1/29/2011

History in the Making

Os acontecimentos que vêm ocorrendo desde há algumas semanas no mundo muçulmano, com o seu algo inesperado início na turística Tunísia, constituem verdadeiros casos de história que se está a desenrolar ante os nossos olhos. É um facto que não estamos nos locais onde esses acontecimentos têm lugar, nem temos a consciência vivida do que os ocasiona. Mas não creio que seja muito difícil imaginar, nas suas grandes linhas, do que se trata.
Quem já visitou alguns destes países, v.g. Marrocos, Argélia, Egipto, constatou a existência de vastas massas de população com problemas económicos, para não dizer situações de grande pobreza. Os salários são geralmente baixos. A taxa de desemprego na esfera da juventude chega a atingir números superiores a vinte por cento (30 por cento na Tunísia, 20 por cento na Argélia, 30 por cento na Mauritânia, 35 por cento no Iémen). Ora, a juventude é, por natureza, mais ambiciosa do que a velhice; além disso, o esforço de alguns desses países na educação oferece aspectos positivos, como seria de esperar, mas origina igualmente a acumulação de muitas frustrações por falta de empregos. Basta perguntarmo-nos: por que razão surgem tantos muçulmanos na Europa?
Por outro lado, a história de Ben Ali e da sua mulher Leila Trabelsi na Tunísia está longe de ser única. Forma-se um clan – não ouso dizer elite - de pessoas super-ricas, que esbanjam rios de dinheiro em extravagâncias de vária ordem, enquanto a esmagadora maioria da população padece de inúmeras carências. A religião pode ajudar, mas o factor concreto de dificuldades monetárias na alimentação, na habitação, nos estudos e nos cuidados médicos acaba por impor-se e conduzir, mais tarde ou mais cedo, à revolta. Revolta que pode ser subjugada ou sair vencedora.
O Ocidente, com a acção de antigos países colonizadores, como a França e a Itália, e certamente com a omnipresença de grandes potências económicas como os Estados Unidos e a Alemanha, tem largas culpas no cartório, especialmente pelos lucros que pretende auferir através da exploração de mão-de-obra barata. E é o Ocidente, mais preocupado com os seus próprios interesses do que com a situação dos povos, que por vezes tem conseguido manter no poder ao longo dos anos alguns dos líderes, na exacta medida em que eles são complacentes com a maioria das suas pretensões.
Em muitos casos, como diz um recente artigo da revista Newsweek, as famílias que estão no poder regem-se menos pelos princípios da Magna Carta e mais pelos da Cosa Nostra. Para além de desmandos financeiros de toda a ordem, a vida que os privilegiados levam, as casas e os carros que ostentam, choca a grande maioria da população. Não é raro que surjam problemas, como um que alegadamente ocorreu com um sobrinho da mulher de Ben Ali, que terá mandado furtar um iate na costa da Córsega, iate esse que semanas depois entrou num porto tunisino já com outra cor e com novos documentos de registo. Porém, como o dito iate pertencia ao Presidente de um banco de investimentos francês, amigo de Sarkozy, foi naturalmente recuperado e o caso abafado. São estas também as cumplicidades do Ocidente.
Presentemente, vemos a história a fazer-se. Com os Wikileaks a terem a sua quota-parte. Como será daqui a uns tempos? Sempre que penso em entrar na futurologia, saio. Rapidamente. Recordo-me do clássico provérbio japonês que nos diz que quando os homens se põem a adivinhar o futuro, os corvos começam a rir. Seja como for, este não é um conjunto qualquer de países. Nele se inclui a Arábia Saudita, por exemplo, que está entre os maiores produtores de petróleo do mundo, e a Líbia, igualmente grande produtora de petróleo. Aliás, a Liga Árabe, que inclui 22 países membros, é de longe o maior produtor mundial de petróleo. A possibilidade de, a seguir à Tunísia, o Egipto ter também sérios problemas, é grande. O facto de o actual Presidente, Mubarak, que ocupa o seu posto há 30 anos, querer que seja um dos seus filhos a suceder-lhe, de há muito que causa grande irritação no país.
Como o petróleo é essencial nos transportes e num meio-mundo de produtos vários, a economia mundial tende a desestabilizar-se. É a altura para uns poucos fazerem grandes fortunas e os muitos restantes sofrerem com o aumento do custo de vida e consequentes dificuldades. É uma história que nos toca, eventualmente com lições que eles e nós devemos aprender. Mas o homem não aprende facilmente lições deste tipo.

