A resposta à pergunta do título é, certamente, afirmativa. Sempre o foi. Há trabalhos tão perigosos que bastarão pequenos descuidos para que um ou mais trabalhadores percam a vida: desabamento de terras, queda de pontes em contrução, explosões em minas, etc. São acidentes, uns mais fortuitos do que outros, uns com elevada responsabilidade de quem dirige, outros com responsabilidade diminuta.
E pode o trabalho conduzir trabalhadores à morte através do suicídio? Embora aqui o número dos que perdem a vida seja muito inferior, bastaria o muito propalado exemplo da France Telecom, empresa na qual nos últimos 20 meses 25 trabalhadores não conseguiram resistir a pôr termo à sua própria vida, para obtermos uma resposta igualmente afirmativa. O stress sob o qual trabalham pode atingir proporções tais que a única saída entrevista por aqueles a quem os gestores contabilisticamente chamam "recursos humanos" é o de terminar com uma existência que ainda teria um longo caminho a percorrer, com direito a bons momentos de felicidade. Porque é que isso está a suceder na France Telecom - e igualmente noutras empresas em que os casos são menos mediáticos mas também extremamente stressantes?
Neste mesmo blog elogiei há tempos o livro de João Ermida intitulado Verdade, Humildade e Solidariedade. Os meus encómios não foram para o pendor literário revelado pelo autor, mas sim para a franqueza como expõs a sua experiência de gestor com a responsabilidade global da Tesouraria e Mercados Financeiros do Grupo Santander. O livro, como o autor afirma, terá sido a sua melhor terapia contra o stress que continuamente experimentava, ele que decidiu abandonar o seu trabalho aos 38 anos. Não é propriamente contra o Grupo que João Ermida se revolta, mas sim contra a metodologia usada pelas cúpulas naquela e noutras empresas semelhantes. É a este propósito que transcrevo um passo do seu livro: "Vivemos num mundo onde é exigido aos homens e mulheres que não adormeçam em nenhum momento, pois se não estiverem preparados para o próximo desafio, este pode passar por eles sem que eles reajam. É esse medo da oportunidade perdida que nos leva a sermos cada vez mais egocêntricos, e é precisamente este egocentrismo a causa de tanto desespero no mundo actual, levando-nos a viver duas vidas bem distintas: a profissional e a pessoal. Na primeira, tudo nos é exigido e exigimos tudo de todos; na segunda, ansiamos por chegar a casa para viver segundo o código de valores que aprendemos. Na nossa vida profissional, somos chamados a desenvolver capacidades de resposta a problemas e situações onde a nossa ética tem de ser posta de lado. Somos treinados para sermos ambiciosos, gananciosos e deixar de lado qualquer tipo de comportamento que revele complacência. Quando saímos do trabalho, tentamos recuperar os valores éticos que nos ensinaram desde crianças, mas esses já dificilmente conseguem aparecer. Disto se ressente cada vez mais o nosso casamento e as relações com os nossos filhos."
Noutro passo, que considero também significativo, João Ermida elucida-nos: "Aquilo de que me apercebo é que, no mundo de hoje dos negócios, a verdade foi perdendo interesse. É mais importante fazer promessas que nunca serão cumpridas do que tentar vender a realidade dura em que se vive. Este facto leva a que empregados sejam postos em situações de total insegurança no seu trabalho, devido aos enormes objectivos que lhes são impostos, os quais só por sorte serão cumpridos."
Peço desculpa pela extensão das citações, mas sei que elas dizem mais do que aquilo que eu, felizmente sem esta experiência, poderia alguma vez descrever. Flexibilidade no trabalho e adaptabilidade a novas funções são dois conceitos muito comuns na gestão dos dias de hoje. Eles destroem equipas de trabalho como se isso fosse insignificante para os trabalhadores. Estes sentem-se obrigados pelas circunstâncias a entrar em concorrência com os seus colegas para evitar um despedimento que pode chegar a qualquer hora. Um ambiente inquisitorial é propício a denúncias pouco leais da parte de colegas. É o salve-se quem puder, "a corrosão do carácter", como Richard Sennet lhe chamou. O trabalhador não sabe geralmente quais são os verdadeiros objectivos da empresa em que labora, embora de antemão compreenda que o aumento dos lucros é o objectivo número um. Sabe também que é controlado nas suas pausas de trabalho e admoestado – ou alvo de delação – se eventualmente as excede por necessidade de descanso cerebral. Sabe também que existe no ar um clima de medo, de ausência de solidariedade, de humilhação. Sabe que a sua liberdade desapareceu. A auto-estima de que os livros teoricamente falam esvaiu-se também. Se ele sente que é a sua própria identidade que está em jogo, que apego pode ter à vida?
Apercebemo-nos de que muitos gestores de topo esqueceram a maior parte dos valores da sua cultura. Semelhantemente à maneira como vêem capitais serem aplicados de forma quase esclavagista em países asiáticos como a China, a Índia, o Paquistão e a Indonésia, pretendem impor na Europa sistemas que são por demais aviltantes para quem há muito deixou a selva para viver na urbe. Estamos a voltar a tempos e práticas que se julgavam mortas, enterradas pelo tempo e para sempre ultrapassadas pela civilização. Que tudo isto seja aceite sem grandes movimentos de revolta é também claramente um sinal dos tempos.
Os ricos devem tratar dos pobres, para que não sejam os pobres a tratar dos ricos.
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