A sanha destruidora
Dentro
dos parâmetros da minha educação académica sempre me custou entender que, num
determinado período em que deveria ter ouvido os meus professores falar sobre
um facto ou evento importante, eles não o tivessem feito. Não estava no
programa. E não estava no programa porque tinha sido considerado inconveniente
incluí-lo. A descoberta desse evento ou facto só viria eu a fazer por vezes
anos mais tarde. Geralmente por mero acaso.
Talvez
o facto que mais me tenha impressionado negativamente neste domínio foi quando
visitei Rabat. Aí deparei com um imponente local sagrado, numa zona plana
sobranceira ao mar (se a minha memória está correcta). Nesse local, para além de uma grande e
rica mesquita com relativamente poucos anos e do majestoso Mausoléu de Mohammed
V, existia uma área enorme com um minarete (Torre de Hassan) que outrora teria
sido bem mais alto mas que se encontrava parcialmente destruído. Em frente uma
enorme quantidade de colunas – 365, tantas quantas os dias do ano - também com
o aspecto de ruína. O guia informou-nos que naquela zona tinha em tempos sido
erigida pelo sultão Almansor a maior mesquita do mundo muçulmano. Ali, onde a
terra acabava e o mar começava. No Al Gharb (Ocidente) muçulmano. Quando,
impressionado, perguntei o que sucedera à mesquita para estar assim em tão
grande ruína, tive como resposta que fora destruída por um fortíssimo tremor de
terra. Em que data?, perguntei. 1 de Novembro de 1755 da era cristã.
Senti-me
perturbado. Durante a minha educação académica, incluindo a universitária,
tinha estudado várias vezes o tremor de terra de 1755. Nunca ouvira dizer que
esse mesmo terramoto tinha destruído a maior mesquita do mundo muçulmano. Mais
do que perturbado, senti-me revoltado. Por que motivo teriam escamoteado aquela
informação? Seguramente porque não era conveniente. Para quê incluir aquele
“pormenor” de um mundo que, aparentemente, não era o nosso? Mais: que era nosso
rival!
Anos
mais tarde, quando no claustro da Sé de Lisboa foram descobertos restos de uma
mesquita que tinha existido no local, confirmei a minha impressão: o que não é
da nossa religião é para destruir. Ocultar. Exterminar.
Na
mesma linha, entendi facilmente o que terá sucedido às centenas de sinagogas
que certamente existiram em todo o Portugal. Sobraram muito poucas e em mau
estado. Das três religiões monoteístas – islamismo, judaísmo e cristianismo –
esta última tinha vencido aqui no território português e destruído o que nos
seus domínios existia das religiões contrárias. Acabava-se a peçonha. No
ensino, bastava não falar do assunto. Era uma censura conveniente.
Repare-se
que em antigos mosteiros e conventos cristãos foram frequentemente instalados
hospitais, escolas, repartições públicas e outras instituições. Mas no caso de
edifícios de uma religião contrária, não era adaptação que se fazia, mas sim a
destruição.
Entretanto,
em Istambul gostei de ver que a famosa Mesquita – hoje Museu - de Santa Sofia
tinha no passado sido uma catedral cristã (construída no século VI pelo imperador
bizantino Justiniano). Tinham-lhe sido feitos aditamentos quando em 1453, com a
conquista de Constantinopla pelos turcos otomanos, o templo foi transformado em
mesquita, mas não existiu uma destruição.
Em
Portugal e em Espanha gostei de encontrar em museus numerosas estátuas romanas
em razoável estado de conservação. Os muçulmanos, que como se sabe vieram para
a Península Ibérica séculos após a dominação romana, não as tinham destruído.
Eram demasiado belas. Tinham-lhes no entanto em vários casos retirado a cabeça,
que enterraram, porque a sua religião não lhes permitia a representação da
figura humana.
Tudo
este intróito vem a propósito da sanha destruidora que os fundamentalistas do
actual governo têm feito relativamente a instituições que, conquanto não fossem
necessariamente más e fossem certamente passíveis de melhoria, ostentavam a
chancela de criação ou manutenção feita por um governo diferente e rival: o
socialista. Ao diabolizar o anterior chefe do governo, José Sócrates, o governo
actual considerou, por assim dizer, que tudo o que o diabo havia feito tinha
obrigatoriamente de ser exterminado.
Arrancado pela raiz sempre que possível.
José
Sócrates cometeu erros graves. O descontrolo das contas públicas não foi
certamente o seu mal menor. A criação de parcerias público-privadas, cujo
pecado original provinha da construção da ponte Vasco da Gama (Lusoponte),
idem. A aprovação da construção de auto-estradas com número claramente
insuficiente de utentes, também. Assim como a visão super-optimista do TGV, com
a qual nunca pude concordar. O aumento de 2,9 por cento concedido aos
funcionários públicos em vésperas de eleições em que Sócrates era candidato foi
com certeza mais um erro grave. E neste número cabe também a muito imperfeita
resolução do caso BPN.
Entretanto,
não terá sido o primeiro-ministro anterior o grande culpado pelos desmandos da
banca portuguesa. Não foi dele a culpa máxima da construção desenfreada de
imobiliário que se fez por esse país fora. Embora sem sucesso, tentou suster o
descalabro da Madeira. Melhorou em muito o parque escolar (mas exagerou na
despesa). Procurou mercados fora da União Europeia, como aliás países como a
Alemanha e a França igualmente faziam.
