10/31/2009

Pode o trabalho matar?

A resposta à pergunta do título é, certamente, afirmativa. Sempre o foi. Há trabalhos tão perigosos que bastarão pequenos descuidos para que um ou mais trabalhadores percam a vida: desabamento de terras, queda de pontes em contrução, explosões em minas, etc. São acidentes, uns mais fortuitos do que outros, uns com elevada responsabilidade de quem dirige, outros com responsabilidade diminuta.
E pode o trabalho conduzir trabalhadores à morte através do suicídio? Embora aqui o número dos que perdem a vida seja muito inferior, bastaria o muito propalado exemplo da France Telecom, empresa na qual nos últimos 20 meses 25 trabalhadores não conseguiram resistir a pôr termo à sua própria vida, para obtermos uma resposta igualmente afirmativa. O stress sob o qual trabalham pode atingir proporções tais que a única saída entrevista por aqueles a quem os gestores contabilisticamente chamam "recursos humanos" é o de terminar com uma existência que ainda teria um longo caminho a percorrer, com direito a bons momentos de felicidade. Porque é que isso está a suceder na France Telecom - e igualmente noutras empresas em que os casos são menos mediáticos mas também extremamente stressantes?
Neste mesmo blog elogiei há tempos o livro de João Ermida intitulado Verdade, Humildade e Solidariedade. Os meus encómios não foram para o pendor literário revelado pelo autor, mas sim para a franqueza como expõs a sua experiência de gestor com a responsabilidade global da Tesouraria e Mercados Financeiros do Grupo Santander. O livro, como o autor afirma, terá sido a sua melhor terapia contra o stress que continuamente experimentava, ele que decidiu abandonar o seu trabalho aos 38 anos. Não é propriamente contra o Grupo que João Ermida se revolta, mas sim contra a metodologia usada pelas cúpulas naquela e noutras empresas semelhantes. É a este propósito que transcrevo um passo do seu livro: "Vivemos num mundo onde é exigido aos homens e mulheres que não adormeçam em nenhum momento, pois se não estiverem preparados para o próximo desafio, este pode passar por eles sem que eles reajam. É esse medo da oportunidade perdida que nos leva a sermos cada vez mais egocêntricos, e é precisamente este egocentrismo a causa de tanto desespero no mundo actual, levando-nos a viver duas vidas bem distintas: a profissional e a pessoal. Na primeira, tudo nos é exigido e exigimos tudo de todos; na segunda, ansiamos por chegar a casa para viver segundo o código de valores que aprendemos. Na nossa vida profissional, somos chamados a desenvolver capacidades de resposta a problemas e situações onde a nossa ética tem de ser posta de lado. Somos treinados para sermos ambiciosos, gananciosos e deixar de lado qualquer tipo de comportamento que revele complacência. Quando saímos do trabalho, tentamos recuperar os valores éticos que nos ensinaram desde crianças, mas esses já dificilmente conseguem aparecer. Disto se ressente cada vez mais o nosso casamento e as relações com os nossos filhos."
Noutro passo, que considero também significativo, João Ermida elucida-nos: "Aquilo de que me apercebo é que, no mundo de hoje dos negócios, a verdade foi perdendo interesse. É mais importante fazer promessas que nunca serão cumpridas do que tentar vender a realidade dura em que se vive. Este facto leva a que empregados sejam postos em situações de total insegurança no seu trabalho, devido aos enormes objectivos que lhes são impostos, os quais só por sorte serão cumpridos."
Peço desculpa pela extensão das citações, mas sei que elas dizem mais do que aquilo que eu, felizmente sem esta experiência, poderia alguma vez descrever. Flexibilidade no trabalho e adaptabilidade a novas funções são dois conceitos muito comuns na gestão dos dias de hoje. Eles destroem equipas de trabalho como se isso fosse insignificante para os trabalhadores. Estes sentem-se obrigados pelas circunstâncias a entrar em concorrência com os seus colegas para evitar um despedimento que pode chegar a qualquer hora. Um ambiente inquisitorial é propício a denúncias pouco leais da parte de colegas. É o salve-se quem puder, "a corrosão do carácter", como Richard Sennet lhe chamou. O trabalhador não sabe geralmente quais são os verdadeiros objectivos da empresa em que labora, embora de antemão compreenda que o aumento dos lucros é o objectivo número um. Sabe também que é controlado nas suas pausas de trabalho e admoestado – ou alvo de delação – se eventualmente as excede por necessidade de descanso cerebral. Sabe também que existe no ar um clima de medo, de ausência de solidariedade, de humilhação. Sabe que a sua liberdade desapareceu. A auto-estima de que os livros teoricamente falam esvaiu-se também. Se ele sente que é a sua própria identidade que está em jogo, que apego pode ter à vida?
Apercebemo-nos de que muitos gestores de topo esqueceram a maior parte dos valores da sua cultura. Semelhantemente à maneira como vêem capitais serem aplicados de forma quase esclavagista em países asiáticos como a China, a Índia, o Paquistão e a Indonésia, pretendem impor na Europa sistemas que são por demais aviltantes para quem há muito deixou a selva para viver na urbe. Estamos a voltar a tempos e práticas que se julgavam mortas, enterradas pelo tempo e para sempre ultrapassadas pela civilização. Que tudo isto seja aceite sem grandes movimentos de revolta é também claramente um sinal dos tempos.
Os ricos devem tratar dos pobres, para que não sejam os pobres a tratar dos ricos.

