10/20/2011

À guisa de resposta a uma pergunta

Um "convidado" não imediatamente identificável, o que para o caso nada importa, formulou recentemente uma pergunta, que muito agradeço, na área reservada aos comentários a um texto meu ("Paraísos fiscais & Cª Ilimitada") publicado em 6/10: "Mas será que a riqueza de uns tem mesmo que gerar a pobreza de tantos? ou será apenas possível "à custa" da pobreza de tantos?" A questão levantada é interessante e, dado que o espaço reservado para comentários e respectivas respostas acaba por ser muito reduzido, resolvi ensaiar uma resposta num novo post:


Embora não se trate de um mero jogo de palavras, dizer que a riqueza de uns tem de gerar a pobreza de tantos ou afirmar que a riqueza de uns tantos será apenas possível à custa da pobreza de muitos acaba por incluir conceitos e factos que não andam muito distantes uns dos outros. Em meu entender, a famosa frase do século XIX que nos fala da "exploração do homem pelo homem" contém muito de verdade.
O rico tende a colocar-se num pedestal muito superior ao dos outros, pelo que também a sua ética tende a não ser a ética comum. Nos Estados Unidos, país em que desde sempre existiu um número significativo de homens riquíssimos, ainda hoje os ricos conferem a si próprios um estatuto social diferente. No século XIX, as teorias de Darwin sobre a evolução das espécies serviram-lhes às mil maravilhas na combinação entre religião e filosofia que lhes foi oferecida pelo pensador inglês Herbert Spencer. Como seria previsível, Spencer teve muito mais eco nos Estados Unidos do que na própria Inglaterra. Ao aplicar as teorias de Charles Darwin à sociedade, Spencer colocou os ricos no topo de uma pirâmide – o darwinismo social -, o que foi subtilmente associado ao protestantismo calvinista: ser rico é a prova de que se está nas boas graças de Deus. Os ricos habituaram-se a considerar-se mortais-imortais, já que podem continuar a viver após a morte através das fundações que criam. Eles podem assim continuar a influenciar o mundo após a sua morte. Cheira a imortalidade!
Esta é, aliás, uma das mais importantes razões que explicam a existência de tantos mecenas nos Estados Unidos, ajudados por uma fiscalidade que naturalmente os beneficia.
Quando, devido às lutas liberais em Portugal, Almeida Garrett se viu forçado a abandonar a pátria e a exilar-se em Inglaterra, ele apercebeu-se bem do que era a exploração, por ele descrita nas suas Viagens na Minha Terra de forma contundente: "Andai, ganha-pães, andai: reduzi tudo a cifras, todas as considerações deste mundo a equações de interesse corporal, comprai, vendei, agiotai. No fim de tudo isto, o que lucrou a espécie humana? Que há mais umas poucas dúzias de homens ricos. E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico?"
Ou seja: segundo Garrett, os ricos geram pobreza e vivem à custa dos pobres. Nos países nórdicos da Europa, como se pode ver através do índice de Gini e dados estatísticos de diversa ordem, existe uma maior igualdade e uma consciência social que impede a existência das percentagens elevadas de pobres que se vêem noutros países ditos desenvolvidos. Os religiosos desses países acreditam num Deus justo e justiceiro. Em inglês bíblico diz-se God giveth, and God taketh away; em Portugal, país católico, o que se ouve frequentemente é algo muito diferente: "Quem dá e torna a tirar, ao inferno vai parar".

