12/30/2006

Da responsabilidade do Estado e dos cidadãos

Existem no mundo milhões de cidadãos que não pagam impostos, a não ser os que estão directamente incluídos no preço dos (poucos) produtos que adquirem. Não se trata aqui de evasão fiscal. O que sucede é que essas pessoas não auferem o suficiente para serem onerados com uma quantia imposta pelo Estado. Se não vivermos num Estado que se diga social, pode admitir-se que nesses casos o Estado não se sinta obrigado a cuidar muito dessas pessoas. Mesmo assim, educação e saúde fazem parte dos itens a respeitar. Até que ponto é já outra questão.
Se, por razões que lhe podem ser imputadas, um cidadão não contribui com o seu trabalho para a riqueza nacional, em que medida pode exigir que parte dessa riqueza, que é produto do trabalho de outros, seja gasta consigo? E sem limite? Será justo que numa família os pais gastem o dinheiro que têm e o que não têm para, por exemplo, libertarem da droga um membro da família? E os outros? Ficarão afectados para sempre, a arcar com dívidas até ao fim da sua vida?
Por outro lado, se o Estado cobra impostos, não é verdade que tem o dever de justificar por meio da prestação de serviços condignos essa cobrança do produto do trabalho dos cidadãos? Mas sem limites? E quem os estabelece? Onde traçar a linha divisória pode ser sempre um pomo de discórdia.
Este ponto não é de somenos importância, porque parece lógico que quem se vê desprovido de dinheiro que é produto do seu esforço ao longo de um ano peça contas a quem o administra. Daí que uma boa administração dos dinheiros do Estado seja algo fulcral. Uma sociedade culta e bem informada é por natureza mais vigilante.
Há comportamentos que, grosso modo, se consideram correctos em sociedade. Assim, quem suja, limpa. Quem desarruma, arruma. Quem parte, paga. Há prémios para quem cumpre com excelência, penalizações para quem peca. Tudo aqui implica a importante noção de responsabilização pessoal e do estabelecimento de direitos e deveres. É, no fundo, também o estabelecimento de limites.
Posto isto, colocam-se múltiplas questões, de que aqui se dão alguns breves exemplos, nas áreas da educação e da saúde.
Deverá o Estado custear o ensino até ao seu nível mais elevado? Se o básico e o secundário estão presentemente fora de discussão no caso português, deverão as licenciaturas estar também incluídas nesse pacote? Têm estado. E os mestrados? Têm até ao momento ficado de fora. Ainda dentro deste âmbito que, mais ou menos consensualmente, deve incluir direitos e deveres, se um estudante do ensino superior reprova mais do que duas vezes no seu curso não deverá sofrer penalizações? Não é isso, aliás, o que acontece em muitas famílias em que os pais se recusam a "alimentar vícios"? Aqui, para além da contribuição das famílias, existe o facto de os referidos estudantes estarem a frequentar cursos pagos pelos contribuintes.
Consideremos agora o caso de doentes que não cumprem as instruções dos médicos no capítulo alimentar, recusam submeter-se a um determinado tratamento considerado necessário pelo clínico, ou rejeitam uma operação reputada de essencial. Será que o Estado tem só deveres e os cidadãos apenas possuem direitos? Não deverá ser lícito incluir penalizações nos casos apontados? É que, mais uma vez, é o dinheiro dos contribuintes que está em causa. Neste sentido também se têm manifestado alguns defensores do "não" relativamente à IVG, afirmando que os seus impostos seriam usados para pagar serviços clínicos estatais quanto aos quais estão contra. (Porém, terão que admitimo-lo, caso o "sim" vença.) A imposição de taxas moderadoras mais elevadas para os infractores pode ser uma medida disciplinadora de uma sociedade que, no entender de muitos, se apegou demasiado aos seus direitos e negligenciou significativamente os seus deveres.

12/27/2006

E se os mandássemos dar uma volta?

O Natal é a época ideal para o aparecimento de livros sobre dietas alimentares. Para grandes males, grandes remédios. Um indivíduo americano de nome Platkin publicou recentemente um livro onde calcula as calorias contidas em 7500 pratos diferentes e quanto tempo temos de fazer vários géneros de exercício para queimar essas calorias. Quem comer uma fatiazinha de bolo-rei prepare-se para fazer uma caminhada de 84 minutos. Quem ingerir uns 90 amendoins deverá andar 131 minutos para eliminar o que comeu. Como beber uma cerveja representa 153 calorias, é exigido um passeio compensatório de 39 minutos. É a penitência pelo bem que soube.
Os ditames de leis deste tipo chateiam cada vez mais. E essas leis existem para as crianças, os jovens, os adultos, os idosos. Por vezes, passado algum tempo essas "autoridades" chegam a uma conclusão contrária à prescrita anteriormente, mas isso pouco interessa. Antigamente, o colesterol era algo de que pouco se falava. Hoje, a partir de certa altura da nossa vida ficamos a saber que estamos em risco. Pudera! Se o limite de 250 que dantes era considerado aceitável passou para 190! É evidente que com esta baixa é apanhada na rede muita gente mais... e mais medicamentos se vendem, mais livros se publicam, mais preocupações se criam. Instala-se o medo. Um medo excessivo, para que surja o recurso ao remédio.
Causa-me pena ver montes de pais angustiadíssimos porque o seu rebento tem uma constipação. Claro que é preciso tratá-lo, mas não necessariamente com antibióticos. Hoje temos montes de crianças assépticas, que se constipam com simples correntes de ar. O super-proteccionismo conduz a um apaparicar impróprio de uma rijeza que o ser humano tem de ganhar por si. É claro que é melhor lavar as mãos antes de comer, mas quantas vezes os meus amigos e eu não íamos à uva que sobejava nas vinhas depois das vindimas e comíamos aqueles apetitosos cachinhos, possivelmente ainda com algum sulfato. Nenhum morreu por isso. É até natural que tenhamos ganho algumas resistências. É evidente que secar a roupa no corpo depois de uma molha valente não dará grande saúde a ninguém, mas quando se teve que aguentar algo do género porque não havia alternativa, é também porque o mal não foi de morte. Hábitos clássicos como dizer para uma criança que chora perante uma pequena queda "Incha, desincha e passa!" parecem em absoluto fora de uso. São quase heresia. No entanto, era isso que me diziam e aos meus amigos antigamente. Relançando um olhar pelo meu antigo grupo de amigos, constato que estamos felizmente cá todos, cerca de sete décadas depois. Razoavelmente desempenados, andando depressa, dando uns chutos na bola se preciso for e mandando às malvas os tais exageros de cuidados.
Inteligentemente, há, por assim dizer, um certo respeito pelo corpo, o qual naturalmente com a idade pede mais peixe onde dantes exigia carne, mais legumes e fruta onde dantes os legumes costumavam ficar de fora. Mas isso é algo tão natural como as pessoas à medida que a idade avança se deitarem mais cedo e se levantarem mais cedo também. Estão mais próximas da natureza.
Aos Platkins que pululam por esse mundo fora, mandemos dar uma curva. Se formos (com prazer) regrados, se variarmos a nossa alimentação, se fizermos algum exercício que o corpo nos peça, não teremos no geral os tais problemas terríveis que as cassandras tanto gosto têm em apregoar aos sete ventos. No fundo, é verdade que o seguro morreu de velho, mas o importante é que morreu. Como alguém jocosamente colocou a questão: "Está provado que por cada minuto de exercício que fazemos o nosso tempo de vida aumenta um minuto. Isso permite que nós, aos 85 anos, fiquemos cinco meses mais num lar de terceira idade a pagar 200 ou 300 contos por mês."

12/25/2006

HISTÓRIA ANTIGA

Tinha prometido não voltar tão cedo com poesia a este blogue, mas o Capuchinho Vermelho puxou-me pelo gosto. O Miguel Torga fez o resto?

Um velho amigo meu, de 70 e muitos anos, agora desinteressado da vida mas ainda há pouco tempo bom declamador desta História Antiga, ficaria certamente muito contente se soubesse que partilho convosco este belo poema que me deu a conhecer há muito anos.

Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava, e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.

E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação.

Mas,
Por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.

Miguel Torga

Natal, e não Dezembro

Entremos, apressados, friorentos,
Numa gruta, no bojo de um navio,
Num presépio, num prédio, num presídio,
No prédio que amanhã for demolido...

Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos, e depressa, em qualquer sítio,
Porque esta noite chama-se Dezembro,
Porque sofremos, porque temos frio.

Entremos, dois a dois: somos duzentos,
Duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
A cave, a gruta, o sulco de uma nave...

Entremos, despojados, mas entremos.
De mãos dadas talvez o fogo nasça,
Talvez seja Natal e não Dezembro,
Talvez universal a consoada.

David Mourão-Ferreira

12/21/2006

Grandes mulheres

Embora certamente menos que no passado, o futebol continua a ser um jogo que a maioria das mulheres abomina. As discussões entre esposas e maridos sobre "os anormaizinhos colados à televisão a ver jogadores ao chuto a uma bola" têm sido mais do que muitas. Tudo isto torna mais curioso o facto de, num mundo futebolístico dominado por homens, serem presentemente duas mulheres a agitar as águas desse mesmo mundo. Se tanto o bem como o mal são palavras masculinas, a justiça surge como feminina. Dum lado temos a Carolina (do Norte), do outro a Morgadinha (dos Tribunais). A Carolina alterna entre o pecado e a vingança. A Morgadinha aparece como a justiceira que corta a direito. Ambas têm sede de justiça. Era bom que as mulheres ganhassem este jogo!

12/19/2006

Petroeuros

A notícia não agrada decerto aos americanos, mas para a União Europeia, que há muito tentava cativar o Médio Oriente para a sua moeda, torna-se euro sobre azul.
O euro passou a ser oficialmente usado nas contas do Irão com o exterior, destronando o todo-poderoso dólar. Registe-se que havia pressões norte-americanas sobre a banca internacional para não tratarem com clientes iranianos, dificultando assim a conclusão de contratos com o estrangeiro. Mais uma vez se prova que a situação de monopólio é nefasta. Felizmente, neste caso os iranianos puderam dispor de uma sólida alternativa.