10/30/2009

Desemprego na União Europeia

Aqui em Portugal ouvimos todas as semanas – quando não é em dias seguidos – notícias de grandes, médias ou pequenas empresas que encerram as suas portas, ou dispensam fatias maiores ou menores do seu pessoal. Numa comparação que é chocante mas por isso mais reveladora da realidade, se hoje sentássemos todos os desempregados nas bancadas dos vários estádios de futebol do nosso país em que se jogou o EURO2004 há pouco mais de cinco anos, todos os lugares estariam preenchidos com desempregados portugueses. É impressionante imaginarmos esse conjunto de homens e mulheres, jovens e velhos, que perderam os seus empregos e agora procuram o auxílio de um Estado também ele depauperado pelos muitos milhões concedidos a empresas, principalmente da área financeira.
"O dia-a-dia de um desempregado é como estar preso em liberdade" foi a cruciante mensagem que um desempregado transmitiu a um jornalista que recolhia depoimentos sobre o desemprego.
Curiosamente, há mais de 15 anos (12 de Fevereiro de 1994), Ernâni Lopes escrevia o seguinte no semanário Expresso: "Há, no mundo actual, um bilião e 200 milhões de pessoas dispostas a trabalhar por 45 contos/mês, em média, enquanto na Europa e nos Estados Unidos existem 250 milhões de pessoas que, em média, não aceitam trabalhar por menos de 150 contos/mês." Hoje em dia, diz-vos alguma coisa esta informação de um dos nossos melhores economistas?
As últimas notícias indicam-nos que na União Europeia-27 há países como a Letónia e a Espanha que se aproximam perigosamente dos 20 por cento de desempregados (19,7% e 19,3%, respectivamente). A Lituânia, a Estónia e a República da Irlanda encontram-se também num escalão bem alto (entre 13 e 14 por cento). Os países com taxas de desemprego mais baixas são a Holanda (3,6%) e a Áustria (4,8%). Portugal aproxima-se dos 10 por cento, se é que não atingiu já essa marca.
Se contabilizarmos exclusivamente a zona onde o euro circula como moeda (16 países), encontramos 15,3 milhões de desempregados, enquanto na UE27 esse número sobe para 22,12 milhões. Na zona euro, o desemprego entre os jovens situa-se em 20,1 por cento!
Estes são números respeitantes a pessoas. Tal como ao ouvirmos uma ambulância não nos devemos impressionar com o som da sirene que a ambulância lança para o ar mas sim com o doente que segue lá dentro, aqui também é essencial que pensemos em termos humanos e não em estatísticas. São vidas que estão em jogo!

10/28/2009

A atracção da água

Embora sem sol forte, o penúltimo sábado deste Outubro esteve bonito. Fui-me a ver o mar, que é como quem diz apenas o rio Tejo, que de mar apenas tem o sal que entra por ele adentro. O Parque das Nações, com a sua passarela de madeira entre o Tejo e o laguinho do Oceanário, é um dos meus passeios favoritos. Daí, o rio é suficientemente largo para me dessedentar do Atlântico e a zona é no geral muito aprazível. A temperatura estava um pouco mais elevada do que eu esperava, o que me levou a sentar uns minutos à sombra na bancada de pedra que corre ao longo do laguinho. Pus-me a ler um artigo interessante da Newsweek. Pouco tempo depois, sentou-se no mesmo muro uma moça de 19 ou 20 anos, que trazia pela trela um cão preto, peludo, de tamanho médio. Retirou a trela da coleira do bicho e deixou-o andar à solta por ali. Gostei do gesto. Porém, ela não demorou a levantar-se de um salto. “Núria!”, gritou. Percebi que afinal ela era dona não de um cão mas de uma cadelita. “Núria!” A moça não conseguia descobrir o animal. Correu entretanto para a direita e para a esquerda, até que divisou a sua Núria... dentro de água. (Está ali postado um aviso informando que é proibido tomar banho, mas não está escrito em linguagem que cão perceba. E, se for um cão de água, como Núria era, então a atracção do elemento líquido pode ser fatal.)
A rapariga sentia-se perdida. O que fazer? Ligou o telemóvel para casa, mais a contar a sua aflição do que a pedir auxílio. Implorou a uma pessoa que passava por ali para avisar os responsáveis do Parque. Entretanto, a sua Núria já tinha nadado por debaixo da passarela de madeira e passado para o rio aberto. Crescia a angústia da rapariga, talvez na razão inversa do prazer que a sua Núria sentia por se poder deliciar naquelas águas. Estava no seu elemento. Os chamamentos "Núria!", "Núria!" mantinham-se incessantes. O bicho virava a cabeça de vez em quando, mas continuava no seu feliz vaivém. Até que, passados uns largos minutos, resolveu chegar-se de novo à amurada. Sucede que esta amurada, relativamente alta e bem construída para resistir às marés mais elevadas, possui uma notória inclinação e corre ao longo de mais de um quilómetro. A Núria tentou subir. Em vão. As patas não aderiam devidamente ao escorregadio da pedra. Em busca de um sítio mais acessível para trepar, o animal foi nadando ao longo do muro, sempre com a dona, que entretanto saltara o gradeamento para o lado do rio, a chamá-la. Após mais uma tentativa infrutífera, o bicho regressou, sempre a nado, à zona da passarela de madeira. Aí, a rapariga pensou em atirar-lhe a trela para que o animal a abocanhasse e conseguisse subir. O bicho pegou-lhe, de facto, mas depressa a largou. Então a moça, sempre do lado de fora do gradeamento, agarrou-se a uma das barras deste e tentou chegar-lhe. Estava muito longe. Veio então o bonito socorro. Um rapaz brasileiro que passeava na zona com um amigo saltou depressa o gradeamento e, como era alto, agarrou na mão da moça para descer mais perto da água. Nem mesmo assim lá chegou. Só que a cadeia humana aumentou. Uns terceiros braços estenderam-se ao rapaz, enquanto a moça descia ela própria já para bem perto da água, segura por um braço. Aí, o cão de água fez um grande esforço para sair do seu elemento natural e a dona logrou apanhá-lo pela coleira. Depois de um enorme abraço e beijos num pêlo molhado, ela passou a cadelita para a pessoa acima e um outro rapaz colocou o bicho em terra firme. A dona estava exausta: depois daquela auto-injecção de adrenalina, teve literalmente que ser içada por braços solidários. Tinha tido uma pequena aventura e um enorme susto. Ficou, além disso, a saber o que é isso de crença natural de uma cadelinha como a sua Núria. No restante, foi bom ver a solidariedade activa das pessoas. Nem sempre tudo é mau na vida, nem acaba mal.