1/28/2011

Cine Paraíso

1/23/2011

Poder e Autoridade

(No dia em que os portugueses vão às urnas para eleição do Presidente da sua República.)

Há quem confunda poder com autoridade. É mesmo possível que seja uma maioria a fazê-lo. Contudo, embora geralmente a autoridade represente poder, os dois conceitos estão longe de ser idênticos.

O grande problema da classe política portuguesa nos dias de hoje é a sua falta de autoridade. Ela desacreditou-se a si mesma através de anos e anos de incompetência, facilitismo, partidarite, corrupção, nepotismo, ética de favores em vez da correcta ética de valores, enviesamento da justiça. As excepções são isso mesmo: excepções.

A classe política tem, sem dúvida, um poder legítimo que lhe é proporcionado pelo voto dos eleitores. Contudo, o seu poder não significa que ela possua autoridade. Não consegue captar a confiança do povo. Daí o não conseguir liderar nenhum processo de união. O desrespeito que a população lhe vota é-lhe fatal. Ela cavou a sua própria cova.

1/19/2011

As 7 Partidas do Mundo - Versão Século XXI


No já remoto ano de 1392 nasceu em Portugal o Infante D. Pedro, como quarto filho do casal constituído por D. João I e pela inglesa D. Filipa de Lencastre. Pertenceu à chamada Ínclita Geração, um naipe singular de príncipes que se cotaram sem dúvida como os mais famosos da nossa História. O Infante D. Pedro era irmão de D. Duarte, que foi rei. O seu irmão Henrique, cognominado o Navegador, tornou-se uma das figuras mais conhecidas a nível mundial. Os irmãos D. João e D. Fernando, este último "o mártir de Marrocos", são menos populares. Igualmente pouco conhecida em Portugal foi talvez a sua irmã D. Isabel, que no entanto casou com o homem que na altura era o mais rico da cristandade – o Duque de Borgonha. Isabel tornou-se bem célebre fora de portas como duquesa e mãe do célebre Carlos, o Temerário.
Mas voltemos a D. Pedro. Como ele não era o filho primogénito e tinha recebido uma esmerada educação, ainda antes de casar cumpriu um grande desejo seu: viajar. E pela Europa fora ele viajou, visitando cortes europeias, entre elas naturalmente a da sua irmã Isabel. Viajou durante dez anos, entre 1418 e 1428, portanto entre os seus 26 e 36 anos de idade. Além da Europa, foi à Terra Santa. Na longínqua Hungria foi agraciado pelo Imperador Segismundo com a Ordem de Cavalaria Imperial e Régia do Dragão, uma Ordem que no seu nome em latim se intitulava Draconis Equitas Societas Imperatur et Regis. Das iniciais deste longo título latino retirou o Infante D. Pedro o lema que escolheu para a sua vida: Desir. Desejo de conhecer, de ver mais, de viajar.
Porque conheceu tantas terras que para a maioria das pessoas não passavam então de meros nomes no mapa, Pedro foi apodado de O Infante das Sete Partidas do Mundo. Terá sido um bocadinho de exagero, mas a verdade é que Pedro estava no caminho certo: sempre incentivou o seu mano Henrique a alargar os horizontes e a descobrir mais terras. Com o achamento de mais lugares até então desconhecidos haveria de nascer, já depois da morte dos dois infantes, a primeira globalização que o mundo conheceu. Os portugueses dobraram o cabo que ficava mais a sul de África, chegaram às Índias e, mais longe ainda, à Austrália e ao Japão, além do Brasil nas Américas. Afinal, as Sete Partidas do Mundo estavam na calha.
Estamos presentemente em 2011, quase 600 anos depois das viagens do Infante D. Pedro. Curiosamente, encontramo-nos a viver mais um período de globalização, nascida desta vez sob a égide das comunicações e das grandes empresas multinacionais. Vemos de novo os portugueses a embarcar resolutamente neste movimento, mas de forma bem diferente daquela que os barcos de Gama e Cabral e de tantos outros ajudaram a construir. Actualmente, em lugar das inúmeras trocas comerciais desse tempo, as quais fizeram alguns maliciosos historiadores denominar os nossos camoneanos Lusíadas de "a Bíblia do Comércio", pratica-se uma outra modalidade: faz-se a globalização... da dívida pública.
Há já longos anos que os governos deste país meteram pés a caminho, a percorrer as Sete Partidas para conseguir mais fundos de empréstimo. A primeira partida, muito significativa, foi à Alemanha. A França veio a seguir. Bruxelas, depois. Muito mais recentemente, o Brasil e a China. E nesta altura há outra partida, situada no mundo conhecido dos comerciantes portugueses de outrora, que se perfila no horizonte: o Qatar.
Chegado aqui, o leitor atento constatará que o total dá apenas seis partidas e não sete. Tem razão. A sétima partida existe, porém. É aquela que é pregada a todos nós, aos nossos filhos e aos nossos netos, que vão arcar durante anos e anos com a pesada herança desta nova, mas não menos original globalização à portuguesa. Os nossos governantes sempre mostraram grande criatividade.

