Educadores natos
Humanidade
O Homem, disse o Diabo,
É bom para os seus semelhantes;
Não se quer emendar, mas antes
Quer emendar os outros.
Piet Hein (Gruks, 1966)
Creio que dentro de muitos de nós – não
direi “toda a gente” para não exagerar - existe um educador e/ou um polícia. É
relativamente fácil descortinar este facto quando, por exemplo, se viaja de
automóvel e ao nosso lado vai alguém que critica mais ou menos severamente a
maneira de conduzir de um automobilista que segue no carro à nossa frente: “Já
viste a manobra que aquele indivíduo fez? Ultrapassou com traço contínuo!”, ou
“Para que é que ele tocou o cláxon? Não sabe que à noite é proibido usar a
buzina? Indivíduos como este deveriam ter de tirar a carta outra vez, voltar a
fazer o examezinho da praxe e depois se veria se passavam ou não”, ou ainda “Já
viram a mecha com que aquele indivíduo vai? Ninguém respeita os limites de
velocidade neste país! Estão as placas bem visíveis na estrada, mas tudo para
eles é igual! Era bem feito que aparecesse um polícia ali à frente e o multasse
por excesso de velocidade!”
Esta maneira de comentar as alegadas faltas
dos outros pressupõe, como é óbvio, que quem assim comenta nunca procederia do
mesmo modo. Em vez de poço de víboras que os outros são, verdadeiros inimigos
da sociedade, o comentador é um sabichão das dúzias. Na realidade, ele pode ser
também um poço, mas de sabedoria e virtude. Se alguém lhe chamar a atenção, o
comentador reage de pronto: “Você prefere a incompetência à competência? Você
não vê que condutores na estrada como estes são verdadeiros assassinos?”
Serão? Vamos imaginar que o mesmíssimo comentador
segue no carro de um velho amigo dos tempos do liceu. Este seu amigo possui uma
bela máquina, potente, que dá segurança nas ultrapassagens. Pois a amizade fará
com que o indivíduo aplauda o seu amigo pela maneira como ultrapassou “este
carro da lama; automobilistas que conduzem a quarenta à hora deviam ser
proibidos de andar na estrada!” e mesmo ignore a velocidade que o carro do seu
amigo atingiu para que a ultrapassagem fosse segura.
Não é coisa diferente o que frequentemente sucede
nos transportes colectivos. Os “comentadores de serviço” preferem neste caso sentar-se
nos lugares da frente, de molde a poderem falar com o motorista, ou então
seguem de pé perto do homem que vai ao volante: “Ena pá, olha a maneira como
arrumam os carros nesta rua! Um autocarro mal pode passar!” Aguarda desde logo
um sinal de aprovação do motorista. Se este responde, está perdido: até sair do
autocarro, o indivíduo não o vai largar. Vai falar com ele todo o tempo, com
isso distraindo-o eventualmente na sua condução. Nisto não pensa ele, no
entanto. Ter um indivíduo destes a sarnar um motorista é mais perigoso do que ter
o motorista a utilizar um telemóvel enquanto conduz. Se por acaso ocorre um raspão
numa viatura estacionada, o comentador põe-se logo do lado do chófer do
autocarro: “O gajo é que teve a culpa:
não devia ter deixado o carro parado com a traseira fora do passeio.” Daí passa
para a generalidade: “Agora nos exames de condução nem ensinam como se deve
arrumar um carro!” E depois ataca mais uma vez o automobilista que estacionou o
carro indevidamente: “Mas isto, a bem dizer, nem é preciso ensinar. Deve estar
na cabeça de cada um. Já ninguém respeita os outros, depois trama-se!”
Entretanto, quem conhece o trânsito na Turquia
ou na Índia chega facilmente à conclusão de que guiar em Portugal até é muito
fácil. Os condutores são no geral educados e guiam razoavelmente. Mas como não são
muitos os que vão a esses países, “em Portugal guia-se cada vez pior”. A seu
favor nesta afirmação, os opinadores contam com o testemunho do vice-presidente
do Automóvel Clube da Suécia, que há largos anos veio passar férias a Portugal
e foi questionado sobre o que achava da maneira de conduzir dos portugueses. A
resposta veio imediata: “Francamente, parece-me que conduzem como ladrões de
automóveis.” A comparação com a condução calma na Suécia é evidente.
Na Alemanha, há um grande número de
automobilistas que são simultaneamente educadores e polícias. Na cidade de
Berlim, por exemplo, com as suas longas e largas avenidas, só se atravessa
quando o sinal está verde para os peões. Pode estar a choviscar ou mesmo a
chover forte que o alemão não atravessa. Muitos dos estrangeiros, porém, têm
uma mentalidade diferente. Se, mesmo ao longe, o automobilista alemão os vê a
atravessar com o sinal que para si está verde acelera o mais que pode para lhes
dar um correctivo imediato. Confesso que não sei, num caso destes, se o
automobilista é considerado culpado, mas estou em crer que não. Afinal, quem
infringiu a lei foi o peão e não o condutor da viatura. A não ser que este vá
com excesso de velocidade.
Mas deixemos Berlim, onde um português pode
estar neste momento prestes a bater o record mundial dos 30 metros ao
atravessar uma avenida o mais rapidamente que consegue para não ser atropelado
por um daqueles alemães-que-não-perdoam.
Voltemos a Lisboa: “As pessoas hoje não se
sabem comportar. Quem é que dá o lugar a esta senhora que traz o bebé ao colo?”
pergunta a mulher que vai de pé no autocarro à cunha. É uma senhora já com alguma
idade que se levanta. Um cavalheiro levanta-se do seu lugar e diz em voz alta:
“Ó minha senhora, sente-se, sente-se, que já não é nova! Eu vou já sair. Dou o
lugar àquela senhora com o bebé!” Conseguiu dois em um: para lá de deixar
subentendido que a senhora que se tinha levantado era já velhota, ficou com os
louros de oferecer o seu lugar. Grande homem!
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