12/17/2006

Pânico globalizado

Quando, poucos anos antes da viragem do meio-milénio em 1500, o poderoso dominicano Savonarola falou na sua cidade de Florença sobre as perversidades dos homens, incluindo nos seus sermões muito especialmente os membros da Igreja, quase vaticinou que o mundo, vergado sob o peso de tanto pecado, iria acabar. Acabou ele primeiro, morto na fogueira dos que desafiavam a autoridade papal.
Quinhentos anos depois, uns meses antes da passagem do ano 2000, sucedeu que, numa encoberta manhã de Agosto em que eu ia calmamente às amoras num silvado perto da estrada, tive que atravessar uma pequena propriedade para chegar às silvas que eram o meu objectivo. Entretanto, ouvi vozes. Olhando à volta, deparei com um homem e uma mulher que, sentados, descamisavam milho. Desejei-lhes bom dia. Corresponderam, mas ao mesmo tempo mostraram desejo de falar um pouco mais. Aproximei-me, ouvi rapidamente a história de ambos, casados e ex-emigrantes na Alemanha. Depois, surgiu a pergunta que tanto o homem como a mulher me queriam colocar: Será que o mundo vai acabar para o ano? Disse para mim próprio que aquela era uma questão que não estava no meu programa das amoras, mas felizmente encontrei uma resposta possível. Lembrei-lhes que o ano 2000 representava apenas um número redondo, sem dúvida um marco, mas não mais que isso. Por exemplo em Marrocos, país que acabava por ficar apenas a umas horas, de automóvel e barco, do sítio onde nos encontrávamos, as pessoas estavam ainda no século XIV. Para elas, aquele seria um ano como tantos outros. Perguntei ao casal se achavam possível que o mundo acabasse apenas naqueles países que estivessem a passar para o ano 2000. Meditaram um pouco, responderam que não, e pareceram mais calmos, satisfeitos com o esclarecimento.
No entanto, a verdade é que nessa altura os media estavam a fazer ressurgir todos os medos antigos, recordando presságios os mais diversos e, sobretudo, elegendo algo novo como seu elemento favorito para a catástrofe que se avizinhava: os problemas informáticos quase inultrapassáveis da mudança para um milénio começado pelo algarismo "2". Todos os computadores do mundo iam ser afectados pela extraordinária mudança, o sistema financeiro mundial já tinha preparado triliões de dólares para corrigir o software, perder-se-ia múltipla informação, etc. Era o caos.
Tal como no tempo de Savonarola com as infindas punições,tal como na passagem do milénio com o fim do mundo, as terríveis catástrofes informáticas que iriam desabar sobre nós não se confirmaram de todo.
No nosso ano de 2006, depois de uma paranóica onda das mais desencontradas e alarmantes informações sobre a gripe das aves, que iria ser uma catástrofe a nível mundial, eis que os patinhos continuam a vogar calmamente nos seus lagos, as galinhas cacarejam nas suas capoeiras, as migrações dos flamingos prosseguem como se nada tivesse acontecido. A paranóia caiu no ridículo. Salvou-se aquele conselho amigo de alguém que nos disse para vivermos a vida, gozando a noite: "Nunca, mas nunca se deitem com as galinhas!"
A paranóia à volta do terrorismo - que esquece o terror causado exactamente pelos que estão paranóicos e o velho aforismo que nos diz que "quem com ferro mata, com ferro morre" - conduziu há dias a uma história curiosa. À semelhança de tantos outros, um avião voava entre duas cidades dos Estados Unidos. A certa altura, um passageiro levantou-se agitadamente do seu lugar e dirigiu-se à cabine dos pilotos. Cheirava-lhe a queimado. Não estaria aquilo ligado a uma bomba? Uma rápida inspecção ao local confirmou o cheiro. Sem mais, o piloto pediu ao aeroporto mais próximo para aterrar de emergência. Autorização concedida, o aparelho pousou na pista sem quaisquer problemas e foi rapidamente evacuado. Interrogados os passageiros que estavam sentados à volta do local de onde tinha vindo o cheiro, uma senhora velhinha confessou, envergonhadamente,perante as autoridades que sofria de flatulência e que não queria de modo nenhum incomodar as pessoas ao pé de si com mau cheiro. Então, como método disfarçante, acendia fósforos sempre que não conseguia conter-se. Estava explicada a bomba! Todos voltaram ao aparelho, incluindo a velha senhora.
Esperemos pela próxima virose a nível global!

12/11/2006

O sentido do tempo

Uma amiga a quem eu tinha em tempos emprestado dois volumes encadernados com numerosos exemplares da revista Courier da Unesco, todos eles datados do final dos anos 60 e início da década de 70, devolveu-mos há dias. Os seus comentários foram extremamente encomiásticos para a revista - considerando-a muito avançada para o seu tempo -, mas de pasmo também pelo facto de, apesar de tantos problemas que ainda são dos nossos dias terem então sido estudados profundamente, com argumentos altamente válidos, não terem tido grandes resultados concretos. Esta minha amiga é uma pessoa inteligente, arquitecta de profissão, com cerca de 50 anos. Trabalhou quase 20 no estrangeiro.
Foi com grande sinceridade que me disse estar impressionada com os longos artigos e os ponderados estudos que encontrara, sobre as causas e efeitos da fome e da pobreza, o impacto do turismo sobre os monumentos, as consequências dos abates indiscriminados de milhares e milhares de árvores de madeira exótica nas áfricas, ásias e américas. Para além de dezenas de outros temas. "Eu teria uns 10 anos" - disse - "quando aqueles estudos foram feitos e apresentados. Pois se fossem realizados agora, apareceriam como novidade e seriam interessantes para os leitores de hoje. Custa ter que perguntar por que razão não se evitaram tragédias previsíveis, por que motivo se insistiu em erros perfeitamente identificados, se continuou a deixar espalhar tantos rastos de infelicidade no mundo."
Uma das razões é certamente a questão dos valores. Os valores não são os mesmos para quem estudou e escreveu os artigos e para quem detém outro tipo de poder, mais material e pragmático. Nas suas grandes linhas, é evidente que a humanidade está com menos respeito pelo futuro e mais ávida de se realizar no presente. Construir para as gerações vindouras, o que poderá significar para as pessoas de hoje privar-se de algo que ambicionam, está definitivamente fora de moda. Aquele que é o comportamento individual de maior consumismo e menor poupança é ampliado à escala mundial. Larguíssimas manchas de floresta são abatidas para proporcionar riqueza imediata. Se depois vêm as cheias que tudo levam à sua frente, esse é um problema das populações locais. Os pinheiros de crescimento lento vão sendo violentamente destruídos por incêndios criminosos que pretendem abrir caminho para plantações de eucaliptos, de crescimento rápido mas destruidores da riqueza do solo. Nunca houve no passado Ministérios do Ambiente. Agora, pululam. Os seus resultados são ínfimos. O vento do já-e-agora sopra forte. Endivididamento em vez de poupança, vida vivida a grandes sorvos, consumo desbragado em vez de um razoável comedimento, excesso de direitos e míngua de deveres, tudo isso leva a que os bons preceitos do passado redigidos na revista da Unesco por cientistas e homens de visão alargada não tenham encontrado eco e concretização.
Somos assim.Até quando?

12/05/2006

Exploração e nacionalismo

O jornal Público apresentou uma oportuna reportagem sobre a exploração de que são alvo muitos portugueses aliciados por ofertas tentadoras para trabalharem no estrangeiro. A grande maioria dessas ofertas traduz-se em verdadeiros logros, na medida em que, através de engenhosas artimanhas, o angariador reserva para si parcelas absolutamente escandalosas dos pagamentos devidos. Seja em Espanha, seja na Holanda, Inglaterra ou Dinamarca, as autoridades parecem pouco empenhadas em intrometer-se nestes casos, acabando por considerar, com lógica aliás, que uma promessa não contratualizada não é de facto um contrato. Por outro lado, o desconhecimento da realidade revelado por parte de emigrantes portugueses contratados para ir para o estrangeiro é por vezes atroz, como já há anos uma reportagem num jornal narrou: quando colocado perante a hipótese de ir fazer queixa ao consulado português em Frankfurt, um dos entrevistados pelo jornal inquiriu: "Mas não é preciso ser sócio?"
Seja como for, o que gostaria neste momento de frisar é algo aparentemente marginal mas com forte incidência no caso de exploração de mão-de-obra: o nacionalismo, misturado com uma indisfarçável, maior ou menor xenofobia. Há três dias encontrei uma velha amiga, professora. Ia acompanhada de uma cidadã da Letónia, que está em Portugal desde Julho. Desde essa data, a letã em questão já teve dois empregos aqui em Lisboa. Saiu do primeiro porque não lhe pagaram no final do mês. Saiu do segundo porque trabalhou durante dois meses e, mais uma vez, não recebeu qualquer pagamento. A minha amiga tinha ido com ela apresentar queixa às autoridades competentes. A cidadã da Letónia, rapariga de vinte e tal anos, está devidamente legalizada em Portugal.
Temos tendência para perguntar "Como é que situações deste género são permitidas?" A nossa surpresa não será, no entanto, assim tão grande porque todos temos ideia de que casos semelhantes com cidadãos estrangeiros são às centenas, se não aos milhares. Por que motivo não actuarão de pronto as autoridades portuguesas?
Creio que, entre outros aspectos, porque agir dá trabalho. Pessoalmente, a única experiência que tenho de levantamento de autos provém do serviço militar, há longuíssimos anos. Era preciso receber a queixa por escrito. Ouvir as partes interessadas, que podiam ser várias. Testemunhas, se as houvesse. Ocasionalmente, fazer acareações. Depois de o auto estar devidamente informado, havia que entregá-lo ao tribunal militar, a quem cabia a decisão final. Ora, isto nem sempre se faz em pouco tempo. E ocasiona problemas, chatices várias. Contudo, recordo-me que, sendo necessário por envolver militares que estavam sob a nossa responsabilidade, não podíamos deixar de seguir os trâmites processuais.
No caso das autoridades, acredito que seja algo semelhante, mas sobrevém-lhe uma outra questão: quem está em causa não são cidadãos nacionais. Se os nacionais já dão tanta chatice... "Porque é que esses indivíduos vieram para cá? Porque é que não ficaram nos seus próprios países?"
Eu diria que os espanhóis reagem tendencialmente assim com os portugueses e outros imigrantes. O mesmo farão as autoridades holandesas. Do Reino Unido, as notícias que de vez em quando nos chegam não são animadoras. Na Alemanha sucedeu há anos que os grandes defensores dos direitos dos trabalhadores estrangeiros eram... os trabalhadores alemães. Porquê? Porque estavam a defender a sua própria causa. Insistiam que não era justo que no mesmo país pudesse haver trabalhadores a ganhar menos do que o mínimo estabelecido pelos sindicatos. Tratava-se, naturalmente, mais de uma defesa daquilo que consideravam concorrência desleal do que de verdadeiro interesse na defesa dos trabalhadores estrangeiros, fossem eles turcos ou espanhóis. Foi um prelúdio à mais recente opereta do canalizador polaco.
Existe um outro factor muito importante: as autoridades não gostam de apresentar o seu próprio país como explorador. É que, como George Bernard Shaw um dia escreveu, "patriotismo é a convicção de que o nosso país é superior a todos os outros porque nós nascemos nele". É uma reflexão forte, mas possivelmente certeira. Se nós nascemos num país que pode envergonhar-nos perante estrangeiros, estamos a inferiorizar-nos. Daí que admitamos as nossas fraquezas perante nacionais - isso até nos evidencia! - mas prefiramos ocultá-las perante estrangeiros. E então se são estes a falar delas, nem se fala! Go home!
Estou convicto de que estes aspectos emocionais, difíceis de comprovar, desempenham um papel mais importante do que por vezes se julga. Acabam por estar ligados, por razões semelhantes, a polícias (homens) que tentam ignorar casos de violência sobre a mulher entre casais. E coisas do género.
A propósito: a amiga que encontrei, aquela que estava a tentar ajudar a letã a apresentar queixa nos locais próprios, é francesa. Reside há larguíssimos anos em Portugal. Ela sabe o que é ser imigrante.