1/16/2011

Esqueletos no armário

"Ter um esqueleto no armário" é a tradução literal da expressão inglesa a skeleton in the cupboard. Basicamente, ter um esqueleto no armário significa que uma pessoa possui para si própria um ou mais segredos que a embaraçam e cuja revelação a envergonharia. Atrevo-me a dizer que, ao longo da nossa vida, cada um de nós vai tendo pelo menos um esqueleto no seu armário. E há quem tenha uma larga colecção. É evidente que quem tem apenas um, e relativamente inócuo, dorme muito mais descansado do que quem tem vários. Mas de que género de segredos são esses?
Creio que os mais comuns são sobre sexo e sobre dinheiros obtidos pouco honestamente. Assim, alguém que sente tendências homossexuais pode sentir-se embaraçado com o facto e guardá-lo para si mesmo. Se o arejasse, o esqueleto saía do armário e toda a gente o conheceria – é o assumir uma verdade, é o revelar um segredo, que aliás assim deixaria de o ser. É frequente que haja algum embaraço com este facto. Casos de pedofilia entram igualmente dentro deste domínio. Casos de abortos ilegais, também. Trafulhices monetárias para com outros ou para com o fisco – deixar de pagar os impostos devidos, por exemplo, o que não é tão raro assim – pode ser mantido em segredo, até porque, com uma certa lógica, quem possui esse segredo pessoal inquire-se a si mesmo: que ganho eu em revelar que é assim que faço? Se conclui que nada ganha com isso e, pelo contrário, só tem a perder, é perfeitamente natural que a pessoa continue com o seu segredinho bem guardado no armário.
A verdade das verdades, julgo eu, é que a grande maioria das pessoas gosta de gostar de si própria; como todos sabemos, é absolutamente anormal que alguém prefira ser alvo de críticas constantes. De elogios, gostamos; quanto a críticas, detestamos, embora possamos fingir que elas não nos molestam. Já Descartes ironicamente dizia, há quase quatrocentos anos, que o bom-senso é aquilo que, aparentemente, Deus melhor distribuiu: todos parecem satisfeitos com o que lhes coube em sorte. Parafraseando o pensador francês, alguém notou que o bom-senso é o único bem realmente escasso do qual ninguém acha que tem falta.
Este é, creio, um pano de fundo razoável para encetarmos a discussão de um caso concreto. Nos últimos meses, a propósito da campanha eleitoral para a Presidência da República, os media têm procurado encontrar esqueletos no armário de Cavaco Silva. (Alguns dos de Manuel Alegre, verdadeiros ou falsos, há muito que circulam na Internet.) Por que razão desperta especial interesse encontrar eventuais segredos inconfessáveis de Cavaco Silva? Por duas razões principais: uma delas é porque ele se vangloria de ser uma pessoa intocável, de possuir um carácter impoluto, de só querer o bem e nunca o mal, por ser honesto a toda a prova; a outra é porque ele é de longe o candidato com maiores possibilidades de vencer, pelo que se torna o mais apetecido neste domínio.
A arrogância de Cavaco Silva já vem de longe, pelo menos desde os tempos em que foi primeiro-ministro. A sua convicção de que sabe tudo melhor do que os outros torna-o altivo à vista de muita gente, o que naturalmente não é agradável. Há muitos, no entanto, que, embora lhe reconheçam alguns defeitos, nele confiam mais do que nos outros, e é nele portanto que vão votar, até porque não desgostaram totalmente da sua presidência actual e anseiam por um novo governo, cansados e fartos que estão daquele que presentemente têm. E como aos deputados é conferida a possibilidade de aprovar várias moções de censura ao governo e, com isso, mostrar que o governo não pode continuar - dando assim azo a que o Presidente dissolva a Assembleia da República e promova novas eleições -, há conveniências de voto.
É dentro deste contexto que uma revelação feita pelos media foi particularmente relevante. Está relacionada com o BPN (Banco Português de Negócios) e com a Sociedade Lusa de Negócios, SLN, que o controlava. Como tem sido noticiado, o BPN foi basicamente um banco fundado por membros sociais-democratas, sendo que alguns tinham estado em governos de Cavaco Silva, como foi o caso do Presidente do Banco, Oliveira e Costa, que foi Secretário de Estado para os Assuntos Fiscais, e Dias Loureiro, que não só foi ministro como também foi pessoalmente escolhido por Cavaco Silva para o seu Conselho de Estado. Quando o escândalo dos negócios fraudulentos do BPN e da sua "tóxica" situação financeira veio a lume, verificou-se que havia muitas pessoas ligadas ao partido social-democrata, e eventualmente a outros partidos, que tinham sido aliciadas para comprar acções do banco e o tinham realmente feito.