10/26/2009

Puxando a brasa à minha sardinha...

Eis-me a demonstrar a minha alegria pelo número de mulheres no novo Governo!

Assim mesmo: pelo valor de cada uma, pela competência, não por quotas.

É cedo para dizer se foram bem ou mal escolhidas, se irão cumprir bem a sua missão. Para já, o que me traz grande satisfação é a chegada progressiva de cada vez maior número de mulheres às várias sedes de poder. O que significa, por um lado, o acesso à formação profissional (não esqueçamos que no tempo das nossas avós as mulheres “não precisavam” de estudar) e, por outro lado, as condições familiares mais facilitadoras da disponibilidade das mães de família que também são.

Devagarinho, mas de modo irreversível, uma metade da humanidade vai-se colocando a par da outra metade, como é normal.

Como diria o Zé Mário Branco, “o que eu andei para aqui chegar!”

10/23/2009

A Igreja Católica e a liberdade de interpretação

O último livro de José Saramago tem desencadeado uma inegável celeuma na sociedade portuguesa. O próprio autor tem proferido umas tantas frases características de livre-pensador, que chocam com o marasmo de pensamento de uma cultura católica tradicionalista – a qual foi, aliás, a que Saramago teve a rodeá-lo como criança.
Curiosamente, um vasto número de pessoas que se vêem apanhadas na sua crença sem terem lido a Bíblia acusam Saramago de estar meramente a fazer publicidade ao seu livro. Pessoalmente, não vejo grande mal nisso, numa sociedade de consumo que gosta de identificar a existência de publicidade com a existência de liberdade. Mas se é um facto que as intervenções de Saramago acabam na realidade por publicitar o livro, não é menos verdade que são as televisões que o convidam para entrevistas e debates – porque isso atrai audiências (o que permite maior publicidade nesse canal). Entretanto, porque é que quem diz, com certo cinismo, que Saramago está a fazer publicidade do seu livro, o qual ainda por cima se lê num dia ou dois, não diz também que Saramago acaba por incentivar muitas pessoas a, finalmente, lerem a Bíblia, o tal livro que poucos portugueses leram? Quantas pessoas mais não irão comprar a Bíblia para lerem várias das estórias que lá estão? Convinha que quem falasse de publicidade a uma obra, que consideram má, lembrasse também a publicidade a uma outra obra, que decerto consideram boa.
Da Igreja Católica tem vindo, como grande argumento contra a interpretação de Saramago da história de Abel e Caim, a afirmação de que a Bíblia não é para ler literalmente. Isso significa o quê? Que cada um pode interpretar a Bíblia à sua maneira? Se sim, como se concilia essa possibilidade com a existência de um Papa, que é infalível, como todos os que frequentaram aulas de catequese aprenderam?
Porque este problema não é novo, decidi fazer copy&paste de alguns itens de uma colectânea que eu próprio elaborei há pouco tempo. Os autores das citações vão devidamente assinalados.

"Desde cedo a Igreja decidiu que apenas pessoas qualificadas, certos clérigos, por exemplo, deviam conhecer a Bíblia, que, com as suas leis e moral igualitárias e reprimendas proféticas ao poder e exaltação dos humildes, convidava à indisciplina entre os fiéis e ao desentendimento com as autoridades seculares. Só depois de censurada e suavizada poderia a Bíblia ser dada a conhecer aos leigos. Foi assim preciso aguardar o aparecimento de seitas heréticas, tais com os Lolardos (Wiclif, ca. 1376), os Luteranos (a partir de 1519) e os Calvinistas (meados do século XVI), com a sua ênfase na religião pessoal, e a tradução da Bíblia para vernáculo, para que a tradição judaico-cristã ingressasse explicitamente na consciência política europeia, ao lembrar aos soberanos que era de Deus que recebiam a riqueza e o poder, mas na condição de se portarem bem. Uma doutrina inconveniente." David S. Landes, A Riqueza e a Pobreza das Nações (1998)

"Os ensinamentos de Cristo, tal como aparecem nos Evangelhos, tiveram pouco que ver com a ética dos cristãos. A coisa mais importante sobre o Cristianismo do ponto de vista social e histórico não é Cristo mas sim a Igreja, e, se quisermos considerar o Cristianismo uma força social, não é nos Evangelhos que devemos procurar o nosso material; Cristo ensinou que deveríamos dar os nossos bens aos pobres, que não deveríamos fazer guerra, que não deveríamos ir à igreja e que não deveríamos punir o adultério. Nem os católicos, nem os protestantes demonstraram qualquer desejo forte de seguir os Seus ensinamentos a qualquer destes respeitos.
(...) Nada há de acidental quanto à diferença entre uma Igreja e o seu fundador. Logo que se supõe que a palavra de certos homens contém a verdade absoluta, surge um corpo de especialistas para interpretar os seus ensinamentos, e esses especialistas adquirem infalivelmente poder, já que possuem a chave da verdade. Como qualquer outra casta privilegiada, usam do seu poder em seu próprio benefício." Bertrand Russell (1872-1970)