12/01/2006

Palaviagens

Este palavrão pretende ser uma das coisas que, admito, mais me distraem: viagens através de palavras. O mundo é tão grande e diverso, as gentes tão diferentes entre si - e ao mesmo tempo com necessidades básicas tão iguais -, o ambiente que nos rodeia tão dessemelhante por vezes, que nada há de mais natural que a comunicação seja feita babelicamente através de formas distintas e comparações divergentes. Seja como for, há muitas formas linguísticas que se inserem no mesmo tronco.
Pessoalmente, tenho conhecimento de poucas línguas. Nada sei de idiomas orientais, não entendo nem turco nem finlandês, a linguagem índia é-me totalmente desconhecida e de alguma africana só possuo uns ténues rudimentos. Daqui resulta que estou reduzido à minha língua materna, a algum conhecimento de latim e grego como línguas mortas, um pouco de espanhol e italiano como todo o português que se preza, francês, inglês e alemão q.b.
Mesmo assim, isto não impede que faça pequenas ou grandes viagens através de palavras. São viagens que tenho que interromper ao fim de cinco minutos de correria cerebral, ligações e hiperligações. A malha entretece-se de tal maneira que a certa altura é melhor largá-la, para a retomar noutra ocasião.
Ainda há pouco, encontrei num problemazito de palavras cruzadas "ausência de vontade de comer". A palavra-solução era fastio. Fastio acordou em mim o fast, inglês, que significa jejum. Passei naturalmente ao breakfast, que é a quebra do jejum geralmente designada entre nós por "pequeno-almoço". O desayuno espanhol, entretanto, dá-nos a mesma ideia. Lembrando-nos do francês, vemos que jeûner significa jejuar, donde déjeuner (almoço) é, no fundo, desjejuar. Por arrasto, o primeiro desdejum é chamado petit-déjeuner, construção que também permitiu que nós, portugueses, chegássemos ao pequeno-almoço ("mata-bicho" na versão popular. Este "bicho" continua a viver entre nós quando dizemos que "não tenho verdadeiramente fome, mas sinto aqui um bichinho..."). Já agora, o disjunare latino (quebrar o jejum) acabou por produzir também o dîner francês, que por sua vez deu o dinner inglês. Chegamos à conclusão de que o princípio que está na base dos nomes de uma boa série de refeições é o estado de sem comida. É uma lógica como qualquer outra ("o que está vazio precisa de ser enchido").
Estas palavras cruzadas trouxeram-me outra questão: um sinónimo de lagoa. Pensei em lago, mas a solução era algo que fiava mais fino. Através da combinação horizontais-verticais cheguei a palude. Fez-se-me luz. Transportei-me de regresso ao rio Cuanza na africana Angola e lembrei-me daquelas lagoas que se formavam na estação das chuvas e que posteriormente, com o calor e falta de contacto com o grande rio que as tinha formado, ficavam pejadas de infernais mosquitos. O paludismo! Desta vez, a descoberta da palavra - claro que palavra foi há muito descoberta e terá sido criada exactamente por causa disso, mas quando descobrimos algo por nós próprios trata-se pelo menos de uma descoberta pessoal - causou em mim satisfação, o que contrasta positivamente com as picadas dos anófeles que infestam aquelas paragens.
O alemão é das línguas que mais me ajudam neste entendimento das coisas. Ao não ser uma mera correia de transmissão do francês, ao contrário de milhentos vocábulos ingleses, a língua alemã analisou os conceitos e deu-lhes as formas correspondentes. Vou dar apenas dois exemplos para ilustrar o que quero dizer. Tomemos a palavra Presidente. Em alemão existe uma forma derivada do latim e outra germânica. A forma germânica é Vorsitzender, o que literalmente significa "aquele que se senta em frente". Só então verificamos que o nosso "presidente" também tem a ver com isso. O pre dá-nos a ideia de antes, ante ou perante. Juntemos-lhe o sidente, que tem naturalmente a ver com palavras como sítio, sede e sedentário, esta última a significar "que está no mesmo sítio". É a imobilidade de quem se senta em frente que lhe dá a posse da cadeira principal, um elemento que surge no inglês chairman. Esta imobilidade não indica inacção mas sim imparcialidade, o não se virar particularmente nem para uma parte nem para outra, ser imparcial. Admito que eu não teria chegado lá sem o Vorsitzender alemão.
Uma outra raiz vocabular germânica para mim de grande utilidade foi Druck, que basicamente significa "pressão". Como em francês e inglês temos préssion e pressure, semelhantes ao vocábulo português, não pensamos mais nisso. Mas quando o germânico Druck nos aparece é diferente, como em Eindruck e Ausdruck. No primeiro caso existe um prefixo que corresponde ao inglês in ou im (para dentro), no segundo um outro que corresponde a out ou a ex (para fora). De repente as palavras são re-aprendidas no seu significado mais profundo. Impressão passa a significar uma pressão, mais ou menos profunda, em qualquer coisa, e expressão uma pressão que sai. Daqui entendermos que a necessidade de nos livrarmos de uma pressão grande que nos avassala possa ser vital. Aliviamos a pressão através de algo que sai, i.e. através da expressão, que pode ser naturalmente feita por meio da comunicação oral, da escrita, da pintura e de mais mil e uma formas.
Da mesma maneira que aprendemos a ver o nosso país com olhos diferentes cada vez que vamos lá fora e tomamos contacto com outras realidades, também passamos a olhar diferentemente a língua que usamos depois de termos contacto com idiomas estrangeiros através das nossas viagens. Este horizonte alargado é a grande virtude das palaviagens.

11/26/2006

Galileo Galilei

Acabada de chegar do Teatro Aberto, onde fui ver a peça Galileo (que recomendo sobretudo pelos excelentes diálogos) vim reler o poema homónimo de António Gedeão que ainda ontem, a propósito do centenário do nascimento do poeta, tive o prazer de ouvir, na Antena 2, magistralmente dito pelo Mário Viegas.

Com a promessa de que tão cedo não volto a maçar ?vos com mais poesia, não resisto à tentação de o transcrever, apesar da extensão...

Poema para Galileo

Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,

aquele teu retrato que toda a gente conhece,

em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce

sobre um modesto cabeção de pano.

Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.

(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.

Disse Galeria dos Ofícios.)

Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.

Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria?

Eu sei? eu sei?

As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.

Ai que saudade, Galileo Galilei!

Olha. Sabes? Lá em Florença

está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.

Palavra de honra que está!

As voltas que o mundo dá!

Se calhar até há gente que pensa

que entraste no calendário.

Eu queria agradecer-te, Galileo,

a inteligência das coisas que me deste.

Eu,

e quantos milhões de homens como eu

a quem tu esclareceste,

ia jurar- que disparate, Galileo!

- e jurava a pés juntos e apostava a cabeça

sem a menor hesitação-

que os corpos caem tanto mais depressa

quanto mais pesados são.

Pois não é evidente, Galileo?

Quem acredita que um penedo caia

com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da praia?

Esta era a inteligência que Deus nos deu.

Estava agora a lembrar-me, Galileo,

daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo

e tinhas à tua frente

um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo

a olharem-te severamente.

Estavam todos a ralhar contigo,

que parecia impossível que um homem da tua idade

e da tua condição,

se tivesse tornado num perigo

para a Humanidade

e para a Civilização.

Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios,

e percorrias, cheio de piedade,

os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.

Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,

desceram lá das suas alturas

e poisaram, como aves aturdidas- parece-me que estou a vê-las -,

nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.

E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual

conforme suas eminências desejavam,

e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal

e que os astros bailavam e entoavam

à meia-noite louvores à harmonia universal.

E juraste que nunca mais repetirias

nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,

aquelas abomináveis heresias

que ensinavas e descrevias

para eterna perdição da tua alma.

Ai Galileo!

Mal sabem os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo

que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,

andavam a correr e a rolar pelos espaços

à razão de trinta quilómetros por segundo.

Tu é que sabias, Galileo Galilei.

Por isso eram teus olhos misericordiosos,

por isso era teu coração cheio de piedade,

piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos

a quem Deus dispensou de buscar a verdade.

Por isso estoicamente, mansamente,

resististe a todas as torturas,

a todas as angústias, a todos os contratempos,

enquanto eles, do alto incessível das suas alturas,

foram caindo,

caindo,

caindo,

caindo,

caindo sempre,

e sempre,

ininterruptamente,

na razão directa do quadrado dos tempos.

11/23/2006

Ouvi há poucos dias a notícia de que no Irão foi criado um Índex. Livros como O Código Da Vinci e Rapariga com Brinco de Pérola (entre muitíssimos outros que a notícia breve não referia) e música dos Beatles ou dos Queen (segundo a mesma notícia muito do agrado da juventude iraniana) foram proibidos, por perniciosos.

Estando nós às vezes um pouco esquecidos de que pela ocidental praia lusitana já perpassaram os mesmos ventos censores, aqui deixo um poema de Manuel Alegre, desses tempos de má memória:

As Palavras

Palavras tantas vezes perseguidas

palavras tantas vezes violadas

que não sabem cantar ajoelhadas

que não se rendem mesmo se feridas.

Palavras tantas vezes proibidas

e no entanto as únicas espadas

que ferem sempre mesmo se quebradas

vencedoras ainda que vencidas.

Palavras por quem eu já fui cativo

na língua de Camões vos querem escravas

palavras com que canto e onde estou vivo.

Mas se tudo nos levam isto nos resta:

estamos de pé dentro de vós palavras.

Nem outra glória há maior do que esta.

(O Canto e as Armas, 1967)

11/18/2006

O calcanhar de Aquiles de Sócrates

Em países democráticos, um político consegue geralmente ascender ao poder através de um convencimento da opinião pública de que as suas promessas são exequíveis no futuro, algo que é facilitado pela acumulação de erros graves de um seu antecessor. Prometer um futuro melhor é o que também as religiões fazem, incluindo naturalmente a cristã. O paraíso celestial aguarda os que sofrem na Terra; o pobre desta vida, se trabalhador e virtuoso, será o rico dos céus. No caso concreto das religiões, trata-se de uma questão de fé. Como realidade virtual que esta é, nunca se poderá provar se A ou B alcançaram o paraíso pós-terreno. Aliás, o mesmo acontece com os homens-bomba suicidas de outros credos. A crença num futuro bom e estável é fundamental para justificar o labor e o penar na vida.
Com um governo, porém, a questão não se põe em termos de realidade virtual, como sabemos. As pessoas querem acreditar num futuro melhor concreto e por isso lutarão se estiverem convencidas de que os seus sacrifícios resultarão num bem posterior. Baixas de ordenado e o corte de algumas regalias têm sido aceites em todo o mundo economicamente mais desenvolvido por trabalhadores que admitem esses sacrifícios em troca da garantia de manutenção dos seus postos de trabalho e, consequentemente, de estabilidade.
Em Portugal, com o arquétipo salazarista a servir de paradigma, a população apreciou o pulso forte - sinónimo de força estável - de Sócrates e a sua luta contra praticamente todos os sectores, a fim de pôr a casa em ordem o mais depressa possível. E era uma casa desgovernada em muitos aspectos, algo que aliás não se consegue corrigir da noite para o dia. Vieram ao de cima insuspeitados casos de privilégio. Tem sido elaborada nova legislação. Muitos dos efeitos práticos dessa legislação estão ainda por vir, pelo que 2007 irá doer muito mais do que 2006.
Contudo, e é aqui que reside o ponto mais vulnerável de Sócrates, conseguirá ele manter a convicção nos eleitores de que estamos a trabalhar para um futuro melhor ou, pelo contrário, tenderá a instalar-se gradualmente no país a sensação de dúvida quanto à razão do sacrifício e esforço? Se sim, isto pode ser fatal. Estar-se inseguro quanto à manutenção da denominada segurança social é um paradoxo não só de palavras. Estar-se inseguro perante o emprego é atroz. Verificar que a nossa dependência não diminui, antes pelo contrário se acentua. Ter a sensação de que a corrupção política e empresarial continua a grassar, talvez apenas com um desmando menos acentuado. Registar que estamos a ser ultrapassados em ranking de bem-estar por países que há anos estavam muito atrás de nós. Ver os encargos com a saúde tenderem a aumentar no futuro. Assistir a défices orçamentais que teimam em persistir e são inegavelmente superiores ao estabelecido pelo PEC europeu, a despeito da alienação constante de bens do Estado e das vultosas remessas de Bruxelas. Tudo isto conduz a uma pergunta.
A pergunta "Valerá a pena?" é a que não pode instalar-se na população portuguesa. Se sim, desmorona-se de vez o edifício da confiança. A nação não conseguirá distinguir o seu rosto no futuro. E sem essa crença de que estamos a trabalhar para um amanhã mais justo, estável e seguro, Sócrates ou qualquer outro governante terá tantos problemas que acabará por soçobrar. É por isso que este mundo de extraordinário desenvolvimento em vários países, incomparavelmente melhor que no passado, está difícil. Somos todos terrivelmente dependentes dos que são economicamente mais fortes. Podemos fazer o nosso melhor, mas um jogo de preços de energia no mercado internacional pode deitar tudo a perder, por exemplo.
Seja como for, se não corrigirmos as múltiplas situações de injustiça social, o que inclui um vigoroso combate à corrupção com medidas exemplares, tudo ficará pior. A alternativa continua a ser a imaginação criadora, o trabalho profícuo, uma educação de bom nível e, sem dúvida, a confiança no futuro.