Recordo que, em determinada altura, o Presidente da República Cavaco Silva veio à televisão propositadamente fazer uma comunicação ao país revelando que ele próprio tinha possuído acções do BPN, as quais no entanto tinha vendido. Portanto, nada tinha a ver com o que se passava no Banco. Acredito. Pessoalmente, quando ouvi a declaração na TV fiquei surpreendido. O que me interessava aquilo? Eu sabia lá que o PR tinha tido acções do BPN ou da SLN! E que mal havia nisso?
Bem, agora, através de artigos como o que encontrei no último número da Revista Sábado, parece que havia mesmo qualquer coisa de especial. Concretamente, o actual PR terá sido privilegiado no preço de aquisição das referidas acções. No dia 4 de Abril de 2001, Cavaco terá comprado cerca de cem mil acções ao preço unitário de €1 quanto o valor médio das acções vendidas nesse período foi de €2,09. No mesmíssimo dia, a sua filha terá adquirido pelo mesmo preço um número ainda superior de acções (cerca de 150 mil), igualmente ao preço unitário de €1. As compras efectuadas por Cavaco Silva e pela sua filha são as únicas desse ano registadas por €1 nos documentos internos do BPN. Até ao final do ano de 2003, as referidas acções terão sido vendidas por Cavaco Silva e pela filha por, respectivamente cerca de 252 mil e de 366 mil euros.
O que está aqui em causa não é de maneira nenhuma o lucro. Nem operações ilegais. O que surge, pelo menos aos olhos de quem examina estes números, é uma situação de favor no preço da compra. Pode dizer-se que Cavaco Silva nada tem a ver com isso. Ele terá comprado ao preço a que lhe permitiram fazê-lo, assim como a filha. Aproveitou. E vendeu quando achou conveniente e, possivelmente, quando soube de rumores de que a coisa não ia bem com o banco nem com a SLN. Aliás, o futuro conselheiro de Estado Dias Loureiro vendeu os seus mais de 2 milhões de acções em 2002.
Do ponto de vista do BPN, ter um accionista como Cavaco Silva era, como facilmente se entenderá, um trunfo importante. Por uma questão de prestígio, encorajaria outras pessoas a usarem o BPN nos seus investimentos e na compra de acções; e, em certa medida – qual, será difícil de dizê-lo – Oliveira e Costa talvez julgasse encontrar-se mais protegido em caso de investigações ao seu banco.
Este caso lembra-me a história do primeiro-ministro Sócrates com a Universidade Independente. Também para os proprietários da universidade, privada, era natural que a presença entre os seus estudantes de José Sócrates fosse encarada como um trunfo. Ter membros do governo dá prestígio. E pode dar jeito. Não admirará, portanto, que um certificado tenha sido passado a um domingo, como consta. Era um favor especial.
Daqui caímos, claro, na eterna questão da ética. Quem se vangloria de honestidade respeita valores. A honestidade é um valor. Falamos de ética de valores. Quem utiliza favores, usa outro tipo de ética: a ética de favores. Activamente, por vezes, passivamente, outras.
E é assim que temos um caso neste momento. O espirituoso Óscar Wilde gostava de dizer que era capaz de resistir a tudo, menos às tentações. É um óbvio exagero, mas tem graça. Há pessoas e pessoas, mas também há tentações que são menores e outras maiores. A umas resiste-se, outras podem ser irresistíveis.
À mulher de César não basta ser honesta, precisa de prová-lo – exactamente por ser a esposa do imperador e não a mulher de qualquer um. Em cargos de responsabilidade exige-se grande transparência, certamente maior do que em situações comuns. No caso de Cavaco Silva, os media falam também de compra de terrenos ou de casa no Algarve, salvo erro igualmente com ligações a Oliveira e Costa. Convinha que tudo ficasse devidamente esclarecido. Nestas alturas, os jornalistas são mais atrevidos, e não basta dizer-lhes que mais tarde tudo lhes será explicado em detalhe. Em vésperas de eleições, os eleitores gostam de estar informados. A democracia é um regime que requer muita transparência neste aspecto. Se se dá ao povo a noção de que os homens e mulheres do poder podem usar de Eubjectividade – todos têm que acreditar nas palavras do “eu” que fala – em vez de real Objectividade, as pessoas começam (ou continuam) a não acreditar na democracia. E isso não é bom.

