidos deveriam salvar o Afeganistão? Será que o Afeganistão pediu para ser salvo? E salvo de quê? Não estaremos a ver nos Estados Unidos apenas a aplicação do clássico conceito germânico do Lebensraum, i.e. espaço vital, que "força" os Estados Unidos a aumentar o espaço que possuem na América para apanhar grande parte do mundo? A chamada globalização não será a expressão prática desse conceito e desejo?"
E por que razão sentem os Estados Unidos que devem ser os salvadores do mundo, incluindo naturalmente o Afeganistão? Porque eles são a Nova Jerusalém, o país do Superhomem, do Rambo, do Batman, heróis de ficção que poderão ter tido as suas primeiras grandes aventuras dentro do espaço norte-americano, mas que há muito passaram para Paris, para a Ásia e para todos os locais que para eles sejam fonte de injustiça, i.e. não partilhem das ideias queridas à parcela abastada e mais influente da sociedade americana. São heróis que vão na senda desse outro mais antigo herói Tarzan, símbolo da "indiscutível" superioridade do homem branco na África negra.
Na verdade, existe uma diferença substancial entre explorar o território nacional, embora este território seja enorme no caso dos Estados Unidos, e explorar todo o mundo. A alegação feita pelos ricos através dos seus lobbies mediáticos é a oposta à noção de exploração, como seria de prever: contrariamente aos que pensam que a América está a explorar pessoas, ela está a salvar milhões de pobres da pobreza extrema.
Na realidade, ao colocarem a salvo muitos dos seus lucros em fundos geridos por companhias offshore que baralham os fiscos nacionais, os ricos descapitalizam os Estados em que nasceram e com isso contribuem grandemente para afundar os seus países, i.e. acabam por gerar mais pobres. A ética neste caso preocupa-os pouco, porque a sua classe está à parte de todas as outras e não tem que respeitar os tribunais normais. A sua justiça especial é divina. É que eles estão nas boas graças de Deus, como a sua fortuna comprovadamente atesta.
Ora, o que torna dificilmente suportável o comportamento ou porte dos ricos é o facto de eles se auto-alcandorarem a um patamar que os isenta do cumprimento de obrigações, legais mas também éticas, que são em princípio válidas para todos os membros da sociedade. Através do seu poder material, financiam partidos, colocam nos governos homens e mulheres da sua cor, navegam praticamente em quaisquer águas. Financiam o oceano em que os seus barcos singram, exactamente para com isso conseguirem que a sua fortuna e poder aumentem e, com isso, cresça a décalage que nas suas mentes existe relativamente ao cidadão médio.
Ora, isto que é afinal de todos os tempos, está presentemente a chegar a um extremo tal que perverte de maneira quase insanável a própria democracia e acaba, pela sua crueldade, por minar toda a sociedade. A livre expressão que hoje se vive por meio da Internet permite, por um lado, dar voz a sentimentos que de outra forma ficariam apenas contidos no íntimo das pessoas; mas, por outro, fornece dados que possibilitam a avaliação do grau de revolta que invade uma camada substancialmente representativa da população.
O clássico slogan americano dos anos 70 – "Os pobres não estão contra os ricos. Querem apenas ser tão ricos como eles" – foi uma mensagem inteligente num país capitalista como os Estados Unidos. Transformar a riqueza em desígnio de vida constitui sempre um contra-argumento de peso para todos aqueles que a odeiam. Além disso, combate a inveja, transferindo o ónus para os pobres e ilibando os possuidores de grandes fortunas. Contudo, hoje em dia, é uma mensagem que já não pega, da mesma forma que muitos anúncios publicitários das décadas de 60, 70, e mesmo 80 ou 90 do século passado são presentemente já irrepetíveis e teriam possivelmente um efeito de boomerang.
A sociedade está em grande transformação. Em minha opinião, faz cada vez mais sentido um aviso que o católico e inteligente António Guterres nos deixou há uns anos: "Os ricos devem tratar dos pobres, para que não sejam os pobres a tratar dos ricos."

10/16/2011

Poesia de A a Z

Para a letra L, a dificuldade da escolha entre os lindíssimos poemas da poetisa angolana Alda Lara. Como possivelmente recordarão, este "Testamento" foi cantado por Teresa Tarouca.


TESTAMENTO

À prostituta mais nova
do bairro mais velho e escuro,
deixo os meus brincos, lavrados
em cristal, límpido e puro...