11/04/2006

À distância

Lê-se no jornal: "Presidente afegão critica ataque da NATO que matou civis". Responsáveis falam em cerca de 60 vítimas, incluindo um grande número de civis. Há uma semana morreram nove civis numa outra operação da NATO em Kandahar. O pior incidente deste género terá ocorrido em Julho de 2002: um raide norte-americano matou 46 civis e deixou 117 feridos. A maioria das vítimas estava numa festa de casamento. A notícia lembra ainda que os pilotos chegaram a bombardear membros da força internacional, tendo havido um soldado canadiano morto por fogo vindo de aviões americanos em Setembro deste ano.
No Outono de 1898, o general britânico Kitchener, posteriormente agraciado com um grau honoris causa em Cambridge, abriu o vale do Nilo "à influência civilizadora dos empreendimentos comerciais". A vitória das suas tropas sobre os sudaneses em Omdurman significou a morte de 11 000 sudaneses, contra 48 britânicos. Uma desproporção imensa! Essa batalha constituiu um exemplo típico da morte à distância, uma especialidade europeia na altura. Nunca nenhum sudanês esteve a menos de 300 metros das tropas britânicas.
Antes da Revolução Industrial, a principal exportação europeia era a força. Por todo o resto do mundo, os europeus eram vistos como guerreiros nómadas ao estilo dos mongóis e dos tártaros. Enquanto estes estabeleciam a sua supremacia da garupa dos cavalos, os europeus faziam-no do convés dos seus navios. Mesmo povos que eram mais avançados do que os europeus - por exemplo, os indianos - não tinham navios capazes de resistir ao fogo de artilharia ou de transportar armas pesadas. Em vez de melhorarem a sua frota, os mogóis preferiram comprar serviços de defesa aos Estados europeus, que assim não tardaram a ver-se numa posição que lhes permitia assumir na Índia o papel de governadores. No século XVI, os europeus tornaram-se deuses de canhões que matavam muito antes de as armas dos seus opositores os atingirem. Trezentos anos mais tarde, esses deuses tinham conquistado um terço do mundo. Em última instância, o seu reinado assentava sobre o poder dos canhões dos seus navios.
Ao conceber o primeiro barco a vapor, Robert Fulton acabou por incrementar decisivamente o poderio militar de algumas nações, que assim começaram nos meados do século XIX a transportar canhões europeus para o interior da Ásia e da África, abrindo uma nova era na história do imperialismo. A canhoneira tornou-se um símbolo do imperialismo em todos os principais rios africanos - o Nilo, o Níger e o Congo - possibilitando aos europeus controlarem pela força das armas áreas imensas até aí inacessíveis.
E as espingardas? Bem, aí também os europeus atingiram uma superioridade absoluta. Até meados do século XIX a arma típica era o mosquete de pederneira, carregado pela boca e com cano de alma lisa. Era uma arma que podia ser igualmente fabricada pelos ferreiros dos povoados africanos. O alcance do mosquete não chegava a cem metros, embora fizesse um barulho assustador. Com a descoberta da espoleta e depois do cano de alma estriada, o mosquete melhorou extraordinariamente de precisão. Em 1853, os britânicos criaram as espingardas Enfield, que já tinham um raio de 500 metros mas ainda obrigavam os soldados a pôr-se de pé para dispararem. Foram usadas pela primeira vez nas colónias. Na Prússia, introduziram-se entretanto vários avanços técnicos nas espingardas. Em 1866, durante a guerra entre Berlim e Viena pela hegemonia da Alemanha, os prussianos conseguiam disparar sete vezes as suas espingardas no tempo que levava os austríacos, de pé, a carregar e disparar um tiro apenas. O resultado foi o previsível. Em 1869, os britânicos passaram para a Martini-Henry. Seguiram-se os franceses com a espingarda Gras e os prussianos com a Mauser, ainda usada pelo exército português na década de 1960. Assim, os europeus eram superiores a qualquer inimigo concebível dos outros continentes.
Imagine-se agora no século XXI em que nos encontramos. Os europeus e, particularmente os americanos, estão claramente à frente de todos nestes aspectos de tecnologia militar. É fácil destruir casas alvejando-as de bordo de um avião a uma considerável distância, ou atingi-las com mísseis de grande poder de destruição, ou ainda arrasá-las de dentro de um tanque armado. Tudo à distância.
Quando se trata de ocupar as zonas bombardeadas, de patrulhar estradas e ruas, aí o caso muda bastante de figura. Mas a primeira parte do show pode ser tão demolidora que leve imediatamente à rendição total: veja-se os casos de Hiroshima e Nagasaqui em 1945.
É sempre bom ter coisas deste tipo presentes quando vemos, ouvimos ou lemos as notícias.

Nota: Uma parte significativa desta informação foi retirada do livro de Sven Lindqvist Exterminem Todas as Bestas, publicado entre nós pela Caminho e que recomendo fortemente a todos os que se interessam por Colonialismo.

10/30/2006

Língua delatora

Ainda hoje ouvi alguém dizer na televisão que os portugueses não são de maneira nenhuma racistas e que gostam imenso de estrangeiros. É possível que nós não soframos de males desse género mais do que outros povos, mas parece ingenuidade acreditar que não há nenhuma pitada de antagonismo relativamente àqueles que não são nascidos no país. Não é a turistas que me refiro, que aí os portugueses compreendem que eles são uma boa fonte de divisas e portanto seria um sacrilégio estar contra. É para com os mais próximos, os que vêm montar tenda cá, para ficar por um período mais ou menos longo. É aqui que a língua é delatora.
Nem árabes, nem mouros, nem galegos, nem espanhóis, nem judeus ficam sem um pequeno epíteto pouco simpático. É conversa que vem de longe, de há muitos muitos anos, mas que a língua conservou até aos dias de hoje. É verdade que muitos portugueses não associarão o qualificativo à sua origem, mas que há expressões pejorativas, substantivos, adjectivos e coisas do género, isso é inegável.
A nossa paixão pelos árabes deixou na língua, entre outras, a palavra "alarve". Ser um alarve (= árabes) é ser rude e grosseiro, um bruto. Uma alarvice é uma acção própria de um alarve. Os mouros, que nos ficaram sempre mais próximos, ainda são hoje depreciativamente usados pelas gentes do Norte para classificarem aqueles que vivem mais a sul. "Trabalhar como um mouro", "mourejar" é ser submetido a uma labuta severa, o que imediatamente o coloca na mó de baixo.
Algo como sucede com os africanos, que nos levaram a criar expressões como "trabalhar é bom para o preto", sintoma inequívoco, tanto no caso do mouro como do preto, de que o branco manda e descansa, enquanto os outros mourejam. Além disso, a cor preta foi - não só cá, naturalmente - associada ao pecado ("negro como o pecado"), e a situações pouco brilhantes, como quando se diz que "a coisa está a ficar preta". A brincar, a brincar, lá se vai insinuando uma superioridadezinha.
A norte de Portugal fica a Galiza, de onde vieram muitos honrados habitantes ganhar a vida em Portugal. Tanto bastou para que o epíteto de galego se tornasse depreciativo. Fazer uma galeguice ou uma galegada é fazer asneira, algo errado.
Os judeus, que constituíram uma comunidade muito visível no nosso país, não escaparam também ao apodo. E mesmo aqueles que se converteram ao cristianismo foram denominados de marranos, isto é, porcos. Mas nós detestamos vermo-nos hoje incluídos na designação que os protestantes do Norte usam para alguns países da União Europeia: pigs (iniciais de Portugal, Italy, Greece, Spain). Judiar, fazer judiarias, "não sejas judeu!", são coisas que se continuam a dizer hoje com grande frequência. Ser judeu é, entre outras coisas, ser avarento, o que não é uma qualidade positiva. Judiar é troçar ou zombar, fazer maldades, no fundo associar, à la Bush, os judeus ao eixo do mal, sendo nós o eixo do bem. Uma judiaria é geralmente uma diabrura, o que nos faz estabelecer uma ligação entre o pobre judeu e o diabo. Tudo sem querer, é claro!
E quanto aos espanhóis, é melhor que fiquem longe. Adaptámos aqui o ditado que Barcelona arranjou há uns séculos para Madrid "De Espanha, nem bom vento, nem bom casamento" (De Madrid, ni bona vent ni bona gent.) Um português que mexe nos artigos expostos é acusado de "ser como os espanhóis - é preciso mexer para ver").
Os ingleses são "bifes", os franceses "franciús" e os americanos "camones", com as suas americanices.
Dizer que gostamos de todos os estrangeiros e de todos os que não vivem na nossa terra é capaz de ficar um bocadinho longe da realidade. Cada um gosta de si e da sua comunidade. E que outros não nos venham chatear muito!

10/28/2006

Há bens que vêm por mal

O editorial do Público de hoje, sábado, levanta um dos meus temas favoritos. A propósito da vida fácil que, desde há várias décadas, o Governo da Madeira tem tido graças aos dinheiros idos do Continente e de Bruxelas, o articulista salienta que Alberto João nunca se viu obrigado a tomar medidas difíceis - tal como sucede com países ricos em matérias-primas valiosas (petróleo, ouro, diamantes, etc.). Tem muita razão. E esses governos costumam ser profundamente autocráticos (não fazem autocrítica e são rodeados por uma corte de fidelíssimos).
O interessante é, todavia, alongar esse pensamento ao Portugal dos Três Impérios (o da Índia, primeiro, do Brasil, depois, e de África, por fim). Este "por fim" não é, contudo, bem real, porque temos tido desde 1986 - embora de maneira diferente e com consequências que todos estamos a sentir - o Império de Bruxelas, que nos tem mandado dinheiro a rodos. Muitas das reformas necessárias já teriam possivelmente sido realizadas se não tivesse havido esse dinheiro. Como se sabe, é a necessidade que aguça o engenho.
Em termos de realidade política, se há males que vêm por bem, há igualmente bens que vêm por mal.