"O que realmente leva os indivíduos a acreditar em Deus não é nenhum argumento intelectual. A maioria das pessoas acredita em Deus porque lhes ensinaram, desde tenra infância, a fazê-lo. Essa é a principal razão." Bertrand Russell (1872-1970)

"Como queres tu tirar com argumentos da razão ideias que o povo aprendeu sem razões?" F. Nietzsche (1844-1900)

"Gostaria de ver um mundo em que a educação tivesse por objectivo antes a liberdade mental do que o encarceramento do espírito dos jovens numa rígida armadura de dogmas, que tem em vista protegê-los ao longo da vida contra os dardos das provas imparciais. O mundo precisa de corações e de cérebros abertos, e não é mediante sistemas rígidos, quer sejam velhos ou novos, que isso pode ser conseguido." Bertrand Russell (1872-1970)

"Os católicos e os comunistas são parecidos ao acreditarem que o seu opositor não pode ser honesto e inteligente." George Orwell (1903-1950)

10/19/2009

Quando Puxe significa Empurre


Em Penafiel, Saramago insurgiu-se há poucos dias contra a onda de americanismos que, traduzidos ou não, entraram de súbito na língua portuguesa. Ele tem razão. Quem é que diz consola de jogos e não playstation? Quem é que diz eliminatória – que foi palavra usada durante muitos anos – em vez de playoff? E como é que layoff entrou tão rapidamente no nosso vocabulário? Bem, isto daria pano para mangas, mas admito que é assunto que eu próprio já tratei extensamente noutros posts (foi propositadamente que usei a palavra, em vez de textos ou escritos).
Tive oportunidade de encontrar há três ou quatro dias mais um caso interessante de uso da língua inglesa. Foi numa unidade hoteleira onde estive pela primeira vez. Local paradisíaco, no campo, serviço de primeira, é natural que não só os menus estejam em português e em inglês (pelo menos), como também que haja nos corredores e outras dependências os sinais convencionais indicativos de saídas e outras direcções ou então as palavras correspondentes em português e em inglês. Na manhã seguinte à minha chegada, resolvi dar uma mirada à piscina exterior. Desci umas escadas que indicavam o caminho para a swimming pool, abri uma porta e, passados dois minutos ou três, cheguei à dita piscina. Como a temperatura às oito da manhã não estivesse óptima para dar umas braçadas, limitei-me a tirar umas fotografias e regressar. Ao chegar à porta que mostro na foto acima, deparei com uma indicação algo embaraçante: Empurre Puxe. Aí, hesitei. Deveria empurrar a porta ou puxá-la? São movimentos exactamente opostos. Uma segunda mirada fez-me crer no entanto que devia empurrar a porta: não havia maçaneta nem outro puxador. Então, o que estava aquele "Puxe" ali a fazer?
Na recepção confirmaram as minhas suspeitas. Na realidade, o portuguesíssimo "Puxe" pretendia ser o Push inglês, que de facto significa empurrar. O que eu não acredito é que muitos britânicos ou americanos cheguem imediatamente a essa conclusão, mas não deixa de ser curioso querer obrigar estrangeiros a ler as suas próprias palavras através da nossa ortografia.
Enfim, é um pormenorzito, facilmente corrigível. Mais importante foi sem dúvida verificar que, na generalidade, a unidade hoteleira tem todo o conforto que possamos esperar e é servida por pessoas afáveis e competentes.