E àquela virgem esquecida
rapariga sem ternura,
sonhando algures uma lenda,
deixo o meu vestido branco,
o meu vestido de noiva,
todo tecido de renda...

Este meu rosário antigo
ofereço-o àquele amigo
que não acredita em Deus...

E os livros, rosários meus
das contas de outro sofrer,
são para os homens humildes,
que nunca souberam ler.

Quanto aos meus poemas loucos,
esses, que são de dor
sincera e desordenada...
esses, que são de esperança,
desesperada mas firme,
deixo-os a ti, meu Amor...

Para que, na paz da hora,
em que a minha alma venha
beijar de longe os teus olhos,
vás por essa noite fora...
com passos feitos de lua,
oferecê-los às crianças
que encontrares em cada rua...

10/15/2011

É fácil, é seguro, e dá milhões

Quase quarenta anos depois da Revolução de Abril, da esperança, da liberdade e dos cravos floridos, eis que surge a Revolução do Cravo Murcho. Está a ocorrer neste momento.
Quando, anteontem, o Primeiro-Ministro foi ler aos microfones da televisão e da rádio um comunicado relativo às linhas gerais a seguir no Orçamento para 2012, muitas pessoas aguardavam com ansiedade as medidas que o Governo iria tomar. Onde se iria cortar nas gorduras do Estado, tópico que o próprio PM tinha referido ainda como membro da oposição, era a expectativa número um. Milhares de portugueses que trocam entre si mails através da Internet tinham já expressado as suas preferências: organismos públicos que ninguém percebe para o que servem a não ser para receberem filiados em partidos, frotas de automóveis topo de gama a que políticos e determinados juízes têm direito, escandalosos pagamentos extra por serviços, fundações largamente subsidiadas pelo Estado, etc. Cortar na despesa e na consequente eliminação de gorduras seria aqui. E se não fosse?
Não foi. O ponto de vista do Governo não é necessariamente o do cidadão comum. Numa acção desta ordem, o Governo actuou de uma forma que me lembrou a guerra colonial em que participei. Durante esse período verifiquei amiúde que os guerrilheiros nossos inimigos nunca escolhiam sítios planos, nos quais tenderiam a perder no confronto. Eram sempre pequenas colinas que lhes serviam de local para lançar os seus ataques. Essas pequenas colinas serviam-lhes um propósito triplo:

1. O alvo que buscavam – as nossas tropas – era fácil de atingir.
2. O ataque era seguro, uma vez que podiam fugir pela contra-encosta e embrenhar-se na mata.
3. Quanto à eficácia, essa dependia da pontaria dos atiradores.