10/26/2006

Pode falar-se do Ocidente como um bloco?

Nos últimos cinco ou seis anos, a Gulbenkian tem organizado no mês de Outubro jornadas interessantes sobre vários temas, v.g. Globalização, Migrações, Relações Internacionais e União Europeia. Desta feita, o tema escolhido foi "Que Valores para este Tempo?". A sessão da tarde de hoje, mais monótona do que é habitual, foi acordada pelo último orador, o americano Robert Kagan. Propuseram-lhe falar sobre a temática do Fim da História. Kagan, de 48 anos, é autor de vários livros, escreve para revistas e jornais e está presentemente sediado em Bruxelas. Tem bons conhecimentos e declara-se abertamente neo-liberal. Simpático e comunicativo, apresentou o assunto de forma viva.
Realçando a importância decisiva do final da Guerra-Fria (1989), que transformou um longo período de sistema bipolar (Estados Unidos e Europa versus bloco soviético) num mundo mais unipolar, com larga predominância militar americana, deu ênfase ao facto de se ter acreditado na década de noventa na possível adopção de um sistema universal de governo baseado no liberalismo (Fim da História), que a prática tem mostrado não ser viável. Neste sentido, referiu-se aos caminhos mais ditatoriais mas não necessariamente menos bem sucedidos trilhados pela China e pela Rússia. Salientou igualmente a mudança de posicionamento da Europa face aos EUA. Esta nova atitude dever-se-ia ao facto de a Europa, fora do antigo sistema bipolar, já não necessitar dos EUA para a sua segurança.
Num inquérito recente realizado dos dois lados do Atlântico, a resposta a uma das perguntas - concretamente, "Admite que, em determinadas circunstâncias, a guerra pode ser necessária para impor a justiça?" - 80 por cento dos americanos inquiridos responderam "sim", resultado que contrasta enormemente com os 30 por cento de respostas afirmativas que a pergunta colheu na Europa. Daí que, para Kagan, os Estados Unidos possam ser comparados a Marte, deus da guerra, sendo a Europa comparável a Vénus, deusa do amor e da temperança. Deste posicionamento diferente, resulta que os europeus não consideram legítimas várias das acções bélicas dos Estados Unidos, enquanto que para a esmagadora maioria dos americanos essas acções surgem como perfeitamente legítimas, mesmo que não aprovadas pelo Conselho de Segurança da ONU, órgão que consideram ultrapassado. Ainda hoje os americanos se julgam portadores do facho que ilumina o mundo (o tal superiorismo, termo que aqui usei pela primeira vez há umas semanas). A generalidade dos seus compatriotas, disse Kagan, aceita sem pestanejar que o seu país gaste 400 biliões de dólares por ano na defesa. Kagan admitiu, no entanto, que nunca houve um período da História em que os EUA tivessem entrado em tantos conflitos armados e que se estão a aproveitar da oportunidade que entretanto se lhes deparou. Negou que se tratasse de política do actual presidente, pois tanto Bush (pai) como Clinton e George W. tomaram decisões no mesmo sentido. Tratar-se-á de uma estratégia consistente. Desde 1989, os Estados Unidos já entraram em 14 novos conflitos, o que dá em média uma intervenção armada de 18 em 18 meses! Liberalismo e armamento não são, segundo Kagan, contraditórios para os americanos.
Dado que esta atitude é quase diametralmente oposta à europeia, presentemente a legitimidade dos Estados Unidos é posta duramente em causa na Europa. Daí que, entre outras razões, não faça muito sentido falar do Ocidente como um bloco. A legitimidade das acções interventivas dos Estados Unidos é posta internacionalmente em questão, o que não é bom para o país e obviamente afecta a sua imagem.
Este é um breve resumo da intervenção de Kagan, que provocou, como seria de esperar, algumas reacções fortes. A mais contundente, e fortemente aplaudida, foi de um professor inglês da Westminster University. Curiosamente, John Keane, o professor em questão, vai ser um dos conferencistas no último dia das jornadas, na próxima sexta-feira.

10/23/2006

TLEBS

Se hoje consigo escrever num português mais ou menos escorreito, devo-o em grande parte às boas bases que recebi na instrução primária. A compreensão da estrutura do português contribuiu enormemente para a minha fácil aprendizagem de línguas estrangeiras. Como já possuía o software afinado e consolidado, bastou proceder a alguma adaptação. Entretanto, não me falem muito em crases, apócopes, aféreses, metalinguagem e outros nomarecos esquisitos. Existem, mesmo assim, categorias que são verdadeiramente basilares: substantivos, adjectivos, artigos, preposições, pronomes, advérbios, conjunções, verbos, orações com sujeitos, predicados, complementos directos e indirectos.
Como sabemos, posteriormente ao 25 de Abril, veio uma nova vaga de terminologia com a gramática generativa, o que fez com que os professores tivessem que aprender muito de novo. Houve quem o fizesse com relutância. Criou-se uma notória confusão na terminologia a usar. Devo confessar que os alunos que me apareceram no ensino superior provindos do ensino secundário não mostravam grandes conhecimentos da estrutura da língua. A sua preparação era, no geral, pouco consistente.
Eis que, presentemente, estamos em vias de ensaiar uma nova terminologia. Dão-lhe o nome de TLEBS (Terminologia Linguística para o Ensino Básico e Secundário). Tlebs ou não tlebs eis a questão. Consultei a Net sobre o assunto e, para começar, encontrei vários professores com sérias dúvidas. Incluo-me nesse grupo.
Li a Portaria nº 1488/2004, que inclui o essencial sobre a TLEBS. Encontrei diferenças muito significativas relativamente àquilo que aprendi. Se fosse para melhor, não estaria mal, mas admito que não gostei muito do que vi.
Os substantivos deixam de existir, substituídos que são pelos nomes. Não tenho nada contra esta mudança, até porque sempre falámos em pronomes (e nunca em prosubstantivos). Os pronomes mantêm-se. Assim como se mantêm os artigos definidos e indefinidos, os adjectivos, os verbos, os advérbios, as preposições e as conjunções. As famosas orações é que vão praticamente desaparecer, ficando unicamente reduzidas às relativas. A partir de agora, as orações do passado serão frases, o que se torna bastante confuso. E estranho. Lembremo-nos de que uma frase pode conter mais do que uma oração.
Mesmo assim, até aqui não parece existirem grandes dificuldades. Elas surgem, porém, ou pelo menos a mim causam sérias dúvidas quando encontro temas adjectivais, modificadores do nome apositivo, verbos abundantes, palavras lexicalizadas, nomes epicenos, verbos auxiliares aspectuais, quantificadores universais, advérbios disjuntos restritivos da verdade da asserção, frases subordinadas substantivas relativas sem antecedente, frases não finitas infinitas, modificadores do nome restritivo, sujeitos nulos expletivos e actos ilocutórios declarativos.
Estaremos mesmo a mudar para melhor? Se esta terminologia não é nem lógica nem fácil para professores, como será para os alunos? Sente-se que quem preparou esta TLEBS está tão próximo da modernidade linguística quanto está longe da realidade das nossas escolas básicas e secundárias.

10/21/2006

A saga da electricidade e o truque do camelo

Quando nos querem vender uma coisa cara, pode suceder que comecem por nos pedir um preço bem mais alto do que aquele que têm em vista. Depois iniciam a descida, excepcional e só para nós. Quando chegam ao limiar desejado, aquilo que dantes era caro parecer-nos-á até em conta. Compramos. Fomos na onda.
Este é o que vulgarmente se apelida de "truque do camelo": imaginemos que precisamos de um camelo para transportar uma carga de 300 quilos. Posto o camelo de joelhos no chão, colocamos-lhe os 300 quilos em cima e, apesar dos nossos incitamentos, o camelo não é capaz de se erguer. Carregamo-lo então com mais cem quilos e pedimos-lhe para se levantar. Nem pensar, claro! Contudo, quando lhe retiramos os 100 quilos que pusemos a mais, o camelo, sentindo o alívio, logra levantar os 300 quilos que a princípio pretendíamos.
A saga dos preços da electricidade para 2007 acaba por ser algo como isto. Os quase inacreditáveis 16 por cento de aumento anunciados acabaram por ser "apenas" 6 por cento. Se nos tivessem anunciado 6 por cento desde o início, consideraríamos a subida elevada. Assim, até parece que vamos ter uma descida!

10/19/2006

Cidadãos de voto e cidadãos de veto?

Relativamente ao orçamento de Estado para 2007, o Ministro das Finanças afirma que as alterações introduzidas no funcionalismo público correspondem a 30 por cento do défice. Acredito. Com congelamento de salários, congelamento de progressão em diversas carreiras, congelamento de passagens a reforma em múltiplos casos, descontos acrescidos para a ADSE, agravamento de taxas para pensionistas, abaixamento das regalias sociais e imposição de novas taxas ditas moderadoras no capítulo da saúde e outros itens penalizadores, não custa a acreditar que sejam atingidas verbas consideráveis, as quais servirão para abater o défice.
Entretanto, o argumento mais vezes aduzido é o das condições de privilégio dos funcionários públicos relativamente aos cidadãos do sector privado. O pior é que estes são igualmente penalizados em múltiplos casos, como sucede com milhares e milhares de trabalhadores independentes relativamente à chamada escrita simplificada, que tendo desde há anos o direito de abater 35% da verba para efeitos de IRS vêem agora essa percentagem ser reduzida para 30 por cento. Será que é para que os futuros cidadãos não encarem os actuais como privilegiados?
A jogada cénica do governo, gerindo as expectativas das pessoas e criando antagonismos entre grupos - trabalhadores do sector privado contra os funcionários estatais, jovens contra idosos, pais contra professores, etc. - tem sido bem urdida mas cria, inevitavelmente, um desgosto relativamente ao mensageiro e executor, que é o governo.
Entretanto, os inacreditáveis aumentos de lucro da banca, as seguradoras, as empresas sediadas no off-shore da Madeira e, na generalidade, as grandes empresas não são taxadas de forma socialmente justa. Não há dúvida de que, entre o capital e o trabalho, é este o mais taxado. Por que razão sucederá isto com um governo que se diz de esquerda, mas que afinal, na sua política de saneamento das contas da nação, parece ser mais de direita? Haverá algum relacionamento entre esta situação e o financiamento dos partidos? Será que os lóbis dos poderosos actuam de forma a impedir que sejam tomadas medidas que os prejudiquem drasticamente? A ser assim, a esmagadora maioria dos portugueses que colocam o seu papelinho na urna eleitoral são meros cidadãos de voto; os outros, decerto uma minoria mas muito representativa tanto económica como politicamente, serão os cidadãos de veto. Entender-se-á bem porquê.

