10/24/2010

O estabelecimento da Inquisição em Portugal, segundo Voltaire

A imprensa de ontem noticiou a captura pela polícia judiciária portuguesa de um italiano, que terá sido responsável por inúmeros crimes de burla qualificada cometidos em Portugal. Era igualmente perseguido pela polícia espanhola desde o ano passado. Estas burlas praticadas por um estrangeiro trouxeram-me à memória um texto de Voltaire no seu Dicionário Filosófico sobre a forma como a Inquisição terá sido introduzida em Portugal, no já remoto século XVI, sendo rei deste país D. João III. Voltaire (1694-1778), note-se, mostrou estar relativamente atento a coisas que se passaram em Portugal, como por exemplo o terramoto de 1755. Foi ele que, ao estudar o comportamento de outro D. João, neste caso o V, geralmente cognominado O Magnânimo, disse com esmagadora ironia: "A religiosidade de D. João V era notória. Se queria dar uma festa, organizava uma procissão. Se queria construir um novo edifício, mandava erguer um convento. Se queria uma amante, escolhia uma freira."
Mas vamos à história da burla relativa ao estabelecimento da Inquisição no nosso país. É curiosa.


O dominicano Luís de Paramo viveu no século XVI e descreveu com a maior ingenuidade num dos seus livros como a Inquisição foi estabelecida em Portugal. Quatro outros historiadores estão perfeitamente de acordo com ele. Eis o que nos relatam.
No começo do século XV, o Papa Bonifácio IX enviara como delegados irmãos pregadores que, em Portugal, iam de cidade em cidade queimando os heréticos, os muçulmanos e os judeus; eram, todavia, ambulantes, e os próprios monarcas chegaram a queixar-se dos seus vexames. O Papa Clemente VII quis dar-lhes um estabelecimento fixo em Portugal, como já tinham em Aragão e Castela. Devido a dificuldades entre a corte de Roma e a de Lisboa, azedaram-se os ânimos, a Inquisição sofria e não se estabelecia convenientemente.
Em 1539, apareceu em Lisboa um legatário do Papa que viera, dizia ele, para estabelecer a Santa Inquisição sobre fundamentos inabaláveis. Trouxe ao rei Dom João III cartas do Papa Paulo III. Tinha outras cartas de Roma para os principais funcionários da Corte; as suas credenciais de legatário estavam devidamente seladas e assinadas; exibiu os poderes mais amplos para criar um Grande Inquisidor e todos os juízes do Santo Ofício. Tratava-se de um malandrim chamado Saavedra, que sabia imitar todas as caligrafias, fabricar e apôr falsos selos e sinetes. Aprendera este mister em Roma e aperfeiçoara-se em Sevilha, donde chegara com dois outros intrujões. O seu séquito, composto por mais de 120 lacaios, era magnífico. Para cobrir esta enorme despesa, Saavedra e os seus confidentes contraíram em Sevilha vultosos empréstimos em nome da câmara apostólica de Roma; tudo estava planeado com a mais espantosa das ardilezas.
O rei de Portugal começou por se admirar que o Papa lhe enviasse um legatário a latere sem o prevenir. O legatário retorquiu altivamente que em assunto tão premente como era o estabelecimento fixo da Inquisição, Sua Santidade não podia sofrer atrasos e que ao rei era concedida honra suficiente pelo facto de o primeiro correio que lhe trazia a notícia ser um delegado do Santo Padre. O rei não ousou replicar. Nesse mesmo dia, o legatário estabeleceu um Grande Inquisidor e mandou cobrar dízimos por toda a parte. Antes que a Corte pudesse receber respostas de Roma, já fizera queimar 200 pessoas e arrecadara uma larguíssima soma de dinheiro.
Entretanto, o marquês de Villanova, grande senhor espanhol a quem em Sevilha o legatário sacara empréstimos sobre documentos falsos, julgou oportuno fazer justiça pelas suas próprias mãos em vez de se ir intrometer com o intrujão em Lisboa. Aproveitando a ocasião em que legatário fazia uma viagem junto à fronteira com Espanha, o marquês caminhou ao seu encontro com cinquenta homens armados, raptou o Saavedra e levou-o para Madrid.
A intrujice foi em breve descoberta em Lisboa e o conselho de Madrid condenou o legatário Saavedra ao chicote e dez anos de galés; mas o mais admirável é que o Papa Paulo IV confirmou depois tudo o que fora estabelecido pelo intrujão. Ratificou com a plenitude do seu poder divino todas as pequenas irregularidades processuais e tornou sagrado o que fora puramente humano. Que importa o braço de que Deus se digna servir-se?

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