Não foi mais do que estes mesmos princípios que o Governo português usou no Orçamento para 2012: facilidade, segurança, eficácia. Ao concentrar o seu objectivo no funcionalismo público e nos pensionistas – aí incluindo também os da Segurança Social e não só os da Caixa Geral de Aposentações -, o Governo está na sua coutada. Tanto os pagamentos aos funcionários no activo como aos pensionistas dependem dele. É fácil atirar sobre este alvo, composto na sua esmagadora maioria por sitting ducks.
A segurança é total, ou quase. Só as forças militares e para-militares podem organizar manifestações de protesto, mas ao procurarem ficar de fora das medidas de sacrifício que também lhes são exigidas acabarão por sobressair como reclamantes de privilégios, o que não cairá nada bem junto de todos os restantes que são sacrificados.
E quanto a eficácia, estamos conversados. O Estado poupa, do lado da despesa e sem cobrar impostos, uma grossa maquia, superior a 3 biliões de euros. É que haverá aproximadamente 950 mil portugueses que ficarão em 2012 e 2013 (e depois?) sem o 13º e o 14º mês na totalidade; a acrescentar a estes, há cerca de 500 mil que sofrerão em média cortes parciais na ordem dos 50 por cento. Os funcionários públicos no activo serão ainda afectados por um corte médio de 5% nos seus salários. Para quem ganha acima de 1000 euros, o corte nos seus vencimentos anuais ascende a 14,2%.
Neste blog falou-se várias vezes na impossibilidade de desvalorização da moeda. Antigamente, com o escudo, era prática corrente proceder-se a desvalorizações. A desvalorização ajudava a competitividade das empresas e do Estado em matéria de exportações e de turismo, facto que era largamente propagandeado pelos serviços públicos. O extraordinário destas desvalorizações era o facto de elas provocarem muito poucas ondas, embora o seu impacto fosse enorme nos produtos importados e, consequentemente, nos preços. Uma das razões, creio, era o facto de que as desvalorizações atingiam a todos aparentemente por igual: os escudos do juiz e do político passavam a valer menos, tal como os escudos do operário. Se o político ou o juiz possuíam fundos noutras moedas, isso não era do domínio público.
Como é óbvio, as pensões de reforma eram igualmente atingidas. Isso mesmo sabiam os governantes, que por vezes elevavam os vencimentos dos funcionários públicos – sempre uma grande massa de eleitores – antes das eleições, baixando-os alguns meses depois através da desvalorização da moeda. Ora, como presentemente o Estado não podia fazer isso, estava a braços com um problema sério: o peso das reformas não só se mantinha, como aumentava devido ao número sempre crescente de reformados. Já agora: nos anos de 1977 e de 1983, a desvalorização que o escudo sofreu cifrou-se respectivamente em 15 e 14 por cento. Não será que os 14, 2% agora registados estão dentro dos mesmos parâmetros?
Para finalizar, perguntar-se-á: e os ricos? Porque ficam eles de fora? Bem, lembremo-nos da história dos guerrilheiros africanos e dos seus princípios básicos: facilidade, segurança e eficácia. Os ricos têm o seu dinheiro a bom recato, longe da vista dos guerrilheiros e demasiado envolvido em engenhosas manobras de manipulações monetárias em offshores para que seja fácil chegar lá. Logo…
E quanto aos Amorins, os Belmiros e os Soares dos Santos? Os dois últimos, ligados ao comércio de produtos alimentares, não se cansam de exaltar em anúncios publicitários a sua patriótica escolha de produtos portugueses de qualidade. Porém, como as taxas fiscais são substancialmente mais baixas em determinados países europeus, como a Holanda e a Irlanda, é nesses países que pagam os seus impostos, obviamente descapitalizando o Estado português e beneficiando os seus homónimos estrangeiros. Como diz o anúncio do Pingo Doce: "Sabe bem pagar tão pouco!" Apetece-me parafrasear Fernando Pessoa, e espero que ele me perdoe: "Meu dinheiro é a minha pátria."

10/13/2011

Quando um olho vale por mil

"Olho por olho" é uma velha referência da bíblia judaica, que tem a ver com o sentido de justiça: o ofendido deve ter direito a uma compensação idêntica à natureza da ofensa que sofreu. É a pena de talião. Relativamente às relações entre israelitas e palestinianos, temos assistido nas últimas décadas a uma supremacia tão díspar dos israelitas, seja a nível militar, seja em termos económicos e outros, que qualquer ofensiva dos israelitas tem causado muitas mortes mais e destruição de casas entre os palestinianos do que o inverso.
É neste sentido que em certa medida se estranha agora o anúncio de um acordo sobre troca de prisioneiros entre Israel e o Hamas para devolver a liberdade ao soldado israelita Gilad Shalit, que foi capturado por um comando palestiniano há mais de cinco anos – em Junho de 2006 - e que Israel não conseguiu, apesar de várias tentativas, recuperar até agora. Entretanto, a libertação de Shalit tornou-se uma causa nacional em Israel.
Em troca, vão ser libertados das prisões israelitas 1027 palestinianos (1000 homens e 27 mulheres). Os prisioneiros serão soltos em duas tranches: na primeira chegarão à Palestina 450; os restantes sairão dentro de aproximadamente dois meses. Como continuarão palestinianos nas prisões de Israel e só o soldado Shalit é reclamado, ficamos a saber que detidos israelitas em território palestiniano não existem, enquanto actualmente é bem superior a um milhar o número de prisioneiros palestinianos em Israel.
Entretanto, tendo por fundo o que se tem passado com o pedido à ONU do reconhecimento do Estado palestiniano, agora já sem o apoio declarado de Obama e com a direita israelita a condenar vivamente o acordo – "Os jovens palestinianos aprendem que podem matar judeus e ser libertados por via de uma negociata" – fiquemos atentos aos acontecimentos que provavelmente se vão seguir.

