10/26/2010

O metro-padrão do Museu de Sèvres

Esqueci a esmagadora maioria das coisas que me ensinaram no liceu, o que aliás sucede com muito boa gente. Mais correctamente, talvez tenha feito uma selecção dos conhecimentos adquiridos, coisa que também muitos fazemos, deixando de fora o que considerava pouco relevante ou mesmo irrelevante. Seja como for, houve uma coisa que memorizei até hoje. Era algo que todos tínhamos que saber de cor na aula de Física. A questão girava à volta de medidas, mais especificamente do metro. Ora, que o metro tinha cem centímetros sabíamos nós desde a instrução primária. Mas quem é que sabia exactamente o que eram cem centímetros? Por outras palavras: havia algum metro real, tangível, que constituísse a bitola pela qual todos os metros do mundo se guiavam? Havia. E onde estava? Nos arredores de Paris. Onde, exactamente? No Museu de Sèvres. Portanto, esta era a base: "O metro-padrão, que se encontra no Museu de Sèvres, em Paris."
Da lembrança do conhecimento obrigatório deste facto passo frequentemente na minha ideia ao metro-padrão em que muitos de nós nos transformamos. Tornamo-nos, com frequência maior do que a desejável, o metro-padrão de pessoas que connosco convivem. Vejamos alguns casos.
Os meninos e meninas têm que aprender-com-facilidade na escola aquilo que o professor de Matemática explica porque, na opinião do professor, a matemática é a coisa mais fácil do mundo. O professor, que se vê como padrão dos meninos e meninas que tem à sua frente, esquece que na sua carreira até à licença ministerial que lhe foi dada para ser professor, deixou de lado disciplinas para ele pouco interessantes: Português, Inglês, História, Física, Química, Geografia, Filosofia. Para ele, a Matemática sempre foi a disciplina favorita. Para os alunos da sua aula a Matemática deve ser – tem de ser - também a disciplina favorita. Por que razão não lhe passa sequer pela cabeça que ele próprio rejeitou um número grande das disciplinas que frequentou nos seus estudos? Porque ele é o metro-padrão.
Noutro exemplo, a criança que está algo afogueada pela temperatura, tem que vestir uma camisola por causa do frio – assim disse a avó, que, com os seus 75 anos, sabe decerto mais do que a criança. O sentimento de frio que prevalece é o dela, não o da criança. Ela é o metro-padrão.
Os índios não têm alma, disseram os conquistadores espanhóis das Américas. Também os escravos negros africanos não têm alma, confirmaram os exploradores portugueses. Todos precisam de ser salvos, disseram os brancos colonizadores e traficantes. A Igreja, na sua generalidade, não discordou. Eles eram a autoridade, o metro-padrão, quem ousava discuti-los?
Na mesma linha, são as patroas que sabem, melhor do que as suas empregadas, o que estas pensam. E ensinam-nas a pensar pelo seu metro-padrão.
Na guerra, os mortos do nosso lado contam muito mais do que os do lado do inimigo. Nós é que sabemos. Os nossos mortos têm nome, idade, rosto. Do outro lado há apenas números, quando os há (basicamente para exaltar a nossa vitória).
Os nossos sentimentos, como portugueses, são muito especiais. Por exemplo, só nós é que sabemos o verdadeiro sentido de saudade, sentimento que até não existirá noutras culturas. Somos nós que o dizemos.
A dor que nós sentimos é imensurável, muito maior que a dos outros.
Uma mãe europeia tem um amor incomensuravelmente maior pelos filhos do que uma negra africana, que deixa as suas crianças andarem à solta, ao Deus-dará. Assim o diz a mãe branca, nascida na Europa.
A importância do desabamento do tecto da mina que matou 436 chineses é menor do que a morte daqueles noivos espanhóis, acabadinhos de casar, que ao chocarerm contra um poste na auto-estrada viram o seu carro incendiar-se. Morreram carbonizados. São os leitores da revista que o afirmam. Eles são o metro-padrão.
Afinal, quem mede isto tudo? Qual é o metro-padrão que mede com precisão todos estes casos? Ah, o amor-próprio, a cultura nacional, a visão obliqua, a eubjectividade a prevalecer sobre a objectividade!

Quando voltar a Paris, hei-de ir ao Museu de Sèvres. Quero parar em frente da barra do metro-padrão que serve (ou serviu durante mais de um século*) objectivamente de medida para os metros de todo o mundo. Quero ficar a observá-lo durante largos minutos, tal como faço perante um quadro que me fale à alma. Quero ver com os meus próprios olhos o metro que é, afinal, o padrão-medida de tantas coisas humanas.

*P. S. Em 1983, portanto já há 27 anos, na sequência da Teoria da Relatividade Restrita de Einstein, o metro deixou de ser a barra padrão existente no Museu de Sèvres para ser uma unidade de distância que se define como “o comprimento da trajectória percorrida no vácuo pela luz durante um intervalo de tempo que corresponde à fracção 1/299792458 de segundo.”
Podem ter mudado a definição de metro-padrão, mas cada um de nós, em maior ou menor percentagem, continua a ver-se como metro-padrão relativamente à humanidade.

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