10/17/2009

Arejando




Uma breve escapada da cidade pode ser extremamente salutar. Em Lisboa, rotinamo-nos por demais em vistas curtas e conversas só aparentemente longas e profundas. Limitados que estamos por ruas e corredores do Metro, encafuados que vivemos em escritórios, centros comerciais, cafés ou bares, esquecemos frequentemente a outra vida que não é assim. Na tradicional província que todos conhecemos, metade rural, metade urbana, o tempo tende a assumir uma outra dimensão, a correria é mais suave, embora muitas das tarefas não sejam menos duras. Respira-se um outro ar. Ao citadino sabe-lhe bem variar e encontrar um outro mundo em que se fala a mesmíssima língua, se ouvem provérbios que por vezes já tínhamos esquecido e, principalmente se vêem usos e costumes que podem parecer de outros idades do tempo. Contudo, o calendário é o mesmo, o ano, o mês e o dia não são diferentes. Nem diferentes são as pessoas. Mas têm outros pontos de vista. Se o hábito faz o monje, também a terra faz a mente.
Na minha curta saída da cidade por três dias, fui dar um pulinho até à Beira Interior. Por um lado, interessava-me rever coisas que já conhecia, por outro estava curioso relativamente a algumas novidades. Nada foi decepcionante, embora nem tudo tivesse agradado, como é natural. O saldo final foi claramente positivo.
Dias depois da realização das eleições para as autarquias, foi um prazer encontrar tantas melhorias na maior parte das povoações que visitei. Democraticamente, a concorrência entre vilas funciona mesmo e faz com que o nível geral de qualidade do equipamento à disposição das populações esteja muito mais elevado do que num passado não muito distante. Estive em Miranda do Corvo, na Lousã, em Góis, Arganil, Côja, Mangualde, Penalva do Castelo e Viseu. Curiosamente, encontrei muitos pontos comuns. Digamos que toda a povoação que se preze possui, para condicionamento do trânsito, um número maior ou menor de rotundas mas, certamente mais interessante do que isso, é a constatação de que praticamente todas as vilas possuem zonas pedonais, o que, para além de representar um enorme alívio para quem está saturado do mundo dos escapes dos automóveis, permite compras descontraídas ou um almoço ao ar livre numa esplanada quando o tempo está bom, como foi o caso. Para além de possuírem edifícios modernos ou restaurados na Câmara Municipal e no Domus Justitiae, frequentemente alindados com fontes ou repuxos nas proximidades, quase todas estas povoações dispõem de uma biblioteca municipal, museus com características diversas, amplas áreas reservadas para escolas básicas e secundárias – geralmente equipadas com bons campos de jogos e ginásios -, um posto de informação turística que funciona, jardins floridos, higiene nas ruas e, ainda, Centros de Dia, Lares para Idosos e parques infantis. Nalguns casos encontrei teatros restaurados. Algumas das povoações possuem curiosos painéis de azulejos com a heráldica respectiva e os pontos de maior interesse na terra e zonas circundantes. Fontes e lavadouros públicos restaurados também são frequentes. Em terras que são de montanhas e ficam a alguma distância do mar, algo que me chamou a atenção foi a existência de praias fluviais, geralmente com acolhedores jardins relvados à beira-rio. (Tenho pena de não poder incluir aqui alguns dos muitos slides que fiz, mas terei muito gosto em enviá-los a quem lhes queira dar uma mirada.)
Como seria previsível, nesta altura encontrei múltiplos cartazes dos diversos partidos políticos, predominantemente dos principais (PSD e PS). Atendendo aos bons resultados que os partidos-ampulheta CDS e BE alcançaram nas legislativas, talvez se esperasse proeza semelhante nas autárquicas. Existe, no entanto, uma enorme diferença não só entre a estrutura tanto do PSD como do PS, mais o PCP, e os outros dois acima referidos. Estes, CDS e BE, farão uma decente oposição palavrosa no Parlamento, mas quanto a obras verdadeiras, à criação do bem-estar acima descrito, os eleitores parecem preferir claramente os fazedores aos faladores: res non verba. A obra conta.
Por último, gostaria obviamente de recomendar a zona para quem eventualmente a não conheça ainda. As aldeias de xisto da Lousã e de Góis, a excepcional aldeia do Piódão (tomar a estrada Vide-Piodão, 11 quilómetros apenas, em vez da mais moderna que não é recomendável a quem sofra de vertigens), em Penalva do Castelo a Casa da Ínsua recentemente inaugurada como hotel de charme com os seus belos jardins e solar, o Santuário de Nossa Senhora das Preces a uns quilómetros da Ponte das Três Entradas, a casa tristemente em ruínas da família de Aristides de Sousa Mendes em Cabanas de Viriato, a igreja moçárabe de Lourosa e outros pontos de interesse são recomendáveis, sempre em locais muitos florestados, com rios e arroios a ziguezaguearem por ali. Quanto à comida, é farta e bem cozinhada. E é sempre bom trazer para casa umas tantas garrafas de vinho do Dão, preferencialmente compradas nas Adegas Cooperativas, onde são mais em conta.

10/12/2009

Obama nobelizado


Foi com uma certa surpresa que eu, admirador confesso da inteligência e do estilo de Barack Obama, ouvi o anúncio da distinção do Nobel para a Paz que o comité norueguês lhe atribuiu. Não pude deixar de considerar algo extemporânea esta distinção. Quando esse mesmo prémio foi conferido a Nelson Mandela, certamente que achei absolutamente justo. Toda a vida do dirigente da África do Sul e o modo sereno mas firme como saiu do seu longo cativeiro em prisões estatais constituíam um hino à paz. Quando os líderes de Timor-Leste receberam idêntica distinção, houve uma "lição política para o mundo", tal como no caso de Mandela, mas existia muita obra feita, e também muita por fazer. O prémio constituiu um reconhecimento pelo passado e um incentivo para o futuro.
No caso de Obama é diferente. É certo que ele restituiu a América ao mundo, quebrando muito do anti-americanismo que se sentia em todo o lado, mas está muito longe de ter resolvido problemas graves na própria América e de ter encontrado soluções efectivas noutros locais do globo em que os americanos se atolaram ao longo dos anos. É natural, aliás: tem pouco mais de um ano de governação.
O principal dos problemas situa-se, sem sombra de dúvida, nas intermináveis disputas bélicas entre Israel e os palestinianos, com evidente superioridade militar da parte de Israel, país que tem repetidas vezes desrespeitado as decisões da ONU. Ainda recentemente Obama expressou, brilhantemente como sempre, as suas ideias sobre o conflito. Os israelitas deixariam de construir mais colonatos em terra palestina. Pouco tempo depois, o parlamento de Israel aprovou a construção de mais umas centenas de colonatos. Qual foi a reacção da Administração americana? Silêncio, tanto quanto me recordo. E não se pode dizer que a América se coíbe de intervir num estado soberano; de facto, já o fez tanta vez noutros países! Que se saiba, o governo americano não cortou quaisquer apoios a Israel. Terá sido este um notável contributo para a paz?
Gostei do que Obama fez relativamente às bases anti-mísseis projectadas em dois países do leste europeu. Mas isso dará para Nobel?
Pagar uma obra antes que ela seja feita não é geralmente visto como boa política. A atribuição daquele que é o maior prémio mundial do género não deve ser encarado como mero incentivo para o Presidente dos EUA. Ele tem mostrado à evidência que é uma pessoa extremamente consciente, que defende valores que são partilhados por milhões de pessoas em todo o mundo. Portanto, não é de incentivos que ele precisa. Pergunte-se, entretanto, se Obama mandou retirar as tropas americanas estacionadas no Iraque? Ainda não. Não é um facto que pensa reforçar os efectivos que estão a lutar no Afeganistão? É. E envolver-se mais no Paquistão? Parece que sim. Tudo somado, digamos que encontramos um novíssimo estilo, uma pessoa muito carismática com a qual, se não somos conservadores americanos, simpatizamos a sério, mas faltam concretizações dos seus planos e declarados anseios. Vamos aceitar, justificadamente, que um ano é um tempo curtíssimo para fazer muita obra. Em que medida é que o que já fez será suficiente para a atribuição do Prémio Nobel da Paz? Este pode soar como homenagem ao primeiro presidente não-branco dos Estados Unidos, mas também pode surgir como o oposto do res non verba. Ora, numa instituição que estuda cuidadosamente obras já realizadas, como fez este ano por exemplo no campo da Física e da Medicina, o que Barack Obama concretamente já fez, se descontarmos o importante desanuviamento através do diálogo que tem praticado com algum sucesso, é demasiado pouco para um Nobel. Mas esta é apenas uma opinião.

