10/31/2010

A técnica do assobio

Pessoas que lêem jornais há muitos anos sentem frequentemente o tédio de encontrarem notícias iguais ou bastante semelhantes. "Não há nada de novo na frente ocidental" é um sentimento perfeitamente comum. Devido a esta monotonia de notícias e ausência de verdadeiras novidades, sempre que surge uma coisa inédita ela deve ser recebida com entusiasmo.
Esta chega-nos do mundo do desporto, mais nomeadamente do futebol, e não deixa de me lembrar uma canção do Sérgio Godinho. Num jogo recente entre o Copenhaga e o campeoníssimo Barcelona, eis que um avançado brasileiro, de nome César Santin, da equipa dinamarquesa se encontra isolado, frente a frente apenas com José Pinto, o guarda-redes do Barça. Pode muito bem ser golo. Em princípio vai ser mesmo golo. As bancadas alvoroçam-se. Eis senão quando, para surpresa geral, o habilidoso avançado brasileiro pára. Estaca ao ouvir o apito do árbitro e, obedientemente, desinteressa-se do lance. Não marcou golo, como é evidente.
O problema é que o árbitro não tinha apitado. O jogador estava em posição perfeitamente legal. Teria sido um apito vindo das longínquas bancadas? Também não, garante o avançado. Querem lá ver que foi o malandro do guarda-redes catalão a imitar fonicamente o árbitro?!
Nem mais! O guardião do Barcelona imita com a boca o apito do árbitro na perfeição e o resultado está à vista.
A marosca só foi descoberta graças à gravação feita por um canal televisivo. O guarda-redes acabou por ser punido com dois jogos de suspensão pela UEFA. O bom do José justificou-se dizendo que costuma comunicar com os colegas através de assobios. Curiosamente, numa das ilhas montanhosas espanholas havia outrora o costume de comunicar à distância através de assobios. Não me digam que o malandro ainda é descendente desses antigos ilhéus!
"Cuidado, ó Casimiro, cuidado com as imitações!"

10/26/2010

O metro-padrão do Museu de Sèvres

Esqueci a esmagadora maioria das coisas que me ensinaram no liceu, o que aliás sucede com muito boa gente. Mais correctamente, talvez tenha feito uma selecção dos conhecimentos adquiridos, coisa que também muitos fazemos, deixando de fora o que considerava pouco relevante ou mesmo irrelevante. Seja como for, houve uma coisa que memorizei até hoje. Era algo que todos tínhamos que saber de cor na aula de Física. A questão girava à volta de medidas, mais especificamente do metro. Ora, que o metro tinha cem centímetros sabíamos nós desde a instrução primária. Mas quem é que sabia exactamente o que eram cem centímetros? Por outras palavras: havia algum metro real, tangível, que constituísse a bitola pela qual todos os metros do mundo se guiavam? Havia. E onde estava? Nos arredores de Paris. Onde, exactamente? No Museu de Sèvres. Portanto, esta era a base: "O metro-padrão, que se encontra no Museu de Sèvres, em Paris."
Da lembrança do conhecimento obrigatório deste facto passo frequentemente na minha ideia ao metro-padrão em que muitos de nós nos transformamos. Tornamo-nos, com frequência maior do que a desejável, o metro-padrão de pessoas que connosco convivem. Vejamos alguns casos.
Os meninos e meninas têm que aprender-com-facilidade na escola aquilo que o professor de Matemática explica porque, na opinião do professor, a matemática é a coisa mais fácil do mundo. O professor, que se vê como padrão dos meninos e meninas que tem à sua frente, esquece que na sua carreira até à licença ministerial que lhe foi dada para ser professor, deixou de lado disciplinas para ele pouco interessantes: Português, Inglês, História, Física, Química, Geografia, Filosofia. Para ele, a Matemática sempre foi a disciplina favorita. Para os alunos da sua aula a Matemática deve ser – tem de ser - também a disciplina favorita. Por que razão não lhe passa sequer pela cabeça que ele próprio rejeitou um número grande das disciplinas que frequentou nos seus estudos? Porque ele é o metro-padrão.
Noutro exemplo, a criança que está algo afogueada pela temperatura, tem que vestir uma camisola por causa do frio – assim disse a avó, que, com os seus 75 anos, sabe decerto mais do que a criança. O sentimento de frio que prevalece é o dela, não o da criança. Ela é o metro-padrão.
Os índios não têm alma, disseram os conquistadores espanhóis das Américas. Também os escravos negros africanos não têm alma, confirmaram os exploradores portugueses. Todos precisam de ser salvos, disseram os brancos colonizadores e traficantes. A Igreja, na sua generalidade, não discordou. Eles eram a autoridade, o metro-padrão, quem ousava discuti-los?
Na mesma linha, são as patroas que sabem, melhor do que as suas empregadas, o que estas pensam. E ensinam-nas a pensar pelo seu metro-padrão.
Na guerra, os mortos do nosso lado contam muito mais do que os do lado do inimigo. Nós é que sabemos. Os nossos mortos têm nome, idade, rosto. Do outro lado há apenas números, quando os há (basicamente para exaltar a nossa vitória).
Os nossos sentimentos, como portugueses, são muito especiais. Por exemplo, só nós é que sabemos o verdadeiro sentido de saudade, sentimento que até não existirá noutras culturas. Somos nós que o dizemos.
A dor que nós sentimos é imensurável, muito maior que a dos outros.
Uma mãe europeia tem um amor incomensuravelmente maior pelos filhos do que uma negra africana, que deixa as suas crianças andarem à solta, ao Deus-dará. Assim o diz a mãe branca, nascida na Europa.
A importância do desabamento do tecto da mina que matou 436 chineses é menor do que a morte daqueles noivos espanhóis, acabadinhos de casar, que ao chocarerm contra um poste na auto-estrada viram o seu carro incendiar-se. Morreram carbonizados. São os leitores da revista que o afirmam. Eles são o metro-padrão.
Afinal, quem mede isto tudo? Qual é o metro-padrão que mede com precisão todos estes casos? Ah, o amor-próprio, a cultura nacional, a visão obliqua, a eubjectividade a prevalecer sobre a objectividade!