10/17/2006

Cidadania portuguesa

Há uns três meses, fui abordado por duas brasileiras junto ao antigo cinema Império, em Lisboa. "O senhor me diz se esta é a rua do Dr. Afonso?" Fiquei um pouco aturdido com a pergunta. Uma delas apontou-me para a placa. Li: Alameda D. Afonso Henriques. Não pude deixar de sorrir e confirmar-lhes que estavam no local certo.
Se recordo este caso, é porque, também há alguns meses, os jornais noticiaram que uma brasileira que aparentemente preenchia todos os requisitos legais para se tornar cidadã deste país - era casada com um português, residia em Portugal, pagava impostos, descontava para a Segurança Social, tinha casa própria e um filho na escola -, viu o Ministério Público entender que, em vista do seu desconhecimento de aspectos elementares da cultura portuguesa, ela não se encontrava em condições de adquirir a cidadania lusa. A senhora não sabia quem tinha sido o fundador do reino de Portugal, ignorava Camões e desconhecia o nome do Presidente da República.
O advogado a quem o casal recorreu levou logo a seguir o caso a tribunal. Argumentou que os conhecimentos da senhora brasileira não eram, afinal, muitos diferentes dos de muitos cidadãos portugueses. Acrescentou que, para além da informação que lhe é fornecida pelos media, a senhora conhece uma grande parte de Portugal Continental através das viagens que tem feito com o marido e pessoas amigas. O tribunal aceitou a argumentação, contrariou a anterior decisão do Ministério Público e atribuiu à cidadã brasileira a nacionalidade pretendida.
Os concursos que vemos na televisão e que nos fazem frequentemente espantar de tanta ignorância afinal servem para alguma coisa.

10/06/2006

Mais de 65

Por vezes coloco-me a questão: por que motivo se convencionou considerar a idade de 65 anos como a mais adequada para a reforma? Por que não 60 ou 70? Admito que antes de 60 seria demasiado cedo, e aos 70 já demasiado tarde. Ter-se-á optado por 65 para fazer como nos contratos: o vendedor pede mais, o comprador oferece menos, e para que o negócio se faça dividem a diferença ao meio.
E estará bem essa idade? Da mesma maneira que nenhum chapéu serve em todas as cabeças, também a mesma idade não pode servir de forma idêntica todos os corpos e todas as mentes. Mas, no geral, pelo que me tem sido possível ver, incluindo o meu próprio caso, 65 é uma idade bastante correcta. E porquê?
Por volta dos 65, a maioria das pessoas já começa a sentir o peso dos anos. Por vezes é a mente a primeira a ressentir-se; outras vezes é o corpo, no seu aspecto mais físico. Na maioria das profissões, a novidade começa a desaparecer. Inicia-se uma certa saturação. Começamos a ser demasiado velhos para lançar novidades que outros aceitem e, por outro lado, recomeçamos a ouvir aquilo que já conhecemos demasiado bem. Trata-se de coisas que, apesar de nos serem apresentadas como novidades, já conhecemos há mais de vinte anos e que agora não podem deixar de nos parecer requentadas ou mesmo requentadíssimas. Porém, ao serem apresentadas como novas, atiram-nos para uma situação de grande incomodidade. É como se já tivéssemos chegado ao fim de um ciclo. E teremos de facto chegado.
Cito dois ou três exemplos apenas. Leio as parangonas de um congresso recentemente realizado no Algarve: "Portugal precisa de turismo cultural, não apenas de sol e praia." Nos anos sessenta do século passado eu já ouvia a mesma cantilena. Mais: eu próprio defendi esse ponto em várias palestras e, certamente, em aulas.
Noutro campo, ouvir os políticos a falarem, como sempre, dos amanhãs que serão paradisíacos, leva-me a murmurar para mim próprio "Há quanto tempo oiço isto?".
Aqui e além, surgem uns tantos pacóbvios (pacóvios que dizem o óbvio) a afirmarem pomposamente que "a educação está na base de tudo". Como se fosse uma novidade que acabassem de descobrir!
Oiço uma voz sensata a dizer-me "É preciso não deixar morrer a esperança!" Pois sim, mas há uma terrível sensação de reprise. São outros os actores, mas as falas e as cenas são as mesmas.
Com excepção de alguns verdadeiramente interessantes, os comentários de muitas pessoas começam a enfadar-nos, as conversas a impacientar. Só um projecto verdadeiro pode acalentar-nos. E acalentar significa "aquecer". Mas será difícil arranjarmos outros que colaborem connosco em projectos. Teremos geralmente de os fazer sozinhos. Entretanto, estamos claramente a entrar na mó de baixo. A memória pode falhar. A corrida já não é a mesma. A flexibilidade do corpo, aquele musculado jogo de ténis, os 50 quilómetros de bicicleta, onde é que isso já vai?
Os outros ouvem-nos mais por respeito do que por outra coisa. Começamos a sentir-nos fora do mundo. Os jovens ficam admirados se nos ouvem a falar do MySpace, do YouTube, de PDAs, de um jogo novo para a Playstation. Tornamo-nos abencerragens. Sobrevêm-nos as rugas e as manchas na pele. As senhoras começam a pedir insistentemente que não lhes tirem fotografias de muito perto. Quem exerceu uma actividade com prazer durante largos anos pergunta-se "Como é que dantes eu conseguia ter tempo e gosto para fazer tanta coisa?"
Depois, os filhos atiram frequentemente os pais para tratar dos netos. A questão é que tanto os netos como os avós estão um tanto fora deste mundo, uns por não terem ainda compreensão suficiente, os outros por já terem perdido um pouco essa compreensão e certamente também o vigor.
Depois há os chatos, velhos de velhice, que só falam de doenças e das suas idas ao médico. Vivem encasulados no seu mundo. A um cordial "Como está?", respondem com uma explicação cabal. Aproveitam a oportunidade para falarem de si próprios, já que poucos denotam algum interesse verdadeiro por eles.
Quem atingiu os 65 já nem interessa ao pessoal da empresa de telemarketing que os contacta para "responder a este brevíssimo questionário". Já passou o seu tempo. A sociedade já não vê qualquer utilidade na sua opinião. É a vida!

Atenção! E não há nada de bom, nada de favorável? Vamos deixar os lamurientas choros e olhar para alguns lados positivos. Admitindo que essas pessoas de 66, 68, 73 ou 75 anos já usufruem de uma reforma e não possuem, por conseguinte, um trabalho regular, já se pensou no tempo livre de que agora dispõem? Pessoas que durante grande parte da sua vida se queixaram constantemente da falta de tempo têm-no agora todo, ou quase todo. Podem deliciar-se em leituras, frequentar cursos, aprender técnicas artísticas e outras para as quais nunca lhes sobraram horas, dar uma mão a um amigo que gosta de carpinteirar, sentar-se com conhecidos sem estar sempre a olhar para o relógio na esplanada de um café, ler o jornal repimpadamente em casa ou na rua, dormir até mais tarde. Se houver dinheiro para isso, poder viajar no fora-de-estação é algo extremamente agradável: os preços são mais baixos, os turistas são poucos, as terras aparecem com a sua vida própria e não artificial. É possível a essas pessoas sair de segunda a sexta sem quaisquer problemas, enquanto o comum do trabalhador terá de limitar-se aos fins-de-semana, com todos as enchentes e os engarrafamentos conhecidos. E quanto a viajar em transportes, os indivíduos com idade superior a 65 são largamente beneficiados. Começam por poder tirar o passaporte com desconto. Se utilizam os comboios nacionais, têm direito a uma redução de 50 por cento, o que torna as viagens francamente mais acessíveis. Nas cidades, os passes sociais dão-lhes um benefício também dessa ordem de grandeza. Até quando viajam em carreiras de autocarro entre duas localidades distantes beneficiam desse desconto. Em supermercados chegam a ter caixas prioritárias. Nos cinemas têm preços mais reduzidos. No caso dos arrendamentos habitacionais, possuem regalias que são negadas a outros. O que mais querem? O choro queixoso dos parágrafos acima pode estar certo, mas é preciso temperá-lo com estes ingredientes positivos, que, admitamo-lo, não são nada despiciendos.

10/05/2006

Bem!

Todo o meu aplauso para a campanha planeada para começar dentro de poucos meses com o desígnio declarado de incentivar a compra de produtos nacionais pelos portugueses. O slogan principal, "Cá se fazem, cá se compram!", é interessante.

10/04/2006

Matriz de Acontecimentos (04 Outubro 2006)

Decorre até 15 de Outubro a ?Festa do Cinema Francês? e a nona edição doFestival Nacional de Teatro de Marionetas de Alcobaça - "Marionetas naCidade 2006".

Quarta-feira, dia 4:

às 22h00, no Teatro Miguel Franco, Leiria, Jeffery Davis Quartet seguido por Laurent Filipe.

Quinta-feira, dia 5:

?Palácio Aberto?: visitas ao Palácio de Belém e entrada grátis no Museu da Presidência.

às 21h30, na Igreja de São Luís dos Franceses, ?IX Festival Internacional de Órgão de Lisboa?: "Action de Grâces" - O Simbolismo na Música Francesa antes de 1939 (Duruflé, Vierné, Alain, Dupré, Messiaen, Martin e Eugénio Amorim) por Ana Leonor Pereira (soprano), João Pedro Fonseca (flauta) e António Esteireiro (órgão).

Sábado, dia 7:

às 15h00, no CAMJAP (?Centro Arte Moderna da Gulbenkian?) visita temática do ciclo ?Géneros e Modos? ?O Peso e a Leveza: a Matéria Como Discurso? por Susana Anágua.

às 22h00, no Sport Operário Marinhense, Marinha Grande, Jacinta.

Domingo, dia 8:

às 12h00, no CAMJAP (?Centro Arte Moderna da Gulbenkian?) visita temática do ciclo Ciclo ?Géneros e Modos? ?A Linha e o Traço, o Desenho como Princípio? por Hilda Frias.

Segunda-feira, dia 9:

às 21h30, na Sé, concerto de encerramento do ?IX Festival Internacional de Órgão de Lisboa?: "W.A. Mozart nasceu há 250 anos" por Ana Ferraz (soprano), Susana Teixeira (meio-soprano), João Rodrigues (tenor), Hugo Oliveira (barítono), Antoine Sibertin-Blanc (órgão), Coro de Câmara de Lisboa, Sinfonietta de Lisboa, Vasco Pearce de Azevedo (direcção).

Terça-feira, dia 10:

às 19h00, no Foyer do Teatro D. Maria, concerto (com transmissão directa na Antena 2) de Inês Simões, acompanhada ao piano por Daniel Godinho, - Mozart, Richard Strauss, Chausson, Poulenc, Brahms e Villa-Lobos;

às 23h15, na 2:, Ana Sousa Dias conversa com Germano Almeida.

Quarta-feira, dia 11:

às 18h00, na Gulbenkian, conferência ?A Alimentação?, pelo Prof. José Moura, do Ciclo ?A Ciência e a Cidade?.

Quinta-feira, dia 12:

às 18h30, na Gulbenkian, conferência inaugural do Fórum Cultural ?O Estado do Mundo?, pelo Prof. Homi K. Bhabha.

A seguir:

de 14 a 21 de Outubro, 9ª edição da Festa no Chiado.

24 de Novembro, no CC de Belém, concerto da Jacinta.

Download do ficheiro das Sugestôes (04 Outubro 2006)

Bom fim de semana

JMiguel

10/03/2006

Ombros mais fortes

"Nas tuas orações, não peças cargas mais leves, mas sim ombros mais fortes" é um pensamento interessante. Considero-o tipicamente protestante, puritano. O católico tenderá a pedir cargas mais leves. Em certa medida, é o desafio contra a desculpa. A desculpa amolece e desresponsabiliza, o desafio enrijece e consciencializa a responsabilidade.

