12/17/2006

Pânico globalizado

Quando, poucos anos antes da viragem do meio-milénio em 1500, o poderoso dominicano Savonarola falou na sua cidade de Florença sobre as perversidades dos homens, incluindo nos seus sermões muito especialmente os membros da Igreja, quase vaticinou que o mundo, vergado sob o peso de tanto pecado, iria acabar. Acabou ele primeiro, morto na fogueira dos que desafiavam a autoridade papal.
Quinhentos anos depois, uns meses antes da passagem do ano 2000, sucedeu que, numa encoberta manhã de Agosto em que eu ia calmamente às amoras num silvado perto da estrada, tive que atravessar uma pequena propriedade para chegar às silvas que eram o meu objectivo. Entretanto, ouvi vozes. Olhando à volta, deparei com um homem e uma mulher que, sentados, descamisavam milho. Desejei-lhes bom dia. Corresponderam, mas ao mesmo tempo mostraram desejo de falar um pouco mais. Aproximei-me, ouvi rapidamente a história de ambos, casados e ex-emigrantes na Alemanha. Depois, surgiu a pergunta que tanto o homem como a mulher me queriam colocar: Será que o mundo vai acabar para o ano? Disse para mim próprio que aquela era uma questão que não estava no meu programa das amoras, mas felizmente encontrei uma resposta possível. Lembrei-lhes que o ano 2000 representava apenas um número redondo, sem dúvida um marco, mas não mais que isso. Por exemplo em Marrocos, país que acabava por ficar apenas a umas horas, de automóvel e barco, do sítio onde nos encontrávamos, as pessoas estavam ainda no século XIV. Para elas, aquele seria um ano como tantos outros. Perguntei ao casal se achavam possível que o mundo acabasse apenas naqueles países que estivessem a passar para o ano 2000. Meditaram um pouco, responderam que não, e pareceram mais calmos, satisfeitos com o esclarecimento.
No entanto, a verdade é que nessa altura os media estavam a fazer ressurgir todos os medos antigos, recordando presságios os mais diversos e, sobretudo, elegendo algo novo como seu elemento favorito para a catástrofe que se avizinhava: os problemas informáticos quase inultrapassáveis da mudança para um milénio começado pelo algarismo "2". Todos os computadores do mundo iam ser afectados pela extraordinária mudança, o sistema financeiro mundial já tinha preparado triliões de dólares para corrigir o software, perder-se-ia múltipla informação, etc. Era o caos.
Tal como no tempo de Savonarola com as infindas punições,tal como na passagem do milénio com o fim do mundo, as terríveis catástrofes informáticas que iriam desabar sobre nós não se confirmaram de todo.
No nosso ano de 2006, depois de uma paranóica onda das mais desencontradas e alarmantes informações sobre a gripe das aves, que iria ser uma catástrofe a nível mundial, eis que os patinhos continuam a vogar calmamente nos seus lagos, as galinhas cacarejam nas suas capoeiras, as migrações dos flamingos prosseguem como se nada tivesse acontecido. A paranóia caiu no ridículo. Salvou-se aquele conselho amigo de alguém que nos disse para vivermos a vida, gozando a noite: "Nunca, mas nunca se deitem com as galinhas!"
A paranóia à volta do terrorismo - que esquece o terror causado exactamente pelos que estão paranóicos e o velho aforismo que nos diz que "quem com ferro mata, com ferro morre" - conduziu há dias a uma história curiosa. À semelhança de tantos outros, um avião voava entre duas cidades dos Estados Unidos. A certa altura, um passageiro levantou-se agitadamente do seu lugar e dirigiu-se à cabine dos pilotos. Cheirava-lhe a queimado. Não estaria aquilo ligado a uma bomba? Uma rápida inspecção ao local confirmou o cheiro. Sem mais, o piloto pediu ao aeroporto mais próximo para aterrar de emergência. Autorização concedida, o aparelho pousou na pista sem quaisquer problemas e foi rapidamente evacuado. Interrogados os passageiros que estavam sentados à volta do local de onde tinha vindo o cheiro, uma senhora velhinha confessou, envergonhadamente,perante as autoridades que sofria de flatulência e que não queria de modo nenhum incomodar as pessoas ao pé de si com mau cheiro. Então, como método disfarçante, acendia fósforos sempre que não conseguia conter-se. Estava explicada a bomba! Todos voltaram ao aparelho, incluindo a velha senhora.
Esperemos pela próxima virose a nível global!

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