Porém,
pelo actual governo Sócrates foi visto como mais uma mesquita ou mais uma
sinagoga que urgia deitar abaixo. Tal como a juventude costuma ridicularizar a
experiência, em parte porque não a possui e gosta de proclamar a existência de
um mundo novo que nada tem a ver com um passado que será para esquecer, este
governo, o mais jovem e mais “angolano” que já tivemos, ignorou
propositadamente muitas coisas boas que tinham sido feitas.
Nesta
linha, atrevo-me a dizer que nunca houve um governo em Portugal que tivesse
protegido tanto o conhecimento científico e a investigação. Os felizmente
numerosos doutorados portugueses começaram a aparecer em equipas de
investigação de topo em diversos campos a nível mundial. Hoje este investimento
na ciência, que poderia dar de Portugal uma imagem diferente e contribuir de
facto para o seu desenvolvimento, está a ser imensamente reduzido.
As
energias alternativas, um domínio pioneiro em que Portugal se tinha há muito
afastado dos últimos lugares e ocupado mesmo uma posição de certo relevo – o
que permitiria a prazo diminuir a pesadíssima factura energética do país –
deixou de ser assunto de primeira importância. Constitui um verdadeiro
retrocesso.
O
plano dos automóveis movidos a electricidade foi descontinuado. Porquê? Será
que não tinha futuro? Ou será porque é mais fácil taxar os produtos derivados
do petróleo e fazer deles uma boa receita para o Estado, como sempre sucedeu?
Ainda anteontem em França, o actual primeiro-ministro Ayrault afirmava: “Há que
dizer a verdade aos franceses. Num horizonte de 10, 20 anos, o preço da energia
fóssil vai aumentar.”
Estamos
perante um governo que atira aos patos que estão no chão – tiro fácil - como
são os funcionários públicos, os pensionistas, os beneficiários do rendimento
de inserção social – e esquece propositadamente aqueles patos que voam mais
alto. Temos um governo de gente nova, bem preparada academicamente nalguns
casos, mas obviamente com pouca experiência. O recente estudo feito sobre as
fundações constituiu um exemplo representativo da sua falta de visão. Contém
erros graves e inadmissíveis. Além do mais, e este aspecto é vital, as melhoras
na sociedade portuguesa não são minimamente visíveis. Muito pelo contrário. As
nossas dívidas ao estrangeiro aumentam. Algumas das nossas jóias da coroa (EDP,
REN, Cimpor) estão já na mão de estrangeiros e outras (TAP, RTP e sabe-se lá
mais o quê) para lá caminham. O habitual compadrio nas nomeações, com o
consequente despedimento dos anteriores técnicos, mantém-se. São inúmeras as
firmas que fecham. O desemprego atingiu níveis record.
Para
quê tanto extermínio, se daí não saem resultados práticos? Onde está a
novidade? A estratégia? Quanto não se perde do capital anteriormente ganho se
em projectos antigos se fazem cortes pouco justificados? Sente-se que o serviço
da dívida funciona para o país como areias movediças: quanto mais se mexe, mais
ele se enterra. A eufemisticamente designada “ajuda financeira” da troika não
passa de uma acção de empréstimos a níveis de juros agiotas, que levam o país a
não conseguir endireitar-se.
As
correcções que careciam de ser feitas acabam por ser frequentemente mal concretizadas. A nova lei do arrendamento
elaborada por este governo e aprovada pelo Parlamento e pelo Presidente
reveste-se de aspectos que são cruéis, desumanos. Um número ainda indeterminado
de pensionistas cumpridores dos seus contratos irão ser despejados das casas
onde habitam há décadas se a lei for aplicada à letra.
Por
seu lado, o Orçamento de Estado previa receitas fiscais com um excesso de
optimismo, ignorando um dos princípios básicos da Contabilidade: o da
prudência.
As
correcções já anunciadas nas parcerias público-privadas não têm passado de
cortes já contratualizados a fazer por empresas construtoras de estradas, por
exemplo. Não se mexeu nas extraordinárias benesses que o Estado através de
governos anteriores concedeu aos privados, que era onde se deveria ter mexido,
tal como a Inglaterra fez no tempo de Mrs Thatcher.
Há
em tudo esta acção governamental uma sanha destruidora. Abaixo o que a musa
antiga canta, que outro valor mais novo e forte se alevanta! Pobre nação e
pobre povo, que têm de aguentar todos estes desmandos!
Quero,
entretanto, terminar com uma nota positiva. Respigo do editorial do Público de
há três dias: “O gigantesco robô submarino que Sócrates comprou e que Cavaco
quis conhecer quando tomou posse pela segunda vez, vai mergulhar no meio do
Atlântico à procura de rochas e sedimentos para perceber até onde se prolonga o
solo dos Açores no fundo do mar. Há dois anos que o Estado não investia em
campanhas para melhorar a proposta de alargamento da plataforma continental que
entregou à ONU e que, a ser aceite, fará com que a área marítima de Portugal
passe a ser 41 vezes superior à terrestre – com todo o potencial de recursos,
conhecimento e receitas que isso representa. A ONU vai analisar a proposta
portuguesa a partir de 2016. É por isso elementar que o trabalho recomece. O
ROV Luso foi comprado à Noruega em 2008, pelo
governo PS, e continua agora o seu trabalho pela mão do governo PSD-CDS. E só
pode ser assim. Uma política do mar séria tem de estar acima dos partidos e dos
governos.”
Se
se tivesse procedido assim em muitos dos projectos válidos de governos anteriores, não teríamos tido
esta avassaladora sanha destrutiva, que nos condena a um futuro nada promissor.
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