10/06/2011

Paraísos fiscais & Cª Ilimitada

Traduzo livremente do último número da revista TIME a introdução a um artigo intitulado Why America must revive its middle class:

"A América foi outrora a grande sociedade da classe média. Presentemente, está dividida entre ricos e pobres e conta com a maior desigualdade entre os países democráticos mais desenvolvidos. Um por cento das suas famílias mais ricas são detentoras de quase um quarto do rendimento de todas as famílias americanas – uma percentagem que não se via nos Estados Unidos desde a Grande Depressão de 1929. Uma economia assim tão desequilibrada não pode prosperar. Os pobres e as classes trabalhadoras estão esmagados. Os ricos estão cada vez mais desprendidos dos problemas do país. As suas empresas vendem produtos e externalizam empregos na China; as suas residências erguem-se atrás de muros altos; muitos dos seus lucros empresariais ficam domiciliados em paraísos fiscais."

O autor, Jeffrey D. Sachs, autor de um livro recente intitulado The Price of Civilization, é director do Instituto da Terra da Universidade de Colúmbia e conselheiro especial do Secretário-Geral das Nações Unidas.

Nada há de verdadeiramente novo nesta análise feita por J. D. Sachs, mas tenho de considerá-la uma síntese muito conseguida. A globalização, a deslocalização dos empregos para países asiáticos e a retenção de grande parte dos lucros em offshores tinham necessariamente de causar desemprego no Ocidente e consequente empobrecimento das populações. Refira-se que foi em 1973 que os salários médios americanos atingiram o seu nível mais elevado. Daí para cá têm vindo gradualmente a baixar, embora os vencimentos dos CEOs das grandes empresas, eles que trataram dos despedimentos, tenham aumentado muito. E quanto à colecta de impostos pelo Estado norte-americano, ninguém estranhará que ela tenha diminuído. Os paraísos fiscais, esses centros que são verdadeiros cancros da democracia, fizeram, entre outras coisas, com que presentemente o rácio colecta fiscal dos EUA / Produto Interno Bruto se situe muito abaixo do da Dinamarca, da Itália, Bélgica, Finlândia, Áustria, França, Noruega, Alemanha, etc. e mais sete países, entre eles a Espanha e a Irlanda. O clássico ideal americano de "rico e virtuoso" anda pelas ruas da amargura.

Neste brevíssimo apontamento, não posso deixar de mencionar aqui no blog o recentíssimo lançamento do livro Suite 605, da autoria de João Pedro Martins. É uma obra de investigação sobre o offshore da Madeira, mas vai muito além da análise daquilo que se passa nessa parcela do território nacional. A não perder por quem se interessa por este tipo de temas. É muito actual, com múltiplos dados e referências ao ano em que estamos, 2011.

10/04/2011

Mar calmo



Embora não seja amante do calor e prefira o fresco, acho que concordo com todos aqueles que se queixaram este ano de um Agosto pouco veraneoso. Mesmo os que rumaram ao Algarve lamentaram um tempo pouco consentâneo com a fama que o mês de Agosto ostenta.
Eis senão quando, Setembro surgiu mascarado de Agosto e brindou-nos com temperaturas inesperadas. O que é mais: Outubro prossegue na mesma senda. Temperaturas acima dos 30 º C têm sido perfeitamente comuns. Como ainda por cima não tem havido vento, quem vive na costa ou lá vai passar uns fins-de-semana consegue desfrutar de manhãs, tardes e noites de sonho, calmas e quentes.
A minha surpresa foi grande quando há dias, na praia que frequento desde miúdo e onde o mar, tipicamente Oceano Atlântico de ondas altas e fortes, me mandou muitas vezes de volta para terra verdadeiramente de escantilhão e me fez inadvertidamente beber uns tantos pirolitos bem salgados e não solicitados, encontrei aquela imensa massa de água literalmente como se tivesse sido passada a ferro. Dois homens faziam calmamente aquilo que eu suponho ser paddling, de pé sobre as não-ondas, gozando as delícias de um fim-de-tarde que é outonal apenas pelo calendário.
A memória levou-me num ápice até à imagem de um rio de Angola que conheci bem, o Cuanza, onde os indígenas ximbicavam de pé, dentro das suas canoas. A grande diferença entre os dois locais, pareceu-me na altura, era que, ao contrário do rio, o mar não tem margens que o encaixem. Praticamente sem limites e com aquela calmaria toda mesmo depois das habituais marés vivas de Setembro!