Quando voltar a Paris, hei-de ir ao Museu de Sèvres. Quero parar em frente da barra do metro-padrão que serve (ou serviu durante mais de um século*) objectivamente de medida para os metros de todo o mundo. Quero ficar a observá-lo durante largos minutos, tal como faço perante um quadro que me fale à alma. Quero ver com os meus próprios olhos o metro que é, afinal, o padrão-medida de tantas coisas humanas.

*P. S. Em 1983, portanto já há 27 anos, na sequência da Teoria da Relatividade Restrita de Einstein, o metro deixou de ser a barra padrão existente no Museu de Sèvres para ser uma unidade de distância que se define como “o comprimento da trajectória percorrida no vácuo pela luz durante um intervalo de tempo que corresponde à fracção 1/299792458 de segundo.”
Podem ter mudado a definição de metro-padrão, mas cada um de nós, em maior ou menor percentagem, continua a ver-se como metro-padrão relativamente à humanidade.

10/24/2010

O estabelecimento da Inquisição em Portugal, segundo Voltaire

A imprensa de ontem noticiou a captura pela polícia judiciária portuguesa de um italiano, que terá sido responsável por inúmeros crimes de burla qualificada cometidos em Portugal. Era igualmente perseguido pela polícia espanhola desde o ano passado. Estas burlas praticadas por um estrangeiro trouxeram-me à memória um texto de Voltaire no seu Dicionário Filosófico sobre a forma como a Inquisição terá sido introduzida em Portugal, no já remoto século XVI, sendo rei deste país D. João III. Voltaire (1694-1778), note-se, mostrou estar relativamente atento a coisas que se passaram em Portugal, como por exemplo o terramoto de 1755. Foi ele que, ao estudar o comportamento de outro D. João, neste caso o V, geralmente cognominado O Magnânimo, disse com esmagadora ironia: "A religiosidade de D. João V era notória. Se queria dar uma festa, organizava uma procissão. Se queria construir um novo edifício, mandava erguer um convento. Se queria uma amante, escolhia uma freira."
Mas vamos à história da burla relativa ao estabelecimento da Inquisição no nosso país. É curiosa.


