8/24/2012


A sanha destruidora

Dentro dos parâmetros da minha educação académica sempre me custou entender que, num determinado período em que deveria ter ouvido os meus professores falar sobre um facto ou evento importante, eles não o tivessem feito. Não estava no programa. E não estava no programa porque tinha sido considerado inconveniente incluí-lo. A descoberta desse evento ou facto só viria eu a fazer por vezes anos mais tarde. Geralmente por mero acaso. 
Talvez o facto que mais me tenha impressionado negativamente neste domínio foi quando visitei Rabat. Aí deparei com um imponente local sagrado, numa zona plana sobranceira ao mar (se a minha memória está correcta).  Nesse local, para além de uma grande e rica mesquita com relativamente poucos anos e do majestoso Mausoléu de Mohammed V, existia uma área enorme com um minarete (Torre de Hassan) que outrora teria sido bem mais alto mas que se encontrava parcialmente destruído. Em frente uma enorme quantidade de colunas – 365, tantas quantas os dias do ano - também com o aspecto de ruína. O guia informou-nos que naquela zona tinha em tempos sido erigida pelo sultão Almansor a maior mesquita do mundo muçulmano. Ali, onde a terra acabava e o mar começava. No Al Gharb (Ocidente) muçulmano. Quando, impressionado, perguntei o que sucedera à mesquita para estar assim em tão grande ruína, tive como resposta que fora destruída por um fortíssimo tremor de terra. Em que data?, perguntei. 1 de Novembro de 1755 da era cristã.
Senti-me perturbado. Durante a minha educação académica, incluindo a universitária, tinha estudado várias vezes o tremor de terra de 1755. Nunca ouvira dizer que esse mesmo terramoto tinha destruído a maior mesquita do mundo muçulmano. Mais do que perturbado, senti-me revoltado. Por que motivo teriam escamoteado aquela informação? Seguramente porque não era conveniente. Para quê incluir aquele “pormenor” de um mundo que, aparentemente, não era o nosso? Mais: que era nosso rival!
Anos mais tarde, quando no claustro da Sé de Lisboa foram descobertos restos de uma mesquita que tinha existido no local, confirmei a minha impressão: o que não é da nossa religião é para destruir. Ocultar. Exterminar.
Na mesma linha, entendi facilmente o que terá sucedido às centenas de sinagogas que certamente existiram em todo o Portugal. Sobraram muito poucas e em mau estado. Das três religiões monoteístas – islamismo, judaísmo e cristianismo – esta última tinha vencido aqui no território português e destruído o que nos seus domínios existia das religiões contrárias. Acabava-se a peçonha. No ensino, bastava não falar do assunto. Era uma censura conveniente.
Repare-se que em antigos mosteiros e conventos cristãos foram frequentemente instalados hospitais, escolas, repartições públicas e outras instituições. Mas no caso de edifícios de uma religião contrária, não era adaptação que se fazia, mas sim a destruição.
Entretanto, em Istambul gostei de ver que a famosa Mesquita – hoje Museu - de Santa Sofia tinha no passado sido uma catedral cristã (construída no século VI pelo imperador bizantino Justiniano). Tinham-lhe sido feitos aditamentos quando em 1453, com a conquista de Constantinopla pelos turcos otomanos, o templo foi transformado em mesquita, mas não existiu uma destruição. 
Em Portugal e em Espanha gostei de encontrar em museus numerosas estátuas romanas em razoável estado de conservação. Os muçulmanos, que como se sabe vieram para a Península Ibérica séculos após a dominação romana, não as tinham destruído. Eram demasiado belas. Tinham-lhes no entanto em vários casos retirado a cabeça, que enterraram, porque a sua religião não lhes permitia a representação da figura humana.

Tudo este intróito vem a propósito da sanha destruidora que os fundamentalistas do actual governo têm feito relativamente a instituições que, conquanto não fossem necessariamente más e fossem certamente passíveis de melhoria, ostentavam a chancela de criação ou manutenção feita por um governo diferente e rival: o socialista. Ao diabolizar o anterior chefe do governo, José Sócrates, o governo actual considerou, por assim dizer, que tudo o que o diabo havia feito tinha obrigatoriamente de ser exterminado. Arrancado pela raiz sempre que possível. 