10/11/2009

Vícios e Virtudes

Tem sido mil vezes repetida a frase de John F. Kennedy dirigida aos cidadãos americanos "Não perguntem O que é que o Estado pode fazer por mim?, mas sim O que posso eu fazer pelo meu país?" Porém, não creio que, apesar da insistência, ela tenha sido interiorizada em Portugal. É frequentíssimo encontrarmos portugueses que adoram dizer mal daquilo que vêem ser feito no seu país. Tipicamente, diz-se que eles encontram defeitos em tudo. O alvo das suas críticas situa-se principalmente ao nível daqueles que os governam, seja a nível nacional, seja municipal ("a culpa é do...").
Quem pretenda analisar o seu posicionamento, reparará que essas pessoas se comprazem em estabelecer um cotejo entre o que acham à sua volta e aquilo que as suas utópicas expectativas desejariam. Às vezes, mau-grado a sua idade e experiência de vida, esses indivíduos mantêm um discurso perfeitamente ingénuo relativamente à natureza humana. Embora saibam que não é assim, partem do princípio de que a natureza do homem é perfeita e acreditam que é possível moldar os homens para padrões de rectidão de princípios e práticas. Com essa alteração, tudo se transformaria num paraíso terreno. Ora, se uma parte significativa do seu desagrado provém da sua sã e bem intencionada imaginação, uma outra parte advirá duma impaciência natural da idade, que os faz desesperar pelo pouco tempo que têm para ver concretizados os seus anseios. Quanto mais tiverem a sensação de que o seu tempo está perigosamente a encurtar, tanto mais cresce a sua angústia e mais se encarniçam na sua luta feroz.
Há muito de naïveté nesta atitude. Ao não quererem admitir que a natureza humana inclui perversidade q.b. e ao não julgarem com objectividade o efeito do poder sobre quem o detém, incorrem nas suas investidas, geralmente bem sucedidas, de encontrarem erros na governação, as quais depois, ventilam com sinceridade para os outros.
Esquecem, natural e humanamente, todas as facetas boas. Ignoram as comparações com países ou regiões que estejam bem piores em termos de desenvolvimento. Não é para baixo que o seu pensamento se debruça. Os termos de comparação que procuram são sempre não só mais elevados, como estão utopicamente mitificados e perfeitos, como se isso fosse humanamente possível. Foi daqui que nasceram os grandes crentes na China maoista, na União Soviética estalinista, no Portugal de Salazar ou na imaculada América. Um conhecimento in loco destas paragens e desses tempos cedo dissiparia convicções profundamente arreigadas. Por todo o lado há homens e, como o ditado diz, "onde o homem põe a mão, tira Deus a virtude". Principalmente quando essa mão está no poder.
Logo que se contacta materialmente o sonho sonhado descobrem-se nuvens que nos sonhos não cabiam. Quanto mais aprofundamos os nossos conhecimentos, mais notamos que onde algo se tapa, há sempre uma parte que se destapa.
Ora, quem conhece bem o seu país se só o seu país conhece? Quem pode falar do seu Portugal sem conhecer os pontos negros, que também os há, da Holanda, da Suiça ou da Alemanha? Se Portugal é tão mau, por que motivo haverá alguns suecos que adoram viver neste país? Dir-se-á: porque levam uma vida boa. Porque são, por exemplo, engenheiros, e para eles não há dificuldade em comprar boa comida e óptima bebida, em ter uma casa aprazível e um bonito automóvel. De que se podem queixar?
Pois sim, mas os insatisfeitos, os que estão constantemente à espera de um Messias redentor, de um político salvador, desesperam invariavelmente e expressam o seu descontentamento com desusada frequência. Geralmente não notam, tão enebriados que estão no seu fundamentalismo, que ao dizerem repetidamente mal do seu país e ao fazerem pouco ou nada para corrigir esse mal, outra coisa não fazem do que contribuir para uma atitude negativa, algo que se dispensa em Portugal, que precisa mais de gente que o levante e faça coisas úteis.