O dominicano Luís de Paramo viveu no século XVI e descreveu com a maior ingenuidade num dos seus livros como a Inquisição foi estabelecida em Portugal. Quatro outros historiadores estão perfeitamente de acordo com ele. Eis o que nos relatam.
No começo do século XV, o Papa Bonifácio IX enviara como delegados irmãos pregadores que, em Portugal, iam de cidade em cidade queimando os heréticos, os muçulmanos e os judeus; eram, todavia, ambulantes, e os próprios monarcas chegaram a queixar-se dos seus vexames. O Papa Clemente VII quis dar-lhes um estabelecimento fixo em Portugal, como já tinham em Aragão e Castela. Devido a dificuldades entre a corte de Roma e a de Lisboa, azedaram-se os ânimos, a Inquisição sofria e não se estabelecia convenientemente.
Em 1539, apareceu em Lisboa um legatário do Papa que viera, dizia ele, para estabelecer a Santa Inquisição sobre fundamentos inabaláveis. Trouxe ao rei Dom João III cartas do Papa Paulo III. Tinha outras cartas de Roma para os principais funcionários da Corte; as suas credenciais de legatário estavam devidamente seladas e assinadas; exibiu os poderes mais amplos para criar um Grande Inquisidor e todos os juízes do Santo Ofício. Tratava-se de um malandrim chamado Saavedra, que sabia imitar todas as caligrafias, fabricar e apôr falsos selos e sinetes. Aprendera este mister em Roma e aperfeiçoara-se em Sevilha, donde chegara com dois outros intrujões. O seu séquito, composto por mais de 120 lacaios, era magnífico. Para cobrir esta enorme despesa, Saavedra e os seus confidentes contraíram em Sevilha vultosos empréstimos em nome da câmara apostólica de Roma; tudo estava planeado com a mais espantosa das ardilezas.
O rei de Portugal começou por se admirar que o Papa lhe enviasse um legatário a latere sem o prevenir. O legatário retorquiu altivamente que em assunto tão premente como era o estabelecimento fixo da Inquisição, Sua Santidade não podia sofrer atrasos e que ao rei era concedida honra suficiente pelo facto de o primeiro correio que lhe trazia a notícia ser um delegado do Santo Padre. O rei não ousou replicar. Nesse mesmo dia, o legatário estabeleceu um Grande Inquisidor e mandou cobrar dízimos por toda a parte. Antes que a Corte pudesse receber respostas de Roma, já fizera queimar 200 pessoas e arrecadara uma larguíssima soma de dinheiro.
Entretanto, o marquês de Villanova, grande senhor espanhol a quem em Sevilha o legatário sacara empréstimos sobre documentos falsos, julgou oportuno fazer justiça pelas suas próprias mãos em vez de se ir intrometer com o intrujão em Lisboa. Aproveitando a ocasião em que legatário fazia uma viagem junto à fronteira com Espanha, o marquês caminhou ao seu encontro com cinquenta homens armados, raptou o Saavedra e levou-o para Madrid.
A intrujice foi em breve descoberta em Lisboa e o conselho de Madrid condenou o legatário Saavedra ao chicote e dez anos de galés; mas o mais admirável é que o Papa Paulo IV confirmou depois tudo o que fora estabelecido pelo intrujão. Ratificou com a plenitude do seu poder divino todas as pequenas irregularidades processuais e tornou sagrado o que fora puramente humano. Que importa o braço de que Deus se digna servir-se?

10/22/2010

Banhos turcos

Esta é uma abertura de post basicamente para permitir à Isabel, que está nesta altura a gozar as delícias da Turquia, deixar, sem necessidade de códigos de acesso, alguns apontamentos de viagem nos Comentários. Cá estaremos para os ler. Enjoy!