1/08/2011

Limites


Eu já era crescidote quando uma vez me disseram que a forma como a nossa voz era ouvida por outros não era exactamente aquela que nós ouvíamos. Como?! Era preciso, disseram-me, virar com as mãos as orelhas um pouco para a frente para ouvirmos a nossa voz tal qual os outros a ouvem. Experimentei. Embora não fosse flagrante, registei de facto alguma diferença.
Ora, se a nossa voz sai para os outros um tanto diferentemente do que sai para nós, é também perfeitamente possível que os outros tenham de nós uma opinião diferente daquela que temos de nós próprios. Sei que não existe um nexo rigoroso entre esta conclusão e a premissa – talvez não exista até qualquer nexo – mas sei por experiência própria, como aliás suponho que todos sabemos, que a maneira como nos vemos é por vezes substancialmente diferente do modo como outros, familiares, amigos e simples conhecidos nos vêem. Chegado aqui, pergunto-me por que razão não somos bons julgadores de nós próprios?
Encontro várias respostas para esta questão. Todas esbarram nos nossos limites. Creio que admitimos os nossos limites físicos, mas vejo maior dificuldade na admissão dos limites mentais. Ilustrando o meu ponto: se o recorde mundial dos 100 metros foi fixado por apenas alguns atletas de eleição abaixo dos 10 segundos, não nos custa admitir que não consigamos fazer o mesmo. Se o levantamento de barras em pesos e halteres se situa nos 200 e tal quilos, muitos de nós concordaremos que não chegamos a esse número. Porém, se colocarmos a fasquia relativamente às nossas capacidades mentais, encontraremos muita gente a dizer que entende isto e aquilo muito bem. Muitos dirão mesmo, em tom meio irado, meio irónico: "Julgas que sou estúpido? Eu não sou estúpido!"
Contudo, às vezes olhamos para uma década ou duas atrás, lembramo-nos de como reagimos em determinada situação, recordamo-nos dos nossos conhecimentos de então comparados com os de hoje, e murmuramos para nós mesmos: "Eu era muito ingénuo! Ainda sabia pouco naquela altura! Como é que ousei?" Reconhecemos, portanto, que ultrapassámos uma determinada fasquia em matéria de desenvolvimento mental e de bagagem de conhecimentos. E agora, já sabemos tudo, ou estaremos apenas noutro patamar de ingenuidade e de conhecimentos?
Um dos problemas relativamente à possibilidade de possuirmos uma visão objectiva de nós próprios reside naquilo a que, apropriadamente, denominamos de "natureza humana" e que nos faz, felizmente, gostarmos de nós próprios. A nossa presunção de que somos melhores do que na realidade acontece deriva do nosso amor-próprio, de uma auto-adulação que repetidamente fazemos. E ainda bem, repito. O nosso entendimento da razão é influenciado pelo factor emocional, o qual respeita o nosso amor-próprio e pinta o nosso retrato mental de uma forma mais agradável do que como os outros de facto nos vêem. Atenção, porque quem envereda por caminhos opostos pode tombar em séria depressão e mesmo em suicídio.
As outras pessoas não estão dentro de nós. Estão de fora. Regra geral, nós só sabemos sair para fora de nós quando outros no-lo mostram. Tendemos a esquecer as nossas más acções, auto-desculpamo-nos. Entretanto, os outros não vêem razão para nos desculpar, a não ser que sejam os nossos queridos progenitores ou grandes amigos nossos.