P.S. Entretanto, parafraseando Benjamin Franklin, admito que a maioria dos portugueses procura nos outros mais os vícios do que as virtudes. E em si próprios, procuram os vícios? Também eu já me tenho apanhado a verberar impiedosamente contra uns tantos governantes. Desculpo-me, como todos nós afinal nos desculpamos, por estar a defender valores que vejo corrompidos. Ergo-me, mais do que contra pessoas, contra o mau exemplo que dão, contra a prática do compadrio, da fraude, da mentira – numa palavra, contra a sua falta de ética. É difícil, e até nefasto, ficar calado em casos desses. Serei também um desses ingénuos e bem-intencionados utopistas, apesar do que atrás escrevi?

10/07/2009

Migração com E- e com I-

Apesar de todos sabermos que as migrações são de todos os tempos – por exemplo, por que razão têm os índios americanos o mesmo tipo de olhos dos asiáticos?, porque há tantos brancos em terras primitivamente habitadas por índios (v.g. Estados Unidos e Brasil)? – nunca a migração de pessoas atingiu as proporções dos dias de hoje. Em Portugal, qualquer dia começamos a habituarmo-nos a distinguir as pronúncias brasileiras de Minas Gerais das de Goiás ou de Mato Grosso.
Para nós, portugueses, é algo de estranho encontrarmos tantos estrangeiros a residirem em Portugal. Porquê? Porque o nosso hábito foi sempre o de emigrar. Comunidades portuguesas em Toronto, Montreal, New Jersey, Newark, San Diego, Rhode Island, na Venezuela, na África do Sul, em França, na Alemanha, no Luxemburgo, na Holanda, na Suiça, em Inglaterra é coisa que não falta. Emigra-se em busca de melhores condições de vida, emigra-se para fugir à pobreza, ao recrutamento para a guerra, a uma prisão iminente. Com três milhões de braços válidos a deixarem Portugal na década de 60 e início da de 70 do século passado, temos plena consciência do fenómeno.
Os anos 90 apresentaram-nos um pouco do reverso da medalha: a imigração. A guerra que se manteve em África no pós-1974 trouxe-nos largas quantidades de angolanos e angolanas. A seca e uma generalizada falta de trabalho em Cabo Verde fizeram desembarcar nestas paragens muitos caboverdianos. A desintegração da União Soviética e a situação precária de várias economias que entretanto procuravam mudar de agulha fizeram com que muitos ucranianos, moldavos e romenos arribassem a Portugal. Deu-se uma notória hemodiálise humana nos principais centros, grandes estaleiros de obras. De 0,4 por cento de emigrantes com que contávamos em 1960 passámos para 7,2 por cento em 2005. A percentagem já deve ter subido entretanto. As últimas levas têm sido de brasileiros, que hoje constituem já a comunidade estrangeira mais numerosa em Portugal. Do leste europeu, muitos regressaram aos seus países de origem, outros assentaram arraiais nesta terra, talvez para sempre.
Mas significará isto que parou a nossa emigração? De modo nenhum. Por cada 15 novos imigrantes que chegam, saem 100 portugueses para o exterior, informa-nos o Instituto Nacional de Estatística. (A situação é bem diferente daquela que o saudoso Raul Solnado costumava parodiar: "Nasci numa aldeia que tinha sempre a mesma população. Quando nascia uma criança, fugia um homem!")
Entretanto, a notícia chega-nos trazida pelo Relatório do Desenvolvimento Humano (RDH): "Portugal é o mais generoso entre todos os países do mundo em matéria de políticas de integração dos imigrantes." Distinção algo inesperada, sem dúvida, mas bem-vinda. Isabel Pereira, especialista em políticas do Gabinete do citado RDH, é franca e explica que a análise foi feita basicamente sobre o quadro jurídico. Muitas das iniciativas adoptadas datam 2007. "Como são muito recentes, é cedo ainda para avaliar a sua aplicação e a sua eficácia."
Fez bem Isabel Pereira em dizer o que disse. Foi honesta. É que as associações de emigrantes continuam a falar de um tipo de escravatura moderna que afectaria cerca de 50 mil imigrantes não legais. O grande Montesquieu (1689-1755) era um homem avisado. Legou-nos uma importante mensagem: "Quando visito um país, não verifico se nele existem boas leis, mas sim se as que existem são implementadas. Boas leis há-as em toda a parte." Ele aplaudiria as reservas de Isabel Pereira.
De facto, muito embora eu conheça pessoalmente imigrantes que estão perfeitamente integrados no nosso país e que se sentem felizes por viverem aqui, há outros que são francamente explorados. Recebendo, quando recebem, pouco dinheiro pelo seu trabalho, sem segurança social e com total precariedade, eles fazem a delícia de múltiplos empresários portugueses. Estes, conseguindo escapar-se de várias formas a uma fiscalização que é insuficiente ou pouco actuante, sentem-se orgulhosamente integrados no grandioso movimento conhecido por globalização e acabam por praticar o inverso da deslocalização das suas pequenas empresas para o estrangeiro. No seu caso, são os trabalhadores baratos que vêm até eles. E proporcionam-lhes bons lucros.