10/18/2010

Os e-mails coscuvilheiros

Quem viveu nos longos tempos de Salazar, período durante o qual havia uma enorme desconfiança em praticamente todo e qualquer interlocutor e em que, portanto, as pessoas se coibiam de expressar a sua opinião a não ser que estivessem no meio de amigos seguramente leais e capazes de guardar segredos, não pode deixar de estranhar hoje em dia o que para aí vai de informação, nem sempre fidedigna é certo, mas sempre abundante sobre governantes, deputados, gestores, juízes, etc. Os e-mails têm, na generalidade, um enorme efeito multiplicador. Enviam-se para dezenas de amigos, parentes e conhecidos, e espera-se que esses destinatários os re-enviem para outras tantas dezenas de pessoas. Este facto tanto pode ter consequências positivas – tudo depende do conteúdo e fidedignidade da informação contida – como negativas. Não raramente, tem ambas.
Neste momento em que se fala de crise e de medidas de austeridade a cada virar de esquina, surgem por todo o lado os juízes do povo. Estes são pessoas opiniosas, que se vêem bem no seu papel de denunciantes de injustiças. Por seu turno, estas são geralmente de ordem salarial. Como o e-mail, apesar de não ser anónimo, está apenas a passar informação colhida de fonte não assinada, quem passa a informação sente-se à vontade uma vez que não é o autor daquilo que a mensagem contém. Este aspecto é importante num país geralmente medroso e avesso ao risco, em que as pessoas por norma não gostam da polícia mas adoram ser, elas próprias, polícias. Por outro lado, desencadeia sentimentos de inveja que são inerentes à natureza humana. A menção de um salário muito elevado ou de pensões de reforma/aposentação de montantes igualmente elevados tem necessariamente de provocar a inveja de quem, em comparação, possui ou salários baixos ou pensões de aposentação mínimas. O injusto da questão, poder-se-á dizer, é que quem recebe ou recebeu salários mais baixos não pode aspirar a pensões muito elevadas. Aspirações reduzidas levam a remunerações igualmente reduzidas. Small pains, small gains. Lugares de grande responsabilidade ocupados por pessoas de reconhecida competência não causariam, em princípio, problemas de maior. O grande busílis reside no facto de muitos daqueles que auferem salários elevados não parecerem merecê-los, seja pelos erros gravosos que cometem e pelos quais não respondem, seja pela incompetência que muitas vezes demonstram e que os torna bons elementos do seu partido em termos de fidelidade e elementos fracos a nível de nação.
Num país como Portugal, que, não obstante os 36 anos da Revolução de Abril, mantém gritantes desigualdades em termos salariais e sociais, a revelação das remunerações auferidas por gestores públicos, assessores e políticos de vários quadrantes colhe muito mais do que noutros países de maior equilíbrio social. Por outro lado, acicata a demagogia e envieza juízos de apreciação, os quais tendem depois a nivelar todos os "privilegiados" pela mesma bitola. Nem sempre com justiça, diga-se.
Esta história de intercâmbio de mails é uma realidade com a qual qualquer governo democrático tem que se haver. Mesmo quando tenta esconder algo, há sempre um rabo de fora que, mais tarde ou mais cedo, aparece. Ora, a verdade é que este facto deveria levar os "privilegiados" a auto-corrigirem-se, mas quem é que gosta de hara-kiri? E quem começa? Porque hei-de de ser eu a começar e não ele ou ela? Neste jogo, que se desenrola numa altura em que as janelas estão escancaradas, quem duvida que os condomínios de segurança redobrada tendem a aumentar no nosso país? Será este o caminho certo?
Seja como for, é toda uma situação complexa que, em Portugal e certamente noutros lugares, transforma a Internet numa explosiva mistura de muro de lamentações e de livro de reclamações.

10/16/2010

Brincando com palavras

Faz-se um ovo
Faz-se uma ova

Faz-se um pato
Faz-se uma pata

Faz-se um rio
Faz-se uma ria

Faz-se este
Faz-se esta

Faz-se isto
Fascista.

10/13/2010

Um homem a abater

Como referi numa resposta a um comentário ao post anterior, este texto foi escrito há uns meses atrás.

Uma vez, durante a guerra colonial em África, um grupo de soldados seguia comigo em coluna. A zona onde nos encontrávamos não tinha qualquer sanzala amiga. Estávamos numa terra de ninguém, com muitos nativos refugiados nas matas não muito longe dali. De súbito, um dos soldados divisou à distância um rapaz nativo que transportava qualquer coisa à cabeça. Sem pensar duas vezes, o soldado disparou, pelo que acabou aliás por ser repreendido. Imediatamente o nativo, que ainda por cima trazia uma camisa branca vestida e como tal se tornava um bom alvo, iniciou uma corrida louca aos ziguezagues até se internar no arvoredo mais ou menos denso que lhe ficava à esquerda. Não houve segundo tiro do soldado, felizmente, até porque fazer um morto naquele território seria péssima política militar. Capturar o rapaz, pelo contrário, poderia ser muito conveniente. O que me impressionou mais, admito, num caso que poderia ter sido grave e resultado numa morte, foi ter tido ocasião de acompanhar de longe os reflexos do fugitivo, a evitar com o corpo os eventuais efeitos de mais alguns tiros que, para bem de todos, não foram disparados. E assim o nativo logrou fugir.
Porquê esta história agora? Porque há muito que se vê em Portugal a cena de um homem a abater. Ao contrário do angolano, não transporta nada à cabeça e usa geralmente casaco por cima de uma camisa, que é ocasionalmente branca mas tambérm pode ser de cor. Há anos que disparam contra ele. Até ao momento, sempre em vão. Fintando os atiradores, ele sabe-se alvejado, mas com uma guinada para a esquerda e outra para a direita, e uma corrida mais veloz em frente também em ziguezague, logra escapar-se. Por que razão os tiros não o atingem está a tornar-se uma história nacional. Há até quem considere que ele combinou com alguns dos fornecedores de armas colocar a mira com um pequeno desvio, não detectável, para que mesmo o melhor atirador não lhe acerte. Entretanto, se bem que as balas não o derrubem, certamente que o cansam. Este cansaço pode ser aproveitado pelos que o têm debaixo de olho para um dia o apanharem distraído e o abaterem de vez.
Ou conseguirá ele virar o bico ao prego e pregar uma rasteira aos seus perseguidores? Já não estamos na tal guerra de África, mas continuamos em guerra. Acesa. Pelo poder. Que poder? perguntarão uns. Com que proveito? questionarão outros. Se calhar é por dúvidas deste tipo que a mão dos atiradores eventualmente lhes treme, para além da possibilidade de as armas terem sido manhosamente alteradas. E, com mãos trémulas, incertas quanto ao que fazer a seguir, não lhe acertam de certeza. Será a mão de Deus que o protege, será o Destino de que os portugueses tanto gostam, ou estaremos apenas em presença de uma obra do acaso? Seja como for, o homem a abater mantém-se vivo. Poderá estar abatido às vezes, mas isso será por outros motivos.
Como se pode fugir assim é extraordinário! Não são minutos, nem horas, nem meses. São anos de fugas e fintas. E eu a julgar, quando vi aquele nativo angolano a virtualmente ganhar em velocidade e em torsão de tronco e de pernas a muitos atletas profissionais, que já tinha visto tudo!