9/30/2006

Experiência nova de um professor

Já tem sido dito e redito: há quem ensine por gosto e quem ensine por mera necessidade. Geralmente, quem ensina por gosto comunica muito mais. Esforça-se, mas o esforço passa-lhe ao lado. É a sua vida, aquilo de que gosta: transmitir os seus conhecimentos a outros, deixar que os alunos o questionem e o façam avançar no seu prazer de ensinar coisas novas.
Imagine-se agora este professor a não poder ensinar. A razão, no caso verídico que vou contar, não é uma doença grave ou uma arreliadora perna partida. Nem falta de colocação. Não pode ensinar porque não tem alunos. Mas é do quadro. Há outros que não são do quadro e estão a ensinar. Ele não pode. E não pode porque foi este ano colocado através de uma afectação administrativa. Que o afecta, não administrativa mas psiquicamente. Expliquemo-nos melhor:
Como professor do quadro de zona pedagógica, algo que assume a sigla QZP, o referido docente julgava ter adquirido o direito a colocação, com turmas atribuídas, numa instituição do seu quadro. Contudo, tem acontecido que as escolas, pressionadas por directivas emanadas do Ministério, têm colocado menos horários a concurso. As razões são várias, tais como o término das reduções da actividade lectiva, um número menor de alunos e turmas maiores. Como resultado destas medidas, existem centenas de professores em QZP por colocar. O Estado vê-se obrigado a pagar o vencimento a pessoas que não estão a leccionar. Todas as semanas, a Direcção-Geral de Recursos Humanos da Educação apresenta, naquilo que designa por "cíclicas", os horários que ficaram ainda por atribuir, sendo estes na sua maioria temporários. "Neste momento", escreve-me o professor em questão, "tenho ainda uma série de pessoas à minha frente." Prossegue: "Gritarão alguns: Porque te preocupas? Recebes o ordenado na mesma!"
No entanto, neste caso como em tantos outros que conheci ao longo da minha carreira no ensino, não se trata de simples questões monetárias. É de todo o prazer de ensinar que ele se vê privado.
Deixemo-lo narrar a situação: "Estou a cumprir um horário de 35 horas semanais. A lei obriga a escola a fazê-lo, uma vez que não tenho actividade lectiva. Então, se exceptuarmos seis horas que tenho destinadas aos clubes (aqui há verdadeiramente alguma continuação do trabalho do ano anterior), passo 29 horas na escola, disponível para dar aulas de substituição. Há dois tipos de aula de substituição: a substituição programada, em que um professor, sabendo que irá faltar num determinado dia, deixa um plano de aula e um colega seu, do mesmo grupo, vai leccionar em sua vez. Estas substituições funcionam. Depois há as imprevistas. Nestas, quando um docente falta, irá um outro (eu, por exemplo) entreter as crianças durante aquele período. Não há qualquer plano. Fará algum sentido isto?! Esta situação acarreta também outros problemas. Há a questão da progressão e da avaliação: como poderá progredir um professor que não leccionou uma única turma durante o ano lectivo? E como será avaliado? Outro problema é o do estatuto e da imagem. Sinto/vejo os olhares reprovadores dos meus colegas. Trocaria de bom grado as minhas 35 horas de administrativo por 24 de actividade lectiva. Aposto que a maioria considera que eu estou contente com esta situação e que deve ser óptimo não ter turmas. Não é de todo! Espero que tudo se resolva rapidamente. Será pedir muito, um professor do quadro ter uma aulitas para dar? Se estão a pagar, porque não dividem as turmas e aumentam a qualidade do ensino? Esta situação nunca veio referida na comunicação social."
(Como se poderá imaginar, pedi e obtive autorização do professor em questão, apesar de ele não estar minimamente identificado, para colocar este post no blog.)

9/25/2006

Filosofia

Quando uma determinada disciplina do nosso sistema educativo não tem exame nacional de acesso ao ensino superior, ao contrário de outras, essa disciplina fica obviamente com um papel menorizado. Se a Língua Portuguesa tem exame, e o mesmo se passa com Matemática, com o Inglês, o Alemão, a Física, Geografia, a História, a Química, a Geometria Descritiva e tantas outras disciplinas, não sobram dúvidas de que negar a existência desse exame a Filosofia é passar-lhe um atestado de menoridade. Falar na necessidade de desenvolvimento de massa crítica em Portugal, de alunos que saibam pensar, conceptualizar, abstrair e, em seguida, menorizar a Filosofia, constitui uma enorme incongruência. Dir-se-ia que se pretende pôr em execução um conhecido slogan publicitário: Don't think. Just do it!

Publicidade dos Ecopontos

É, no geral, interessante e bem feita a publicidade que utiliza crianças como actores relativamente à separação de embalagens nos Ecopontos. Contudo, creio que os adultos precisam também de resultados concretos para colaborarem mais a sério. O que se tem feito entretanto com o vidro reciclado? Dêem-nos uma ideia. Para que serviu o papel colocado nos ecopontos em 2005? Quanto se poupou com a transformação dos plásticos? Exemplos concretos precisam-se.

9/13/2006

A escola e a sociedade

É inegável que a sociedade tem vindo a transformar-se. Deverá a escola acompanhar essa evolução ou manter-se aparte, interessada basicamente na transmissão do conhecimento? Quem manda diz que a escola tem de servir tanto as crianças como o nosso tipo de sociedade. Este tipo é o de uma sociedade de consumo. Para este consumo é necessário o esforço tanto do homem como da mulher (prestação da casa, a 30, 40 ou 50 anos; prestação do carro; viagens; educação competitiva; restaurantes; alimentação, vestuário, etc.). Se 50 por cento das mulheres passassem a ficar em casa para cuidar dos filhos apenas, a economia ressentir-se-ia fortemente. Em vista disso, a escola, que tem uma missão social, ajuda a sociedade e, coerentemente, os pais. Hoje em dia, quando a vida é já muito mais urbana do que rural, a escola mantém-se como centro de aprendizagem mas, em aditamento, transforma-se em depósito de filhos dos pais que trabalham.
Num texto que uma vez aqui coloquei, deixei registado que as minhas aulas da instrução primária eram diárias, mas só da parte da manhã. Apenas excepcionalmente poderíamos ir à tarde (aulas de desenho, se não me engano). No meu 1º ano de liceu, tive aulas privadas e só durante três dias na semana. No 2º ano tive aulas diárias, mas também sempre só numa parte do dia. Na continuação do liceu, tinha geralmente aulas apenas de manhã. Foi assim até ao 7º Ano. Não me recordo, por exemplo, de no D. João de Castro ter tido aulas da parte da tarde. Começava-se cedo, salvo erro às oito ou oito e meia, e ia-se até cerca da 1 hora. Depois, era tempo livre.
A alteração da sociedade está bem espelhada na disposição válida para o 1º ciclo (antiga instrução primária): as escolas têm de manter-se abertas pelo menos até às 17H30 e no mínimo oito horas diárias. Oito horas diárias é o período normal de um horário de trabalho. Aqui entronca também a necessidade de aulas de substituição, a fim de evitar os pontos mortos (como me lembro dos jogos feitos com uma bola-de-trapos comprada à pressa num primeiro andar em frente ao velho Passos Manuel e levada para um terreiro dentro das instalações da escola! Era o nosso aproveitamento da falta do professor, falta que naturalmente abençoávamos.)
Como a estabilidade é considerada um bem, haverá agora cerca de 160 mil docentes do básico e do secundário que vão ficar nos mesmos estabelecimentos de ensino por um período de três anos. Isto significa que quem perdeu o comboio vai poder tirar uma licenciatura-de-Bolonha neste meio-tempo. Os novos licenciados das ESE que entretanto sairão serão igualmente obrigados, na sua maioria, a fazer um compasso de espera.
Correctamente, haverá testes de aferição generalizados a toda a população escolar do 4º ano e do 6º. Só não se entende por que motivo esses testes não contam para efeitos de nota. Contarão para a avaliação dos professores?
A acompanhar a evolução da sociedade, fala-se actualmente em cursos de "educação e formação", o que corresponde, nominalmente, ao education and training anglo-saxónico. Trata-se de cursos de qualificação profissional, que são necessários e há muito vêm sendo recomendados pelo Banco Mundial.
O Ministério está a tentar arrepiar caminho. Não se notam actos de contrição, porém. Corporativamente, os professores ressentem-se. Definitivamente, os tempos não estão para flores.

9/11/2006

De Guimarães a Tavira

Antigamente, quando se queria abarcar todo o Portugal, a frase-chave que englobava o império ultramarino era "do Minho a Timor". Mais reduzidos geograficamente, dizemos hoje "do Minho ao Algarve". O título acima acaba por dar esta mesma ideia. Refere-se concretamente a dois acontecimentos com idêntico ponto fulcral: os atestados médicos e a sua veracidade.
Quando se atesta outra coisa que não o depósito de gasolina de um carro, confirma-se que algo, geralmente escrito, é verdadeiro. De outra forma, por que razão se haveria de assinar (firmar) por baixo?
Ora, entre a pouca vergonha que foi há uns anos a chusma de atestados médicos que permitiriam, na zona de Guimarães, beneficiar estudantes na sua entrada para o ensino superior, e a razão que levou há poucos dias o Presidente da Câmara de Tavira a insurgir-se publicamente contra casos de atestados que dão toda a ideia de serem meros expedientes para isentar do trabalho diversos funcionários, não existe uma diferença substantiva. É a mesma desonestidade dos beneficiários e, digamo-lo eufemisticamente, a mesma distracção de quem assina os atestados. A Ordem dos Médicos pode dizer que os médicos não são polícias, e de facto não o são, mas como cidadãos deveriam andar menos distraídos, sob pena de ficarem desacreditados eles próprios.
Entretanto, saliente-se pela sua frontalidade Macário Correia, o autarca de Tavira acima referido. Segundo a imprensa, Macário afirmou que o que tem acontecido com os funcionários da autarquia e também dos CTT de Tavira ultrapassa tudo o que é razoável e de bom senso ético. Como presidente da Junta Metropolitana do Algarve, insistiu que "a fraudulência instalada é algo com que não se pode pactuar de braços cruzados". Exigiu averiguações e punições adequadas para os prevaricadores. Mostrou, mais uma vez, que não é gago ao dizer que "Não podem uns trabalhar honestamente e outros ganhar o mesmo, nada fazendo, não tendo qualquer doença, apenas usando o expediente de pedir papéis a médicos para com isso gozarem e rirem de quem trabalha."
Como sempre sucede quando há casos graves e importantes, eles envolvem pessoas e o seu comportamento. É, afinal, um conjunto de coisas que confirma que Hobbes foi bem mais realista e certeiro do que Rousseau.