José Sócrates cometeu erros graves. O descontrolo das contas públicas não foi certamente o seu mal menor. A criação de parcerias público-privadas, cujo pecado original provinha da construção da ponte Vasco da Gama (Lusoponte), idem. A aprovação da construção de auto-estradas com número claramente insuficiente de utentes, também. Assim como a visão super-optimista do TGV, com a qual nunca pude concordar. O aumento de 2,9 por cento concedido aos funcionários públicos em vésperas de eleições em que Sócrates era candidato foi com certeza mais um erro grave. E neste número cabe também a muito imperfeita resolução do caso BPN.
Entretanto, não terá sido o primeiro-ministro anterior o grande culpado pelos desmandos da banca portuguesa. Não foi dele a culpa máxima da construção desenfreada de imobiliário que se fez por esse país fora. Embora sem sucesso, tentou suster o descalabro da Madeira. Melhorou em muito o parque escolar (mas exagerou na despesa). Procurou mercados fora da União Europeia, como aliás países como a Alemanha e a França igualmente faziam.
Porém, pelo actual governo Sócrates foi visto como mais uma mesquita ou mais uma sinagoga que urgia deitar abaixo. Tal como a juventude costuma ridicularizar a experiência, em parte porque não a possui e gosta de proclamar a existência de um mundo novo que nada tem a ver com um passado que será para esquecer, este governo, o mais jovem e mais “angolano” que já tivemos, ignorou propositadamente muitas coisas boas que tinham sido feitas.
Nesta linha, atrevo-me a dizer que nunca houve um governo em Portugal que tivesse protegido tanto o conhecimento científico e a investigação. Os felizmente numerosos doutorados portugueses começaram a aparecer em equipas de investigação de topo em diversos campos a nível mundial. Hoje este investimento na ciência, que poderia dar de Portugal uma imagem diferente e contribuir de facto para o seu desenvolvimento, está a ser imensamente reduzido.
As energias alternativas, um domínio pioneiro em que Portugal se tinha há muito afastado dos últimos lugares e ocupado mesmo uma posição de certo relevo – o que permitiria a prazo diminuir a pesadíssima factura energética do país – deixou de ser assunto de primeira importância. Constitui um verdadeiro retrocesso.
O plano dos automóveis movidos a electricidade foi descontinuado. Porquê? Será que não tinha futuro? Ou será porque é mais fácil taxar os produtos derivados do petróleo e fazer deles uma boa receita para o Estado, como sempre sucedeu? Ainda anteontem em França, o actual primeiro-ministro Ayrault afirmava: “Há que dizer a verdade aos franceses. Num horizonte de 10, 20 anos, o preço da energia fóssil vai aumentar.”
Estamos perante um governo que atira aos patos que estão no chão – tiro fácil - como são os funcionários públicos, os pensionistas, os beneficiários do rendimento de inserção social – e esquece propositadamente aqueles patos que voam mais alto. Temos um governo de gente nova, bem preparada academicamente nalguns casos, mas obviamente com pouca experiência. O recente estudo feito sobre as fundações constituiu um exemplo representativo da sua falta de visão. Contém erros graves e inadmissíveis. Além do mais, e este aspecto é vital, as melhoras na sociedade portuguesa não são minimamente visíveis. Muito pelo contrário. As nossas dívidas ao estrangeiro aumentam. Algumas das nossas jóias da coroa (EDP, REN, Cimpor) estão já na mão de estrangeiros e outras (TAP, RTP e sabe-se lá mais o quê) para lá caminham. O habitual compadrio nas nomeações, com o consequente despedimento dos anteriores técnicos, mantém-se. São inúmeras as firmas que fecham. O desemprego atingiu níveis record.
Para quê tanto extermínio, se daí não saem resultados práticos? Onde está a novidade? A estratégia? Quanto não se perde do capital anteriormente ganho se em projectos antigos se fazem cortes pouco justificados? Sente-se que o serviço da dívida funciona para o país como areias movediças: quanto mais se mexe, mais ele se enterra. A eufemisticamente designada “ajuda financeira” da troika não passa de uma acção de empréstimos a níveis de juros agiotas, que levam o país a não conseguir endireitar-se.
As correcções que careciam de ser feitas acabam por ser  frequentemente mal concretizadas. A nova lei do arrendamento elaborada por este governo e aprovada pelo Parlamento e pelo Presidente reveste-se de aspectos que são cruéis, desumanos. Um número ainda indeterminado de pensionistas cumpridores dos seus contratos irão ser despejados das casas onde habitam há décadas se a lei for aplicada à letra.
Por seu lado, o Orçamento de Estado previa receitas fiscais com um excesso de optimismo, ignorando um dos princípios básicos da Contabilidade: o da prudência.
As correcções já anunciadas nas parcerias público-privadas não têm passado de cortes já contratualizados a fazer por empresas construtoras de estradas, por exemplo. Não se mexeu nas extraordinárias benesses que o Estado através de governos anteriores concedeu aos privados, que era onde se deveria ter mexido, tal como a Inglaterra fez no tempo de Mrs Thatcher.
Há em tudo esta acção governamental uma sanha destruidora. Abaixo o que a musa antiga canta, que outro valor mais novo e forte se alevanta! Pobre nação e pobre povo, que têm de aguentar todos estes desmandos!

Quero, entretanto, terminar com uma nota positiva. Respigo do editorial do Público de há três dias: “O gigantesco robô submarino que Sócrates comprou e que Cavaco quis conhecer quando tomou posse pela segunda vez, vai mergulhar no meio do Atlântico à procura de rochas e sedimentos para perceber até onde se prolonga o solo dos Açores no fundo do mar. Há dois anos que o Estado não investia em campanhas para melhorar a proposta de alargamento da plataforma continental que entregou à ONU e que, a ser aceite, fará com que a área marítima de Portugal passe a ser 41 vezes superior à terrestre – com todo o potencial de recursos, conhecimento e receitas que isso representa. A ONU vai analisar a proposta portuguesa a partir de 2016. É por isso elementar que o trabalho recomece. O ROV Luso foi comprado à Noruega em 2008, pelo governo PS, e continua agora o seu trabalho pela mão do governo PSD-CDS. E só pode ser assim. Uma política do mar séria tem de estar acima dos partidos e dos governos.”
Se se tivesse procedido assim em muitos dos projectos válidos de governos anteriores, não teríamos tido esta avassaladora sanha destrutiva, que nos condena a um futuro nada promissor.