10/10/2010

A Clínica Optimista

Quando o telefone fixo tocou em minha casa, olhei para o relógio. Onze da noite. Não é costume fazerem-me chamadas a esta hora, mas pode ser alguma urgência. Ou uma má notícia.
Era uma má notícia. O Adriano Mesquita, velho colega da instrução primária, comunicava-me que o Antunes tinha morrido. Antunes, que Antunes? Ah, aquele que andou connosco na D. Maria das Dores da 1ª à 4ª classe e que tem um irmão gémeo? Esse mesmo. Espera lá, mas qual foi o Antunes que morreu? O António José ou o José António? Foi o António José. Estava com um problema no estômago já há algum tempo e tinha sido internado na Clínica Optimista, na Covilhã. Clínica Optimista? Nunca ouvi falar de uma clínica com esse nome. Olha que não é exactamente nova. Já existe há vários anos. Se não me engano, abriu em 2005. Por acaso até fui à inauguração. Gostava de saber se pensas ir ao funeral. Tenho o carro na oficina e precisava de uma boleia, caso tu vás. Não sei ainda se posso. Isto assim de chofre, sabes tão bem como eu que a gente não pode faltar ao trabalho quando quer. Pois é, mas era um tipo do nosso grupo. Temos que mostrar solidariedade. Sabes que sou tão beirão como tu e nisso de solidariedade ninguém me pede meças. O que não sei é se tenho possibilidade de faltar ao serviço. A que horas é o funeral? Amanhã às 4 da tarde. Vá lá que não é má hora. Vou tentar. Mas diz-me lá mais uma coisa para eu não ir totalmente em branco: há quanto tempo estava ele na clínica? Há uns seis meses pelo menos. E dizes tu que a clínica é optimista! E é! As cores das paredes, tanto no exterior como no interior, são alegres, os quartos têm bonecos sorridentes nas paredes, o pessoal de enfermagem é muito simpático e as notícias que te dão são sempre animadoras. Mesmo quando de facto não são? Suponho que sim. Sabes que o António José era casado com uma irmã da minha mulher, de modo que eu acabava por ter muito mais contacto com ele do que tu. E perguntávamos de vez em quando como é que ele ia. Que estava melhor. Noutra vez que liguei, disseram-me que ele estava mais gordinho (porque o Tó Zé tinha perdido muito peso), e que tinha melhorado bastante. O que eu esperava é que ele saísse da clínica todo refeito. E, de repente, o director mandou anunciar à família que ele tinha morrido. Parece que, afinal, está pele e osso. Era um cancro o que ele tinha no estômago. Então, e ninguém tinha informado que o Tó Zé tinha um cancro? Bem, de certeza que eles sabiam, mas as notícias que davam à minha mulher falavam sempre em melhoras. Foi uma surpresa para todos. Ouve lá: e a família não faz queixa do director da clínica?! Sabes como é, esta é uma teoria relativamente nova de que notícias boas, positivas, deixam a família mais sossegada. Escusam de se apoquentar. Quando o doente morrer, morreu. Têm é agora uma bela conta para pagar que vai deixar a viúva ainda mais de rastos. Linda história essa, ó Adriano. Então a coisa é assim. Especialidade da Covilhã, certamente. E eu a julgar que eles só tinham bons queijos. Com que então Optimista?! Se eu fosse à família do Tó Zé fazia uma espera ao director e dava-lhe um enxurro de porrada! A ver se ele não mudava imediatamente o nome da clínica! O certo é que amanhã lá tenho que ir! Não me calha nada a despesa extra de gasolina neste momento, mas o que tem de ser tem muita força. Vou-te buscar por volta do meio-dia.