Permito-me ilustrar com um caso pessoal. Considero no geral que fui um razoável profissional do ensino. Guardo na memória testemunhos orais que me comoveram e que não esqueci; guardo num dossier múltiplos testemunhos escritos de alunos e de colegas que me são caros. Mas terá sucedido assim com todos os alunos? E com todos os colegas? Certamente que não. Ainda no outro dia uma antiga aluna de um dos Institutos onde trabalhei me telefonou, de forma aliás muito simpática, a convidar-me para um jantar do seu curso. A certa altura do telefonema, ela confessou-me qualquer coisa como isto: "Não me esqueço daquela vez em que saí fula do seu gabinete onde tinha ido fazer uma reclamação relativa ao Instituto! Não me deu razão, e eu sentia que a tinha!" Devo dizer que não me recordo nem do caso, nem da aluna em questão, que aliás nunca esteve numa turma que eu leccionasse. Ela ter-me-á apresentado a reclamação na medida em que eu era o coordenador do seu curso. Porque é que eu não possuo já a menor ideia do caso, que aliás não me pareceu ser especialmente grave? Porque é que na minha memória não ficou um só vestígio da conversa, enquanto para ela a minha atitude permaneceu como um espinho, que agora finalmente pôde soltar? Serão fáceis de entender estes porquês se aceitarmos que temos limites de memória, por um lado, e, por outro, tendemos a usar cores que favorecem o nosso lado. É este um dos limites da nossa objectividade.
Uma familiar minha, com mais de 90 anos, dizia-me no outro dia: "Julga que eu por ser velha não me lembro de nada? Engana-se: lembro-me de tudo!" Comentei-lhe, brincando, que ela só não se lembrava daquilo que tinha esquecido. Foi para mim evidente que aquela senhora não aceitava os seus limites. Ninguém pode garantir que se lembra de tudo, quando mesmo a narrativa de um só dia constitui já uma selecção das coisas que aconteceram nesse dia. Como todos sabemos por experiência própria, uma outra pessoa que tenha vivido uma experiência semelhante à nossa tenderá mais tarde a recordar-se-á de coisas que a nossa memória não guardou, e possivelmente lembrará pormenores que nos passaram totalmente despercebidos.
A consciência da existência dos nossos limites parece-me algo muito importante para um comportamento mais tolerante e objectivo na nossa convivência com a sociedade. Cada um tem a sua visão da vida. Nós não somos "o metro-padrão do Museu de Sèvres, em Paris". Cada um de nós é apenas mais uma pessoa do mundo. Com os seus princípios, que podem não ser os daqueles com quem se convive, com os seus valores e as suas estruturas mentais, com os seus conhecimentos por natureza exíguos face à infinita quantidade de coisas que o mundo oferece.
Termino este desfiar de pensamentos (limitados) com uma reflexão há muito minha favorita, do escritor francês Alphonse Esquiros (1812-1876): "Se um homem faz uma grande ideia de si próprio, podemos ter a certeza de que se trata da única grande ideia que teve em toda a sua vida."

