O jornal Público apresentou uma oportuna reportagem sobre a exploração de que são alvo muitos portugueses aliciados por ofertas tentadoras para trabalharem no estrangeiro. A grande maioria dessas ofertas traduz-se em verdadeiros logros, na medida em que, através de engenhosas artimanhas, o angariador reserva para si parcelas absolutamente escandalosas dos pagamentos devidos. Seja em Espanha, seja na Holanda, Inglaterra ou Dinamarca, as autoridades parecem pouco empenhadas em intrometer-se nestes casos, acabando por considerar, com lógica aliás, que uma promessa não contratualizada não é de facto um contrato. Por outro lado, o desconhecimento da realidade revelado por parte de emigrantes portugueses contratados para ir para o estrangeiro é por vezes atroz, como já há anos uma reportagem num jornal narrou: quando colocado perante a hipótese de ir fazer queixa ao consulado português em Frankfurt, um dos entrevistados pelo jornal inquiriu: "Mas não é preciso ser sócio?"
Seja como for, o que gostaria neste momento de frisar é algo aparentemente marginal mas com forte incidência no caso de exploração de mão-de-obra: o nacionalismo, misturado com uma indisfarçável, maior ou menor xenofobia. Há três dias encontrei uma velha amiga, professora. Ia acompanhada de uma cidadã da Letónia, que está em Portugal desde Julho. Desde essa data, a letã em questão já teve dois empregos aqui em Lisboa. Saiu do primeiro porque não lhe pagaram no final do mês. Saiu do segundo porque trabalhou durante dois meses e, mais uma vez, não recebeu qualquer pagamento. A minha amiga tinha ido com ela apresentar queixa às autoridades competentes. A cidadã da Letónia, rapariga de vinte e tal anos, está devidamente legalizada em Portugal.
Temos tendência para perguntar "Como é que situações deste género são permitidas?" A nossa surpresa não será, no entanto, assim tão grande porque todos temos ideia de que casos semelhantes com cidadãos estrangeiros são às centenas, se não aos milhares. Por que motivo não actuarão de pronto as autoridades portuguesas?
Creio que, entre outros aspectos, porque agir dá trabalho. Pessoalmente, a única experiência que tenho de levantamento de autos provém do serviço militar, há longuíssimos anos. Era preciso receber a queixa por escrito. Ouvir as partes interessadas, que podiam ser várias. Testemunhas, se as houvesse. Ocasionalmente, fazer acareações. Depois de o auto estar devidamente informado, havia que entregá-lo ao tribunal militar, a quem cabia a decisão final. Ora, isto nem sempre se faz em pouco tempo. E ocasiona problemas, chatices várias. Contudo, recordo-me que, sendo necessário por envolver militares que estavam sob a nossa responsabilidade, não podíamos deixar de seguir os trâmites processuais.
No caso das autoridades, acredito que seja algo semelhante, mas sobrevém-lhe uma outra questão: quem está em causa não são cidadãos nacionais. Se os nacionais já dão tanta chatice... "Porque é que esses indivíduos vieram para cá? Porque é que não ficaram nos seus próprios países?"
Eu diria que os espanhóis reagem tendencialmente assim com os portugueses e outros imigrantes. O mesmo farão as autoridades holandesas. Do Reino Unido, as notícias que de vez em quando nos chegam não são animadoras. Na Alemanha sucedeu há anos que os grandes defensores dos direitos dos trabalhadores estrangeiros eram... os trabalhadores alemães. Porquê? Porque estavam a defender a sua própria causa. Insistiam que não era justo que no mesmo país pudesse haver trabalhadores a ganhar menos do que o mínimo estabelecido pelos sindicatos. Tratava-se, naturalmente, mais de uma defesa daquilo que consideravam concorrência desleal do que de verdadeiro interesse na defesa dos trabalhadores estrangeiros, fossem eles turcos ou espanhóis. Foi um prelúdio à mais recente opereta do canalizador polaco.
Existe um outro factor muito importante: as autoridades não gostam de apresentar o seu próprio país como explorador. É que, como George Bernard Shaw um dia escreveu, "patriotismo é a convicção de que o nosso país é superior a todos os outros porque nós nascemos nele". É uma reflexão forte, mas possivelmente certeira. Se nós nascemos num país que pode envergonhar-nos perante estrangeiros, estamos a inferiorizar-nos. Daí que admitamos as nossas fraquezas perante nacionais - isso até nos evidencia! - mas prefiramos ocultá-las perante estrangeiros. E então se são estes a falar delas, nem se fala! Go home!
Estou convicto de que estes aspectos emocionais, difíceis de comprovar, desempenham um papel mais importante do que por vezes se julga. Acabam por estar ligados, por razões semelhantes, a polícias (homens) que tentam ignorar casos de violência sobre a mulher entre casais. E coisas do género.
A propósito: a amiga que encontrei, aquela que estava a tentar ajudar a letã a apresentar queixa nos locais próprios, é francesa. Reside há larguíssimos anos em Portugal. Ela sabe o que é ser imigrante.
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