Constatamos aqui a existência de duas atitudes diferentes perante a vida e perante Deus. Do Deus justiceiro dos países protestantes, que pode dar mas depois pode igualmente tirar se a pessoa não se mostrar, através do seu comportamento, à altura do que lhe foi concedido, passamos por assim dizer à mentalidade dos direitos adquiridos para sempre. Quanto ao papel do Deus católico, quero crer que ele é, por assim dizer, visto como o de um passa-culpas, que perdoa através da confissão feita por um representante seu na Terra – um padre - os pecados que vão sendo cometidos pelos humanos. Daqui derivam duas atitudes bem distintas: uma maior responsabilização do lado protestante, com a consciência de cada um a desempenhar um papel importante; e, do lado católico, uma francamente maior desresponsabilização e um facilitismo mais abrangente. Estamos assim em presença (aqui simplificada) de dois modos de ver o mundo, que depois se reflectem substancialmente no comportamento, na produtividade do trabalho, na iniciativa e inovação e até na honestidade das pessoas para com os seus concidadãos.
Vejamos ainda um outro aspecto nada despiciendo: os media. Eles constituem um verdadeiro poder, como todos sabemos. Influenciam iniludivelmente a opinião pública. Manipulam notícias e não raramente oferecem informações e visões truncadas daquilo que se passa. De governo para governo em países que respeitem eleições democráticas, os meios de comunicação social regra geral mantêm-se. Ora, para que uma revolução dos mais fracos tenha sucesso, algo que é fundamental é o domínio imediato dos órgãos de comunicação. Se os media continuam nas mãos dos ricos, que são os seus habituais proprietários, a revolução acaba mais tarde ou mais cedo por soçobrar.
Para continuarmos um pouco mais este arrazoado, onde de resto caberia este mundo e o outro, veja-se o caso actual dos Estados Unidos, conforme analisado no artigo da Time por Jeffrey D. Sachs, com a exploração que os ricos vêm fazendo do restante da população. Com uma pitada de óbvio exagero, a sociedade americana presentemente em revolta (os Occupy Wall Street, por exemplo, que já tem mais adeptos do que o Tea Party) adoptou um determinado número: o 99. Representa 99 por cento. Porquê? Porque simbolicamente deixa 1 por cento para os ricos e vê que eles mesmo assim dominam a sociedade dado que a diferença material entre ambas as partes é abissal.
Por mero acaso, o último número da mencionada Time, publicação que é propriedade maioritária de pessoas ricas e influentes dos Estados Unidos, traz na capa em grandes letras o seguinte título: Why the U.S. will never save Afghanistan. As perguntas que um europeu normal colocará são relativamente simples: "E porque é que os Estados Unidos deveriam salvar o Afeganistão? Será que o Afeganistão pediu para ser salvo? E salvo de quê? Não estaremos a ver nos Estados Unidos apenas a aplicação do clássico conceito germânico do Lebensraum, i.e. espaço vital, que "força" os Estados Unidos a aumentar o espaço que possuem na América para apanhar grande parte do mundo? A chamada globalização não será a expressão prática desse conceito e desejo?"
E por que razão sentem os Estados Unidos que devem ser os salvadores do mundo, incluindo naturalmente o Afeganistão? Porque eles são a Nova Jerusalém, o país do Superhomem, do Rambo, do Batman, heróis de ficção que poderão ter tido as suas primeiras grandes aventuras dentro do espaço norte-americano, mas que há muito passaram para Paris, para a Ásia e para todos os locais que para eles sejam fonte de injustiça, i.e. não partilhem das ideias queridas à parcela abastada e mais influente da sociedade americana. São heróis que vão na senda desse outro mais antigo herói Tarzan, símbolo da "indiscutível" superioridade do homem branco na África negra.
Na verdade, existe uma diferença substancial entre explorar o território nacional, embora este território seja enorme no caso dos Estados Unidos, e explorar todo o mundo. A alegação feita pelos ricos através dos seus lobbies mediáticos é a oposta à noção de exploração, como seria de prever: contrariamente aos que pensam que a América está a explorar pessoas, ela está a salvar milhões de pobres da pobreza extrema.
Na realidade, ao colocarem a salvo muitos dos seus lucros em fundos geridos por companhias offshore que baralham os fiscos nacionais, os ricos descapitalizam os Estados em que nasceram e com isso contribuem grandemente para afundar os seus países, i.e. acabam por gerar mais pobres. A ética neste caso preocupa-os pouco, porque a sua classe está à parte de todas as outras e não tem que respeitar os tribunais normais. A sua justiça especial é divina. É que eles estão nas boas graças de Deus, como a sua fortuna comprovadamente atesta.
Ora, o que torna dificilmente suportável o comportamento ou porte dos ricos é o facto de eles se auto-alcandorarem a um patamar que os isenta do cumprimento de obrigações, legais mas também éticas, que são em princípio válidas para todos os membros da sociedade. Através do seu poder material, financiam partidos, colocam nos governos homens e mulheres da sua cor, navegam praticamente em quaisquer águas. Financiam o oceano em que os seus barcos singram, exactamente para com isso conseguirem que a sua fortuna e poder aumentem e, com isso, cresça a décalage que nas suas mentes existe relativamente ao cidadão médio.
Ora, isto que é afinal de todos os tempos, está presentemente a chegar a um extremo tal que perverte de maneira quase insanável a própria democracia e acaba, pela sua crueldade, por minar toda a sociedade. A livre expressão que hoje se vive por meio da Internet permite, por um lado, dar voz a sentimentos que de outra forma ficariam apenas contidos no íntimo das pessoas; mas, por outro, fornece dados que possibilitam a avaliação do grau de revolta que invade uma camada substancialmente representativa da população.
O clássico slogan americano dos anos 70 – "Os pobres não estão contra os ricos. Querem apenas ser tão ricos como eles" – foi uma mensagem inteligente num país capitalista como os Estados Unidos. Transformar a riqueza em desígnio de vida constitui sempre um contra-argumento de peso para todos aqueles que a odeiam. Além disso, combate a inveja, transferindo o ónus para os pobres e ilibando os possuidores de grandes fortunas. Contudo, hoje em dia, é uma mensagem que já não pega, da mesma forma que muitos anúncios publicitários das décadas de 60, 70, e mesmo 80 ou 90 do século passado são presentemente já irrepetíveis e teriam possivelmente um efeito de boomerang.
A sociedade está em grande transformação. Em minha opinião, faz cada vez mais sentido um aviso que o católico e inteligente António Guterres nos deixou há uns anos: "Os ricos devem tratar dos pobres, para que não sejam os pobres a tratar dos ricos."

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