1/04/2011

Pontos de Vista


Há dias, quando estava na loja de fruta onde geralmente me abasteço, deparei com uns lindos peros bravos de Esmolfe. Comprei uns tantos. Junto à caixa para pagar, comentei com o dono do estabelecimento que aqueles peros eram não só bonitos como deitavam um aroma muito especial. Ele apreciou o comentário, mas, com um sorriso, corrigiu-me. "Não são peros; são maçãs. Peros não existem." Ora, quando a gente conhece as coisas há muitos anos e, naquele caso, eu até conheço Esmolfe, uma pequena povoação situada a três quilómetros de Penalva do Castelo, devo dizer que a notícia da não-existência de peros me surpreendeu. Mas era mesmo assim, explicou-me o Luís. Também ele só há pouco tempo é que tinha aprendido isso numa acção de formação promovida pelo Ministério da Agricultura. "Lá foram categóricos: não há peros. Há maçãs."
Pensei, como é óbvio, que o mais importante de tudo era o facto de aqueles peros, aliás aquelas maçãs, parecerem uma delícia. Contudo, não deixei de pensar que ali havia mão da União Europeia: se no resto da Europa não há peros, por que razão haveria de existir tal espécie em Portugal? Esta mania de estandardizar tudo!
A maçã será, na realidade, o fruto mais semelhante. Por outro lado, é um facto que no passado muitos dos frutos eram genericamente considerados maçãs (pomos, pommes, apples). É assim que temos as maçãs de pinha (os pineapples ingleses, ananazes), as maçãs da terra (pommes de terre francesas, batatas), as maçãs da China (as Apfelsinnen alemãs, laranjas), as maçãs do amor (apples of love do passado inglês e americano, tomate), as maçãs da Pérsia (pomum persicum dos antigos romanos, pêssegos) e as maçãs de ouro (aurangia também dos antigos romanos). Enfim, tanto fruto maçânico para comer deliciado, i.e. desfrutar.
Porém, isto de a União Europeia nos estar a roubar especificidades muito lusas pode ter consequências. Vou apenas mencionar mais um caso. Quando era miúdo, sempre ouvi dizer e li que Portugal era o país mais ocidental da Europa. Os Açores portugueses seriam as ilhas europeias mais ocidentais, assim como o Cabo da Roca era o ponto mais ocidental da Europa continental. Com esta de "ocidental" encasquetada, foi uma surpresa para mim quando aos dezoito anos fui pela primeira vez à Alemanha, onde trabalhei durante alguns meses, e me vi apodado de Südländer. Tal como um Engländer é um inglês, eu era Südländer, isto é, do sul. Bem insisti que não, que era português e latino, mas eles riram-se e não cederam.
Afinal, eu era um Südländer, i.e. dependendo do sítio onde estava era visto diferentemente. Foi para mim uma lição. Concluí, bem ou mal, que o ponto de vista de uma nação dominante para com os restantes países da zona, de um continente para com os outros continentes ou da capital de um país para com as regiões desse mesmo país era algo decisivo para a designação onomástica. E também para o desenho dos mapas. Do ponto de vista alemão, nós estávamos a sul, tal como outros povos latinos. Semelhantemente, a Áustria ficava-lhes a leste, donde lhe chamaram Österreich, literalmente "reino ou império do leste", enquanto a França, habitada por descendentes dos francos, era Frankreich.
Hoje, em 2011, já começamos nós próprios a ver-nos como sendo membros europeus do sul. Entramos no grupo da Espanha e da Itália. Se lhes juntarmos a Grécia, cá temos os famosos PIGS (Portugal, Italy, Greece, Spain) e, o que é mais, entramos no grupo dos países do Sul, que se opõe ao das mais desenvolvidas nações do Norte.
Será que encaixamos mais esta? Sem peros e sem o orgulho de sermos os europeus mais ocidentais, "onde a terra acaba e o mar começa"?