10/13/2010

Um homem a abater

Como referi numa resposta a um comentário ao post anterior, este texto foi escrito há uns meses atrás.

Uma vez, durante a guerra colonial em África, um grupo de soldados seguia comigo em coluna. A zona onde nos encontrávamos não tinha qualquer sanzala amiga. Estávamos numa terra de ninguém, com muitos nativos refugiados nas matas não muito longe dali. De súbito, um dos soldados divisou à distância um rapaz nativo que transportava qualquer coisa à cabeça. Sem pensar duas vezes, o soldado disparou, pelo que acabou aliás por ser repreendido. Imediatamente o nativo, que ainda por cima trazia uma camisa branca vestida e como tal se tornava um bom alvo, iniciou uma corrida louca aos ziguezagues até se internar no arvoredo mais ou menos denso que lhe ficava à esquerda. Não houve segundo tiro do soldado, felizmente, até porque fazer um morto naquele território seria péssima política militar. Capturar o rapaz, pelo contrário, poderia ser muito conveniente. O que me impressionou mais, admito, num caso que poderia ter sido grave e resultado numa morte, foi ter tido ocasião de acompanhar de longe os reflexos do fugitivo, a evitar com o corpo os eventuais efeitos de mais alguns tiros que, para bem de todos, não foram disparados. E assim o nativo logrou fugir.
Porquê esta história agora? Porque há muito que se vê em Portugal a cena de um homem a abater. Ao contrário do angolano, não transporta nada à cabeça e usa geralmente casaco por cima de uma camisa, que é ocasionalmente branca mas tambérm pode ser de cor. Há anos que disparam contra ele. Até ao momento, sempre em vão. Fintando os atiradores, ele sabe-se alvejado, mas com uma guinada para a esquerda e outra para a direita, e uma corrida mais veloz em frente também em ziguezague, logra escapar-se. Por que razão os tiros não o atingem está a tornar-se uma história nacional. Há até quem considere que ele combinou com alguns dos fornecedores de armas colocar a mira com um pequeno desvio, não detectável, para que mesmo o melhor atirador não lhe acerte. Entretanto, se bem que as balas não o derrubem, certamente que o cansam. Este cansaço pode ser aproveitado pelos que o têm debaixo de olho para um dia o apanharem distraído e o abaterem de vez.
Ou conseguirá ele virar o bico ao prego e pregar uma rasteira aos seus perseguidores? Já não estamos na tal guerra de África, mas continuamos em guerra. Acesa. Pelo poder. Que poder? perguntarão uns. Com que proveito? questionarão outros. Se calhar é por dúvidas deste tipo que a mão dos atiradores eventualmente lhes treme, para além da possibilidade de as armas terem sido manhosamente alteradas. E, com mãos trémulas, incertas quanto ao que fazer a seguir, não lhe acertam de certeza. Será a mão de Deus que o protege, será o Destino de que os portugueses tanto gostam, ou estaremos apenas em presença de uma obra do acaso? Seja como for, o homem a abater mantém-se vivo. Poderá estar abatido às vezes, mas isso será por outros motivos.
Como se pode fugir assim é extraordinário! Não são minutos, nem horas, nem meses. São anos de fugas e fintas. E eu a julgar, quando vi aquele nativo angolano a virtualmente ganhar em velocidade e em torsão de tronco e de pernas a muitos atletas profissionais, que já tinha visto tudo!

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