1/08/2011

Limites


Eu já era crescidote quando uma vez me disseram que a forma como a nossa voz era ouvida por outros não era exactamente aquela que nós ouvíamos. Como?! Era preciso, disseram-me, virar com as mãos as orelhas um pouco para a frente para ouvirmos a nossa voz tal qual os outros a ouvem. Experimentei. Embora não fosse flagrante, registei de facto alguma diferença.
Ora, se a nossa voz sai para os outros um tanto diferentemente do que sai para nós, é também perfeitamente possível que os outros tenham de nós uma opinião diferente daquela que temos de nós próprios. Sei que não existe um nexo rigoroso entre esta conclusão e a premissa – talvez não exista até qualquer nexo – mas sei por experiência própria, como aliás suponho que todos sabemos, que a maneira como nos vemos é por vezes substancialmente diferente do modo como outros, familiares, amigos e simples conhecidos nos vêem. Chegado aqui, pergunto-me por que razão não somos bons julgadores de nós próprios?
Encontro várias respostas para esta questão. Todas esbarram nos nossos limites. Creio que admitimos os nossos limites físicos, mas vejo maior dificuldade na admissão dos limites mentais. Ilustrando o meu ponto: se o recorde mundial dos 100 metros foi fixado por apenas alguns atletas de eleição abaixo dos 10 segundos, não nos custa admitir que não consigamos fazer o mesmo. Se o levantamento de barras em pesos e halteres se situa nos 200 e tal quilos, muitos de nós concordaremos que não chegamos a esse número. Porém, se colocarmos a fasquia relativamente às nossas capacidades mentais, encontraremos muita gente a dizer que entende isto e aquilo muito bem. Muitos dirão mesmo, em tom meio irado, meio irónico: "Julgas que sou estúpido? Eu não sou estúpido!"
Contudo, às vezes olhamos para uma década ou duas atrás, lembramo-nos de como reagimos em determinada situação, recordamo-nos dos nossos conhecimentos de então comparados com os de hoje, e murmuramos para nós mesmos: "Eu era muito ingénuo! Ainda sabia pouco naquela altura! Como é que ousei?" Reconhecemos, portanto, que ultrapassámos uma determinada fasquia em matéria de desenvolvimento mental e de bagagem de conhecimentos. E agora, já sabemos tudo, ou estaremos apenas noutro patamar de ingenuidade e de conhecimentos?
Um dos problemas relativamente à possibilidade de possuirmos uma visão objectiva de nós próprios reside naquilo a que, apropriadamente, denominamos de "natureza humana" e que nos faz, felizmente, gostarmos de nós próprios. A nossa presunção de que somos melhores do que na realidade acontece deriva do nosso amor-próprio, de uma auto-adulação que repetidamente fazemos. E ainda bem, repito. O nosso entendimento da razão é influenciado pelo factor emocional, o qual respeita o nosso amor-próprio e pinta o nosso retrato mental de uma forma mais agradável do que como os outros de facto nos vêem. Atenção, porque quem envereda por caminhos opostos pode tombar em séria depressão e mesmo em suicídio.
As outras pessoas não estão dentro de nós. Estão de fora. Regra geral, nós só sabemos sair para fora de nós quando outros no-lo mostram. Tendemos a esquecer as nossas más acções, auto-desculpamo-nos. Entretanto, os outros não vêem razão para nos desculpar, a não ser que sejam os nossos queridos progenitores ou grandes amigos nossos.
Permito-me ilustrar com um caso pessoal. Considero no geral que fui um razoável profissional do ensino. Guardo na memória testemunhos orais que me comoveram e que não esqueci; guardo num dossier múltiplos testemunhos escritos de alunos e de colegas que me são caros. Mas terá sucedido assim com todos os alunos? E com todos os colegas? Certamente que não. Ainda no outro dia uma antiga aluna de um dos Institutos onde trabalhei me telefonou, de forma aliás muito simpática, a convidar-me para um jantar do seu curso. A certa altura do telefonema, ela confessou-me qualquer coisa como isto: "Não me esqueço daquela vez em que saí fula do seu gabinete onde tinha ido fazer uma reclamação relativa ao Instituto! Não me deu razão, e eu sentia que a tinha!" Devo dizer que não me recordo nem do caso, nem da aluna em questão, que aliás nunca esteve numa turma que eu leccionasse. Ela ter-me-á apresentado a reclamação na medida em que eu era o coordenador do seu curso. Porque é que eu não possuo já a menor ideia do caso, que aliás não me pareceu ser especialmente grave? Porque é que na minha memória não ficou um só vestígio da conversa, enquanto para ela a minha atitude permaneceu como um espinho, que agora finalmente pôde soltar? Serão fáceis de entender estes porquês se aceitarmos que temos limites de memória, por um lado, e, por outro, tendemos a usar cores que favorecem o nosso lado. É este um dos limites da nossa objectividade.
Uma familiar minha, com mais de 90 anos, dizia-me no outro dia: "Julga que eu por ser velha não me lembro de nada? Engana-se: lembro-me de tudo!" Comentei-lhe, brincando, que ela só não se lembrava daquilo que tinha esquecido. Foi para mim evidente que aquela senhora não aceitava os seus limites. Ninguém pode garantir que se lembra de tudo, quando mesmo a narrativa de um só dia constitui já uma selecção das coisas que aconteceram nesse dia. Como todos sabemos por experiência própria, uma outra pessoa que tenha vivido uma experiência semelhante à nossa tenderá mais tarde a recordar-se-á de coisas que a nossa memória não guardou, e possivelmente lembrará pormenores que nos passaram totalmente despercebidos.
A consciência da existência dos nossos limites parece-me algo muito importante para um comportamento mais tolerante e objectivo na nossa convivência com a sociedade. Cada um tem a sua visão da vida. Nós não somos "o metro-padrão do Museu de Sèvres, em Paris". Cada um de nós é apenas mais uma pessoa do mundo. Com os seus princípios, que podem não ser os daqueles com quem se convive, com os seus valores e as suas estruturas mentais, com os seus conhecimentos por natureza exíguos face à infinita quantidade de coisas que o mundo oferece.
Termino este desfiar de pensamentos (limitados) com uma reflexão há muito minha favorita, do escritor francês Alphonse Esquiros (1812-1876): "Se um homem faz uma grande ideia de si próprio, podemos ter a certeza de que se trata da única grande ideia que teve em toda a sua vida."

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