9/08/2006

Incêndios


Quando se fala de incêndios florestais em Portugal, lembro-me frequentemente da história-puzzle de um indivíduo que está numa ilha totalmente coberta de vegetação. A ilha tem escarpas a pique, que apenas dão acesso ao mar num determinado ponto. Declara-se entretanto um grande incêndio no extremo da ilha onde se encontra a zona de acesso ao mar. O fogo foi inadvertidamente causado por um avião. O vento, que sopra sempre na mesma direcção, açoita o fogo e fá-lo progredir para o outro extremo da ilha. Como é que o homem se pode salvar? (De facto, o homem tem uma salvação: pega num ramo de árvore e com ele corre o mais depressa que pode para lançar fogo ao outro extremo da ilha, que, obviamente, começa a arder. O homem aguarda, do lado de cá do fogo, que aquele, atiçado pelo vento, queime toda a vegetação que lá se encontra. Depois, quando mais tarde chega junto a ele o incêndio inicial, já não existe nada para arder e portanto o fogo não alastra àquela parte. É lá que o homem fica à espera que um avião o venha salvar. Dado que algo que já ardeu não volta a arder, o homem tomou a decisão acertada.)
Até 31 de Agosto tinham sido consumidos pelo fogo cerca de 58.000 hectares de floresta, cerca de um quinto da área ardida no mesmo período em 2005. Convenhamos que não é caso para grande admiração, se considerarmos toda a imensidão de matas que arderam o ano passado! Possivelmente, até convirá aos senhores dos incêndios que não arda mais do que 20 a 25 por cento daquilo que foi devastado pelo fogo em 2005. Tem que se racionar esta madeira, um pouco à maneira dos sobreiros de um montado, que não são todos "descascados" no mesmo ano (o proprietário passaria depois nove anos à míngua, sem qualquer rendimento vindo da cortiça). Em Portugal, ainda vai havendo algumas manchas de pinhal para arder, mas devemos ser cerimoniosos na sua devastação pelo fogo. Quanto às plantações de eucaliptos, essas são sagradas. E, confessemos, algumas são ainda tão bebés no local de antigos pinhais, que seria um infanticídio largar-lhes fogo.
Em 2007 haverá mais áreas ardidas, sabiamente localizadas. Se for à semelhança deste ano, haverá também fogos a declararem-se à noite (coisa mais natural não pode haver!) em mais de um terço dos casos. Entretanto, várias das nossas auto-estradas já estão parcialmente bordejadas de eucaliptos.
Continuamos a pensar nas gerações futuras de uma maneira muito sui generis.

9/05/2006

Foto de férias


As fotografias de férias são geralmente tantas que por vezes não sabemos o que lhes havemos de fazer. Então agora, com as máquinas digitais, aumenta o disparo, a foto por-tudo-e-por-nada. Gostaria de deixar aqui registada uma fotografia das que considero mais interessantes destas férias. Os retratados (só um está visível) não são pessoas que eu conheça. Mas passei a conhecê-los, quando na manhã cedia de um dia de Agosto, ao assomar à minha janela que dá para o mar, deparei com uma mãe que caminhava à beira de água empurrando alegremente o carrinho onde levava o seu bebé. Possivelmente, ia cantarolando ou estava enleada no paleio com a criança, daquela forma que só as mães sabem fazer.
Pouco passava das sete e meia, o sol já brilhava mas estava muito longe de irradiar um calor forte. Quando a avistei, disse para mim que seria uma foto interessante. Tinha, no entanto, não só de ir buscar a máquina como também de montar rapidamente a tele-objectiva. Deu tempo para tudo, felizmente, porque a alegre e jovial mãe, depois de ter desaparecido do meu campo de visão, fez meia-volta no seu percurso, dando-me tempo para várias fotos. A certa altura, quando a ondinha chegou, molhando-lhe os pés descalços e as rodas do carrinho, não se perturbou minimamente. Acho que sou capaz de imaginar o prazer daquela jovem mãe, a sua sensação de liberdade, gozada assim a dois, que isso de ter ali um rebento ao pé transmite uma enorme cumplicidade matinal.
Na praia ainda deserta, foi um prazer para mim observar a cena. Partilho-a com gosto.

8/01/2006

Pausa para férias

Como vou estar fora de Lisboa sensivelmente até ao final do mês e sem recurso a este tipo de tecnologias, vou suspender durante este período a minha colaboração no blogue. Quero desejar a todos um bom mês de Agosto!

7/30/2006

O Médio Oriente, mais uma vez

Sou assinante de revistas americanas há mais de 40 anos. Fosse nos anos 60, na década de 70, na de 80 ou na de agora, sempre notei uma significativa predominância ao longo dos anos de capas dessas revistas com referências ao Médio Oriente. O envolvimento de Israel era e é notório. Isto significa que um pequeno país como Israel representa muito para os interesses americanos. É normal, porém, que isso suceda. Não só os Estados Unidos estão de há muito interessados no petróleo do Médio Oriente, como o facto de ali possuírem uma "lança na Ásia" lhes é extremamente importante.
Israel é um estado sui generis. Nenhum outro que eu conheça foi aprovado pela ONU com base em direitos históricos. Uma bem orquestrada campanha a favor dos judeus, simulada como acto de contrição feito pelo Ocidente para se remir dos pecados de uma nação ocidental - a hitleriana Alemanha - conseguiu colocar Israel no mapa em 1948. A decisão foi tomada em Nova Iorque, que recebera entretanto a sede das Nações Unidas e assim mostrava os efeitos benéficos de se jogar em casa. O facto de o território do novo estado de Israel estar ocupado não constituiu óbice de monta. Começava a revelar-se aqui uma verdadeira assimetria de poderes, que hoje é porventura ainda mais visível. É esta profunda diferença entre um Israel que é tratado como ponta de lança avançada dos Estados Unidos naquela região do globo, equipado e protegido pela nação militarmente mais bem apetrechada do mundo, e a maioria dos habitantes dos países circunvizinhos habitados por povos de diferentes religiões, que tem levado a numerosos conflitos passados, os quais tenderão sem dúvida a continuar no futuro.
Hoje, 58 anos volvidos da constituição de Israel, continua a mesma guerra inicial. O que se passa neste momento é a mera continuação de uma raiva surda entre aquele espinho para os muçulmanos e a luta pela sobrevivência dos habitantes de Israel. Se me disserem que um rapaz ou uma rapariga, de 26 ou 36 anos, de nacionalidade israelita, sentem aquela como sua pátria e estão dispostos a dar a vida por ela, considero isso perfeitamente natural. Se me disserem que, se Israel perder uma guerra perderá a sobrevivência, concordo também. Portanto, já que existe tem necessidade de se defender. E contudo...
O que se vê é que as nações mais poderosas militarmente são também as mais poderosas mediaticamente. Para começar, verifique-se que o mundo pouco sabe da criação de Israel, do protectorado britânico que o precedeu, da passagem de testemunho da Grã-Bretanha aos Estados Unidos após a 2ª Guerra Mundial. Os relatos começam geralmente ontem. Não se começa a História onde ela verdadeiramente tem início. Começa-se onde mais convém a cada uma das partes.
Tzipi Livni, a actual ministra dos Negócios Estrangeiros de Israel, disse numa entrevista que as resoluções 1559 e 1680 das Nações Unidas determinaram a necessidade de o governo libanês ser soberano em toda a extensão do seu território e de desmantelar todas as milícias, incluindo o Hezbollah. O governo libanês não terá cumprido essa determinação da ONU, motivo pelo qual Israel teve toda a razão em lançar um ataque contra o Líbano - apenas em resposta a um primeiro ataque do Hezbollah. Vemos mais uma vez que a história começa aqui e agora, porque é aqui que convém. Não houve provocações anteriores dos israelitas na zona, como por exemplo o sequestro de ministros palestinianos e o que se passou e passa em Gaza. Escamoteia-se inteiramente que há várias resoluções tomadas nas Nações Unidas não cumpridas por Israel. Entre elas, algo tão importante como o abandono de áreas específicas que os israelitas foram ilegalmente ocupando. A pergunta coloca-se: e se os israelitas não quiserem acatar essas resoluções, quem é que os obriga, protegidos como estão pelos Estados Unidos? Aqui temos a assimetria de poderes em colisão com um teórico direito internacional. Porém, quando é para os adversários, esse direito é mesmo para cumprir. Dois pesos, duas medidas. Filhos e enteados, como se diz em português corrente.
Se os palestinianos não reconhecem o Estado de Israel, isso é um sacrilégio. Se os israelitas, sempre secundados pelos Estados Unidos, não reconhecem a existência de um Estado Palestiniano, isso é questão de somenos importância.
Se armas para o Hezbollah provêm, não comprovadamente, do Irão, estamos em presença do eixo do mal. Se armas americanas apetrecham o exército israelita com equipamento ultra-moderno que se destinava ao Iraque ou que veio urgentemente dos EUA com passagem por um aeroporto do Reino Unido, está tudo bem. É apenas o eixo do bem a funcionar.
Condoleeza Rice surge no Médio Oriente como grande juíza do mundo. Ela decide se vai haver cessar-fogo imediato ou se vai continuar o despejo de bombas, matando e ferindo centenas de libaneses, na esmagadora maioria civis, incluindo mulheres e crianças. Prossegue a destruição escandalosa de edifícios que reduzem bairros inteiros de Beirute e outras cidades a montes de destroços e ruínas, tal como já tinham sido destruídos da forma mais cruel depósitos de água essenciais para a vida das pessoas na faixa de Gaza. E parece que já ninguém estranha que seja uma diplomata dos EUA a vir dar ordens!
Os media mostram fotografias do lado israelita com um destaque diferente do que dão ao outro lado. Israelitas atingidos por mísseis são frequentemente identificados ("uma rapariga de 15 anos e um homem de 76"). Do outro lado é apresentado geralmente apenas o número de mortos e diz-se algo como "na maioria civis". Quantas crianças têm sido mortas pelos ataques israelitas na Palestina? Há entrevistas com políticos israelitas, mas alguém procura a opinião de políticos e de universitários do outro lado?
O argumento dos falcões é sempre o mesmo: "a guerra é necessária para alcançar a paz." Na realidade, não é a paz que se alcança, mas sim a submissão dos vencidos aos vencedores. Entretanto, os Estados Unidos e Israel conseguem fazer quase o pleno: pôr a maioria das pessoas do mundo contra si. Até unem o mundo muçulmano e árabe, o que é difícil. Um velho provérbio daqueles lados diz, na sua simplicidade, "Eu e o meu irmão podemos estar contra o nosso primo. Mas eu, o meu irmão e o nosso primo estaremos juntos contra um estranho."
Da parte dos EUA vem o mesmo cinismo que ainda recentemente tivemos ocasião de presenciar no Iraque: dinheiro para a reconstrução. Os EUA anunciaram o seu contributo de 24 milhões de dólares como ajuda para os estragos causados pelas bombas (dos aliados Israel-EUA). Como essa ajuda se materializará é outra questão. Por seu lado, Israel apresenta imediatamente a sua própria factura: diz que na sua zona norte, com a paralisação industrial, está a perder 111 milhões de euros por dia. Em face do número de mortos e do nível de destruição, "dez olhos por um olho", "cem dentes por um dente", este é um caso típico de fazer o mal e a caramunha. Mas é assim que actua o eixo do bem.
Muitos dos media, obedientemente, publicam tudo, sem destrinçar propaganda do resto. Na maior parte dos casos usam terminologia parcial. Seja no Iraque, seja na Palestina ou no Líbano, não há nacionalistas nem resistentes. Há apenas rebeldes, insurrectos e terroristas. Entretanto, bombas e mísseis continuam a cair de forma perfeitamente assimétrica em território libanês e israelita, enquanto se discute o cessar-fogo no edifício das Nações Unidas, com o veto americano a actuar. Quantos inocentes mais terão ainda de morrer, quantos milhares de pessoas mais ficarão sem as suas casas e com as vidas destruídas até os senhores do mundo se decidirem a dar a guerra por finda?