O último livro de José Saramago tem desencadeado uma inegável celeuma na sociedade portuguesa. O próprio autor tem proferido umas tantas frases características de livre-pensador, que chocam com o marasmo de pensamento de uma cultura católica tradicionalista – a qual foi, aliás, a que Saramago teve a rodeá-lo como criança.
Curiosamente, um vasto número de pessoas que se vêem apanhadas na sua crença sem terem lido a Bíblia acusam Saramago de estar meramente a fazer publicidade ao seu livro. Pessoalmente, não vejo grande mal nisso, numa sociedade de consumo que gosta de identificar a existência de publicidade com a existência de liberdade. Mas se é um facto que as intervenções de Saramago acabam na realidade por publicitar o livro, não é menos verdade que são as televisões que o convidam para entrevistas e debates – porque isso atrai audiências (o que permite maior publicidade nesse canal). Entretanto, porque é que quem diz, com certo cinismo, que Saramago está a fazer publicidade do seu livro, o qual ainda por cima se lê num dia ou dois, não diz também que Saramago acaba por incentivar muitas pessoas a, finalmente, lerem a Bíblia, o tal livro que poucos portugueses leram? Quantas pessoas mais não irão comprar a Bíblia para lerem várias das estórias que lá estão? Convinha que quem falasse de publicidade a uma obra, que consideram má, lembrasse também a publicidade a uma outra obra, que decerto consideram boa.
Da Igreja Católica tem vindo, como grande argumento contra a interpretação de Saramago da história de Abel e Caim, a afirmação de que a Bíblia não é para ler literalmente. Isso significa o quê? Que cada um pode interpretar a Bíblia à sua maneira? Se sim, como se concilia essa possibilidade com a existência de um Papa, que é infalível, como todos os que frequentaram aulas de catequese aprenderam?
Porque este problema não é novo, decidi fazer copy&paste de alguns itens de uma colectânea que eu próprio elaborei há pouco tempo. Os autores das citações vão devidamente assinalados.
"Desde cedo a Igreja decidiu que apenas pessoas qualificadas, certos clérigos, por exemplo, deviam conhecer a Bíblia, que, com as suas leis e moral igualitárias e reprimendas proféticas ao poder e exaltação dos humildes, convidava à indisciplina entre os fiéis e ao desentendimento com as autoridades seculares. Só depois de censurada e suavizada poderia a Bíblia ser dada a conhecer aos leigos. Foi assim preciso aguardar o aparecimento de seitas heréticas, tais com os Lolardos (Wiclif, ca. 1376), os Luteranos (a partir de 1519) e os Calvinistas (meados do século XVI), com a sua ênfase na religião pessoal, e a tradução da Bíblia para vernáculo, para que a tradição judaico-cristã ingressasse explicitamente na consciência política europeia, ao lembrar aos soberanos que era de Deus que recebiam a riqueza e o poder, mas na condição de se portarem bem. Uma doutrina inconveniente." David S. Landes, A Riqueza e a Pobreza das Nações (1998)
"Os ensinamentos de Cristo, tal como aparecem nos Evangelhos, tiveram pouco que ver com a ética dos cristãos. A coisa mais importante sobre o Cristianismo do ponto de vista social e histórico não é Cristo mas sim a Igreja, e, se quisermos considerar o Cristianismo uma força social, não é nos Evangelhos que devemos procurar o nosso material; Cristo ensinou que deveríamos dar os nossos bens aos pobres, que não deveríamos fazer guerra, que não deveríamos ir à igreja e que não deveríamos punir o adultério. Nem os católicos, nem os protestantes demonstraram qualquer desejo forte de seguir os Seus ensinamentos a qualquer destes respeitos.
(...) Nada há de acidental quanto à diferença entre uma Igreja e o seu fundador. Logo que se supõe que a palavra de certos homens contém a verdade absoluta, surge um corpo de especialistas para interpretar os seus ensinamentos, e esses especialistas adquirem infalivelmente poder, já que possuem a chave da verdade. Como qualquer outra casta privilegiada, usam do seu poder em seu próprio benefício." Bertrand Russell (1872-1970)
"O que realmente leva os indivíduos a acreditar em Deus não é nenhum argumento intelectual. A maioria das pessoas acredita em Deus porque lhes ensinaram, desde tenra infância, a fazê-lo. Essa é a principal razão." Bertrand Russell (1872-1970)
"Como queres tu tirar com argumentos da razão ideias que o povo aprendeu sem razões?" F. Nietzsche (1844-1900)
"Gostaria de ver um mundo em que a educação tivesse por objectivo antes a liberdade mental do que o encarceramento do espírito dos jovens numa rígida armadura de dogmas, que tem em vista protegê-los ao longo da vida contra os dardos das provas imparciais. O mundo precisa de corações e de cérebros abertos, e não é mediante sistemas rígidos, quer sejam velhos ou novos, que isso pode ser conseguido." Bertrand Russell (1872-1970)
"Os católicos e os comunistas são parecidos ao acreditarem que o seu opositor não pode ser honesto e inteligente." George Orwell (1903-1950)
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