10/08/2010

Laconicamente

Quem não tem dinheiro, não TGVícios.

Esperança

Após longa ausência, volto a trazer poesia a este blogue. Nos tempos difíceis que vivemos é fundamental não perder a esperança. E que melhor incentivo ao ânimo e à coragem do que esta profissão de fé da grande Natália? :

CREIO NOS ANJOS QUE ANDAM PELO MUNDO


Creio nos anjos que andam pelo mundo,

Creio na deusa com olhos de diamantes,

Creio em amores lunares com piano ao fundo,

Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,


Creio num engenho que falta mais fecundo

De harmonizar as partes dissonantes,

Creio que tudo é eterno num segundo,

Creio num céu futuro que houve dantes,


Creio nos deuses de um astral mais puro,

Na flor humilde que se encosta ao muro,

Creio na carne que enfeitiça o além,


Creio no incrível, nas coisas assombrosas,

Na ocupação do mundo pelas rosas,

Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen.


(Natália Correia)

10/06/2010

O contributo para a nossa felicidade

Há verdades que estão fora do seu tempo e que, por essa razão, não pegam. A este propósito, lembro-me do filme "O homem que matou Liberty Valance". No argumento do filme há um jornalista que pretende saber da boca de um senador que nasceu na terra em que o filme decorre o que se passou para fazer dele um herói. Ele conta-lhe, e do seu relato verídico resulta uma verdade diferente da história que habitualmente se ouve. No final, o jornalista decide não narrar no seu jornal a verdade que acabou de ouvir e prosseguir com o mito: "This is the West, Sir. When the legend becomes fact, print the legend." Por outras palavras, quando o mito é mais interessante do que a realidade, é ele que acaba por prevalecer.
Porquê?
Na minha carreira pessoal de professor, recordo-me sempre do que se passava com os meus alunos, todos maiores de idade e na generalidade educados em famílias tradicionais e respeitadoras dos valores da Pátria. Quando eu lhes dava versões da História de Portugal algo diferentes das convencionais, não me chamavam mentiroso, mas desconfiavam do meu patriotismo, que para muitos era uma importante pedra de toque.
Ora, entre a visão patriótica, deliberadamente manipuladora de alguns factos, e a verdade documentada e objectiva pode existir um enorme abismo. O patriotismo torna-se, a certa altura, como um acto de fé, que não se explica racionalmente mas no qual se acredita piamente. E se a visão patriótica nos torna felizes, enquanto que uma outra, possivelmente mais verídica, nos esfria a alma, tem de compreender-se que a natureza humana, tão recheada de amor-próprio e adulante de si mesma, mantenha a primeira e despreze ou deliberadamente ignore a segunda.
É claro que tudo isto tem o seu tempo. Uma visão patriótica constrói-se frequentemente através de uma memória que tanto serve para recordar como para esquecer. Ao ocultar determinados aspectos mais indecorosos para as nossas cores e ao realçar outros que nos são claramente favoráveis, a visão patriótica faz-nos sentir orgulhosos dos nossos antepassados e de pertencermos à mesma pátria daqueles que tanto se distinguiram. Indirectamente, deles possuiremos uma costela, que poderá a qualquer momento ser accionada.
Destruir esta óptica causa uma natural perturbação em quem a possui e provoca uma inclinação para destruir aquele que se apresenta como mensageiro de uma outra verdade. Este é um dos motivos pelos quais as novas verdades só vingam quando à sua volta existe o ambiente próprio para elas vingarem.