10/04/2009

Pensando melhor? - Uma experiência


Um artigo incluído no último número da revista TIME chamou-me a atenção pela novidade do assunto. Diz respeito a um dos estados norte-americanos menos conhecidos dos europeus em geral: Utah. Se fosse a Califórnia, a Florida, Nova Iorque, ou mesmo o grande enrodilhador de língua que é Massachusetts, chegaríamos lá com relativa facilidade. Mas Utah? Onde fica isso?
No mapa dos Estados Unidos, Utah fica mais para Oeste do que para Leste, entre o Colorado e Nevada, a norte do Arizona e a sul de Idaho e Wyoming. Zona índia que foi, o nome Utah deriva da língua nativa e tem o significado de "povo das montanhas". Hoje em dia, como seria previsível, já não se pode falar em povo que vive nos montes, entre eles as Montanhas Rochosas. Oitenta por cento dos 2 milhões e setecentos mil habitantes do Estado concentram-se à volta de Salt Lake City, que é a capital. Em termos de superfície, ocupa uma área equivalente a cerca de duas vezes e meia o território de Portugal. Sob o ponto de vista religioso, Utah é um dos estados mais homogéneos dos EUA, com cerca de 60 por cento da população a pertencer à Igreja Mórmon. Curiosamente, o Utah foi durante o ano passado o Estado que registou maior crescimento em termos de população nos Estados Unidos.
O povoamento de Utah data de 1847, sob a liderança do mórmon Brigham Young. Durante os 22 anos seguintes, mais de 70 mil pioneiros atravessaram as planícies e assentaram arraiais na região, como vários filmes western nos mostram. É uma terra inóspita, que os novos colonos foram tentando melhorar. "Trabalho" é o lema do Estado. Especialmente devido à sua poligamia, os mórmons tiveram problemas com o governo dos Estados Unidos, que enviou tropas para sanar a situação. A chegada de imigrantes não pertencentes à Igreja Mórmon só se concretizou com a entrada de mineiros vindos de outras partes para explorar as minas existentes no território. Em 1869, foi inaugurada a primeira linha de caminho de ferro transcontinental, com o seu terminal em Utah. O comboio trouxe muitos novos imigrantes e deu azo a grandes fortunas. Em 1890, os Mórmons aboliram oficialmente a poligamia. Hoje em dia, 95 por cento da população é branca, predominantemente de origem europeia (Inglaterra, Alemanha, Dinamarca, Suécia). Politicamente conservadoras, as famílias continuam a ter um elevado número de filhos, e de entre os costumes mais arreigados salientam-se as severas restrições existentes ao álcool e ao jogo.
Nos anos 50 e 60 do século passado, a construção da rede de estradas interestatais permitiu a descoberta de locais paradisíacos no Utah, que se tornaram famosas atracções turísticas. Por exemplo, o Utah gaba-se de possuir a melhor neve do mundo para a prática de ski. Recordaremos talvez que, há sete anos, os Jogos Olímpicos de Inverno se realizaram na zona de Salt Lake City. Hoje em dia, questões que envolvem o ambiente, como os transportes e o ordenamento do território, constituem temas prioritários em matéria de política, na medida em que o desenvolvimento consome terrenos agrícolas e afecta áreas protegidas.
Após este breve intróito sobre o Utah, que considerei necessário para melhor se entender o tema do título, eis a experiência. Há exactamente um ano, os serviços públicos, preocupados com a preservação do meio ambiente e com a poupança de energia, decidiram pôr em prática uma experiência inédita. Criaram a semana de trabalho de 4 dias, com 10 horas diárias, de molde a perfazer as mesmas 40 horas de atendimento público da semana tradicional. Assim, desde 2008 que as repartições públicas trabalham apenas de 2ª a 5ª feira, deixando livres aos 17 mil funcionários a sexta-feira, o sábado e o domingo. O horário é aquele que a foto, tirada do mencionado artigo, mostra. O lema do estado é respeitado, continua a trabalhar-se bem, não houve qualquer redução de salários e, ao fim de um ano de experimentação, foi possível chegar às seguintes conclusões principais: 1. Registou-se uma redução nos custos energéticos por parte do governo da ordem dos 13 por cento. 2. Os funcionários públicos terão poupado qualquer coisa como 6 milhões de dólares em custos de gasolina. 3. No geral, a iniciativa terá reduzido a emissão de gases com efeitos de estufa em mais de 12 mil toneladas métricas/ano. 4. Oitenta e dois em cada cem funcionários declarararm-se satisfeitos com os resultados obtidos (as objecções levantadas pelos restantes 18% tiveram que ver com dificuldades de horário devido a escolas ou creches para os filhos). 5. O horário de 10 horas diárias não pareceu excessivo aos trabalhadores, em parte devido ao incentivo da sexta-feira livre. 6. Graças ao horário alargado, muitos clientes dos serviços públicos deixaram de perder horas de trabalho para irem às repartições resolver os seus assuntos.
A concluir, diga-se que há outras cidades, tanto nos Estados Unidos como noutros países, interessadas em conhecer os resultados e em obter mais pormenores sobre a experiência.

10/03/2009

Partidos-ampulheta?


Eliminei de vez um post que aqui estava, demasiado longo e, como concluí, sem qualquer interesse para comentários. Dele respigo apenas o parágrafo final para inquirir se será um grande exagero considerar partidos-ampulheta os quatro partidos mais representados no Parlamento português – PS, PSD, CDS e BE. Na âmbula superior estarão, naturalmente, os mais votados, PS e PSD, deixando gradualmente passar areia fina para os que estão na metade inferior, respectivamente BE e CDS. É evidente que existem algumas diferenças entre a areia da parte de baixo e a do topo, mas creio que mesmo essas diferenças são essencialmente de franja: ou mais à esquerda, ou mais à direita. Do que me parece não restarem dúvidas é de que o comportamento do topo da ampulheta influencia decisivamente os resultados da areia que passa para a âmbula inferior.