Relativamente a este assunto, vem-me quase sempre à mente um cidadão idoso e até simpático e afável que uma vez me interpelou após uma comunicação que apresentei num simpósio. Entre outras coisas que não foram minimamente contestadas, considerei como relevante na educação dos príncipes da denominada Ínclita Geração a influência da educação inglesa, fornecida por tutores da realeza de Inglaterra, especialmente vindos a Portugal a convite da Rainha, que era inglesa de nascimento (Filipa de Lencastre). Dessa educação, que terá permeado os infantes de ideias inovadoras em termos de horizontes e de ambição relativamente à tradicional cultura portuguesa, teria resultado o brilhantismo dessa geração (Infante D. Henrique, rei D. Duarte, Infante D. Pedro, D. Isabel de Borgonha, etc.). O cidadão idoso, que era um dos meus anfitriões, falou com voz de orgulho ferido. Atribuir uma parte importante das facetas dos príncipes ao lado materno, estrangeiro, parecia-lhe menos correcto. Por meu lado, eu tinha-me limitado a usar a voz da minha verdade, documentada. Aquele era um choque normal. Contudo, o meu ponto de vista não tinha, naquele contexto, qualquer possibilidade de vingar. Embora talvez tenha semeado algo diferente na mente de um outro espectador, decerto que a minha maior objectividade não contribuía para a felicidade da maioria.
Há verdades cuja aceitação ou rejeição dizem muito sobre a natureza da sociedade que as rejeita ou aceita. Na vida política do dia-a-dia, o contributo para a sua felicidade acaba por ser decisivo para numerosos eleitores. Estes tendem a perdoar eventuais faltas a um candidato que fez claramente obra mas de quem se diz que cometeu igualmente várias ilegalidades. Compreende-se: aquele candidato fez coisas que nos alegram. Contribuiu efectivamente para uma melhoria do concelho, da região, ou do país. Se esse candidato for condenado nos tribunais, isso significa apenas "mais uma condenação", o que não se traduz em algo de especialmente positivo para os eleitores. Estes sabem de muitas outras pessoas que, diz-se, cometeram vários actos ilegais e não foram minimamente punidos. É por isso que darmos o nosso voto ao candidato acusado é apostarmos na continuação do nosso bem-estar, que certamente preferimos ao acto eventual de uma justiça que, ela própria, está longe de ser justa para com todos.
No caso de Portugal, assim se entendem melhor as reeleições de Isaltino Morais e de Valentim Loureiro, por exemplo, de Alberto João Jardim e de José Sócrates. Porém, logo que a economia no local em que esse candidato vai a eleições comece a correr mal, com elevados níveis de desemprego, não se pode estranhar que, congruentemente, a sua faceta menos legal venha ao de cima e ele acabe por perder a reeleição. É a vida.
Dizia o candidato brasileiro Tiririca que o Brasil consigo "pior também não fica". É essa a tónica certa num país que tem atravessado um bom momento nestes últimos anos. Já não seria correcta se o país se estivesse a afundar, em vez de, felizmente, encontrar cada vez mais petróleo nos fundos da sua costa.
Ficam também claras, creio eu, pelo menos duas coisas: 1. Quem sabe por que razão vota num determinado candidato é o eleitor local e não as pessoas que vivem noutros lugares, inclusivamente no estrangeiro. Quando George W. Bush foi reeleito pelos americanos, a Europa perguntou-se por que motivo estariam os Estados Unidos a cometer tamanho erro. Muitos americanos, no entanto, que andavam a ser verdadeiramente manipulados e intoxicados por vários meios de comunicação, não tiveram dúvidas. Além disso, na altura da eleição havia apenas ameaças de má evolução da economia, e o 11 de Setembro ajudava o Presidente. Na mesma linha, também sempre que Alberto João Jardim é reeleito na Madeira, os portugueses do Continente perguntam-se: porquê? Os eleitores locais sabem-no melhor do que quem lá não vive. 2. Nem o Brasil nem Portugal são países muito rigorosos quanto aos valores que defendem. De verdadeiro puritanismo religioso há aqui muito pouco. "Deus disse-nos para sermos bons, mas não para sermos parvos" é o princípio geralmente seguido.

10/02/2010

Turista em Lisboa




Para atirar para trás das costas conversas sobre a crise e as politiquices do costume, vesti este fim-de-semana a pele de turista na (minha) cidade de Lisboa. O tempo continua magnífico e esta luminosidade, embora frequente entre nós, está longe de ser comum por essa Europa fora. Nos finais de Setembro e durante grande parte do mês de Outubro, Lisboa e o seu casario costumam adquirir uns tons especiais, que são uma maravilha para os olhos. Para todos os olhos que param para a admirar.
Uma primeira impressão foi a de que Lisboa está cheia de turistas estrangeiros. Espanhóis são em grande número, mas também italianos, suecos, holandeses, suíços, franceses, ingleses. Com a presença dos muitos imigrantes que cá vivem e trabalham, o cosmopolitismo da cidade aumentou enormemente. Por vezes é preciso escutarmos com atenção para ver que língua as pessoas perto de nós estão a usar. Eu não diria que o português se tornou língua rara por estas paragens, mas chega a ser já saudada com alguma satisfação pela alma lusa que percorre as ruas, anda no metro, salta para o autocarro ou mesmo para o eléctrico. A propósito, se o eléctrico for o 15, que percorre a zona ribeirinha até Algés, eu diria que ao fim-de-semana cerca de 50 por cento dos passageiros são estrangeiros. E se for o 28, que começa nos Prazeres e dá a volta pela Baixa e sobe as encostas do Castelo, atrevo-me a dizer que a percentagem é ainda superior.
Isto de transportes na cidade não é pura conversa. Para sermos turistas lisboetas mais a sério, devemos deixar o carro estacionado algures e não pensar nele uma única vez. Os transportes da cidade são muito razoáveis. Não só as estações do Metropolitano são quase todas muito apelativas, como também tanto os autocarros como a maioria dos eléctricos possuem ar condicionado e assentos confortáveis. A rede do Metro é já suficientemente ampla para nos levar rapidamente a diversos sítios, onde poderemos tomar outro meio de transporte ou deambular pelas ruas.
Algo que se nota ultimamente no turismo estrangeiro de Lisboa é uma forte dose de juventude. Digamos que todas as idades estão, naturalmente, representadas, mas a camada jovem parece-me sobressair. Os voos low cost contribuem poderosamente para isso. Mas não admira que haja tantos jovens. Tal como se oferece, com a sua variada vida nocturna contrabalançada com calma e sossego durante o dia, a sua cor e os seus altos e baixos de onde tão depressa se vê o rio como temos que adivinhá-lo, Lisboa tem um encanto muito próprio. Para a juventude, é especialmente atraente deixar-se perder num bairro pitoresco, escadinhas abaixo ou acima, ainda com um certo cheiro à vida do antigamente. Os mais idosos não se aventuram por esses lados, que as pernas já lhes pesam e as bengalas não dão muito jeito num empedrado como o das calçadas de Alfama ou vielas da Mouraria. Para os mais jovens, porém, é toda uma descoberta. A baixa criminalidade da cidade ajuda. E os costumes portugueses no geral. Não é por coincidência nem devido a cunhas que Lisboa acabou de conquistar ontem pela segunda vez consecutiva o título de Melhor Destino para City Breaks na Europa, numa cerimónia que decorreu na Turquia. Entre outros destinos nomeados estavam Londres, Madrid, Paris, Praga, Roma, Veneza, Istambul, Oslo e Tallin.
Também no dia de ontem, depois de uma breve saltada ao meu bem conhecido Parque das Nações com um passeio à beira-rio, fui visitar uma das várias exposições que celebram o centenário da República. Fui ver a Viajar, para ter uma ideia mais concreta de como o turismo atravessou estes últimos cem anos, com especial incidência nos seus primórdios. Sem ser uma exposição excelente, dá alguma informação. Realce-se o facto de serem oferecidos tantos dados informativos num espaço bastante exíguo (nada que se compare com o da Cordoaria). No regresso, por ruas animadas, uma paragem para um repousado batido na esplanada da Suiça, do lado da Praça da Figueira, e uma meia-de-leite com torrada para quem estava comigo. A encosta de casas do lado do Castelo recebia todo o sol do fim-de-tarde. A cidade mais tradicional era mais uma vez a grande artista de strip-tease que sempre foi: só a pouco-e-pouco é que se vai despindo e revelando. Arrelia e atrai o turista que, para a conhecer melhor, tem de ir vê-la de perto, mergulhar nela. A cidade não facilita. É exigente.
Entretanto havia música no Rossio. Perto de minha casa já está igualmente montado um enorme palco para a noite de 4 para 5 de Outubro. Aliás, a cidade está cheia de música, desde as estações do Metro até à rua.
Hoje, sábado, foi um dia obviamente diferente, mas com novas cenas de cidade. O amigo autor das Sugestões que este blog regularmente inclui escreveu-me a falar de uma regata de canoas no Tejo. E ainda de um concerto dado em frente ao Museu de Marinha pela Banda da Armada. Não resisti. Com a tarde ensolarada e uma temperatura amena, foi um prazer dar um salto à zona de Belém, onde havia centenas e centenas de pessoas. Imensos estrangeiros também. O Tejo estava lindo. As canoas que participaram na regata não têm, infelizmente, muita cor, mas estão aparentemente bem conservadas e com isso ofereceram um espectáculo atraente, até porque no mesmo Tejo velejavam vários barquinhos mais pequenos, creio que da classe Optimist, a cirandar por ali e a rasar as canoas que competiam em festa amigável incluída nas comemorações do 5 de Outubro.
O clima era de festa, a juventude imperava, embora junto à Banda da Armada houvesse muitos cabelos brancos, de saudade. Não se falava de coisas que fossem menos alegres, gozava-se o momento. O contrário seria ofender o óptimo clima e todo o ambiente de que desfrutávamos. Não ouvi ninguém discutir, mas vi crianças a correr e a andar de bicicleta, casais jovens a passearem bebés nos seus carrinhos, e também um ou outro casal de mais idade sentado a gozar o sol.
Lisboa ficou bem na fotografia. Passou no teste com nota elevada. Amanhã há mais.